Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3555/15.1T8GMR-A
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: LIVRANÇA
AVAL POR PROCURAÇÃO
ASSINATURA DO PROCURADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2º SECÇAO CÍVEL
Sumário: I – A procuração, como negócio jurídico unilateral, está sujeita às regras da interpretação dos negócios jurídicos, e não opera, por si só, com plena eficácia prática a não ser em conexão com outro negócio jurídico - o negócio jurídico que lhe serve de base.
II – É admitido o aval por procuração, ficando os avalistas vinculados, em função dos poderes que conferiram ao seu representante.
III – Para que os efeitos da representação se produzam é indispensável, no entanto, que o representante aponha a sua assinatura na livrança, como tal, isto é, que ele declare assinar em nome do representado, especificando claramente a pessoa deste último; doutro modo ficará ele próprio obrigado em pessoa, em vista do princípio da literalidade.
IV- Nas relações imediatas, pode a exequente comprovar, mediante prova complementar (procuração válida emitida a seu favor), que a assinatura do devedor no lugar dos avalistas foi ali aposta em representação daqueles.
Decisão Texto Integral: Por apenso à acção executiva instaurada pela C, melhor identificada nos autos, contra J, A, JM e M, todos melhor identificados nos autos - os primeiros demandados como subscritores da livrança dada à execução e os segundos como avalistas da mesma -, vieram os últimos deduzir embargos de executado, alegando, em síntese, que não avalizaram a livrança dada à execução, nem conferiram poderes ao executado JM para os representar na assinatura da livrança. Que o constituíram procurador apenas para assinar uma convenção de preenchimento de livrança e na qualidade de avalistas.
Pedem, por isso, a procedência da oposição e a consequente extinção da execução quanto a si.
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A exequente (C) contestou, referindo que os mesmos outorgaram procuração conferindo poderes ao executado JM para assinar, na qualidade de avalistas, tudo o que fosse necessário à celebração da convenção de preenchimento de livrança em branco.
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Vislumbrando-se o conhecimento do mérito da causa, as partes foram disso notificadas e nada foi dito ou requerido (fls. 44).
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Foi então proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo procedente a presente oposição à execução e determino a extinção da execução quanto aos executados embargantes (artigo 732º, nº4, do CPG)…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio o embargante dela interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:
“I. A sentença recorrida não deve manter-se pois não consagra a justa e correta aplicação das normas legais e dos princípios jurídicos aplicáveis.
II. A Embargada apresentou a competente ação executiva, invocando, expressamente que a subscritora A e os avalistas JMM e MA outorgaram procurações (que se juntam sob os Docs. nºs 2, 3 e 4) a favor do subscritor JM, conferindo-lhe poderes para os representar na assinatura do contrato subjacente e respetiva livrança, pelo que este assina os mesmos em nome próprio e enquanto representante daqueles.
III. Contestaram a subscritora e os avalistas, invocando que conferiram poderes ao subscritor da livrança mas apenas e tão só para, em seu nome e representação, na qualidade de avalistas, assinar uma convenção de preenchimento de livrança em branco, assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins", não tendo, por isso, conferido poderes ao executado supra referido para assinar a livrança dada à execução e, bem assim, da mesma não consta a expressão "por procuração", o que se impunha.
IV. Entendeu, assim, o tribunal a quo dar razão aos Embargantes.
V. Não pode, porém, a Recorrente concordar com o teor de tal decisão.
VI. É certo que existe um lapso no preenchimento da livrança dada à execução, por não constar a alusão à assinatura "por procuração". No entanto, afigura-se à Recorrente tratar-se de um lapso manifestamente evidente.
VII. No verso da livrança é feita alusão ao aval aos subscritores, sendo certo que apenas consta uma assinatura no local destinado aos subscritores.
VIII. Assim, se por um lado apenas existe a assinatura aposta por JM mas são referidos "os subscritores" no verso da livrança, por outro lado também "o aval" aposto por JM quando é o próprio o subscritor também não faz qualquer sentido a não ser que, aqui está, o estivesse a declarar em representação de terceiros.
IX. Resulta do próprio título que JM assinou a livrança várias vezes, o que sugere qualidades diferentes nas assinaturas apostas, que pertencem à mesma pessoa.
X. Assim, a falta da expressão "por procuração" não choca com a autonomia própria do título executivo.
XI. Com efeito, releva ainda esclarecer que, conforme consta das procurações juntas aos autos com o requerimento executivo, os Recorridos conferiram poderes a favor de JM, para "em seu nome: assinar, na qualidade de avalista, uma convenção de preenchimento de livrança em branco, a celebrar com o Finibanco, S.A., assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins".
XII. E a assinatura da livrança é um ato necessário, aliás, o mais necessário, ao fim pretendido - o aval.
XIII. Não se encontram, pois, excedidos os limites da representação constantes da procuração outorgada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 258º do Cód. Civil.
XIV. A letra da procuração é explícita quanto à intenção dos Recorridos ao estenderem o mandato à assinatura, em seu nome e representação, "de tudo quanto se tornar necessário aos indicados fins".
XV. Inexistem avais destinados a pactos de preenchimento, já que este de nada vale sem a própria livrança anexa.
XVI. Resulta da simples leitura da convenção de preenchimento da livrança em branco que os terceiros e quartos outorgantes, que intervém na qualidade de avalistas no referido título, declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo da presente convenção, à qual dão o seu acordo, sem exceções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados, sendo certo que, do reconhecimento de assinaturas, elaborado no Cartório Notarial de Vizela, consta ainda a menção expressa "por si e na qualidade de procurador de A, J e de M, e com poderes para o acto, conforme verifiquei por três procurações lavradas em 22/12/2005, cujas letras e assinaturas foram reconhecidas no Cartório Notarial de Coimbra do Notário Sales Leitão no mesmo dia, que me foram apresentadas e restituí".
XVII. A intenção de prestar o aval aos subscritores é inequívoca, já que a procuração com poderes é destinada à celebração deste concreto negócio.
XVIII. Caso as procurações outorgadas não estivessem conferidas de poderes suficientes para o ato em causa - assinatura do verso da livrança em representação dos Embargantes - o que, uma vez mais, apenas por mera hipótese de raciocínio e prudente dever de patrocínio se admite, a verdade é que tais avais já estariam devidamente ratificados, nos termos do disposto no artigo 1163º do Código Civil.
XIX. A Recorrente é uma instituição financeira de reconhecido bom nome e idoneidade no mercado, cuja atividade financeira passa necessariamente pela informação e apoio fornecido a todos os clientes, cumprindo e aplicando o dever geral de boa fé na formação e no cumprimento das obrigações, ao abrigo do disposto nos artºs 227º e 762º, nº 2 do Código Civil.
XX. Não pode a Recorrente conformar-se com a sobreposição da verdade formal à verdade material.
XXI. Em face de tudo quanto foi exposto, a sentença ora recorrida viola os princípios da economia processual e do conhecimento oficioso, pelo que entende a ora Recorrente que a mesma deve ser revogada e, consequentemente, ser a presente ação julgada totalmente procedente, por provada, no que respeita às quantias peticionadas a titulo de capital, juros, cláusula penal e imposto de selo.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se a Douta Sentença recorrida nos termos supra mencionados, com todas as consequências legais…”.
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Os recorridos vieram contra-alegar, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se era necessária a menção, no verso da livrança, de que o assinante da mesma o fazia na qualidade de procurador dos avalistas para que a mesma valha como título executivo contra eles.
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Foram dados como provados na 1ª instância (por documento e confissão) os seguintes factos:
“1. A exequente é portadora de um documento com as seguintes inscrições: «local e data de emissão: Porto; 2006-01-02; vencimento: 2014-12-17; importância: 38.710,16€; Valor: Operação Bancária de empréstimo; no seu vencimento pagarei (emos) por esta única via de livrança à Finibanco ou à sua ordem a quantia de trinta e oito mil e setecentos e dez euros e dezassete cêntimos; assinatura(s) do(s) subscritor(es): JM (assinatura legível); nome e morada do(s) subscritor(es): JM, Av. D. João IV, nº 658, 2º Dto, … Guimarães; e constando ainda do seu verso: «Dou o meu aval aos subscritores JM (assinatura legível)»
2. A exequente instaurou a execução com fundamento na livrança referida em 1, constante de fls. 10 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido, alegando no requerimento executivo o seguinte:
«Factos:
1º Preliminarmente dir-se-á que, por escritura pública outorgada no dia 04.04.2011, no Cartório Notarial de Lisboa de Júlia Silva, lavrada de fls. 47 a fls. 49 do Livro n. g 130-B, o "Finibanco, SA” cedeu à ora Exequente o crédito que detém sobre os Executados, bem como todas as garantias e acessórios a eles inerentes, conforme certidão de escritura de cessão de créditos que ora se junta por fotocópia sob o doc. nº 1.
2º A Exequente é dona e legítima portadora de uma livrança do montante de 38.710,16€, vencida em 17/12/2014, subscrita pelos Executados JM e A e avalizada por JM e MA, que se junta e cujo conteúdo se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (doc. nº 1).
3º A subscritora A e os avalistas JM e MA outorgaram procurações (que se juntam sob os docs. nºs 2, 3 e 4) a favor do subscritor JM, conferindo-lhe poderes para os representar na assinatura do contrato subjacente e respectiva livrança, pelo que este assina os mesmos em nome próprio e enquanto representante daqueles.
4º A referida livrança foi apresentada a pagamento na data de vencimento e apesar das insistências efetuadas junto dos seus intervenientes, o valor titulado não foi pago então, nem posteriormente.
5º Pelo pagamento da importância titulada pela livrança em apreço são solidariamente responsáveis os subscritores, bem como os seus avalistas (...)”
3. A exequente juntou as cópias das procurações constantes de fls. 4, 4-v e 5 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido, e onde consta o seguinte:
I) « (...) A (...), casada com JM (...), constitui seu procurador, seu referido marido, natural de França e com ela residente, a quem confere poderes para em nome dela mandante:
a) Assinar, na qualidade de locatária, um contrato de locação financeira a celebrar com o Finibanco, S.A., nos termos e condições que entender convenientes; e
b) Na sequência do referido contrato de locação financeira, assinar uma convenção de preenchimento de livrança em branco, assinando e requerendo o que se torne necessário aos indicados fins.
Coimbra, 22 de Dezembro de 2005
A (esstneturs)»
II) « (...) J (...), casado (...), constitui seu procurador, JM (...), a quem confere poderes para em seu nome: assinar na qualidade de avalista uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o Finibanco, S.A., assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins.
Coimbra, 22 de Dezembro de 2005
J (essinsture)»
III) « (...) MA (...), casada (...), constitui seu procurador, JM (...), a quem confere poderes para em seu nome: assinar na qualidade de avalista uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o Finibanco, S.A., assinando e requerendo tudo o que se torne necessário aos indicados fins.
Coimbra, 22 de Dezembro de 2005
M (ssstneture)»
4. A exequente juntou aos autos o documento constante de fls. 93 a 95 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido, com a designação de «Convenção de Preenchimento de Livrança em Branco» e onde consta, além do mais, que: «(...)
Entre:
Primeiros: JM e mulher A (...).
Segundo: Finibanco, SA. (...).
Terceiro: (avalista) J, casado com MA (...)
Quarto: (avalista) MA, casada com J (...)
Pela presente convenção, o aqui primeiro outorgante autoriza o segundo outorgante a preencher a livrança em anexo, em que é subscritor, designadamente no que se refere às datas de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos por financiamento que em cada momento, o segundo outorgante seja titular por força de quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, efectuadas com o primeiro outorgante, ou de encargos delas decorrentes, nomeadamente, contratos de locação financeira, até ao montante máximo de EUR 162.577,00.
O segundo outorgante poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos.
O primeiro outorgante autoriza ainda o segundo a proceder ao débito, na sua conta de Depósitos à Ordem nº …, pelo montante relativo ao pagamento do correspondente Imposto de Selo.
Os terceiros e quartos outorgantes, que intervêm na qualidade de avalistas no referido título, declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pelo primeiro outorgante, do seu montante e dos termos da presente convenção, à qual dão o seu acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados.
Porto_LL
Primeiro: JM (assinatura) Segundo: Finibanco
Terceiro: JM (assinatura) Quarto: JM (essineture)»
5. No dia 2-01-2006, no Cartório Notarial de Vizela da Notária Marta Oliveira foi reconhecida a assinatura de JM, feita pelo próprio na convenção de preenchimento de livrança referida em 4, por si e na qualidade de procurador de A, J e de MA nos termos de fls. 95 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido.
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Da questão da assinatura do subscritor, no verso da livrança:
Insurge-se a recorrente contra a decisão recorrida, que julgou procedentes os embargos de executado e extinta a execução, por se considerar que do verso do título dado à execução – a livrança – não constava o nome dos executados como avalistas, ali representados pelo subscritor da mesma.
E consideramos que assiste razão à recorrente.
É certo, como se diz na sentença recorrida, que a apresentação de título executivo constitui o requisito formal para a instauração da acção executiva (artigo 10º, nº5, do CPC), sendo através do mesmo que a lei presume um direito (para quem nele figure como credor) e uma obrigação (para quem nele figure como devedor).
E que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título figure como credor e que deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor (cfr. artigo 53º, nº1, do CPC), sendo pelo título que se determina o fim e os limites da acção executiva.
Também é certo que, no caso dos autos, não se questiona que o documento dado à execução seja uma livrança e que os executados/embargantes não subscreveram (pelo seu próprio punho) a livrança como avalistas.
Quem assinou a livrança, no lugar dos avalistas foi o subscritor da mesma, munido de uma procuração que lhe foi outorgada por aqueles, a conferir-lhe poderes para o fazer.
Não restam, de facto, dúvidas de que as procurações juntas aos autos - das quais constam que os embargantes constituem “…seu procurador, JM (...), a quem conferem poderes para em seu nome: assinar na qualidade de avalistas uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o Finibanco, S.A., assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins” – conferem poderes ao procurador para em nome deles assinar a livrança na qualidade de avalistas.
Isso mesmo resulta – cremos que de forma clara – da expressão delas constante, no seu final, “…assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins”.
Efetivamente, a procuração é um negócio jurídico unilateral, sendo o seu objecto, em termos amplos, a concessão de poderes de representação (artº 262.º, n.º 1, Cód. Civil); em termos práticos, o seu objecto é a concessão daqueles poderes para algo que se vai realizar (cfr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, p. 43).
Sendo um negócio jurídico, está sujeito às regras de interpretação dos negócios jurídicos, nomeadamente ao disposto no art. 236º, nº 1 do CC que preceitua que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com este”, acrescentando o nº 2 que “sempre que o declarante conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida”. Nos negócios formais, como é o caso, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – art. 238º, nº 1 do CC.
Ora, da leitura das referidas procurações resulta, à evidência, que foram dois os núcleos de poderes outorgados ao procurador: 1) assinar na qualidade de avalista uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o Finibanco, S.A.; 2) assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins – fins esses que só podem ser os de serem avalistas da livrança em branco que o devedor subscreveu a favor do Finibanco.
Como escreve Oliveira Ascensão (Teoria geral do Direito Civil, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 237) a procuração não opera de modo independente; ela é «só um trecho do negócio global. O seu sentido só se apreende uma vez realizada a integração nesse negócio global».
Ou seja, a procuração não opera com plena eficácia prática a não ser em conexão com outro negócio jurídico; o negócio jurídico que lhe serve de base.
Isto significa que a plena eficácia da procuração se concretiza acto a acto que seja praticado pelo procurador; é pelo próprio exercício dos poderes representativos que podemos estimar se tais poderes foram correctamente exercidos, isto é, se se integram no âmbito dos poderes concedidos.
Não restam pois dúvidas, perante os documentos em análise, interpretados à luz das regras da interpretação preconizadas nos artºs 236º e 238º do CC, que os embargantes outorgaram procurações ao subscritor/devedor para avalizarem a sua obrigação perante o banco, figurando na livrança como avalistas, dando-lhe os respectivos poderes para assinarem na vez deles.
E, contrariamente ao defendido na decisão recorrida, resulta também dos documentos mencionados que os embargantes deram poderes ao procurador para assinar aquela livrançaa livrança em anexo ao pacto de preenchimento -, bem sabendo eles de que livrança se tratava. Pois que, ao conferirem poderes ao procurador para em seu nome, na qualidade de avalistas, assinar uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o Finibanco, S.A., assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins, estavam a dar-lhe poderes, não só para assinarem o pacto de preenchimento da livrança em branco, como para assinarem a livrança anexa ao referido pacto.
E sabiam perfeitamente em que qualidade estavam a intervir no negócio.
Como resulta da leitura da convenção de preenchimento da livrança em branco "os terceiros e quartos outorgantes, que intervém na qualidade de avalistas no referido título, declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo da presente convenção, à qual dão o seu acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados".
Tendo isto presente, não temos dúvidas de que o aval prestado pelos embargantes à livrança dada à execução respeita o teor da procuração que eles outorgaram ao devedor, subscritor da mesma.
Por isso, o devedor, munido dos poderes que os avalistas lhe conferiram, assinou duas vezes a livrança - no rosto da mesma, na qualidade de subscritor da mesma – e no seu verso, após a expressão “por aval ao subscritor”, apôs a sua assinatura, na qualidade de procurador daqueles.
E foi esta livrança, assinada apenas pelo devedor (embora duas vezes), que foi apresentada à execução, como título executivo, juntamente com o pacto de preenchimento e as procurações outorgadas pelos avalistas, também demandados como executados.
O que se questiona então, é se a assinatura aposta no verso da livrança pelo executado JM – munido de poderes para o ato e no lugar destinado aos avalistas -, obriga os executados/embargantes por se tratar de um aval por procuração, sem a menção expressa desse facto e os nomes dos representados.
Entendeu o tribunal recorrido que não, aceitando embora que o aval pode ser prestado por procuração, conforme o admite o artº 8º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (doravante apenas referido como LULL).
Refere-se efectivamente naquele preceito da Lei Uniforme que, «todo aquele que apuser a sua assinatura numa letra, como representante de uma pessoa, para representar a qual não tinha de facto poderes, fica obrigado em virtude da letra e, se a pagar, tem os mesmos direitos que o pretendido representado. A mesma regra se aplica ao representante que tenha excedido os seus poderes».
Tal norma admite explicitamente a assinatura aposta nos títulos de crédito por procuração (quer nas letras, quer nas livranças, por força do disposto no artº 77º da LULL).
E como resulta claro da redacção do preceito, a assinatura aposta numa letra vincula o seu titular – e não o representado -, se ele não tiver poderes para o efeito, ou, tendo-os, os exceda, o que não acontece no caso dos autos (havendo procurações válidas, como se disse, para o subscritor da livrança ter assinado a mesma em representação dos avalistas).
O que se tem exigido para além disso (para além da existência de poderes de representação) é que o representante aponha a sua assinatura na letra ou livrança e que declare assinar em nome do representado, nomeando a pessoa deste último (cfr. acórdão do STJ de 16-05-1991, in: www.dgsi.pt., - citado na decisão recorrida -, onde vêm citados vários AA que defendem também essa tese: Pinto Coelho, em Lições de Direito Comercial II, 2 fasciculo, paginas 9 e 10, Ferrer Correia, em Lições de Direito Comercial III, 1956, paginas 117, e Gonçalves Dias em Da Letra e da Livrança volume II paginas 445 e volume I/, paginas 273).
E compreende-se que assim seja perante o portador do título, nas relações mediatas, quando o título tenha sido transmitido, por endosso, dado o carácter literal dos títulos de crédito.
Como refere Ferrer Correia (ob. e local citados), “…para que os efeitos da representação se produzam é indispensável que o representante aponha a sua assinatura na letra, como tal, isto é, que ele declare assinar em nome do representado, especificando claramente a pessoa deste último. Doutro modo ficará ele próprio obrigado em pessoa, em vista do princípio da literalidade.”
Neste caso, o portador do título a quem ela foi transmitida (de boa fé), não foi interveniente na relação subjacente – no negócio que esteve na base da subscrição da letra ou da livrança. Por isso, ele só pode accionar os titulares que figuram no título como assinantes/subscritores do título. A essa luz, é evidente que se no lugar dos avalistas constar o nome do subscritor, só esse pode ser demandado (também como avalista), pois não consta do título que apôs a sua assinatura em representação de alguém.
Diferentemente se passam as coisas, cremos, nas relações imediatas em que os demandados são os próprios intervenientes do negócio, como é o caso dos autos.
Como ficou demonstrado nos autos, os embargantes outorgaram procuração ao devedor, dando-lhe poderes para assinar a livrança em seu nome como avalistas da mesma; intervieram no negócio subjacente à própria relação cartular, pelo que esse negócio é-lhes oponível, vinculando-os ao cumprimento, como avalistas da livrança, por força da procuração que outorgaram ao 1º executado.
Por isso é que a exequente, ao dar a livrança à execução, alegou factos e juntou documentos complementares, comprovativos da qualidade em que o 1º executado assinou a livrança, vinculando os 3º e 4º como avalistas.
Concluímos assim do exposto que a livrança dada à execução é título executivo válido contra os embargantes, ainda que com a coadjuvação dos documentos complementares juntos pela exequente (ver, em sentido idêntico o Ac STJ de 03.11.2011 em www.dgsi.pt).
Sempre seria admissível ainda, neste contexto, o recurso à figura do título executivo complexo, "corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo o complexo documental como título executivo (Ac STJ de 05.05.2011, em www.dgsi.pt.)
Defende-se, na sustentação da validade dessa figura, que o título executivo não se confunde com a causa de pedir na acção executiva, pois esta é um facto e o título executivo é o documento ou a obrigação documentada. Como ensina Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 1984, pág 74; ainda na RLJ, ano 121º, págs. 147/148), “o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não”. Ou, ainda, no dizer sugestivo do Acórdão do STJ de 19/02/2009 (também disponível em www.dgsi.pt), o título executivo é “o invólucro sem o qual não é possível executar a pretensão ou o direito que está dentro. Sem invólucro não há execução, embora aquilo que vai realizar-se coactivamente não seja o invólucro mas o que está dentro dele”.
Volvendo ao caso dos autos, se a livrança, por si só, não pode constituir título executivo contra os embargantes, por nela não constar o nome daqueles – mas apenas o do seu procurador – os documentos complementares juntos pela exequente completam a sua executoriedade, demonstrando que o devedor assinou a livrança, no lugar dos avalistas, por estar mandatado por eles para o efeito (conforme procuração junta).
Procedem, assim, as conclusões de recurso da apelante, com a revogação da decisão recorrida e a declaração da improcedência dos embargos de executado.
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Sumário do acórdão:
I – A procuração, como negócio jurídico unilateral, está sujeita às regras da interpretação dos negócios jurídicos, e não opera, por si só, com plena eficácia prática a não ser em conexão com outro negócio jurídico - o negócio jurídico que lhe serve de base.
II – É admitido o aval por procuração, ficando os avalistas vinculados, em função dos poderes que conferiram ao seu representante.
III – Para que os efeitos da representação se produzam é indispensável, no entanto, que o representante aponha a sua assinatura na livrança, como tal, isto é, que ele declare assinar em nome do representado, especificando claramente a pessoa deste último; doutro modo ficará ele próprio obrigado em pessoa, em vista do princípio da literalidade.
IV- Nas relações imediatas, pode a exequente comprovar, mediante prova complementar (procuração válida emitida a seu favor), que a assinatura do devedor no lugar dos avalistas foi ali aposta em representação daqueles.
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DECISÃO:
Pelo exposto, Julga-se procedente a Apelação e revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedentes os embargos de executado.
Custas (da Apelação) pelos embargados.
Notifique.
Guimarães, 8.6.2017