Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3434/08.9TBGMR.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: SEGURO DE VIDA
BENS COMUNS DO CASAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - É bem próprio, e não comum, o seguro de vida que, celebrado por um dos cônjuges casados no regime da comunhão geral de bens, se vence a seu favor.
II - O dinheiro que tenha servido para pagar o prémio de tal seguro, mesmo que neste se pudesse destacar uma componente de investimento, não tem de ser relacionado com bem comum.
III - Se o prémio foi suportado com recursos comuns do casal, compete ao cônjuge em favor de quem se vence o seguro conferir tais recursos ou compensar o património comum.
IV - O tribunal não pode ordenar a conferência ou compensação se o interessado no inventário a não requereu, antes requereu a relacionação e partilha daquele dinheiro como bem da herança.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães:

Sónia requereu oportunamente, pelo Tribunal Judicial de Guimarães, inventário para partilha dos bens deixado por sua mãe Maria…, falecida em 3 de Maio de 2005, e que foi casada em regime de comunhão geral de bens com Agostinho…,
Seguindo o processo seus termos, foram prestadas pelo cabeça de casal, o cônjuge sobrevivo Agostinho… , as competentes declarações, bem como foi apresentada a relação de bens.
O interessado João… apresentou reclamação contra tal relação de bens, acusando a falta de inclusão de metade indivisa, com referência à data da morte da inventariada, do valor referente a um seguro de vida individual, contratado em 29 de Julho de 2002 e para ter termo em 20 de Julho de 2010, a que correspondeu a entrega do prémio não periódico de €32.543,26. Seguro esse em que foi tomador e pessoa segura o cabeça de casal, beneficiário em caso de vida, e em que foram designados beneficiários os herdeiros legais do tomador em caso de morte.
Opôs-se o cabeça de casal, dizendo que não havia que relacionar tal bem, na medida em que se tratava de bem excluído da comunhão, nos termos da al. e) do nº 1 do art. 1733º do CCivil.
Foram levadas a efeito diligências probatórias atinentes à decisão desta questão.
Apurou-se, através da informação prestada pela Seguradora a fls. 202, que à data da morte da inventariada o saldo do seguro era de €35.788,21 e que o seguro veio a ser resgatado pelo cabeça de casal em 18 de Novembro de 2008 pelo valor ilíquido de €40.589,13.
Foi então proferido despacho a indeferir a reclamação (fls. 224).
A final foi proferida sentença a homologar a partilha conforme constava do respectivo mapa.

Inconformado com o assim decidido, e impugnando também o despacho que indeferiu a sua reclamação contra a relação de bens, apela o interessado João Pedro Salgado Silva Machado.

Da sua alegação extrai as seguintes conclusões:

1.ª Nos presentes autos de inventário para partilha dos bens deixados por morte de Maria… , veio o interessado, ora recorrente, entre outros, reclamar, a fls. 63 e ss, da omissão da relação de bens relativamente a certos bens, nomeadamente, metade indivisa do valor referente ao investimento no POSTAL EURO CAPITAL SÉRIE B, subscrito na Estação de Correios de São Martinho do campo, com a apólice 5014.
2.ª Para prova da existência do mesmo, juntou cópia de carta enviada pela FIDELIDADE MUNDIAL – Seguros – em Maio de 2007, informando do saldo existente em 31/12/2006 - €38.570,59 (trinta e oito mil, quinhentos e setenta euros e cinquenta e nove cêntimos), tendo igualmente requerido que fosse oficiado aos CTT a fim de juntar aos autos informação sobre o montante existente à data da morte da inventariada.
3.ª Por despacho de 17/03/2009 - fls. 98 e ss - ordenou o Meritíssimo Juiz a quo “Notifique a Mundial Confiança S.A. para, em dez dias e sob pena de multa, juntar aos autos cópia do contrato, da apólice n.º02/00514 e das respectivas condições gerais e particulares, bem como para informar acerca do respectivo saldo existente à data do óbito da inventariada (3 de Maio de 2005).”
4.ª Veio a Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, S.A. responder – fls.202 - , com data de entrada em juízo de 20/07/2009 que “o saldo existente na apólice titulada pelo Sr. Agostinho… à data da morte da Sra. Maria… ocorrida em 03/05/2005 era 35.788, 21€ (trinta e cinco mil setecentos e oitenta e oito euros e vinte e um cêntimos).
5.ª Em 29/07/2009 – fls. 209 e ss - veio o ora recorrente requerer, face à notificação da informação prestada pela Companhia de Seguros, que fosse “relacionada metade indivisa da quantia de €35.788,21 correspondente ao saldo existente na apólice titulada pelo cabeça de casal à data da morte da inventariada, uma vez que o dinheiro aplicado no investimento POSTAL EURO CAPITAL SERIE B, era comum face ao regime da comunhão geral em que eram casados a inventariada e o cabeça de casal.”
6.ª A fls. 213 veio o cabeça de casal, em resposta à antecedente reclamação feita pelo interessado, ora recorrente, dizer, entre o mais que “dispõe a alínea e) do n.º 1 do art. 1733º do referido código que, “São exceptuados da comunhão: [… … … … … …] e) Os seguros vencidos em favor da pessoa de cada um dos cônjuges ou para cobertura de riscos sofridos por bens próprios…”, pelo que do património a partilhar não faz parte a metade indivisa da quantia de €35.788,21, correspondente ao saldo existente na apólice titulada pelo cabeça de casal, à data da morte da inventariada.”
7.ª Foram ainda junto aos autos, em 02/11/2009 – fls.217 e ss, pela Companhia de Seguros Fidelidade Mundial S.A. a cópia do contrato e das condições particulares da referida apólice n.º 02/005014.
8.ª Das mesmas resulta que a referida aplicação foi feita em 29/07/2002, pelo prazo de oito anos e um dia, tendo sido aplicado o montante de 32.543,26 (trinta e dois euros, quinhentos e quarenta e três euros e vinte e seis cêntimos).
9.ª Por despacho de 16/12/2009, de fls. 224, improcedeu o requerido relacionamento de tal importância.
10.ª Sucede que, no auto de declarações de cabeça de casal – fls. 41 – declarou o cabeça de casal que a inventariada faleceu em 03/05/2005 “no estado de casada com o cabeça de casal, aqui declarante, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens”.
11.ª Como muito bem citou o cabeça de casal no seu requerimento de fls213, “De harmonia com o disposto no art. 1732º do C. Civil, no regime de comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei.”
12.ª Assim como referiu que por seu turno, o art. 1733º, nº1 exceptua da comunhão: “e) os seguros vencidos em favor da pessoa de cada um dos cônjuges ou para cobertura de riscos sofridos por bens próprios;”
13.ª Ora, tal como se pode ler em Pires de Lima e Antunes Varela, in,”Código Civil, Anotado”,Vol. IV, 2ª ed.,pág. 442, “É ainda o carácter eminentemente pessoal (…) dos seguros vencidos em favor da pessoa de cada um deles, que justifica a natureza incomunicável do direito a essas prestações”, o que lido no conjunto de todo o artigo resulta tratar-se de bens atribuídos por terceiros exclusivamente a um dos cônjuges, e nunca a sua constituição pelo próprio, como sucede no caso dos autos.
14.ª Para o caso dos presentes terá de ser chamado à colação o art.1734º que prescreve que “são aplicáveis à comunhão geral de bens, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à comunhão de adquiridos”.
15.ª Por isso, pertencem também à categoria dos bens excluídos por lei da comunhão, os bens constantes da alínea c) do art. 1723º do C. Civil, ou sejam, “os bens adquiridos (…) com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges”.
16.ª Entendendo, como entendemos, que a exigência de menção da proveniência do dinheiro tem de constar de documento se exige apenas nas relações dos cônjuges com terceiros, nas relações entre os cônjuges, para efeitos de qualificação do bem como próprio de um dos cônjuges, é admissível a prova por qualquer meio, de que o mesmo foi adquirido com dinheiro ou valores próprios desse cônjuge-adquirente.
17.ª Daqui decorre que, no âmbito da relação de bens com vista à partilha dos bens comuns do casal, podia o cabeça de casal demonstrar que determinado bem não é comum, mas próprio dele. Cabendo-lhe, então, de harmonia como disposto no art. 342º, nº1 do C. Civil, porque pretende ver determinado bem excluído da relação de bens, o ónus de alegação e da prova de que aquele bem é próprio dele ou foi adquirido só com dinheiro dele, uma vez que tal alegação e prova reportam-se a factos constitutivos do seu direito de ver considerado determinado bem como bem próprio.
18.ª Nos presentes autos existe prova documental bastante para ser dado como provado que o referido investimento feito em 29/07/2002, e estando a inventariada casada com o cabeça de casal no regime da comunhão geral, foi feito com dinheiro comum, pelo que deveria ter sido relacionada a requerida metade indivisa do montante existente à data da morte da inventariada. (em sentindo semelhante vide Ac. TRG de 25/02/2008, Proc. N.º 41/08-2 in www.dgsi.pt).
19.ª Até porque, o cabeça de casal nem sequer alegou (ficando, por isso, impedido de provar, tal como lhe competia nos termos do citado art. 342º,n.º1) que aquele investimento foi feito com dinheiro exclusivo dele, pelo que, atento o disposto no citado art. 1732º, não pode deixar de ser considerado como um bem comum, na posse da cabeça de casal.
20.ª Referira-se, ainda que, a presente questão em sindicância não revela grande dúvida nem complexidade, pelo que deveria o tribunal a quo ter julgado procedente a reclamação.

Termina dizendo que devem ser revogadas as decisões postas em sindicância (sentença que homologou a partilha e despacho de fls. 224), devendo ser substituídas por decisão que julgue como fazendo parte da herança a metade indivisa da quantia de €35.788,21, correspondente ao saldo existente na apólice titulada pelo cabeça de casal à data da morte da inventariada.

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O cabeça de casal contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação.
Entretanto, e como questão prévia, afirma que o recurso não deve ser admitido, pois que se traduz num manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Isto porque o Apelante acordou na conferência de interessados quanto à partilha dos bens relacionados, recebeu as tornas que lhe competia receber de acordo com tal partilha, tendo inclusivamente passado recibo onde declarou nada mais ter a receber do Apelado cabeça de casal. Como assim, não é tolerável que venha agora pugnar pela inclusão na partilha de um novo bem.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

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Da questão prévia suscitada pelo Apelado:

É certo que o Apelante acordou na conferência de interessados quanto aos bens a integrar o quinhão dos diversos interessados; é também certo que recebeu as tornas que, segundo a partilha feita, lhe cabiam; é ainda certo que emitiu recibo do recebimento dessas tornas onde disse que nada mais tinha a receber.
Mas não vemos que isto o impeça de sustentar por via de recurso aquilo que sustentou, mas viu indeferido, no tribunal recorrido.
Pois que, como nos parece linear, a apontada actuação do Apelante (e que o Apelado considera contraditória com o efeito visado com o presente recurso) reportou-se unicamente à partilha tal como esta se apresentava naquele momento e tal como foi feita. Nada mais que isto.
Em sítio algum tal actuação revela, expressa ou implicitamente, um propósito de remissão (renúncia ao direito de exigir a prestação e sobre que aquiesce o devedor), ou de remissão abdicativa (renúncia antecipada a um direito que se venha a verificar existir) relativamente ao mais que entendeu, mas viu indeferido, dever ser partilhado no inventário.
Portanto, o presente recurso não constitui qualquer acto abusivo por parte do Apelante.
Improcede assim a apontada questão prévia.

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A questão que o Apelante coloca à decisão desta Relação é a de saber se deve ser relacionado como bem da herança, e como tal partilhado, metade do valor do seguro à data da morte da inventariada.

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Plano Factual:

Damos aqui por reproduzidas as incidências fácticas acima descritas.


Plano Jurídico-conclusivo:

Está em causa um seguro de vida.
Recorde-se, parafraseando Francisco Guerra da Mota (O Contrato de Seguro Terrestre, Primeiro Volume, pp. 165 e 166) e José Vasques (Contrato de Seguro, pp. 38, 75 e 76), que seguro de vida é o contrato pelo qual o segurador recebe do tomador do seguro (segurado), por uma ou mais vezes, certa quantia (prémio) e promete pagar àquele ou a outrem (beneficiário) uma soma de dinheiro determinada (benefício), em caso de vida ou de morte de uma pessoa (pessoa segura ou beneficiária). «O capital seguro, acrescenta Guerra da Mota, ob. cit., p. 167 e 168, pode-se destinar à própria pessoa cuja vida se segura (seguro em caso de vida) ou a outrem designado na apólice (beneficiário), que adquire um mero direito potencial, uma expectativa, que apenas se transforma em definitivo no momento do vencimento do seguro e desde que se encontre vivo e que o benefício se mantenha a seu favor». E diz José Vasques (ob. cit., p. 75): «O seguro de vida é o seguro, efetuado sobre a vida de uma ou várias pessoas seguras, que permite garantir, como cobertura principal, o risco de morte ou de sobrevivência ou ambos».
Actualmente a disciplina deste tipo de contratos está definida, designadamente, nos art.s 175º e sgts. do DL 72/08 (regime jurídico do contrato de seguro), e a eles se refere também, e nomeadamente, o art. 124º DL nº 94-B/98, cujas soluções confirmam a bondade do que afirmam os supra citados autores.
O seguro em causa foi contratado pelo ora Apelado, sendo ele o beneficiário em caso de vida e, em caso de morte, beneficiários os seus herdeiros.
Deverá tal seguro de vida ser levado em linha de conta no presente inventário?
Vejamos:
Nos termos do art. 2031º do CCivil, a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor, de sorte que integrarão o acervo hereditário os bens e direitos de que o de cujus seja titular em tal momento.
Conforme resulta do art. 1732º do CCivil, quando o regime de bens for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes (os levados para o casal, ou seja, os bens cuja aquisição é anterior ao casamento) e futuros (ou seja, os bens adquiridos na constância do casamento) dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei.
São, todavia, exceptuados por lei, sendo por isso bens próprios de um ou outro dos cônjuges, os seguros vencidos em favor da pessoa de cada um dos cônjuges (al. e) do nº 1 do art. 1733º do CCivil).
Convém entender bem o alcance desta norma.
O que ela pretende significar é apenas que aquilo que o cônjuge adquire a título de um seguro que se tenha vencido a seu favor (isto é, de seguro de que ele seja beneficiário) é coisa própria sua, e não coisa que se comunique ao seu cônjuge (rectius, bem comum). A opção da lei funda-se neste pressuposto: estamos perante um quid eminentemente pessoal, pois que resultante de uma ordenação que tem em vista a pessoa do cônjuge e não as pessoas de ambos os cônjuges, e que, por isso, deve logicamente levar a uma aquisição que reverte apenas para a pessoa desse cônjuge (v. a propósito, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, IV, anotação ao art. 1733º). Acrescente-se que é indiferente para o caso, pois que a norma não distingue nem se antolha que sentido faria uma tal distinção, que o seguro tenha sido contratado pelo próprio beneficiário (portanto, em seu favor), que tenha sido contratado por um dos cônjuges a favor do outro, ou que tenha sido contratado por terceiro a favor de qualquer dos cônjuges. Portanto, carece de razão o Apelante aí onde pretende (v. conclusão 13ª), que a referida exclusão só operaria se acaso estivéssemos perante um bem (o seguro) atribuído por terceiro exclusivamente a um dos cônjuges.
Sendo aquele o sentido da norma, bem se vê que dela não se pode retirar a contrario que os seguros não vencidos em favor da pessoa de um dos cônjuges representem um bem comum. Na realidade, um seguro só representa um bem relevante para os efeitos em causa quando se vence a favor do cônjuge beneficiário, no sentido de que, adversamente ao que sucederia se a supra citada norma não existisse, é legalmente afastada a comunicabilidade do capital que o vencimento do seguro produz.
E o que é que se passa até o seguro se vencer?
Desde logo, é certo que até então nada ingressa no património comum, ou seja, não ingressa a prestação da seguradora, o pagamento do capital. Nada há, portanto, a partilhar a título desse seguro em caso da cessação (designadamente por morte) das relações patrimoniais entres os cônjuges, na certeza de que o que não existe juridicamente no património comum não pode ser partilhado. De outro lado, até ao vencimento do seguro o beneficiário que tenha sido indigitado para o caso de morte do segurado, e como observa Guerra da Mota (v. supra), possui uma simples expectativa, que apenas se transformará num direito no momento do vencimento do seguro e desde que se encontre vivo e que o benefício reverta e se mantenha a seu favor.
Ora, a inventariada Maria… faleceu no dia 3 de Maio de 2005, e nessa altura por título algum havia ingressado no património comum o capital a pagar pelo seguro. Não havia ingressado, nem poderia ter ingressado, quer porque estava por vencer o seguro, quer porque sempre se tratava de seguro a favor do segurado cabeça de casal, na certeza de que em caso de sobrevivência (e tal sobrevivência registou-se) era o mesmo cabeça de casal o beneficiário. Como tal, e por aplicação da supra citada norma legal, trata-se de bem próprio desse beneficiário, logo não comum nem partilhável. Assim sendo, como é, o seguro em questão não tem de ser levado em conta no presente inventário.
Entretanto, há que reconhecer que o Apelante põe ênfase, não tanto no capital seguro (embora, algo contraditoriamente, pugne pela partilha de metade do valor desse capital à data da morte da inventariada), mas no dinheiro (prémio), a que chama “investimento”, que foi entregue pelo Apelado aquando da contratação do seguro. Sustenta que é de entender que se tratou de um investimento feito com dinheiro que é de ter como comum, pelo que faz parte da herança “a metade indivisa da quantia de €35.788,21 correspondente ao saldo existente na apólice (…) à data da morte da inventariada”.
Mas será assim?
Não duvidamos, pelas razões jurídicas constantes da alegação de recurso e que são efectivamente de subscrever, que o dinheiro que serviu para pagar o prémio do seguro deva ser visto, até alegação e prova em contrário a fazer pelo cabeça de casal (o que não foi feito), como bem pertencente ao acervo comum.
Porém, não encontramos que isso tenha o condão de transmudar o seguro em causa num simples contrato de colocação de capitais ou de investimento, neutralizando pura e simplesmente o contrato de seguro efectivamente celebrado. Ou seja, e atalhando caminho, não podemos aceitar que aí onde se contratou um seguro tendente à cobertura de um risco durante um certo período, se passe a ver pura e simplesmente um contrato de aplicação de capitais ou de investimento. Convém ter presente que o seguro de vida não representa em si mesmo (juridicamente) uma entrega de capitais em que a seguradora tenha de restituir outro tanto mais uma certa remuneração (o que seria próprio do mútuo), mas sim um contrato pelo qual o segurador recebe do tomador do seguro um prémio e se vincula pagar a este ou a um terceiro beneficiário uma outra soma de dinheiro em caso de vida ou de morte de uma pessoa, em atenção ao risco assumido.
O entendimento do Apelante aproxima-se (mas excede-o), há que o reconhecer, do entendimento de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira. Escrevem estes autores (v. Curso de Direito da Família, Volume I, 3ª ed., p. 582), a propósito, o seguinte: «Os seguros vencidos em favor da pessoa de um cônjuge ou para cobertura de riscos sofridos por bens próprios também são incomunicáveis (al. e)). Mas a fórmula legal carece de apreciação. (…) está hoje vulgarizado um tipo de contrato de seguro que não compreende apenas a cobertura de riscos, que engloba uma componente de poupança, remunerada com juros, atraentes e com capitalização; esta parte do contrato é facilmente separada da outra, inclusive para efeitos de resgate. Assim, cremos que pelo menos esta componente de poupança, constituída à custa dos salários, de bens comuns, deve ter o tratamento de qualquer outro aforro: deve ser considerada como um bem comum».
Este entendimento não se mostra, quanto a nós, nada convincente, e por isso não o subscrevemos. Pois que confunde (e não há que confundir, como acima se referiu) entre contrato de seguro e um qualquer contrato de aplicação de capitais ou de investimento. É que mesmo que o prémio do seguro seja pago com o aforro do casal e o capital a entregar ao beneficiário leve em conta algum tipo de remuneração, nem por isso se deixa de se estar perante um contrato de seguro para todos os efeitos e, como assim, também para efeitos da exclusão prevista na al. e) do nº 1 do art. 1733º do CCivil.
Mas, a dever porventura ser subscrita a opinião daqueles autores, a verdade é que in casu ela não ajuda em ordem a concluir pela relacionação do bem em causa. É que não sabemos, que nem alegado foi (e a proposta e a apólice juntas aos autos também não fazem luz acerca de tal, conquanto esta última faça menção a “conta poupança”), se o seguro em causa engloba, para além da cobertura do risco nele constante, alguma componente de poupanças do casal. Tão pouco há elementos que permitam distinguir entre a parte que tenha visado cobrir o risco e a parte que tenha eventualmente visado aplicar uma tal poupança. E isto, só por si, sempre tornaria inútil a adoção no caso vertente do entendimento dos referidos autores.
O que vem de dizer-se não significa necessariamente que a afectação de recursos comuns dos cônjuges a um contrato de seguro de vida que reverte a favor unicamente de um deles deva ser algo de irrelevante em sede de partilha. De facto, quando assim suceda, parece ser razoável entender que o património comum deve ser compensado atinentemente, de acordo com o estabelecido no nº 1 do art. 1689º do CCivil (aplicável, se não directamente, pelo menos por analogia), conferindo o cônjuge beneficiário o que dever a esse património comum. É esta, no essencial, a opinião de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (ob. e loc. cit.), quando dizem: «(…) merece discussão (…) o caso de os prémios do seguro , para além de serem pagos com dinheiro comum, como é vulgar, serem manifestamente excessivos ou desproporcionados relativamente ao padrão de vida do casal. Talvez seja justo, em algum caso destes, determinar uma compensação devida pelo cônjuge segurado em favor do activo comum».
A ser assim, como parece que deverá ser, então o ora Apelado, cônjuge sobrevivo e beneficiário do seguro, havia de conferir (compensar) ao património comum metade do valor do prémio do seguro que contratou.
Simplesmente, a questão que foi colocada ao tribunal recorrido e a questão que é colocada no presente recurso não é essa de conferir ou compensar, mas outra juridicamente muito diferente: a da relacionação de um bem (dinheiro) tido por pertença, em metade, da inventariada, e que deveria agora ser partilhado pelos diversos herdeiros como tal, isto é, como bem da herança.
Como assim, e sob pena de se exorbitar o thema decidendum tal como foi suscitado pelo interessado e ora Apelante na sua reclamação contra a falta de bens na relação, não pode o tribunal levar em linha de conta para efeito algum a indicada conferência ou compensação.
Do que fica dito resulta que o despacho que indeferiu a relacionação do dinheiro (metade) correspondente à entrega (prémio) feita pelo ora Apelado não merece censura, justamente porque não estamos perante um bem comum, e só um bem que tal é partilhável. E, em decorrência, censura também não merece a sentença que homologou a partilha que foi feita.
Deste modo, improcedem a apelação e a impugnação do dito despacho, sendo de confirmar as correspectivas decisões.

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Sumário (art. 713º nº 7 do CPC):
I - É bem próprio, e não comum, o seguro de vida que, celebrado por um dos cônjuges casados no regime da comunhão geral de bens, se vence a seu favor.
II - O dinheiro que tenha servido para pagar o prémio de tal seguro, mesmo que neste se pudesse destacar uma componente de investimento, não tem de ser relacionado com bem comum.
III - Se o prémio foi suportado com recursos comuns do casal, compete ao cônjuge em favor de quem se vence o seguro conferir tais recursos ou compensar o património comum.
IV - O tribunal não pode ordenar a conferência ou compensação se o interessado no inventário a não requereu, antes requereu a relacionação e partilha daquele dinheiro como bem da herança.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando as decisões (despacho de fls. 224 e sentença) sob recurso.

Regime de custas:

O Apelante é condenado nas custas inerentes à apelação.

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Guimarães, 16 de Junho de 2011
José Rainho
Augusto Carvalho
Conceição Bucho