Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2243/04-1
Relator: NAZARÉ SARAIVA
Descritores: CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
CÚMULO MATERIAL DE PENAS
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO POR MANIFESTA IMPROCEDENCIA
Sumário: I – Havendo lugar à aplicação simultânea de duas sanções acessórias pela prática de duas contra-ordenações estradais sancionadas nos termos do Código da Estrada, coincidentes no tempo e no espaço, não há lugar à realização de qualquer cúmulo jurídico em relação a ambas.
II – Na verdade decorre do art° 133°, n° 2, do Código dá Estrada, que “As contra-ordenaçõe são sancionadas e processadas nos termos da respectiva lei geral, com as adaptações constantes deste código.”
III – Ora, um dos preceitos do Código da Estrada, mais precisamente, o n° 2 do art° 136°, dispõe claramente que “ As sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente”, sendo que, por sua vez, o art° 139°, n° 1 do mesmo código, estabelece qual o tipo de “sanções” que são cominadas para as contra-ordenações graves e muito graves, a saber, “coima” e. “sanção acessória de inibição de conduzir”.
IV – Ou seja, o legislador do Código da Estrada, de forma expressa, afasta a possibilidade da efectivação do cúmulo jurídico no que concerne às sanções estabelecidas, incluindo, pois, as sanções acessórias de inibição de conduzir, ou seja, a possibilidade de estabelecer uma sanção conjunta, optando pela acumulação material, em que as regras da punição operam exclusivamente por referência a cada uma das contra-ordenações em concurso, ou seja, em que cada uma das penas aplicadas conserva toda a sua individualidade.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Relação de Guimarães

Mostram os autos que "A", com os demais sinais dos autos, impugnou judicialmente as decisões administrativas de 5/11/2003 e 12/12/2003, proferidas, respectivamente, nos autos de contra-ordenação n.os 230920039 e 230920020.
Nessas decisões, o arguido foi condenado no pagamento das coimas no montante de € 1.200 (mil e duzentos euros – processo n.º 230920039) e de € 600 (seiscentos euros – processo n.º 230920020), bem como na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 120 (cento e vinte) dias, suspensa na sua execução por 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias (processo n.º 230920039), e pelo período de 60 (sessenta) dias (processo n.º 230920020), pela prática das contra-ordenações previstas e punidas, respectivamente, pelo disposto nos artigos 28º/1/b), e 38º/2/a), ambos do Código da Estrada (CodEst), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3/5, alterado pelos Decretos-Lei n.os 2/98 e 265-A/2001, de 28/9.
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Por despacho proferido em 08/10/2004, o Exmº Sr. Juiz a quo, conhecendo da impugnação apresentada, decidiu manter «as decisões administrativas recorridas quanto às coimas e às sanções aplicadas», para além de ter condenado o arguido «no pagamento de 1 Uc de taxa de justiça e nas custas do processo, fixando-se a procuradoria em ¼».

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Inconformado com aquela decisão, interpôs o arguido o presente recurso, rematando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
“1- Deve o regime do citado artº 136º, nº 2 do Código da Estrada, que é norma especial em relação ao artº 20º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27/10, ser aplicado in casu, procedendo-se à competente cumulação material das sanções aplicadas, como requerido pelo arguido na impugnação judicial.
2 - Devem, pois, as sanções principais e acessórias correspondentes serem cumuladas materialmente, de acordo com o estabelecido no artº 136º, nº 2 do Código da Estrada, sob pena de violação expressa do princípio “ ne bis in dem””.
3- E, posteriormente, ser determinada a suspensão da execução da sanção única, como foi requerido pelo arguido na sua impugnação judicial.”
Conclui que deverá «ser alterada a decisão do tribunal recorrido ou, caso assim não se entenda, deve ser anulada a decisão do tribunal a quo …conforme o disposto no artigo 75º do Decreto-Lei 433/82, de 27/10

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O recurso foi admitido.
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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido opinando no sentido da improcedência do recurso.
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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido, também, da improcedência do recurso.
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Foi cumprido o artº 417º, nº 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Decisão fáctica constante do despacho recorrido (transcrição):
“ 3.1 Factos provados com relevância para a decisão da causa
a) No dia 7/6/2003, pelas 16h58m, o recorrente circulava, na EN 13, ao km 39,5, no sentido Esposende/Porto, conduzindo o veículo com a matrícula ...-SP, à velocidade de 122,03 km/h;
b) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o recorrente iniciou a ultrapassagem a três veículos, sem se ter certificado que a faixa de rodagem se encontrava livre na sua extensão e largura para a realização dessa manobra;
c) No local referido na alínea a), a velocidade encontra-se limitada a 50 km/h;
d) No RIC relativo ao recorrente encontra-se registada a infracção n.º 2300270105, pela condução com excesso de velocidade, praticada em 8/6/2000, em virtude da qual foi aplicada àquele a sanção de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execução por 180 dias;
e) Por decisão datada de 10/2/2004, o Governador Civil de Braga suspendeu, pelo período de 365 dias, a execução da sanção acessória de inibição de conduzir que lhe foi aplicada pela prática da conduta referida na alínea a), condicionada à prestação de boa conduta, no montante de € 500 (quinhentos euros);
f) O arguido é arquitecto.
…///…
3.2 Factos não provados com relevância para a decisão da causa:
Inexistem.
…///…
3.3 Motivação
A convicção do tribunal acerca da matéria assente baseou-se:
- Nos autos de contra-ordenação n.os 230920039 e 230920020, constantes de fls. 53 e 5, respectivamente, e no teor da impugnação judicial, quanto aos factos referidos nas alíneas a), b), c) e f);
- No RIC, constante de fls. 5, quanto ao facto a que se alude na alínea d);
- Na cópia da decisão do Governador Civil de Braga, constante de fls. 79-71, quanto ao facto mencionado na alínea e).”
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Como sabido, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – cfr. artº 412º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Antes, porém, de conhecer da questão suscitada no recurso, importa clarificar dois aspectos que a análise do mesmo impõe.
Assim, a primeira clarificação a fazer prende-se com o teor do item 1º) da motivação, onde se alega a existência do vício prevenido no artº 410º, nº 2 al. b), do Código de Processo Penal.
Acontece que a existência dos vícios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do citado artº 410 º só ocorre ao nível da decisão fáctica, ou seja em face da factualidade dada como provada e não provada e da respectiva fundamentação.
E se assim é, facilmente se conclui, pela análise dos demais itens constantes da motivação de recurso, que a invocação da existência daquele vício é feita fora das condições prevenidas naquele preceito. Na verdade, o que o recorrente pretende dizer, sob aquela incorrecta designação, é que o tribunal recorrido fez uma incorrecta aplicação do direito aos factos.
A segunda clarificação que se impõe, e que assume primacial importância para determinar concretamente qual é a questão que, afinal, é objecto do presente recurso, é a seguinte:
No item 7) da motivação, o recorrente consigna que “Na impugnação judicial apresentada, o arguido circunscreveu-a à aplicação simultânea de duas sanções acessórias pela prática de duas contra-ordenações coincidentes no tempo e no espaço, requerendo, em consequência, a realização de cúmulo jurídico em relação a ambas e, ulteriormente, a suspensão da execução da sanção única apurada” (negrito e sublinhado nossos).
E, de facto, tal pretensão foi objecto de apreciação no despacho recorrido, que a denegou por contrariar o disposto no artº 136º, nº 2 do Cód. da Estrada. Ou seja, no despacho recorrido afastou-se a possibilidade de aplicação de uma pena conjunta no que concerne às coimas e às sanções acessórias previstas em tal Código, afirmando-se, ao invés, que as regras da punição, neste particular, operam exclusivamente por referência a cada uma das contra-ordenações em concurso, ou seja que, nos termos legais, só é possível a acumulação material das sanções previstas no Código da Estrada.
Ora, não obstante o que consta do referido item 7º, o recorrente, surpreendentemente, no item 14) da motivação defende que «…as sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso devem ser cumuladas materialmente», o que reitera na 2ª conclusão formulada, e que supra se deixou transcrita. Ou seja, interpretada à letra a motivação do recurso, o recorrente pede aquilo que, afinal, foi decidido na decisão recorrida, quiçá por não ter presente que “cúmulo jurídico/pena conjunta” e «acumulação material de penas» são conceitos completamente distintos.
Não obstante o que se acaba de dizer, parece-nos, interpretando a vontade real do recorrente, à face do que é dito no item 7º da motivação do recurso, que, na realidade o que o recorrente pretende defender, por via do mesmo, é que, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, se deve proceder ao cúmulo jurídico das sanções (principal e acessória) em que foi condenado pela prática das duas contra-ordenações, e uma vez encontrada a sanção única, que deve a mesma ser suspensa na sua execução.
Bom, e se é essa a pretensão do recorrente, então ela está votada manifestamente ao insucesso, como se passa a demonstrar.
Decorre do artº 133º, nº 2, do Código da Estrada, que «As contra-ordenações são sancionadas e processadas nos termos da respectiva lei geral, com as adaptações constantes deste código.” (negrito nosso)
Ora, um dos preceitos do Código da Estrada, mais precisamente, o nº 2 do artº 136º, dispõe claramente que «As sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente”, sendo que, por sua vez, o artº 139º, nº 1 do mesmo código, estabelece qual o tipo de «sanções» que são cominadas para as contra-ordenações graves e muito graves, a saber, «coima» e «sanção acessória de inibição de conduzir». (negrito e sublinhado nossos).
Ou seja, o legislador do Código da Estrada, de forma expressa, afasta a possibilidade da efectivação do cúmulo jurídico no que concerne às sanções nele estabelecidas, incluindo, pois, as sanções acessórias de inibição de conduzir, ou seja, a possibilidade de estabelecer uma sanção conjunta, optando pela acumulação material, em que as regras da punição operam exclusivamente por referência a cada uma das contra-ordenações em concurso, ou seja, em que cada uma das penas aplicadas conserva toda a sua individualidade.
Concluindo, nenhum reparo há a fazer à decisão recorrida ao não proceder à efectivação do pretendido cúmulo jurídico, sendo que não se descortina – nem o recorrente o explica – onde é que ocorre a violação ao princípio ne bis in idem.
E sendo a tese recursiva contra legem, fácil é concluir que o recurso é manifestamente improcedente, a implicar a sua rejeição, nos termos do artº 420º, nº 1 do Cód. Processo Penal.
Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente, ao abrigo do disposto no artº 420º, nº 1 do CPP.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UCs.
A cargo o recorrente o pagamento de 4 (quatro) UCs, nos termos do artº 420º, nº 4 do CPP.

(Texto processado em computador e revisto pela primeira signatária – artº 94º, nº 2 do CPP)