Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1331/03.3TBVCT
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO COMUNITÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Face ao princípio do primado do direito europeu, como vem sublinhando a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as normas de direito interno, designadamente as do DL 522/85, de 20.12, na redacção dada pelo DL 130/94, de 19.05, devem ser interpretadas de forma conforme ao direito comunitário.
II – Como resulta da jurisprudência Katja Candolin e Elaine Farrell, firmada pelo TJCE, a Directiva 90/232/CEE opõe-se a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cubra a responsabilidade por danos pessoais causados ao passageiro, ainda que proprietário do veículo.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Rosa …, intentou a presente acção declarativa de condenação, com a forma ordinária, contra;

“Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo:

A condenação da Ré a paga-lhe a indemnização global de € 102.189,13, por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, contados a partir de 1 de Julho de 2000 e até efectivo e integral pagamento.

Alega, sinteticamente, que no dia 17 de Abril de 1996, pelas 01h00m, na Estrada Nacional nº 202, ao Km 11,6, na freguesia de Vila Mou, nesta comarca, ocorreu um acidente em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ...F-05-48, e o velocípede com motor, de matrícula 2-VCT-...9-22, propriedade da autora, que na altura era conduzida por seu pai, Francisco…, com ordem e autorização daquela, em que seguia como passageira. Em consequência desse acidente, resultaram ferimentos na autora, que lhe determinaram dores, padecimento e sequelas, e prejuízos decorrentes do acidente. A culpa na ocorrência foi do condutor do veículo segurado.

A ré contestou, excepcionando a nulidade do seguro em causa nos autos, pelo facto da tomadora do seguro ter ocultado da ré facto relevante para as condições do contrato, no caso, que a lotação do veículo não era para uma, como ficou a constar do contrato, mas para duas pessoas. Sendo certo, também, que aquele tipo de veículo apenas tem lotação legal para o seu condutor. Impugna o alegado. A autora já está a ser indemnizado pela Seguradora Metrópole, S.A., no âmbito de um processo de acidente de trabalho.

A autora replicou.

Realizado o julgamento o Mº Juiz, respondeu à matéria de facto e proferiu sentença julgando a acção improcedente.

Inconformada a autora interpôs recurso de apelação da sentença, admitido com efeito devolutivo.

Em conclusões levanta a seguinte questão:

1a. O passageiro do veículo é sempre indemnizado dos prejuízos sofridos, sendo ou não o proprietário do veículo ou o tomador do seguro, posição que foi expressamente reconhecida na Directiva n.° 2005/14/CE do Parlamento Europeu, e do Conselho de 11 de Maio de 2005.
2a. A Autora, de acordo com a matéria dada como provada, era passageira do veículo interveniente no acidente, pelo que a questão prévia proferida pelo Mmo. Juiz "A Quo", de que não teria a mesma direito a ser indemnizada por quaisquer danos que tenha sofrido em consequência do acidente em causa nos autos, merece censura.
3a. No entanto, e se assim se não entender, teria a cláusula contratual do seguro que exclui a obrigação de indemnizar o proprietário do veículo interveniente no acidente ou o tomador do seguro de tal veículo, de ser excluída, nos termos do D.L. n.° 446/85, de 25 de Outubro, alterado pelos D.L. n.° 220/95, de 31 de Agosto, e n.° 249/99, de 07 de Julho. Com efeito,
4a. Da matéria de facto dada como provada não resulta que a Recorrida tivesse informado o tomador de seguro que se tivesse um acidente, nem como passageiro, a cobertura e respectiva indemnização não lhe seriam aplicadas.
5a. Por tal razão, e nos termos dos arts. 5°, 6° e 8° do D.L. citado, deve-se ter a cláusula que limita o pagamento da indemnização ao tomador do seguro ou ao proprietário do veículo como excluída.
6a. Inerentemente, deve o douto Acórdão ser revogado no sentido da Recorrente ver-se ressarcida dos prejuízos sofridos, por ter violado, entre outros, o disposto nos arts. 5°, 6° e 8° do D.L. n.° 220/95, de 31 de Agosto, e n.° 249/99, de 07 de Julho, a Directiva n.° 2005/14/CE do Parlamento Europeu, e do Conselho de 11 de Maio de 2005, e arts. 1°, 2° e 8° do D.L. n.° 522/85, de 20/12, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.° 130/94, de 19/05.

A ré em contra-alegações sustenta a manutenção do julgado.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos, há que conhecer do recurso.

*

Vêm considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal “a quo”:

A) No dia 17 de Abril de 1996, cerca das 01h00, ocorreu um acidente de viação na E.N. 202, ao Km 11,6, na freguesia de Vila Mou, nesta comarca.
B) Nesse acidente foram intervenientes o ligeiro de passageiros, de matrícula ...F-05-48, e o velocípede com motor, de matrícula 2-VCT -69-22, propriedade da autora, conduzido por Francisco…, pai daquela.
C) O veículo AF era propriedade de João… e era conduzido, na altura do acidente, por António…, que o conduzia por ordem, conhecimento, com autorização, por conta, no interesse e sob a direcção efectiva do seu proprietário.
D) A Estrada Nacional 202, no local, configura-se numa curva com cerca de 90° à direita, atento o sentido seguido pelo velocípede.
E) A faixa de rodagem tem uma largura de cerca de seis metros e oitenta centímetros.
F) No local onde ocorreu o acidente, existem várias moradias a deitar directamente para a via.
G) A autora seguia, como passageira, sentada no assento do velocípede com motor, de matrícula 2-VCT-...9-22, atrás do respectivo condutor.
H) O condutor do velocípede 2-VCT-...9-22, desenvolvia a sua marcha pela Estrada Nacional 202, no sentido poente-nascente, ou seja, Viana/Ponte de Lima e pretendia tomar uma Estrada Camarária sita do lado esquerdo da EN, e que faz a ligação desta ao Lugar do Balteiro, Meixedo.
I) O AF seguia pela hemi-faixa da direita, atento o sentido Ponte de Lima/Viana do Castelo.
J) A autora nasceu no dia 21 de Dezembro de 1972.
K) A responsabilidade civil emergente de acidente de viação inerente ao velocípede com motor de matrícula 2-VCT-...9-22 tinha sido transferida pela autora para a ré, por contrato de seguro titulado pela apólice no 1330282.
- Constantes das respostas à matéria da base instrutória:
1) Francisco… iniciou a manobra de mudança de direcção e invade a faixa contrária por onde seguia, fazendo-o de forma oblíqua. Com o esclarecimento de que iniciou essa manobra ainda antes do enfiamento do limite esquerdo da via por onde pretendia passar a circular, que liga Vila Mou ao lugar de Balteiro, Meixedo, ou seja, para poente desse limite. -Quesito 1º
2) Quando se encontrava em plena manobra de mudança de direcção à esquerda, na hemi-faixa esquerda, atento o sentido Viana-Ponte de Lima, é embatido na sua parte frontal e lateral direita pela frente do AF. -Quesito 2º
3) O embate ocorreu a cerca de 50 cm da linha divisória da berma direita, atento o sentido Ponte de Lima/Viana. -Quesitos 3º e 11º
4) O condutor do 2-VCT reduziu a velocidade de que vinha animado e imobilizou a viatura que conduzia sobre o eixo da via. -Quesito 7º
5) O embate deu-se entre a frente do AF e parte frontal e lateral direita do 2-VCT. -Quesito 13º
6) O veículo AF circulava a uma velocidade que rondaria os 50 e 60 Km/h. -Quesito 14º
7) O 2-VCT iniciou a travessia da metade esquerda da via, atento o seu sentido de marcha, num momento em que o AF já se encontrava a uma distância de cerca de 20 metros à sua frente, dentro do seu campo visual. -Quesito 15º
8) Depois do embate, o 2-VCT foi projectado a uma distância de cerca de 12/13 metros. -Quesito 16º
9) O veículo AF deixou no pavimento marcas de travagem com 10 metros de comprimento. -Quesito 17º
10) O veículo AF ficou imobilizado cerca de 3 metros, contados da sua parte traseira, para além do local de embate. -Quesito 18º
11) Como consequência directa e necessária do acidente, e da queda que se lhe seguiu, a autora sofreu fractura do 1/3 médio do fémur direito, escoriações várias e hematomas múltiplos espalhados pelo corpo. -Quesito 19º; Provado.
12) A autora esteve no Serviço de Urgência do Hospital de Viana do Castelo, onde lhe foram efectuados exames radiológicos ao fémur direito e aos pulmões. -Quesito 20º
13) Foi internada no Serviço de Ortopedia do Hospital de Santa Luzia, e foi submetida a osteossíntese com vareta de Kunstcher. -Quesito 21º
14) Aí se manteve internada até ao dia 22/04/1996. -Quesito 22º
15) A 27/11/1996 foi internada no Hospital de Santa Maria, no Porto, por gonalgia. Fez artroscopia, tendo-se verificado a existência de rotura do Ligamento Cruzado Posterior. -Quesito 23º
16) Teve alta em 29/11/1996. -Quesito 24º
17) Foi reinternada a 29/01/1997, por pseudartrose do fémur direito e rotura do LCP, foi efectuada correcção cirúrgica e ligamentoplastia tipo OTO. -Quesitos 25º e 26º
18) Teve alta a 10 de Fevereiro de 1997. -Quesito 27º
19) Voltou a ser internada a 06/03/1997, para extracção do Cravo de Steinman da rótula direita, e teve alta no mesmo dia. Novamente internada a 05/11/1997 para extracção de material de osteosíntese, com alta a 08/11/1997. -Quesito 28º
20) Durante o período de internamente nos Hospitais de Santa Luzia, de Viana do Castelo e de Santa Maria, do Porto, a autora manteve-se sempre retida no leito, deitada na mesma posição, de costas e sem se poder virar na cama. -Quesito 29º
21) De regresso a casa, a autora manteve-se retida no leito, durante o período de tempo de um mês. -Quesito 30º
22) Após o período de acamamento na sua casa de residência, a autora passou a andar com canadianas, como auxiliar de locomoção, durante três meses. -Quesito 31º
23) A autora efectuou oitenta e sete sessões de fisioterapia, desde os dias 16 de Dezembro de 1996 a 26 de Maio de 1997. -Quesito 32º
24) No momento do acidente, e nos instantes que o precederam, sofreu um enorme susto. -Quesito 33º
25) Sofreu dores muito intensas ao nível do membro inferior direito, tendo sido fixado um Quantum Doloris de grau 4 numa escala de 1 a 7. -Quesito 35º
26) Essas dores ainda hoje a afligem, sempre que se mantém de pé, por períodos de tempo prolongados, sobre a perna fracturada. -Quesito 36º
27) Sempre que caminha ligeiro ou tenta correr e nas mudanças de tempo. -Quesito 37º; Provado.
28) Antes do acidente, a autora era forte e robusta. -Quesito 38º
29) Em consequência das lesões sofridas, a autora apresenta gonalgia incapacitante sempre que há agudização da dor, nas mudanças de tempo, quando tem necessidade de exercer tarefas ajoelhadas, e sempre que caminha em terreno inclinado e irregular. Tudo reportado ao membro inferior direito. -Quesito 39º
30) A autora apresenta uma cicatriz de 18 cm na face lateral da nádega direita. -Quesito 41º
31) Uma cicatriz de 22 cm na face lateral da coxa direita. -Quesito 42º
32) Uma cicatriz de 12 cm na face anterior mediana do joelho direito, e uma cicatriz de 7 cm na face interna inferior do joelho direito. -Quesito 43º
33) Depois do acidente, com as ditas lesões, sente-se triste e evita andar de saias, assim como evita vestir fatos de banho e usá-los, quer nas praias quer nas piscinas. -Quesito 44º
34) Em consequência das lesões provocadas pelo acidente, a autora ficou portadora de uma IPG de 10%, compatível com o exercício da actividade habitual, mas implicando esforços suplementares. -Quesito 45º
35) Teve um período de incapacidade temporária profissional total de 515 dias. -Quesito 46º
36) A autora trabalhava na firma, “Automóvel, Lda.”, mediante a retribuição anual de € 5.542,17. -Quesito 47
37) Ajudava os pais na lavoura. -Quesito 48º
38) Ficou com a roupa que trazia vestida destruída. -Quesito 51º
39) À data do acidente, do livrete do 2-VCT constava “Lotação - O Condutor”. -Quesito 52º
40) Na proposta de seguro do contrato referido em K) da matéria assente, na parte relativa às características do veículo, fez-se constar “Nº Lug. 01”. -Quesito 55º
41) A autora foi indemnizada pela Companhia de Seguros X, nos termos da acção que correu termos no Tribunal de Trabalho de Viana do Castelo, no que toca a danos materiais relativos a perdas salariais ou incapacidade permanente temporária? -Quesito 57º
42 aditado: A 4/1/99 a autora intentara acção sumária contra a aqui ré e a seguradora…, relativamente ao sinistro aqui em causa, desistindo da instância relativamente à aqui ré. Esta foi citada para os termos daquela acção a 1/7/2000. Naquela acção apresentou versão diferente do sinistro, imputando a culpa ao condutor do AF.
(aditado com base no doc. 5 junto com PI, não contestado por parte da ré).
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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 684º, n.º 3 e 690º do CPC o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
A questão essencial prende-se com saber se a autora, tomadora do seguro pode ser indemnizada na qualidade de passageira do veículo segurado, sua pertença. Em segunda via, a exclusão da cláusula contratual que exclui a obrigação de indemnizar o proprietário do veículo.
Defende a recorrente que o passageiro do veículo é sempre indemnizado, seja ou não proprietário, posição que resulta da Directiva nº 2005/14/CE.

O acidente em causa ocorreu a 17/4/1996. É aplicável o regime do DL. 522/85 de 20/12, redacção do D.L. 130/94 de 19/5.

Dispõe o artigo 7 deste diploma no que respeita a exclusões da garantia do seguro:

1 – Excluem-se da garantia do seguro os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro
2 – Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de danos materiais causados às seguintes pessoas:
a) Condutor do veículo e titular da apólice;
b) Todos aqueles cuja responsabilidade é, nos termos do nº 1 do artigo 8º, garantida, nomeadamente em consequência da compropriedade do veículo seguro;

O Artigo 8º dispõe:

(Pessoas cuja responsabilidade é garantida )
1 – O contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 2.º e dos legítimos detentores e condutores do veículos.
2 – O seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

Porque a autora era proprietária e titular da apólice em causa, foi excluído o direito a indemnização do sinistro por ele sofrido quando era transportada como passageira no veículo, conduzido por seu pai.

A questão ora colocada prende-se com saber se esta interpretação dada ao artigo 7º referenciado, está conforme ao direito europeu, designadamente à directiva 90/232/CEE do conselho de 14/5/90.

Esta directiva foi transposta para o direito interno pelo D.L. 130/94 de 19/5, que deu nova redacção designadamente aos artigos 5 e 7 do supra referido decreto-lei.

Consagra-se nesta directiva:

Artigo 1.o

Sem prejuízo do nº 1, segundo parágrafo, do artigo 2º da Directiva 84/5/CEE, o seguro referido no nº 1 do artigo 3º da Directiva 72/166/CEE cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo.

A expressão além do condutor, não é a que melhor exprime o sentido da norma, mas antes a de, “excepto o condutor”. Vd. Sobre o assunto o Ac. RG de 23/4/2009, www.dgsi.pt/jtrg, processo nº 9180/07.3TBBRG.G1, de que se extrai o seguinte trecho:

“O artigo 1º da Directiva nº 90/232/CEE, na versão em inglês, estabelece: «Article 1 - Without prejudice to the second subparagraph of Article 2 (1) of Directive 84/5/EEC, the insurance referred to in Article 3 (1) of Directive 72/166/EEC shall cover liability for personal injuries to all passengers, other than the driver, arising out of the use of a vehicle.

Na versão portuguesa reza o mesmo preceito: «Artigo 1º - sem prejuízo do nº 1, segundo parágrafo, do artigo 2º da Directiva nº 84/5/CEE, o seguro referido no nº 1 do artigo 3º da Directiva nº 72/166/CEE cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo».

Não sendo a mais feliz a tradução de «other than the driver» para «além do condutor», uma vez que melhor exprimiria o pensamento do legislador a utilização das expressões «excepto o condutor» ou «que não o condutor»…”

Tem-se sustentado que o segurado não pode ser considerado terceiro, visto ser responsável originário. As alterações introduzidas ao art. 7º, nºs 1 e 2 do DL nº 522/85, em cumprimento da directiva 90/232CEE não imporiam entendimento diverso. Nessa, Apenas se pretenderia fazer melhor a demarcação de terceiros.

A directiva visou continuar os esforços no sentido da aproximação das legislações dos estados membros relativamente à matéria, na senda dos princípios relativos à livre circulação de pessoas e veículos, visando reforçar e consolidar o mercado único de seguros (vd. 1 do preâmbulo da directiva 2005/14/CE de 11/5).

Sobre qual o sentido do citado artigo lança alguma luz o preâmbulo da directiva. Consta deste:

“ Considerando que, em particular, existem em certos Estados-membros lacunas na cobertura pelo seguro obrigatório dos passageiros de veículos automóveis; que, para proteger essa categoria particularmente vulnerável de vítimas potenciais, é conveniente que essas lacunas sejam preenchidas; … Considerando que, no interesse do segurado, é conveniente, além disso, que cada apólice de seguro garanta, através de um prémio único em cada um dos Estados-membros, a cobertura exigida pela sua legislação ou a cobertura exigida pela legislação do Estado-membro de estacionamento habitual, sempre que esta última for superior; …”

De forma mais clara, o preâmbulo da directiva 2005/14/CE refere:

“(15) A inclusão de todos os passageiros do veículo no âmbito da cobertura pelo seguro representa um avanço significativo da legislação em vigor….”

Da redacção do artigo 1 da directiva 90/232/CEE, resulta, e tal é confirmado pelos preâmbulos referenciados, que, quanto aos danos pessoais, apenas o condutor é excluído da garantia da apólice.

Foi preocupação da comunidade assegurar um aproximação legislativa eficiente do ponto de vista dos objectivos pretendidos – o reforço da livre circulação de pessoas e veículos e assegurar que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da Comunidade em que o acidente tenha ocorrido.

Os Estados-Membros são obrigados a garantir que a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme às disposições das directivas (Vd. Ac. do TJCE de 14 de Setembro de 2000, Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira, C-348/98).

Assim, a primeira directiva (72/166/ CEE, de 24 de Abril de 1972) estabelece a obrigação de seguro para "qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser accionado por uma força mecânica, sem estar ligado a via-férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados" (artigo 1.°, n.°1).

Refere a directiva no seu preâmbulo:

“…é conveniente, portanto, prever, no âmbito da legislação nacional de cada Estado-membro, a obrigação de segurar a responsabilidade civil que resulte da circulação destes veículos…”

Nos artigos 2º, 3º alude à “responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos”, e no artigo 4º refere; “o Estado-membro que prevê esta derrogação, toma todas as medidas adequadas para assegurar o ressarcimento dos prejuízos causados no território de qualquer outro Estado-membro pelos veículos pertencentes a essas pessoas…”; artigo 5º, refere; “acidente provocado no seu território por um veículo”, e “elementos relativos do seguro ao veículo”. No artigo 6º refere-se; “se os riscos que resultam da circulação do referido veículo se encontrarem cobertos”.

Denota-se até das expressões usadas, que ao nível do direito europeu, a nota essencial não está no tomador do seguro, enquanto primeiro responsável pelos danos causados pela circulação do veículo (que pode não ser), mas nos danos causados pela circulação deste, na responsabilidade emergente da circulação do veículo. A cobertura abrange os danos causados pelo veículo, independentemente de quem o conduz (artigo 2 da segunda directiva – Ac. acórdão Ruiz Bernáldez do TJCE).

Os conceitos do direito comunitário, impõem sejam repensados os conceitos de direito interno, designadamente e no que tange à matéria em apreço, no que respeita à conceptualização do seguro como de “responsabilidade civil” ( e não como “seguro de danos” ), visando a cobertura de danos causados a outrem com exclusão do tomador de seguro, ainda que na qualidade de passageiro, posição esta que face ao direito comunitário não pode ser defendida.

O TJCE perfilhou o entendimento de que “os artigos 2.°, n.° 1, da Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e 1.° da Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório. O facto de o passageiro em causa ser o proprietário do veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante” - processo C-537/03 (Katja Candolin).

E no processo C-356/05 (Elaine Farrell): “ 1) O artigo 1.° da Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros….”

Resulta da directiva o sentido de que, quanto aos danos pessoais, apenas o condutor do veículo pode ser excluído da garantia do seguro.

Quanto aos danos materiais, as directivas permitem a exclusão da cobertura relativamente aos familiares do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa cuja responsabilidade civil decorrente de um sinistro se encontre coberta pelo seguro - artigo 3°, da segunda directiva – 84/5/CEE -, bem como relativamente aos passageiros transportados - artigo 1.°, da terceira directiva, ora em análise – 90/232/CEE -.

Não obstante a directiva não ter efeito directo horizontal (acórdãos de 14 de Julho de 1994, Faccini Dori, C-91/92 e de 7 de Março de 1996, El Corte Inglês, C-192/94; de 12 de Julho de 1990, Foster, C-188/89; de 14 de Setembro de 2000, Collino e Chiappero, C-343/98; de 5 de Fevereiro de 2004, Rieser Internationale Transporte, C-157/02); importa ter em consideração que as normas nacionais devem e têm de ser interpretado à luz das directivas, transportas que sejam ou transcorrido que seja o prazo de transposição. O juiz nacional deve na aplicação do direito interno quer anterior quer posterior àquelas, e por força dos artigos 5 e 189 do T.R. (10 e 249 actualmente), ter em atenção as finalidades da directiva, interpretando o direito nacional de modo conforme ás finalidades desta, de modo a que seja atingido o resultado pretendido - E é o “ Princípio da Interpretação conforme “. Vd. João Mota Campos, Direito Comunitário, II vol., 4ª ed., F. C. Gulbenkian, pág., 303.

O TJCE no acórd. 111/75 (Mazzalai), refere que “ uma interpretação da directiva pode ser útil ao juiz Nacional para garantir à lei... uma interpretação e uma aplicação de acordo com as exigências do direito comunitário “. No acórdão Marleasing (processo c- 106/89 ), veio claramente referir que “ ao aplicar o direito nacional, quer se trate de disposições anteriores ou posteriores á directiva, o órgão jurisdicional chamado a interpretá-lo é obrigado a fazê-lo, em toda a medida do possível, á luz do texto e da finalidade da directiva, para atingir o resultado pretendido por esta e cumprir assim o artigo 189...”-. Ainda acórdãos de 23 de Outubro de 2003, Adidas-Salomon e Adidas Benelux, C-408/01; de 5 de Outubro de 2004, Pfeiffer, C-397/01 a C-403/01). sobre o Assunto - O Conflito entre a Jurisprudência Nacional e a jurisprudência Do tribunal de Justiça das Comunidades...., RDES, Ano 38, nºs 1,2,3,4, pág. 77ss.

Especificamente quanto à directiva em apreço, o TJCE no processo C-356/05 (Elaine Farrell): “ … O artigo 1.° da Terceira Directiva 90/232 reúne todas as condições exigidas para produzir efeito directo e, portanto, confere aos particulares direitos que estes podem invocar directamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Todavia, compete ao juiz nacional verificar se esta disposição pode ser invocada contra um organismo como o Motor Insurers Bureau of Ireland (MIBI).”

A norma do artigo 7 do D.l. 522/85, deve ser interpretada a esta luz.

E tal interpretação tem quiçá, forte apoio na redacção do normativo. Como se refere no Ac. do TRG de 23/4/2009, www.dgsi.pt/ processo nº 9180/07.3TBBRG.G1;

“… mesmo na economia do DL 522/85 com a redacção dada pelo DL 130/94, que entrou em vigor em 31.12.1995, apenas estão excluídos os danos materiais (alínea a) do nº 2), ou seja aqueles que atingem as coisas, ou o património, por contraposição aos emergentes de lesões corporais, que beneficiam da cobertura do seguro (vide as definições do art. 1º das Condições Gerais da Apólice Uniforme do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovada pela Norma nº 19/95-R, de 06.10.95 e que se mantêm com a Norma nº 17/2000-R, de 21.12.2000) assim acentuando o primado da protecção das vítimas que sofrem lesões na sua própria pessoa, ao assegurar o ressarcimento de todos os passageiros transportados no veículo seguro, com excepção do condutor responsável pelo facto ilícito...”

O STJ ac. de 16/1/2007, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 06A2892, defende este entendimento. Refere o acórdão:

“ muito embora tenha de se convir que o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tenha a natureza jurídica de “seguro de responsabilidade”, o certo é que a sua moderna especificidade – com acolhimento no chamado “3.ª Directiva Automóvel”… reside no primado da protecção das vítimas corporais, ressarcindo todos quanto não sejam o próprio condutor (o responsável pelo respectivo ilícito) relativamente aos danos corporais de que forem vítimas, por acidente rodoviário não por si próprios causado.

Na verdade, esse é o resultado interpretativo que se deve fazer do artº 7º. (nº.s 1º e 2º, al. a)), do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo aludido Dec Lei nº 130/94(8).

Contrariamente ao entendimento anterior, hoje, “terceiro”, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do evento a outrem - e, não, como anteriormente, aquele que não era o tomador do seguro…”

Ainda STJ de 22/4/2008, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 08B742.

Temos assim que relativamente aos danos pessoais (decorrentes de lesões corporais), a autora deve considerar-se abrangida pela garantia do seguro, na qualidade de passageira.

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Resulta dos termos do artigo 562º do CC que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Nos termos do artigo 564º a indemnização compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, podendo atender-se a danos futuros desde que sejam previsíveis.
Nos termos do artigo 566º a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

A autora peticiona os seguintes valores indemnizatórios:
- Danos morais (sofrimentos, tratamentos, sequelas físicas, etc…) - € 40.000,00
- Pela incapacidade total para trabalho por 515 dias - € 12.189,13.
- perda de capacidade aquisitiva - € 50.000,00.
- dano material (vestuário ) - € 500,00
(Este dano não é indemnizável, porque excluído da garantia – dano não pessoal).
Pede juros desde 1/Julho de 2000, data da citação da ré na acção sumária que primitivamente deduziu contra a recorrida e a seguradora do outro veículo interveniente, em que desistiu da instância relativamente à ora recorrida. (facto 42).
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Danos morais.
Nos termos do artigo 496 nº 1 do CC, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Nos termos do nº 3, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do CC.
Na indemnização por este tipo de danos não estamos face a um “equivalente do dano”, mas perante uma “compensação pelo dano”, permitindo-se ao lesado, com a indemnização atribuída, o acesso a bens (consumo) e serviços (lazer ou outros) que o distraiam do dano causado e sirvam de lenitivo para o mesmo. A compensação assim atribuída deve ser significativa e não meramente simbólica, como a jurisprudência vem afirmando. A sua fixação faz-se recorrendo a juízos de equidade – artº 496, nº 3 do CC.
Deve ponderar-se designadamente o “quantum doloris”, o período de duração do sofrimento físico e moral, prejuízo de afirmação pessoal, as sequelas permanentes decorrentes da lesão, designadamente a incapacidade de que se fica a padecer na medida em que implica sofrimento físico ou moral, prejuízo estético, e outros.
Relevadamente temos as sequelas de que a autora ficou portadora, cicatrizes e respectiva localização, sofrimentos havidos, incapacidade de que ficou a padecer. A quantia peticionada, tendo em conta a data a que se reportam os danos mostra-se algo desconforme ao correntemente atribuído na altura, em idênticas situações. Considerando os valores que actualmente se fixam (actualizadamente) mostra-se adequada, pelo que será atribuído a este título o montante de € 40.000,00.
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- Pela incapacidade total para trabalho por 515 dias.
Considerando os rendimentos que a autora auferia, temos o valor de € 7819,77.
- perda de capacidade aquisitiva – peticiona € 50.000,00.
Relativamente à perda de capacidade aquisitiva, a indemnização deve fixar-se com base na equidade, porquanto reconstituir a hipotética situação que o lesado teria não fosse a lesão, constitui tarefa impossível. Atente-se nas vicissitudes da vida e outros imponderáveis impossíveis de prever.
Sem embargo, como refere Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª ed., Almedina, pág. 118, a fixação da indemnização de acordo com a equidade não pode sair de determinados limites, em função da matéria de facto e na medida em esta fornece por assim dizer um pano de fundo relativamente à extensão do dano, dando-nos, nas palavras de Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 7ª ed. Ver, Petrony, pág. 392ss, “ um retrato do Status socioeconómico da vítima e dos familiares que deixa: o nível de vida a que estava habituado…”.
O julgamento de equidade deve ponderar a expectativa de vida, as eventuais possibilidades de progressão na carreira, a inflação, considerando o período de perda de “rendimento” que com a indemnização se pretender ressarcir, o facto de a indemnização ser liquidada de uma só vez, e outros factores que se mostrem atendíveis no caso concreto.
Sem postergar o critério da equidade, mostra-se útil como auxiliar, a utilização das tabelas matemáticas que procuram encontrar o capital produtor do rendimento que o lesado irá perder e que se extinguirá no final do período provável da vida activa, tal como a constante do Ac. do STJ de 5.5.94, C. J. do STJ, tomo II de 94, pág. 86ss
A autora auferia anualmente € 5.542,17.
É expectável que possa exercer actividade até aos 70 anos. Atentos os factores atrás enunciados e os critérios usualmente seguidos mostra-se adequado o valor de € 30.000,00.
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Juros moratórios.
Pretende a recorrente que os juros se contem a partir da citação na acção que primeiro intentou contra a seguradora. Ora, em tal acção a recorrente descreve o sinistro de forma algo diferente, o que a provar-se com probabilidade implicaria a absolvição da recorrida. Assim não se atenderá a tal data.
Quanto aos danos morais, tendo o montante sido fixado por referência à data da decisão, por isso apenas vencerá juros de mora a partir desta mesma data, e não a contar da citação (artº.566º,nº.2).
Vd. Ac. Uniformizador do STJ de 9/5/02, nº 4/2002, DR. IS-A, de 27/6/02, nos seguintes termos:
“Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizada, e não a partir da citação. “.
Quanto aos danos patrimoniais os juros correm a partir da data da citação para a presente acção.
Em conclusão:
- Face ao princípio do primado do direito europeu e doutrina do TJCE, as normas de direito interno, designadamente o D.L. DL. 522/85 de 20/12, redacção do D.L. 130/94 de 19/5, devem ser interpretadas de forma conforme ao direito comunitário.
- Segundo a mais recente jurisprudência do TJCE, designadamente a partir dos processos Katja Candolin e Elaine Farrell, a directiva 90/232/CEE opõe-se a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos pessoais causados a passageiro, ainda que proprietário do veículo.
Procede consequentemente a apelação em parte.

DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento parcial ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, condenando-se a seguradora a pagar à autora a quantia global de € 77.819,77, com juros de mora a contar desta data relativamente aos danos morais (40.000 €) e desde a data da citação quanto ao montante restante.
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Custas nesta relação por apelante e apelada na proporção de 1/5 e 4/5 respectivamente.
As de primeira instância na proporção de decaimento.