Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
465/14.3T8VRL-A.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: HONORÁRIOS
MANDATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O crédito de honorários relativo ao exercício do mandato por parte de um advogado não tem natureza pessoal e incindível do seu credor originário, pelo que a esse nível inexiste obstáculo à sua cessão; ele não está, para os efeitos do n.º 1 do artigo 577.º CC, "pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor".
II - O advogado liquida o seu crédito quando apresenta a nota de honorários àquele que foi seu mandante, interpelando-o a pagar-lhe o respectivo valor. A circunstância do montante do crédito vir a ficar controvertido não lhe confere a natureza de ilíquido.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Miguel C instaurou a presente acção declarativa, que corre termos na Secção Cível da Instância Central de Vila Real, da Comarca de Vila Real, contra Fernando M, pedindo a condenação deste "no pagamento de € 80.000 (oitenta mil euros) ao Autor acrescidos do respectivo IVA, e juros a contar da citação, bem como em custas, taxas de justiça e honorários ao Autor pelo serviço que implica a lide".
Alegou, em síntese, que é advogado e que no processo de inventário 125/92, onde o réu era interessado, este contratou o Dr. Domingos D como seu mandatário, o qual representou o réu até 04-01-2002, altura em que substabeleceu noutros colegas, até que, por substabelecimento, o mandato de representação do réu passou a incumbir ao autor. E foi efectuada cedência do crédito do inicial mandatário a seu favor, do que foi dado conhecimento ao réu que aceitou.
O réu contestou afirmando, em síntese, não aceitar o valor dos honorários apresentados.
Na pendência da acção o réu faleceu, tendo então sido habilitados os seus herdeiros, Rosa M, casada com Horácio C, Maria G, casada com Silvério F e Domingos L, casado com Maria F.
Procedeu-se a julgamento.
Foi proferida sentença em que se decidiu que:
"Por tudo o exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente por provada e consequentemente:
1.º Condeno os réus habilitados a pagarem ao Exmo. Advogado Sr. Dr. Miguel C, aqui autor, a quantia global de € 40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida de IVA à taxa legal de 23 %, bem como de juros de mora, à taxa legal supletiva, desde a data desta sentença até integral pagamento.
2.º Absolvo os réus habilitados da parte restante do pedido.".
Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1- O Digníssimo Juiz condenou os réus no pagamento de € 40.000, acrescidos de juros, apenas contados a partir da data da sentença.
2- Esse é o primeiro ponto de desacordo relativamente à mesma
3- Fundamentou tal decisão na qualificação do crédito reconhecido ao autor, como ilíquido, nos termos do disposto nos artigos 804.º n.º 2 e 805.º n.º 3, 1.º parte, do C. C.
4- O autor discorda de tal decisão, e entende que a mesma viola precisamente esses mesmos artigos, pois apenas são válidos para a responsabilidade civil extracontratual.
5- O caso sub judice é relativo a responsabilidade contratual - n.º 1 do artigo 1158.º do C. C.
6- A sentença apenas fixou o quantum da obrigação que foi liquidada pelo autor na apresentação da nota de honorários - artigo 17.º dos Factos Provados.
7- A contestação não tornou o crédito ilíquido - dessa forma estaria descoberta a forma de todos os devedores se furtarem ao pagamento de juros (contestando o crédito).
8- Os juros moratórios deveriam ter sido contabilizados desde a citação, tal como pedido pelo autor.
9- O Digníssimo Juiz absolveu os réus do pagamento do restante pedido, relativo aos créditos pelos serviços prestados pelo inicial Mandatário Sr. Dr. Domingos D.
10- Também discorda dessa Douta Decisão.
11- Entendeu que a cessão de créditos ao autor era proibida nos termos do disposto no artigo 107.º n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados - lei especial em relação ao código civil (artigos 577.º e ss.).
12- O autor, respeitosamente, discorda, e entende que nada nesse normativo a proíbe.
13- Com efeito ficou provado que o Sr. Dr. Domingos D cedeu ao autor os créditos pelos serviços por si prestados.
14- Essa cessão foi comunicada ao réu, que a aceitou.
15- Significa que, a partir da cessão, o réu sabia que teria de pagar ao autor o que devia ao Sr. Dr. Domingos D - ou seja, o devedor não colocou obstáculos à cessão.
16- Também tratamos de prestações pecuniárias, (por isso de bens fungíveis), o que significa que a prestação não estava ligada à pessoa do credor.
17- Tudo nos termos do disposto no artigo 577.º do C. C.
18- Por outro lado, o referido artigo 107.º do Estatuto tem como ratio legis proteger o Advogado, não pago pelos serviços prestados ao cliente devedor, na eventualidade deste recorrer a outro Advogado, na pendência do serviço jurídico.
19- Ou seja, desse normativo não surge uma proibição de cedência de crédito, mas sim uma proibição de outro Mandatário assumir o Mandato, antes do Mandatário credor ser ressarcido pelo seu (crédito) - pretende proteger o Advogado credor.
20- Aliás, existem outros artigos desse Estatuto que, recorrendo a uma interpretação sistemática, e mesmo a contrario sensu, permitem concluir que o mesmo permite cedências de créditos entre Advogados (pela prática de serviços forenses). Neste sentido confronte o disposto no artigo 102.º (Repartição de Honorários com outros Advogados); artigo 100.º (Honorários); artigo 95.º n.º 1 e) e n.º 2 (Outros Deveres - não cessar, sem motivo justificado, o patrocínio).
21- Mesmo o Regulamento dos Laudos de Honorários (Regulamento 40/2005 - 2.ª série, de 29 de Abril de 2005) não proíbe a emissão de laudo no caso de ter havido cedência de crédito - neste sentido confronte artigo 6.º n.º 1, parte final.
22- Mais: o próprio devedor pode solicitar a emissão de laudo.
23- O crédito poderia até ser alvo de penhora e venda executiva a um terceiro.
24- Não existe nada na lei que proíba a cessão de créditos relativos a serviços forenses, entre advogados (e muito menos neste caso em que, por via dos sucessivos substabelecimentos, não havia qualquer sigilo).
25- Não existe por isso "norma especial que proíba a cessão".
26- A cessão produz efeitos imediatos por mero efeito do contrato, com a notificação ao devedor - artigo 583.º do C. C (que teve dela conhecimento e a aceitou - factos Provados 4.º e 5.º).
27- Pela cessão, o autor tornou-se proprietário do crédito devido pelos serviços forenses prestados pelo Sr. Dr. Domingos D, sendo que o réu sabia que era a ele que deveria pagar.
28- Significa que os réus não deveriam ter sido absolvidos dessa parte do pedido.
29- Ainda que o Digníssimo Juiz considerasse que apesar de titular desse crédito, o autor, não tinha legitimidade para o liquidar (no que não concede), sempre o mesmo deveria ter sido liquidado nos presentes autos (até por uma questão de economia processual).
30- O réu invocou contra o autor os meios de defesa que poderia opor ao credor inicial, nos termos do disposto no artigo 585.º do C. C.
31- Ou seja, não estava desprotegido.
32- Em ponto nenhum do processo o réu alegou que não poderia haver cessão de créditos, ou que o autor não poderia apresentar a conta pelos serviços prestados pelo Sr. Dr. Domingos D.
33- Justificava-se por isso a condenação dos réus na totalidade do pedido, com juros contados desde a citação.
34- A manter a decisão de não fixar o quantum relativo ao crédito pelos serviços prestados pelo Mandatário Domingos D, por falta de legitimidade do autor, sempre deveria ter ocorrido uma absolvição dos réus da instância, nos termos do disposto no artigo 278.º n.º 1 d), do C. P. C., e não uma absolvição do pedido,
35- pois o autor poderá sempre socorrer-se da elaboração de outra conta, pelo próprio Sr. Dr. Domingos D, e interpor novo processo, nos termos do disposto no artigo 279.º n.º 2 do C. P. C.
36- A Douta Sentença viola assim os artigos 804.º n.º 2 e 805.º n.º 3, 1.º parte, 577.º, 585.º, 583.º todos do C. C., o artigo 107.º, n.º 2, e artigo 100.º (Honorários); artigo 95.º n.º 1 e) e n.º 2 (Outros Deveres - não cessar, sem motivo justificado, o patrocínio), do Estatuto da Ordem dos Advogados, o artigo 6.º n.º 1 do Regulamento dos Laudos de Honorários (Regulamento 40/2005 - 2.ª série, de 29 de Abril de 2005), e o artigo 278.º n.º 1 d), do C. P. C.
Os réus contra-alegaram sustentando que a improcedência do recurso.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil (1), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "os juros moratórios deveriam ter sido contabilizados desde a citação, tal como [é] pedido" (2);
b) "não existe nada na lei que proíba a cessão de créditos relativos a serviços forenses, entre advogados" (3);
c) "a manter a decisão de não fixar o quantum relativo ao crédito pelos serviços prestados pelo Mandatário Domingos D, por falta de legitimidade do autor, sempre deveria ter ocorrido uma absolvição dos réus da instância, nos termos do disposto no artigo 278.º n.º 1 d), do C. P. C., e não uma absolvição do pedido" (4).
II
1.º
Estão provados os seguintes factos:
A- O autor exerce a profissão de Advogado, no escritório sito na Rua de Timor, nº 21, Bl. 1, 2º andar, Vila Pouca de Aguiar.
B- Neste Tribunal correu termos o processo inventário 125/92 e no qual o réu era interessado, aí exercendo o cargo de cabeça-de-casal.
C- No âmbito daquele processo, o réu dirigiu-se ao escritório referido em A) no sentido de constituir mandatário forense o Dr. Domingos D e assim representá-lo no referido processo.
D- Consequentemente o Dr. Domingos D, na qualidade mandatário forense, representou o réu no processo de inventário desde o seu início até 04-01-2002.
E- Em 04-01-2002, o Dr. Domingos D substabeleceu os poderes que lhe havia conferido o réu a favor dos ilustres advogados Dr. Manuel C e Dr.ª Sandra S, na sequência da suspensão da sua inscrição na Ordem dos Advogados a fim de exercer o cargo de Presidente da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, para o qual havia sido eleito.
F- A partir de 22 de Março de 2002 e por novo substabelecimento da Dr.ª Sandra S, o réu passou a ser representado pelo ilustre advogado Dr. Fernando M, o qual tinha domicílio profissional no mesmo escritório.
G- O Dr. Fernando M representou o réu, no referido inventário, até 05-01-2006, momento em que passou a exercer a sua profissão noutro escritório.
H- O Dr. Fernando M substabeleceu no autor os poderes de representação do réu no referido processo judicial, tendo desde então sido da autoria do autor a prática de todos os actos praticados em nome do réu.
1- Os substabelecimentos referidos em E), F) e H) ocorreram com conhecimento do réu.
2- Aquando do substabelecimento referido em E), foi acordado entre o réu e o Dr. Domingos D que a conta referente aos serviços prestados seria apenas elaborada no final do processo de inventário.
3- O acordo referido em 2 deve-se ao facto do réu não ter, na altura, meios para efectuar qualquer pagamento, tendo este que esperar pelo fim do processo para efectuar o pagamento com recurso ao produto recebido e bem assim para avaliar o serviço prestado.
4- Após o substabelecimento referido em H), o Dr. Domingos D cedeu a favor do autor os honorários que resultassem dos serviços forenses prestados ao réu.
5- O réu foi informado da referida cedência, tendo-a aceitado.
6- No referido processo de inventário, o Dr. Domingos D praticou os seguintes actos:
a) Requerimento para juntar procuração: em 01-02-93.
b) Reclamação à Relação de Bens, com junção de documento em 04-03-1994.
c) Declarações de Cabeça de Casal em 31/10/1994.
d) Requerimento para prorrogação de prazo em 14/12/1994.
e) Requerimento para prorrogação de prazo em 20/02/1995.
f) Requerimento para prorrogação de prazo em 28/11/1995.
g) Requerimento para prorrogação de prazo em 02/02/1996;
h) Requerimento para prorrogação de prazo em 25/03/1996;
i) Relação de Bens em 14/05/1996, que inclui requerimentos à Repartição de Finanças e Registo Predial em 14/05/1996;
j) Resposta a Reclamação à Relação de Bens em 28/06/1996;
k) Requerimento para prorrogação de prazo em 28/10/1996;
l) Requerimento para prorrogação de prazo em 06/01/1997;
m) Relação adicional de bens em 19/02/1997, que inclui requerimentos à Repartição de Finanças e Conservatória;
n) Requerimento para Prova para incidente de Reclamação à Relação de Bens, em 02/07/1997;
o) Requerimento para alteração de data em 11/07/1997;
p) Inquirição de testemunhas em 21/11/1997;
q) Requerimento para suspensão da instância em 09/02/1998;
r) Inquirição testemunhas em 04/03/1998;
s) Aditamento ao Rol em 06/10/1998;
t) Inquirição de testemunhas adiada em 06/05/1999;
u) Inquirição de testemunhas adiada em 01/10/1999;
v) Inquirição testemunhas em 10/11/1999;
w) Requerimento para prorrogação de prazo em 02/10/2000;
x) Relação adicional em 23/11/2000, que inclui requerimento às Finanças;
y) Requerimento para suspensão da instância em 19/04/2001;
z) Conferência de Interessados em 25/04/2001;
aa) Requerimento para marcação de Conferência em 15/06/2001;
ab) Conferência de Interessados em 01/10/2001;
ac) Conferência de Interessados em 03/10/2001;
ad) Requerimento para prorrogação de prazo em 15/10/2001;
ae) Conferência de Interessados em 13/11/2001;
af) Requerimento para prorrogação de prazo em 26/11/2001.
7- O referido Mandatário deslocou-se várias vezes a Ribeira de Pena.
8- No referido processo de inventário, o autor praticou os seguintes actos:
a) Requerimento para junção de substabelecimento em 05/01/2006;
b) Declarações Complementares de Cabeça de Casal em 09/01/2006;
c) Declarações Complementares de Cabeça de Casal em 06/02/2006;
d) Requerimento para prorrogação de prazo em 08/03/2006;
e) Requerimento para prorrogação de prazo em 07/04/2006;
f) Relação Adicional em 04/05/2006;
g) Resposta a Reclamação a Relação de Bens em 20/09/2006;
h) Requerimento Avulso em 27/10/2006;
i) Requerimento para prorrogação de prazo em 24/11/2006;
j) Oposição Reclamação à Relação de Bens em 04/12/2006;
k) Inquirição de Testemunhas acerca Reclamação em 13/06/2007;
l) Inquirição de testemunhas em 04/10/2007;
m) Requerimento junção de Documentos 10/10/2007 – (comprovativos de compra Pinhal Cavalinho e bens sitos no Regueiro);
n) Inquirição de testemunhas em 06/11/2007;
o) Relação adicional em 13/11/2007;
p) Requerimento junção de Documentos em 03/12/2007;
q) Oposição a Reclamação à Relação de Bens em 02/08/2008;
r) Inquirição Testemunhas em 31/01/2008;
s) Contraditório a Junção de Docs. em 08/02/2008;
t) Requerimento informação morada - 27/08/2008;
u) Termo de Transacção - 25/03/2008;
v) Relação de bens em 25/03/2008;
w) Conferência de Interessados em 05/05/2008;
x) Contra Alegações de Recurso em 10/12/2008
y) Requerimento para pagamento de taxa em 15/01/2009;
z) Requerimento de certidão em 27/05/2009;
aa) Requerimento de correcção de verba em 01/09/2009.
9- O autor acompanhou o réu em visitas aos terrenos da herança, em visitas aos terrenos que os restantes interessados entendiam pertencer à herança, em deslocações à Repartição de Finanças e Conservatória do Registo Predial de Ribeira de Pena, e para contactos com interessados em verbas relacionadas (a fim de preparar a Conferência de Interessados).
10- O autor analisou o processo, despachos e requerimentos apresentados pelas partes, negociou com os Ilustres Representantes das Contrapartes, negociou directamente com outros herdeiros não representados, elaborou contrato promessa de partilha (que não se encontra assinado por todos os Interessados), elaborou cartas dirigidas aos herdeiros residentes em França, analisou documentos apresentados pelo Réu.
11- O réu viu-lhe serem adjudicados os bens sobre os quais sempre mostrou interesse.
12- O autor logrou evitar que na relação de bens constassem bens que os restantes Interessados entendiam pertencer à herança, como a totalidade do Pinhal Cavalinho, o qual foi relacionado a 20% (verba 102 da Relação de Bens) e dois urbanos e três rústicos sitos no Lugar do Regueiro (urbanos 515 e 516 e rústicos 328, 332, e 335).
13- Aqueles bens foram posteriormente, após o fim do Inventário, alvo de justificação para efectiva legalização, já que o Réu não dispunha de título.
14- Os prédios adjudicados ao réu no Inventário têm o valor de cerca de € 125 000,00.
15- O valor de mercado do prédio designado como Pinhal do Cavalinho é superior a € 200 000,00.
16- O autor, em regra, cobra € 100,00, acrescidos do respectivo IVA, por cada hora de trabalho.
17- Findo o processo de inventário, o autor elaborou a conta de honorários pelos serviços prestados pelo Dr. Domingos D e por si próprio, tendo-a apresentado ao réu no valor de € 80 000,00, acrescida do IVA.
2.º
O autor censura a decisão recorrida por entender que "os juros moratórios deveriam ter sido contabilizados desde a citação, tal como [foi] pedido" (5).
O Meritíssimo Juiz a quo não satisfez essa pretensão dizendo que «sobre esta quantia acrescem, ainda, juros de mora, mas apenas a contar da data desta decisão, nos termos dos arts. 804º, nº 2 e 805, nº 3 (1ª parte) do Código Civil, visto que se tratava de um "crédito ilíquido" (6).» Porém, o ilustre magistrado não explicou por que se trata um "crédito ilíquido".
Na obrigação ilíquida a "prestação essencial é uma quantidade que não está numericamente determinada" (7). E a líquida é a "obrigação cuja prestação se consubstancia numa quantidade ou quantitativo que se encontra numericamente determinado" (8).
No caso dos autos provou-se que "findo o processo de inventário, o autor elaborou a conta de honorários pelos serviços prestados pelo Dr. Domingos D e por si próprio, tendo-a apresentado ao réu no valor de € 80 000,00, acrescida do IVA." (9) E também sabemos que é justamente isso que é reclamado nesta acção.
Assim, é certo que autor liquidou o crédito, pelo valor que teve por adequado, e que interpelou o falecido réu Fernando M a efectuar o respectivo pagamento. O facto de na acção de honorários o demandado ter impugnado a quantia que lhe foi pedida e de o tribunal o ter condenado num valor inferior ao reclamado inicialmente pelo credor, não converte em ilíquida a respectiva obrigação (10); a circunstância do montante do crédito estar controvertido não significa que ele não foi liquidado.
Portanto, estamos na presença de uma obrigação líquida, de cujo montante o falecido réu Fernando M teve conhecimento, o mais tarde, aquando da sua citação, o mesmo é dizer que assiste ao autor o direito a juros contados desde esse momento, tal como ele pretende.
3.º
O autor defende que "não existe nada na lei que proíba a cessão de créditos relativos a serviços forenses, entre advogados" (11), pelo que, nesta parte, o seu pedido não devia ter sido desatendido.
Neste ponto, na sentença recorrida afirma-se que:
"(…) tal como se refere no laudo (…) [elaborado pela Ordem dos Advogados], entendemos que o autor não tem legitimidade para vir cobrar os honorários devidos por serviços prestados por outro advogado, face ao disposto no art. 107.º, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados aplicável ao caso.
Ainda que tenha existido a alegada cessão de créditos do mandatário inicial do réu, para o autor, entendemos que perante a existência de uma lei especial que prevê essa situação, não se aplica a previsão do Código Civil relativa à cessão de créditos."
Por sua vez, no citado laudo consta:
"É nosso entendimento que os pedidos de retribuição têm de ser efectuados pelo próprio Advogado prestador dos serviços, ou sociedade de Advogados que o represente, pelo que as contas de honorários deveriam ter sido apresentadas em separado.
Assim, independentemente de ser alegada uma cessão de créditos do anterior mandatário no processo ao Advogado Requerido, entendemos que este último não dispõe de legitimidade para pedir o pagamento de honorários referentes a serviços que não prestou, pelo que os mesmos não serão tidos em consideração.
(…)
Na conta de honorários apresentada pelo Advogado Requerido, são também incluindo os serviços prestados pelo seu Colega Dr. Domingos D, Mandatário que lhe antecedeu no processo em causa. É nosso entendimento que o Advogado requerido não tem legitimidade para pedir honorários de outro colega, pelo que tais serviços e honorários não serão tidos em consideração para emissão do presente Parecer de Laudo."
Em virtude do descrito nos factos 4 e 5 dos factos provados, o autor quer que (também) lhe sejam pagos os honorários relativos à actividade desenvolvida pelo Dr. Domingos D, que o antecedeu como mandatário do falecido réu Fernando M.
O artigo 107.º n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados(12) dispõe que:
"O advogado a quem se pretende cometer assunto anteriormente confiado a outro advogado não deve iniciar a sua actuação sem antes diligenciar no sentido de a este serem pagos os honorários e demais quantias que a este sejam devidas, devendo expor ao colega, oralmente ou por escrito, as razões da aceitação do mandato e dar-lhe conta dos esforços que tenha desenvolvido para aquele efeito."
Ora, salvo melhor juízo, nada há nesta norma que inviabilize tal cessão de créditos. O que aqui, efectivamente, se impede é que um advogado inicie a representação de alguém, relativamente a "assunto anteriormente confiado a outro advogado", "sem antes diligenciar no sentido de a este serem pagos os honorários e demais quantias" que (eventualmente) ainda se encontrem por pagar.
Regista-se que, no seu laudo, a Ordem dos Advogados não só não fez qualquer alusão ao artigo 107.º n.º 2 em que o Meritíssimo Juiz se apoia, como também nele não se indica norma alguma que sustente a conclusão aí extraída de que, "independentemente de ser alegada uma cessão de créditos do anterior mandatário no processo ao Advogado Requerido, (…) este último não dispõe de legitimidade para pedir o pagamento de honorários referentes a serviços que não prestou".
Sabemos que o n.º 1 do artigo 577.º do Código Civil não permite a cessão de créditos quando o crédito "esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor", ou seja quando o crédito tem "carácter estritamente pessoal, de que o direito a alimentos constitui um caso típico" (13), quando "por sua natureza, se encontra ligado à pessoa do credor, que seria manifestamente desrazoável impor ao devedor (…) a sua vinculação perante outra pessoa" (14).
O crédito em causa não tem esta natureza pessoal e incindível do seu credor originário, pelo que a esse nível inexiste obstáculo à sua cessão.
Significa isso que o autor -cessionário- pode reclamar aqui o valor dos honorários relativos à actividade levada a cabo pelo Dr. Domingos D -cedente- como mandatário do falecido réu Fernando M -devedor cedido-.
4.º
A fixação do valor dos honorários "é um problema extremamente delicado, porque os serviços do advogado não são materialmente mensuráveis. (…) A justeza obtém-se encontrando um ponto de equilíbrio, de modo a que os honorários não sejam tão baixos que pareçam ridículos, nem tão altos que possam classificar-se de especulativos" (15).
Como diz o Tribunal a quo, nessa tarefa há que considerar (16):
"1) o tempo gasto;
2) a dificuldade e urgência do assunto;
3) a importância do serviço prestado;
4) os resultados obtidos;
5) a praxe do foro e estilo da comarca."
Face aos factos provados, sabemos que o Dr. Domingos Dias fez o que consta nos factos 6 e 7.
No que se refere ao tempo despendido, é pacífico que aquela actividade implica, necessariamente, a realização de reuniões com o seu constituinte, contactos com terceiros e o estudo das questões em causa.
Quanto às reuniões com o seu cliente, verifica-se que do documento junto pelo autor a 19-6-2015, que denominou de "nota de honorários", resulta que o Dr. Domingos D terá tido um total 741 reuniões com o falecido réu Fernando M, das quais 8 tiveram uma duração inferior a uma hora, 513 duraram entre uma a três horas e 220 tiveram uma duração igual ou superior a três horas. A fazer fé neste documento, num cálculo por baixo, o Dr. Domingos D teria estado reunido com o seu cliente pelo menos 1 181 horas, o que equivale a 49 dias completos ou a uma reunião por dia, todos os dias, durante dois anos.
E no seu laudo (17), a Ordem dos Advogados pronunciou-se no sentido de que "o assunto em causa é considerado de dificuldade média, sem carácter de urgência" e que "os serviços jurídicos prestados pelo (…) [autor] assumiram um nível de importância normal, atendendo a:
• Valor do Inventário em causa (cerca de € 1.000.000,00);
• Quinhão Hereditário do seu Constituinte valorizado em € 125 000,00."
A "dificuldade média" dos "serviços jurídicos prestados" e o seu "nível de importância normal", conjugada com a actividade processual descrita nos factos provados, não justifica, de modo algum, a realização daquelas 741 reuniões com o falecido réu Fernando M (18). Esse cenário não é nem credível, nem razoável.
Segundo os factos provados, excluindo intervenções processuais de reduzida ou insignificante importância/dificuldade, temos como actividade do Dr. Domingos D:
- Reclamação à Relação de Bens, com junção de documento em 04-03-1994.
- Declarações de Cabeça de Casal em 31/10/1994.
- Relação de Bens em 14/05/1996, que inclui requerimentos à Repartição de Finanças e Registo Predial em 14/05/1996;
- Resposta a Reclamação à Relação de Bens em 28/06/1996;
- Relação adicional de bens em 19/02/1997, que inclui requerimentos à Repartição de Finanças e Conservatória;
- Requerimento para Prova para incidente de Reclamação à Relação de Bens, em 02/07/1997;
- Inquirição de testemunhas em 21/11/1997;
- Inquirição testemunhas em 04/03/1998;
- Inquirição testemunhas em 10/11/1999;
- Relação adicional em 23/11/2000, que inclui requerimento às Finanças;
- Conferência de Interessados em 25/04/2001;
- Conferência de Interessados em 01/10/2001;
- Conferência de Interessados em 03/10/2001;
- Conferência de Interessados em 13/11/2001.
Trata-se de uma actividade de bastante menor dificuldade, importância, significado e efeitos práticos do que a do autor (19), que, por isso mesmo, exige muito menos tempo e trabalho. Por outro lado, nada há na lei que determine o pagamento de um valor hora. O "tempo despendido" é um dos factores a ter em consideração, mas tem que ser conjugado com a "importância dos serviços prestados", a "dificuldade e urgência do assunto", o "grau de criatividade intelectual da sua prestação" e o "resultado obtido". E se os honorários não devem ser "tão altos que possam classificar-se de especulativos", para além do seu valor objectivo, não pode deixar de se ter presente o ganho concreto alcançado na causa pelo mandante, que no caso foi a adjudicação de prédios que têm o valor de cerca de € 125 000,00, tendo, no entanto, o prédio designado como Pinhal do Cavalinho um valor superior a € 200 000,00 (20).
Tudo ponderado, afigura-se como adequado fixar os honorários devidos pela actividade do Dr. Domingos D em € 10 000,00, acrescidos de IVA à taxa legal e de juros de mora, estes a contar desde a data da citação do falecido réu Fernando M.
Finalmente, importa dizer que, com esta condenação, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada na conclusão 34.ª.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, pelo que:
a) condena-se os réus habilitados no pagamento ao autor de € 10 000,00, acrescidos de IVA à taxa legal, relativos aos honorários devidos pela actividade do Dr. Domingos D;
b) condena-se os réus habilitados no pagamento de juros de mora sobre os € 40 000,00 e € 10 000,00 devidos ao autor, contados desde a data da citação do falecido réu Fernando M;
c) revoga-se a decisão recorrida nas partes que colidem com o decidido em a) e b);
d) mantém-se no mais a sentença recorrida.

Custas pelo autor e réus habilitados, na proporção dos respectivos decaimentos.

13 de Outubro de 2016
(António Beça Pereira)
(Maria Amália Santos)
(Ana Cristina Duarte)
*
(1) São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
(2) Cfr. conclusão 8.ª.
(3) Cfr. conclusão 24.ª.
(4) Cfr. conclusão 34.ª.
(5) Cfr. conclusão 8.ª.
(6) Sublinhados nossos.
(7) Castro Mendes, Acção Executiva, 1980, pág. 15.
(8) Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, pág. 990.
(9) Cfr. facto 17 dos factos provados.
(10) A não ser assim, nos casos de responsabilidade civil extracontratual, sempre que a condenação relativa à indemnização por danos patrimoniais não tivesse exactamente o mesmo valor que havia sido pedido, o credor não tinha direito a juros anteriores à data da sentença.
(11) Cfr. conclusão 24.ª.
(12) Na versão da Lei n.º 15/2005 de 26 de Janeiro, que corresponde ao artigo 112.º n.º 2 da Lei n.º 145/2015 de 9 de Setembro
(13) Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, pág. 678.
(14) Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 594.
(15) António Arnaud, Iniciação à Advocacia, 4ª Edição, pág. 101.
(16) Quer se aplique o Estatuto da Ordem dos Advogados, na versão do artigo 100.º da Lei n.º 15/2005 de 26 de Janeiro, quer na do artigo 105.º da Lei n.º 145/2015 de 9 de Setembro, cujas redacções são iguais.
(17) É certo que o laudo só aprecia os honorários relativos à actividade do autor, mas parte do que se diz quanto a ele é aplicável ao trabalho desenvolvido pelo Dr. Domingos D.
(18) Se é que elas, realmente, ocorreram.
(19) Cfr. factos 8, 9, 10, 12 e 13 dos factos provados.
(20) Cfr. factos 14 e 15 dos factos provados.