Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
285/12.0TBCBT-B.G1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
CRÉDITO LABORAL
EXECUÇÃO
PENHORA DE VENCIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Na cessão de créditos salariais futuros, no âmbito de um contrato de trabalho preexistente, o crédito cedido nasce directamente na titularidade do cessionário.
II - Se o cedente de créditos salariais for executado por dívida diversa da que foi objecto da dita cessão, o montante anteriormente cedido do seu salário mensal, não deve ser relevado para aferir da penhorabilidade desse salário.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - RELATÓRIO
Por apenso à execução em que é exequente o Banco B…, SA e executado A…, veio este deduzir oposição á penhora de um terço do vencimento que recebe da empresa “C…”.
Para tanto, invoca que: é trabalhador na dita empresa, auferindo a quantia mensal ilíquida de €900,00; no processo de execução comum n.º 179/12.9TBCBT que correu termos no Tribunal de Celorico de Basto, no qual era executado, celebrou com o exequente transacção nos termos da qual foi estipulado que o ora oponente cedia o montante do seu salário que excedesse o valor do salário mínimo nacional até perfazer a quantia de €25.227,40. Como nos autos de execução ora em causa foi penhorado 1/3 do salário auferido, deve ser ordenado o levantamento dessa penhora, pois que, a sobrevivência do oponente fica em causa.
O exequente apresentou contestação argumentando que o salário do exequente não se encontra penhorado à ordem de nenhum outro processo, pelo que deve manter-se a penhora em causa.
Foi proferido despacho saneador que conheceu do mérito da causa, por se ter entendido que o estado do processo o permitia, sem necessidade de mais provas, julgando-se improcedente a oposição à execução.
Inconformado, o oponente interpôs recurso de apelação da sentença, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
a) O executado foi notificado de que, nos presentes autos, foi penhorado o salário do executado, como se de um crédito se tratasse.
b) Na verdade, o executado trabalhava na entidade notificada da penhora, no denominado regime de prestação de serviços, tendo subscrito contrato de prestação de serviços, embora o mesmo, na realidade, corresponda a um contrato de trabalho como aliás já consta da decisão proferida em 1ª Instância e da qual se recorre.
c) Analisada a situação profissional do executado, verifica-se que se trata de um trabalhador da “C…”, pois a actividade é realizada na referida empresa, todos os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem à referida empresa, cumpre horário de trabalho igual ao dos restantes trabalhadores (das 9h às13h e das 14h às 18h, tal como o de todos os funcionários) e o horário foi previamente determinado pela mesma empresa “C…”.
d) Acresce que, o executado como contrapartida do trabalho prestado aufere a quantia mensal ilíquida de 900,00€.
e) Ou seja, o executado, apesar de figurar como prestador de serviços, é trabalhador da empresa no regime de exclusividade, sendo da mesma que recebe os seus únicos proventos.
f) É nesta empresa que trabalha em regime de exclusividade e obedece às ordens que os gerentes ou superiores hierárquicos lhe dirigem, bem como respeita o horário previamente definido.
g) Os únicos pagamentos que recebe são os provenientes da empresa “C…”.
h) Assim sendo, a situação laboral do executado, considerando o sobredito, integra a definição de contrato de trabalho nos termos do artigo 12.º do Código do Trabalho, segundo o qual se presume a existência do mesmo.
i) Sendo, portanto, errada a interpretação do agente de execução quando efectua a penhora do salário do executado como se de um mero crédito se tratasse, pois que o que efectivou foi a penhora do salário do executado.
j) Ora, à primeira vista, todo o crédito seria penhorável, contudo, uma vez que aquele crédito é o salário e único sustento do executado, trata-se de um bem parcialmente penhorável nos termos do art.º 824.º do C.P.C..
k) Por outro lado, o salário do executado encontra-se onerado em virtude do acordo alcançado no âmbito do processo 179/12.9TBCBT, execução comum, que correu termos neste Tribunal, até ao montante correspondente ao salário mínimo nacional.
l) No supra mencionado processo, as partes celebraram transacção na qual ficou estipulado que o ora oponente cedia o montante que excedesse o salário mínimo nacional do seu vencimento líquido futuro, enquanto prestador de serviços à empresa “C…”, até perfazer 25.227,40€, quantia em divida.
m) Tal acordo consubstancia uma “cessão de créditos”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 577º do CC, ou seja, o credor (executado) cedeu a terceiro (Exequente) uma parte do seu crédito (vencimento), para pagamento da quantia que se encontrava em dívida.
n) “A cessão pode ter por objecto créditos presentes (já vencidos, a prazo, ainda por vencer; condicionais, etc.) e também créditos futuros (art.221º), desde que determináveis”.
o) Na verdade, a cessão do direito de crédito visa a mobilidade da posição activa da relação obrigacional, permitindo que um terceiro o receba no seu património e o possa exercitar. No nosso direito, a cessão de créditos não é um negócio abstracto; é causal ou seja dependente do contrato mediante o qual ela se operou: oneroso (compra e venda), gratuito (doação), liberatório (pagamento) ou de garantia (578º/2 CC).
p) Ora, no ponto 3 da transacção homologada e transitada, escreveu-se que “o executado autoriza expressamente a referida empresa, a transferir, mensalmente, a partir do mês de Maio de 2012, para a conta da exequente (N) o valor do seu vencimento liquido mensal que exceda o valor do salário mínimo nacional, até perfazer a quantia de 25.227,40€ supra referida”.
q) Na verdade, o executado em virtude de ter cedido os montantes supra referidos, passou a não dispor da totalidade do seu vencimento, tendo ficado mensalmente na sua disponibilidade apenas o equivalente ao salário mínimo nacional.
r) Em relação a terceiros, a cessão produz efeitos independentemente de qualquer notificação, pelo que, a partir da sua verificação, o executado deixa de ter na sua disponibilidade o rendimento cedido, passando o mesmo a estar na disponibilidade do seu credor (exequente).
s) Ora, o único rendimento que aufere o executado provém do seu trabalho, sendo que não dispõe de qualquer outro rendimento ou quaisquer outros bens penhoráveis.
t) O executado depende em termos económicos, única e exclusivamente do vencimento por si auferido.
u) A penhora solicitada nos presentes autos corresponde à totalidade do que ganha, pois que a parte cedida já não lhe pertence e, consequentemente, não pode ser objecto de penhora.
v) Assim, sendo, a remuneração auferida pelo executado é estritamente indispensável para satisfazer as necessidades mínimas impostas pela sobrevivência.
w) Deduzida a quantia cedida no processo 179/12.9TBCBT, fica na disponibilidade do executado um rendimento mensal de 485,00€.
x) Sendo que tal montante, por si só, é insuficiente a uma vida condigna, pois tem ainda de suportar as despesas com alimentação, transporte, saúde e vestuário.
y) A manter-se a penhora ordenada nestes autos (1/3 do vencimento), ou seja cerca de 161,67€/mês, o executado apenas auferirá a quantia de 323,33€/mês, o que o prejudicará gravemente, pois agrava de forma incomportável e insustentável a sua situação financeira e põe em causa a sua própria sobrevivência, uma vez que tal, coloca o executado em situação de carência e debilidade intolerável e injustificável.
z) A manter-se a penhora ordenada, estaremos perante a penhora de bens indispensáveis à sobrevivência do executado.
aa) A sobrevivência condigna do executado traduz-se na satisfação das suas necessidades básicas de alimentação, vestuário e deslocação.
bb) O que constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado, na medida em que o nível de subsistência básico desce muito abaixo do que é legalmente penhorável.
cc) A situação descrita configura uma situação em que é inequívoco que o montante a penhorar atingiu o seu limite.
dd) De acordo com o disposto no art. 738º, 1 do CPC, tendo em conta a natureza do crédito, necessidades do executado e os limites penhoráveis, o tribunal deverá ordenar o levantamento da penhora solicitada, porquanto ultrapassa os limites impostos por esta norma jurídica.
ee) O encurtamento do rendimento do executado através da manutenção da penhora ordenada constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do devedor, na medida em que o executado vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do que é penhorável.
ff) Trata-se assim, de garantir a satisfação de necessidades vitais do executado, o que manifestamente só se alcançará mediante a revogação da decisão proferida pelo tribunal a quo, devendo ser proferida uma outra que ordene o cancelamento da penhora solicitada pelo Agente de Execução.
gg) Mostra-se assim violado o disposto nos artigos 577º e ss do CC e 738º do CPC.
Termos em que,
Revogando a Douta sentença proferida em primeira instância e proferindo decisão que ordene o cancelamento da penhora solicitada pelo agente de execução, farão justiça.

A exequente respondeu às alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO
OBJECTO DO RECURSO
Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações, a questão a decidir é a de saber se a penhora efectuada na execução a que respeita esta oposição é ilegal.

Os factos provados que fundamentaram a decisão são os seguintes:
1. Nos autos de execução principais, em 13/02/2013, foram penhorados os créditos devidos ao executado enquanto colaborador na empresa “C…”;
2. A quantia referida em 1. corresponde ao rendimento mensal que o executado aufere pelo trabalho efetuado na empresa “C…”;
3. No âmbito do Processo nº 179/12.9TBCBT, execução comum que corre termos neste tribunal, em que é exequente D… e executado o aqui executado/oponente, foi celebrada transação nos termos da qual o executado se obrigou a entregar à exequente, até perfazer o integral pagamento da quantia de € 25.227,40, o montante que exceder o salário mínimo nacional do seu vencimento líquido enquanto prestador de serviços à empresa “C…”; consignou-se ainda na referida transacção que o executado autoriza expressamente a referida empresa a transferir mensalmente para a conta do exequente o valor referido.

4. A execução referida em 3. foi declarada extinta.


DECIDINDO
Está em causa saber se, nos autos de execução a que respeitam estes autos, a penhora ali determinada que incidiu sobre 1/3 do salário que o executado aufere do trabalho que presta por conta para a Empresa “C…”, é ilegal por impenhorável, por violação do art.º 824.º n.º 2 do CPC.

Dispõe o art.º 824 do CPC na versão aplicável ao caso:
Art.º 824.º
Bens parcialmente penhoráveis
1 - São impenhoráveis:
a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2 - A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.

A redacção desta norma, que alterou a versão introduzida em 1996, resultou do acórdão com força obrigatória geral proferido pelo Tribunal Constitucional nº 96/2004, publicado no D.R., II Série, nº 78, de 1 de Abril de 2004, que, à semelhança do que fora já decidido, também com força obrigatória geral relativamente às prestações periódicas mencionadas na al. b) do nº 1, decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da dignidade decorrente do princípio do Estado de Direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, nº 2, alínea a) e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.° do Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995-1996), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional.
Fundamentou o Tribunal Constitucional as referidas decisões, argumentando que o salário mínimo nacional (ou pensão) contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que, por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos”, não pode ser de todo em todo reduzido, qualquer que seja o motivo. Assim, no confronto do direito do credor à satisfação do seu crédito com o direito do trabalhador a ter um salário que lhe garanta um mínimo de subsistência, deve prevalecer este último, pois que, a penhora de pensões não superiores ao valor do salário mínimo, “constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do trabalhador, na medida em que este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário para a existência com a dignidade humana que a Constituição garante.”
No caso concreto, deu-se como provado que o rendimento que o ora oponente recebe da empresa identificada, tem a natureza de salário, pois que, de facto, é trabalhador da mesma. Não se conhecendo outros rendimentos ou bens penhoráveis ao executado, importa assim saber se a penhora do vencimento em causa que este alega ser de €900,00 mensais, viola a regra da impenhorabilidade prevista na última parte do art.º 824.º n.º 2 do CPC, com a finalidade de garantir àquele um rendimento equivalente ao valor do rendimento mínimo garantido.
À primeira vista afigura-se que a penhora de 1/3 do dito salário garantiria ao executado mensalmente, um rendimento não inferior ao do salário mínimo nacional.
Contudo, o salário do exequente está onerado por via da transação celebrada na execução n.º 179/12.9 entre o oponente e ali executado e a respectiva exequente, nos termos da qual o executado se obrigou a entregar à exequente, até perfazer o integral pagamento da quantia de € 25.227,40, o montante que exceder o salário mínimo nacional do seu vencimento líquido enquanto prestador de serviços à empresa “C…”; consignou-se ainda na referida transacção que o executado autoriza expressamente a referida empresa a transferir mensalmente para a conta do exequente o valor referido.

É certo que, para se aferir da impenhorabilidade do salário do executado, não podem relevar todos os encargos por este assumidos anteriormente. Tais encargos, apenas devem ser ponderados, para aplicação do disposto nos n.ºs 4 e 6 do art.º 824.º do CPC.
Mas, no caso dos autos, e por via da dita transacção homologada por sentença transitada, o executado já não tem disponível a totalidade do seu salário, pois que, com a dita transacção, operou-se uma cessão de créditos salariais futuros para o exequente nos termos dos art.ºs 577.º e 211.º do CC, que é válida uma vez que respeita o limite da cessão de créditos laborais prevista no art.º 271.º do Código do Trabalho.

É certo que, por via da transacção, se declarou extinta a execução quando se poderia ter suspendido. No entanto, operando-se uma cessão dos créditos salariais futuros válida e até reconhecida judicialmente, o crédito futuro cedido nasce directamente na titularidade do cessionário.
Relativamente à cessão de créditos futuros, tem-se levantado a questão de saber se o crédito cedido nasce directamente na titularidade do cessionário ou passa pela esfera jurídica do cedente, antes se ser transferido para a titularidade do cessionário.
Como refere Antunes Varela (cf. “Das obrigações em Geral”7.ª edição Vol. II pag 317), “os autores costumam distinguir dois grandes núcleos de casos: o primeiro abrangendo os créditos traduzidos em obrigações simples a constituir só no futuro, mas tendo como base relações contratuais duradouras, já constituídas à data do contrato de cessão; o segundo compreendendo os créditos que hão-de provir de relações contratuais ainda não constituídas no momento em que a cessão é efectuada.
…No primeiro caso o crédito nasce directamente, em princípio, na titularidade do cessionário, visto este ter adquirido desde logo, a partir da celebração da cessão, a expectativa jurídica que é o gérmen do futuro crédito
No segundo, como há ainda necessidade de celebrar contratos que hão-de dar lugar ao nascimento dos créditos (futuros) cedidos … os créditos em expectativa nascerão na titularidade do cedente e só depois serão transferidos para o cessionário.”
Ora, no caso, é evidente que estamos perante a primeira situação, pelo que, enquanto não se efectivar a cessão de créditos salariais futuros, acordada no processo de execução nº 179/12.9TBCBT, as quantias mensais que devem ser entregues ao ali exequente nascem directamente na titularidade do cessionário, pelo que, não podem ser penhoradas na execução a que se refere a presente oposição. E, porque a parte do salário do exequente de que este fica a dispor depois da cessão de créditos mensal, não ultrapassa o valor do salário mínimo nacional, até se cumprir o acordado na transacção referida, a penhora decretada na execução em causa não pode produzir os seus efeitos, sob pena de violar a regra do art.º 824.º n.º 2, ou seja, esta penhora não deve ser levantada, mas só poderá ser efectivada depois de terminar a referida cessão de créditos salariais.

Deve pois proceder, nesta medida a apelação.

Em conclusão:
I - Na cessão de créditos salariais futuros, no âmbito de um contrato de trabalho preexistente, o crédito cedido nasce directamente na titularidade do cessionário.
II - Se o cedente de créditos salariais for executado por dívida diversa da que foi objecto da dita cessão, o montante anteriormente cedido do seu salário mensal, não deve ser relevado para aferir da penhorabilidade desse salário.


DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a apelação parcialmente procedente, determinando-se a suspensão dos efeitos da penhora decretada até se efectuar a cessão de créditos acordada no processo de execução que correu termos no tribunal recorrido sob. o número n.º179/12.9TBCBT.
Custas pelo executado e exequente, na proporção de 1/8 para o primeiro e de 7/8 para o segundo.

Guimarães, 5 de Dezembro de 2013
Isabel Rocha
Moisés Silva
Jorge Teixeira