Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | CRUZ BUCHO | ||
| Descritores: | DESISTÊNCIA DA QUEIXA CONDIÇÃO IN DUBIO PRO REO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/02/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | JULGADO IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | I- A desistência de queixa, tal como a queixa, não pode ser sujeita a condições. Por isso, as condições resolutivas devem ter-se por irrelevantes e as suspensivas tornam a desidência de queixa ineficaz. II- Havendo dúvidas inultrapassáveis sobre o conteúdo e significado da declaração de desistência de queixa, a sua superação deve efectuar-se com recurso ao principio “in dubio pro reo” | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães: * I- RelatórioNo 4º Juízo Criminal de Braga, em processo sumaríssimo (n.º3207/05.0PBBRG), o Ministério Público requereu a aplicação ao arguido L… de uma pena (25 dias de multa à taxa diária de €5) pela prática de um crime de ameaças previsto e unível pelo artigo 153º do Código Penal. Em 18 de Abril de 2006, logo após o inquérito ter sido remetido à distribuição, foi proferido o seguinte despacho, a fls. 25: “Questão prévia: “Conforme resulta de fls.18, o ofendido J… declarou que não lhe foi possível identificar testemunhas ou os indivíduos referidos nos autos. Mais declarou que prescinde do procedimento criminal contra os respectivos autores e de ser ressarcido dos seus prejuízos.” “Trata-se de uma desistência de queixa, válida e tempestivamente apresentada.” “O arguido L… já declarou a fls. 13 verso, in fine, não se opor à desistência da queixa.” “Pelo exposto, considero relevante a declaração de desistência de queixa e, nos termos do disposto no artigo 116°, n.º 2, do C.P. e 51°, n.º 2, do C.P,P., homologo-a, ordenando o oportuno arquivamento dos presentes autos. “Sem custas. “Notifique.” * Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, onde apresenta as seguintes conclusões: “A expressão: Que prescinde do procedimento criminal contra o(s) respectivo(s) autor(es), caso lhe(s) venha a ser imputada responsabilidade sobre os factos denunciados e, ser ressarcido(a) dos seus prejuízos, proferida por queixoso em processo por crime semi-público não indica que desiste da queixa mas antes que o fará se for ressarcido dos prejuízos. Pelo que ao homologar a desistência de queixa que não existiu o Meritíssimo Senhor Juiz violou o disposto nos artigos 116º 2 e 153º do Código Penal e 48º e 51º do Código do Processo Penal. Termina pedindo que o despacho recorrido seja substituído por outro que mande notificar o arguido do conteúdo do requerimento do Ministério Público. * Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo, não foi apresentada qualquer resposta pelo arguido apesar de notificado nos termos do artigo 411º, n.º5 do CPPNeste Tribunal o Exmo Sr. Procurador- Geral Adjunto emitiu parecer desfavorável ao provimento do recurso. * Foram colhidos os vistos legais.* II - Fundamentação1. A primeira questão a analisar e decidir consiste em interpretar a seguinte declaração plasmada no auto de fls 18: “Que prescinde do procedimento criminal contra o(s) respectivo(s) autor(es), caso lhe(s) venha a ser imputada responsabilidade sobre os factos denunciados e, ser ressarcido(a) dos seus prejuízos.” Ora, lendo e relendo aquele auto, a primeira e decisiva conclusão é a de que a frase em questão, ali exarada, é uma frase ambígua, mal construída do ponto de vista gramatical de tal forma que, para além de constituir um atentado à língua de Camões, é susceptível de comportar duas interpretações distintas, plenas de significado processual. Por isso que careça de ser devidamente interpretada É sabido que a desistência de queixa constitui uma declaração de vontade de não prossecução do procedimento criminal contra as pessoas denunciadas, traduz o desejo do ofendido fazer cessar o procedimento criminal, constituindo, por conseguinte, um acto jurídico (artigo 295º do Código Civil). Por isso, como qualquer outro acto jurídico, aquela declaração deve valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art. 236º do Código Civil; no sentido da aplicabilidade deste normativo a actos não negociais ex vi do citado artigo 295º, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, 2ªed, Lisboa, 2000, pág. 98). Ora, como bem assinala o Exmo PGA, no seu douto parecer, a literalidade da referida expressão permite ou comporta duas interpretações possíveis: - o declarante prescinde do procedimento criminal contra os respectivos autores, caso lhes venha a ser imputada responsabilidade e caso venha a ser ressarcido dos seus prejuízos; - o declarante prescinde do procedimento criminal contra os respectivos autores, caso lhes venha a ser imputada responsabilidade sobre os factos denunciados e (ainda prescinde)de ser ressarcido dos seus prejuízos; A primeira interpretação foi acolhida pelo ilustre recorrente. A segunda foi perfilhada no despacho recorrido. E qualquer delas poderá obter argumentos a seu favor. Ensina-nos a experiência que em muitos casos os ofendidos, depois de num primeiro momento terem apresentado a queixa, com o passar do tempo, arrefecidos os ânimos e, consciencializados ou melhor esclarecidos sobre as reais implicações de um processo criminal, ou por qualquer outro motivo que não revelam ou não se descortina, desistem da queixa desde que sejam indemnizados, sendo que essa indemnização é muitas vezes quase simbólica, destinando-se a ressarcir despesas com honorários, deslocações, etc. Outras e não raras vezes, depois de num primeiro momento ter apresentado a sua queixa, ao ser convocado para prestar declarações, o ofendido, confrontado com todos os inconvenientes daí decorrentes e antevendo novos incómodos e preocupações, desinteressa-se e desiste de tudo, isto é, do procedimento criminal e da indemnização por perdas e danos a que tem direito. Ora, a forma perfeitamente esdrúxula como foi proferida a declaração em causa ou, no que vai dar ao mesmo, como foi exarada em auto, não permite de todo em todo, escrutinar o sentido daquela declaração. No âmbito do direito privado, o artigo 237º do Código Civil dispõe que “Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravosos para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.” No âmbito do processo penal, em que estão em causa objectivos, valores, interesses e princípios distintos, aquela regra é claramente inaplicável. * 2. Entende o Exmo Procurador-Geral Adjunto que lhe parece de algum modo mais razoável o entendimento veiculado pelo despacho recorrido, alinhando, para além de outra que será adiante melhor examinada, as seguintes duas razões:- no processo não se mostram patentes quaisquer prejuízos sofridos pelo ofendido pelo que não faz um sentido por aí além, a especial salvaguarda do seu ressarcimento com condição da desistência de queixa; - não resultando da lei qualquer possibilidade de estabelecimento de condição para o exercício do direito de desistência de queixa, sempre parecerá mais razoável considerá-lo devidamente exercido, “tendo-se a suposta condição como inexistente.” * §1.Quanto à primeira daquelas judiciosas observações, dir-se-á que embora no inquérito se não indicie a existência de danos patrimoniais, os danos não patrimoniais são evidentes e indemnizáveis, já que o receio pela integridade física na sequência de uma ameaça merece indiscutivelmente a tutela do direito (artigos 70º e 496º, n.º1, ambos do Código Civil, ambos ex vi do artigo 129º do Código Penal).É certo que face ao carácter bagatelar da infracção criminal em causa e aos danos em questão, não se impõem, neste domínio, particulares exigências de protecção da vítima. Mas salvo o devido respeito pela opinião contrária, este contributo revela-se inócuo para a solução do problema que nos ocupa. * §2. Relativamente à segunda daquelas razões adjuvantes, isto é, ter-se “a suposta condição como inexistente”, não a pudemos igualmente sufragar. Concorda-se com o Exmo PGA, no sentido de a lei não admitir a possibilidade de estabelecimento de condição para o exercício do direito de desistência de queixa, como não o admite para a queixa. Como referem Leal Henriques/Simas Santos “A desistência é absoluta, não podendo ser sujeita a prazos ou condições e a não oposição terá de ser incondicional” Código Penal Anotado, 1º vol., Lisboa, 1995, pág. 815. Também Figueiredo Dias é peremptório no sentido de que a desistência de queixa “(…) é, em princípio, incondicional” (Direito Penal Português- As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pag. 680 §1094). A propósito da queixa este último autor explica que o carácter incondicional da queixa não resulta tanto da sua natureza de puro acto processual, como pretendem Maurach/Zipf, quanto de não ser político-criminalmente aceitável que o exercício de um direito do qual depende a efectivação do ius puniendi estadual possa servir para alcançar fins (privados) diversos daqueles que vimos presidirem às funções do instituto (pág. 676, §1087) Mas, salvo o devido respeito, da circunstância de existir uma condição ilegal não decorre, sem mais, que a condição se deva considerar como inexistente, como parece sustentar o Exmo PGA. Ainda a propósito da queixa, Figueiredo Dias na sequência dos desenvolvimentos acima assinalados remata o seu raciocínio concluindo: “Por isso condições resolutivas devem ter-se por irrelevantes, enquanto condições suspensivas devem tornar a queixa ineficaz”(pág. 676). E também a propósito da desistência de queixa, Figueiredo Dias sublinha que “ela é também – tal como vimos suceder com o exercício do respectivo direito e tal como igualmente sucede com a renúncia, por um lado informal (…), por outro, em princípio incondicional (págs. 679-680). Dispomos, porém, de lei que contempla expressamente o caso em apreço. Com efeito, o artigo 271º do Código Civil depois de, no seu n.º 1, ferir de nulidade o negócio jurídico subordinado a uma condição contrária à lei ou à ordem pública ou aos bons costumes estatui no seu n.º2 que “É igualmente nulo o negócio sujeito a uma condição suspensiva que seja física ou legalmente impossível; se for resolutiva, tem-se a condição por não escrita.” Dado que, na versão do recorrente, a expressão “proferida pelo queixoso não indica que desiste da queixa mas antes que o fará se for ressarcido dos prejuízos”(conclusões do recurso), estaríamos perante uma condição suspensiva legalmente impossível, a qual tornaria nula a própria desistência [cfr. neste sentido o Ac. da Rel. de Lisboa, de 17 de Julho de 1985, Col. de Jur. ano tomo 4, págs.166-168 (pág. 168) cujo sumário que se encontra incorrectamente redigido já que afirma precisamente o contrário do que emerge do texto]. Por isso, no caso em apreço e ao contrário do sustentado pelo Exmo PGA, a perfilhar-se a interpretação subjacente ao entendimento do Exmo magistado recorrente, a condição aposta à declaração, porque suspensiva, tornaria a própria desistência de queixa ineficaz. * §3. Neste contexto, ganha inteira relevância a afirmação do Exmo PGA no sentido de que cabia ao Ministério Público, na fase de inquérito, extirpá-lo desta deficiência, levando a cabo as diligências adequadas para que dúvidas não subsistissem. Não o tendo feito, nem tal podendo ser feito nesta fase do processo, dada a irrepetibilidade do acto encontramo-nos perante uma dúvida inultrapassável sobre o real significado da declaração de desistência exarada no auto de fls. 18. Afirmada e justificada a irredutibilidade da dúvida, o seu carácter insanável, bem como a sua razoabilidade, cremos que a sua superação deve efectuar-se com recurso ao princípio in dubio pro reo É sabido que o princípio “in dubio pro reo” [“um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz que omita a decisão (…) tem de ser sempre valorado a favor do arguido” - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, pág. 213] tem visto o seu âmbito de aplicação sucessivamente alargado, aplicando-se a todas as subdivisões da matéria fáctica (tipo incriminador, elementos qualificadores ou privilegiantes do tipo, circunstâncias agravantes ou atenuantes, causas de justificação ou de exclusão da culpa, factores de medida da pena, etc). Para quem veja no princípio 'in dubio pro reo' o correspectivo processual do princípio da culpa, os pressupostos processuais (aqui encaradas como circunstâncias das quais depende a admissibilidade de todo o processo ou de determinadas partes do processo - cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. III, reimp. Lisboa, 1981, pág. 8; Id. “Os pressupostos processuais, in Obra Dispersa, vol. I, Lisboa, 1996, págs. 371-372) estão fora daquele primeiro princípio. Nesta linha se inseriu, entre nós, o Prof. Figueiredo Dias que negou essa aplicação precisamente porque os pressupostos processuais se mostravam matéria absolutamente estranha ao princípio da culpa de que o princípio 'in dubio pro reo' seria o correspectivo processual; o que nos pressupostos processuais estava em causa "(...) não é o interesse do arguido, mas a admissibilidade de um processo que até pode interessar àquele , para que nele demonstre a sua inocência. "[Direito Processual Penal, I , cit., págs. 216-217; o ilustre professor de Coimbra admite, porém, que perante uma dúvida persistente sobre factos relevantes para a admissibilidade do processo (v.g. sobre se o procedimento criminal se encontra prescrito) deva em regra preferir-se o seu arquivamento à sua prossecução, "(...) em homenagem ao conteúdo ínsito no princípio da legalidade de toda a repressão penal”(ibidem)]. Opinião diametralmente oposta foi sustentada por uma outra corrente doutrinária, na qual emerge, como figura de proa, Claus Roxin, que desligando o 'in dubio pro reo' do princípio da culpa, afirma que em caso de dúvida sobre a verificação de um pressuposto processual , o processo deve ser arquivado já que "ninguém deve ser punido se não for certo que o seu facto (ainda) está sujeito ao poder punitivo do Estado"(apud Libano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e 'In Dubio Pro Reo', Coimbra, 1997, pág. 73 . Entre uma e outra posições situam-se teses intermédias que optam pelo tratamento diferenciado dos pressupostos processuais fazendo apelo à decisão caso a caso. O pensamento do Prof. Figueiredo Dias parece ter infIectido de algum modo neste sentido porquanto mais recentemente, depois de reafirmar a posição anteriormente assumida e que deixámos sintetizada, assinala que o "( ... ) o arquivamento poderá ainda justificar-se à luz do princípio 'in dubio pro reo' se a dúvida sobre factos relevantes para a admissibilidade do processo contender com o que podemos denominar a 'culpabilidade processual do arguido'- vg. sobre se o procedimento criminal se encontra prescrito”-Direito Processual Penal (Lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra, 1988/9, págs. 148-148. Também a Drª Libano Monteiro parece navegar nestas águas, embora trace a linha de fronteira entre os pressupostos processuais de acordo com o carácter definitivo ou provisório do arquivamento que a falta do pressuposto determina: "(...) sempre que a certeza sobre a não verificação de um pressuposto processual levasse ao arquivamento definitivo do processo, também a dúvida razoável sobre o mesmo deverá conduzir a idêntico resultado." Entrariam, nesta hipótese pressupostos processuais como a prescrição do procedimento criminal, a amnistia ou o indulto, ou a circunstância de o mesmo facto já ter sido objecto de sentença transitada em julgado. Já ficariam excluídos da aplicação do princípio pressupostos como a competência em que não é, em si mesma e definitivamente ilegítima a intervenção penal do Estado (Perigosidade de Inimputáveis e 'In Dubio Pro Reo', cit., pág. 74). Quanto à jurisprudência portuguesa, para além de escassa, tem passado à margem desta querela não hesitando em fazer uso do princípio 'in dubio pro reo' neste domínio. Nesta medida os tribunais portugueses aderem claramente, sem todavia a referirem, à tese sufragada por Roxin, a propósito da prescrição, da amnistia e do perdão (dúvida sobre a data em que o facto ocorreu), e sobre o exercício tempestivo do direito de queixa (dúvida sobre a data da apresentação da queixa) – cfr., v.g. os acs. do S.T.J. de 13-1-1994, Col. de Jur.-Acs do STJ, ano II, tomo 1, pág. 200, e da Rel. do Porto de 9-12-1987, Col. de Jur. ano XII, tomo 5, pág. 239. Por isso, quer por aplicação do princípio “in dubio pro reo” em que a dúvida sobre o conteúdo e significado da desistência de queixa exarada no auto de fls. 18 deve ser valorada a favor do arguido, como julgamos, quer em homenagem ao “conteúdo ínsito no princípio da legalidade de toda a repressão penal” em que perante aquela dúvida sobre factos relevantes para a admissibilidade do processo, deve preferir-se o seu arquivamento à sua continuação, conclui-se pela improcedência do recurso. * III- DispositivoEm face do exposto, acordam os juízes em rejeitar o recurso, por manifesta improcedência. Sem custas. * Guimarães, 2 de Outubro de 2006 |