Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1426/15.0T8BGC-A.G1
Relator: ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CASOS DE DÚVIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo;

II- Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

III- Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.
Decisão Texto Integral:
Recorrente: EP

Recorrido: PP
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Relator: António José Saúde Barroca Penha.
1º Adjunto: Desembargadora Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha.
2º Adjunto: Desembargador José Manuel Alves Flores.
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que em que é exequente EP e executado José veio este último deduzir embargos de executado alegando, em síntese, não ter sido citado no procedimento injuntivo do qual resultou o requerimento de injunção com fórmula executória dado à execução nos autos em apenso, apenas tendo tido conhecimento desde último processo – dada a respetiva residência no Brasil – por via dos respetivos filhos, os quais souberam do mesmo em audiência de julgamento a que assistiram no âmbito de uma ação intentada pelo aqui exequente contra a sociedade “Empresa X – Sociedade Unipessoal, Lda.”, da qual o aqui executado é gerente.
Mais alegou o executado ter sido a citação no processo executivo, bem como a notificação no procedimento injuntivo efetuadas na morada identificada no artigo 11º do requerimento inicial, morada essa correspondente não ao domicílio daquele, mas sim a um pavilhão industrial, propriedade da empresa “Empresa X, Unipessoal, Lda.”, da qual aquele é gerente; sendo certo que nunca assinou qualquer dos avisos de receção postais constantes dos autos.
Referiu ainda o embargante inexistir a dívida exequenda, porquanto o embargado nunca lhe emprestou a quantia de € 12.500,00, empréstimo esse que, atento o respetivo valor, sempre seria nulo, por falta de forma, nos termos do artigo 1143º do CC.
Concluiu, deste modo, o embargante no sentido da procedência dos embargos por si deduzidos, com a consequente inexistência do título executivo e a necessidade de extinção da execução em apenso, bem como pela condenação do embargado como litigante de ma fé.
Regularmente notificado, veio o exequente alegar a intempestividade dos embargos, atenta a data da citação do executado nos autos executivos em apenso, bem como a regularidade de tal citação nesses autos e da notificação no procedimento injuntivo, atento o facto de ambas – citação e notificação – terem sido assinadas pelo embargante, sendo que, de resto, a morada identificada no artigo 11º do requerimento inicial corresponderia ao domicílio verbalmente convencionado entre as partes, sendo frequentes as deslocações do executado a Portugal e sendo habitual os respetivos filhos tratarem dos assuntos deste neste País.
Concluiu o exequente, pugnando a improcedência dos embargos, na medida em que extemporâneos e sem fundamento, e consequente prosseguimento da execução em apenso, bem como pela condenação do embargante como litigante de ma fé.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento.

Na sequência, por sentença de 06.04.2017, veio a julgar-se totalmente procedentes, por provados, os presentes embargos de executado e, em consequência, foi declarada extinta a execução principal apensa, com o levantamento de quaisquer penhoras realizadas nesta mesma execução.

Inconformada com o assim decidido, veio o embargado/exequente EP interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1. Existem nos autos, nomeadamente nos depoimentos prestados e nos documentos juntos, matéria e fundamentos que permitem e justificam a reapreciação da matéria de facto e alterada conforme infra se expõe;
2. Deverá ser reapreciada a Matéria de Facto, a qual deverá “data vénia” ser alterada de acordo com o disposto no art.º 662º do C.P.C., nos seguintes termos:
- PROVADOS - os factos que constam da sentença ora em “crise” versados no ponto - factos não provados supra descriminados.
3. Como tal, o tribunal “a quo” não fez uma análise criteriosa e rigorosa dos documentos e mormente dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento.
4. Em face do supra exposto, a sentença recorrida viola, por errada interpretação ou aplicação, as provas documental e testemunhal do Recorrente, pelo que, deu origem a uma sentença errada, injusta e ilegal que cumpre revogar.
5. Os documentos juntos pelo Autor e depoimentos das testemunhas arroladas foram de todo ignorados pelo Tribunal que não os valorou devidamente e descorou a sua força probatória.
6. Os depoimentos das testemunhas do Autor [exequente], são depoimentos cuja razão de ciência é conhecimento pessoal e direto dos factos – razão de ciência inabalável, enquanto que os depoimentos das testemunhas do Réu [executado], são depoimentos que pouco acrescentam ao processo, e que não contrariam a versão do Autor [exequente], demonstraram falta de conhecimento direto dos factos.
7. O Tribunal recorrido na apreciação das provas e análise dos depoimentos foi parcial e abusou do livre arbítrio na formulação da convicção que apresentou., violou o princípio da livre convicção do julgador.
8. Face ao supra exposto a sentença ora em “crise” contém grave ERRO de julgamento.

Ao decidir em contrário, a sentença recorrida, violou, os artigos 662º, 607º, 640º do C.P.C. o que não pode suceder e urge pôr termo.

Termina pugnando pela procedência do recurso, com a requerida alteração da decisão da matéria de facto, revogando-se consequentemente a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por nova decisão que julgue totalmente procedente por provada a demanda do recorrente.
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O embargante/executado não apresentou contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.
Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

Ø Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo nos moldes preconizados pelo recorrente.
Ø Na sequência, saber se deverá ser realizada outra nova interpretação e aplicação do Direito à nova factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. O Exequente deu, nos autos executivos em apenso, à execução requerimento de injunção, ao qual foi aposto, em 08/9/2015, fórmula executória, requerendo, por essa via, o pagamento coercivo da quantia de € 12.500,00, alegadamente proveniente de um empréstimo concedido por aquele ao Executado, José, em meados de Agosto de 2014;
2. O Executado, José, reside no Brasil desde o ano de 2013, tendo-se, desde então, deslocado a Portugal apenas algumas vezes;
3. O Exequente sabia que o Executado residia no Brasil aquando da instauração do procedimento de injunção em 19/5/2015, procedimento esse, no âmbito do qual foi formado o título executivo dado à execução nos autos principais;
4. No aludido procedimento de injunção, procedeu-se à notificação do Executado em 29/05/2015, por via postal registada na morada sita na Rua …, Bragança, tendo o aviso de receção sido assinado como uma rúbrica e constando naquele, no lugar do destinatário, o nome de “José A.”;
5. No âmbito da execução em apenso, procedeu-se à citação do Executado em 05/10/2015, por via postal registada na morada sita na Rua …, Bragança, tendo o aviso de receção sido assinado com o nome “José” e constado naquele o nome de “José A.”;
6. A morada aludida em 4. e 5. corresponde a pavilhão industrial, propriedade da sociedade “Empresa X, Sociedade Unipessoal, Lda.”;
7. Correu termos na Comarca de Bragança – Instância Local Cível – J1 o processo nº 72376/15.8YIPRT em que é Autor o aqui Exequente e Ré a sociedade comercial “Empresa X, Sociedade Unipessoal, Lda.”, NIPC …, da qual o Executado é gerente;
8. No decurso do julgamento que teve lugar no dia 19/2/2016 no âmbito do processo aludido em 7., os filhos do Executado tiveram conhecimento da execução em apenso;
9. Em 2/3/2016, os filhos do Executado tiveram ainda conhecimento que a quota que este detém na sociedade “Empresa X, Sociedade Unipessoal, Lda.” havia sido penhorada na execução em apenso;
10. Tendo o Executado deduzido os presentes embargos na data de 09/3/2016;
11. Exequente e Executado são únicos sócios de uma sociedade comercial denominada “Empresa A – Serviços de Manutenção Eléctrica, Lda.” que constituíram entre si e sedeada no Brasil;
12. Na data de 14/08/2014, o Exequente fez uma transferência bancária no valor de € 50.000,00, tendo como destinatário a empresa “Empresa A – Serviços de Manutenção, Lda.” aludida em 11.

Factos não provados:

Com relevância para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:

A. Que a execução em apenso tivesse sido instaurada contra pessoa de nome José;
B. Que o Executado tivesse assinado os avisos de receção aludidos em 4) e 5) e tivesse tido, como tal, conhecimento do procedimento injuntivo e da execução em apenso, respetivamente, nas datas aludidas em 4) e 5);
C. Que, no âmbito dos negócios entre si, Exequente e Executado tivessem convencionado verbalmente que o segundo receberia quaisquer notificações na morada identificada m 4) e 5), o que fizeram em razão de os filhos do Embargante se deslocarem regularmente ao pavilhão aí mencionado, local onde a empresa “Empresa X, Unipessoal, Lda., possui as suas instalações;
D. Que o Exequente tivesse concedido ao Executado vários empréstimos para uso a título pessoal deste, bem como outros no âmbito da atividade empresarial do Embargante, tendo em vista a injeção de capital na empresa “Empresa X, Unipessoal, Lda.”;
E. Que a quantia referida em 12) se destinasse, em parte, no montante de € 37.500,00 à empresa “Empresa X, Sociedade Unipessoal, Lda.” e, noutra parte, no montante de € 12.500,00 ao Executado;
F. Que, na parte relativa aos € 12.500,00, a quantia referida em 12) tivesse sido transferida para o Executado para fazer face a despesas pessoais deste;
G. Que a transferência bancária da quantia referida em 12) tivesse ocorrido em 20/08/2014 (provando-se antes a data referida em 12).

IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A primeira questão que importa dirimir, em função das conclusões do recurso apresentadas, refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.
Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação.(1)
Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que “ Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “(…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.
Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).
Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.
Assim, como salienta Abrantes Geraldes (2), o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”. (3)

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior.
Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos. (4)

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, o recorrente apenas cumpriu as apontadas formalidades no que se refere aos factos dados como não provados sob as als. D), E) e F), designadamente quando invoca que houve erro na apreciação da matéria de facto ao não se dar como provado o aludido empréstimo realizado pelo exequente ao executado no valor de € 12.500,00, assim como outros empréstimos.
Neste particular, o recorrente defende sobretudo que o tribunal a quo não fez uma análise criteriosa e rigorosa dos documentos juntos aos autos (designadamente os documentos comprovativos de transferências bancárias para os recorrido, CAAM e segurança social), assim como dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, mormente das testemunhas do recorrente, as quais demonstraram conhecimento pessoal e direto com tais empréstimos.
Já no que se refere à factualidade dada como não provada sob as als. A), B), C) e G), que pretende que seja dada como provada, o recorrente não cuidou de cumprir com as apontadas formalidades legais, designadamente não descortinamos a indicação de quaisquer meios de prova em que criticamente baseia a sua pretensão, pelo que, neste segmento, o recurso de impugnação da matéria de facto deverá ser liminarmente rejeitado – cfr. art. 640º, n.º 1, al. b), do C. P. Civil.

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelo recorrente [no que se refere às apontadas als. D), E) e F)], importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.
Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes (5), que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente.
Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada.
Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova (6), princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil. (7)
De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil).
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (8), a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.”
Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Todavia, face aos atuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz da 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha.
Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.
Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo. (9)
Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”. (10)

Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pela recorrente.
O tribunal a quo considerou como não provada a factualidade contida sob as als. A) a G) dos factos não provados, salientando, para o efeito, designadamente o seguinte:
(…) Sem prejuízo, e quanto ao documento de fls. 42, no qual foi alicerçada a tese do empréstimo de € 12.500,00 do qual resultaria o crédito exequendo, saliente-se retirar-se da análise daquele que a transferência bancária foi ordenada pelo Exequente, mas teve como destinatário a referida empresa comum das partes, Empresa A, Serviços de Manutenção, LTDA e foi feito pelo valor de e 50.000,00. Nesse sentido, competia ao Exequente, para prova (que lhe competia - artigos 342º nº1, 405º, 406º e 1142º e ss. do CC) de que o referido montante € 50.000,00 – transferido, como se afere de 42 em 14/8/2014 e não em 20/8/2014 – se destinava em parte às despesas do Executado, constituindo, como tal, um empréstimo pessoal feito a este e não à empresa, juntar outros elementos documentais (nomeadamente, correspondência da qual resultasse nítida tal finalidade do negócio ou a interpelação para a restituição do dinheiro, o que faria subentender tal finalidade). Ora, os e-mails juntos a fls. 43 apresentam datas anteriores à da transferência bancária referida em 12) dos factos provados, razão pela qual – e desde logo – não servem para comprovar o aludido alegado empréstimo pessoal contraído pelo Embargante junto do Embargado. Da mesma forma, do depoimento da testemunha HV apenas se retirou que o Embargado lhe havia dito ter emprestado dinheiro ao Embargante, não tendo aquele depoente qualquer conhecimento directo do referido negócio. Por outro lado, estando juntos comprovativos de outras transferências de valor menor (€ 500,00 e € 2000,00, respectivamente à empresa Empresa X, Lda. e ao Embargante), não se retira de tais documentos ou de qualquer outro meio de prova qual a finalidade das mesmas, não se sabendo, pois, se correspondiam a pagamentos de quaisquer obrigações ou a empréstimos feitos à referida empresa e ao Embargante. Tudo isto sendo certo que o que foi alegado foi que a dívida exequenda decorreria da aludida transferência de € 50,000,00, a qual, no que se refere ao valor de € 12.500,00, seria referente a empréstimo pessoal concedido pelo Embargado ao Embargante. Atenta a falta absoluta de prova da referida finalidade da aludida transferência, deu-se como não provado o teor das alíneas D) a G) dos factos não provados.
Por último, retira-se do requerimento executivo de fls. 2 do apenso que a execução em apenso foi instaurada contra José A. e não contra José (ocorrendo um lapso com a troca dos dois primeiros nomes, mas não quanto ao primeiro apelido do Executado). Pelo exposto, deu-se como não provado o teor da alínea A) dos factos não provados.

Analisámos a prova produzida, em especial os depoimentos das apontadas testemunhas arroladas pelo recorrente, assim como toda a prova documental junta, em especial o teor dos documentos de fls. 42 a 46, e da mesma não foi possível, de facto, concluir, com a necessária segurança, pela existência de um erro de apreciação relativamente aos referidos pontos de facto ora impugnados [mormente sob as als. D), E) e F) dos factos não provados]
Como é fácil de ver, a exposição dos motivos que levaram o tribunal a quo a decidir pela não verificação da factualidade ora impugnada pelo recorrente é bastante completa, seguindo sempre um raciocínio bastante consistente e estruturado.

Na verdade, cumpre salientar que, dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo recorrente, ouvidas em sede de audiência de julgamento, PR e HV, não foi possível confirmar, de forma minimamente cabal e coerente, a existência do alegado empréstimo de € 12.500,00, traduzido este valor em parte do montante de € 50.000,00, transferido pelo exequente/recorrente, em 14.08.2014, a favor da sociedade “Empresa A”.
Pelo depoimento destas indicadas testemunhas, apenas foi possível apurar, de forma minimamente cabal e coerente, que a relação pessoal entre exequente e executado era muito boa, sendo que, em resultado de dificuldades financeiras do executado, o exequente transferiu para este, por algumas vezes, montantes em dinheiro, designadamente mediante transferências de multibanco e depósitos bancários.
Resta saber – desde logo porque nesse particular as indicadas testemunhas não demonstraram ter conhecimento direto – a que título e com que finalidade foram realizadas essas mesmas transferências ou depósitos em dinheiro, mormente se as mesmas constituíram verdadeiros negócios de mútuo celebrados entre as partes e se destinaram a satisfazer o pagamento de dívidas pessoais do executado e/ou a injetar capital na empresa “Empresa X, Soc. Unipessoal, Lda.”.
Por conseguinte, não resulta ainda dos seus depoimentos, a verificação do negócio em causa, ou seja não se logrou apurar nada em concreto sobre o referido empréstimo de € 12.500,00 a favor, direta e pessoalmente, do executado para fazer face a dívidas deste.
Repare-se que aquilo que é alegado pelo recorrente na sua contestação é que o mencionado valor emprestado de € 12.500,00 estava incluído na dita transferência bancária de € 50.000,00.
Neste particular – deste alegado empréstimo no valor de € 12.500,00, efetuado em Agosto de 2014, no âmbito da referida transferência bancária – estas mesmas testemunhas nada sabiam, verbalizando apenas a testemunha HV que o exequente lhe falou que emprestara € 12.500,00 ao executado, mas esclarecendo: “penso que foi em dinheiro…”.
De igual modo, não vislumbramos, do depoimento das testemunhas arroladas pelo embargante/executado, designadamente da testemunha Maria, filha do executado, qualquer referência a empréstimo realizado pelo exequente a favor do seu pai no valor de € 12.500,00.
Por sua vez, do teor dos documentos de fls. 42 verso e 44 verso, apenas retiramos a conclusão que o exequente realizou um depósito e uma transferência de valores menores (depósito de € 500,00, em 28.04.2014, a favor da sociedade “Empresa X, Sociedade Unipessoal, Lda.” e transferência de € 2.000,00, em 04.07.2013, a favor do aqui executado), sem que possamos inferir, quer do teor dos indicados documentos quer da prova testemunhal produzida, a que título e qual a finalidade dessas mesmas quantias entregues pelo exequente.
Mesmo a considerar-se que estamos perante verdadeiros contratos de mútuo efetuados pelo exequente a favor da dita sociedade e do executado, os mesmos não assumem qualquer relevância nos presentes autos, em face do que é alegado pelo próprio exequente no que se refere aos factos que conduziram à constituição do respetivo título executivo.
De facto, cumpre sublinhar – como, aliás, muito bem faz a sentença recorrida – que aquilo que é concretamente alegado pelo exequente/recorrente é de que a quantia exequenda emerge de um empréstimo, a título pessoal e a favor do executado, no valor de € 12.500,00, este incluído na aludida transferência de € 50.000,00, realizada a favor da sociedade “Empresa A”, o que, como já salientámos, não resultou minimamente demonstrado da prova testemunhal e documental produzida.

Daqui resulta, em suma, que este tribunal ad quem não possui qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, que se mostra assim inalterável, face à prova produzida.
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B) Da nova fundamentação de direito (conhecimento prejudicado)

Dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, no que à interpretação e aplicação do Direito respeita, na sua totalidade, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ali consubstanciada, a qual, porém, se mantém inalterada, fica necessariamente prejudicado o seu conhecimento, o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, n.º 2, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil.
Termos em que, improcede na sua totalidade a apelação em presença.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.

Custas pelo apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
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Guimarães, 30.11.2017

Relator António José Saúde Barroca Penha
Des. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
Des. José Manuel Alves Flores

1. Por todos, neste sentido, Ac. STJ de 01.10.2015, proc. n.º 6626/09.0TVLSB.L1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.
2. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, pág. 164.
3. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
4. Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
5. Ob. citada, págs. 274 e 277.
6. Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
7. O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
8. Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
9. Vide, neste sentido, por todos, Acs. do STJ de 03.11.2009, proc. n.º 3931/03.2TVPRT.S1, relator Moreira Alves; e Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
10. Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609.