Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2687/12.2YXLSB.G2
Nº Convencional:
Relator: HELENA MELO
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
EMISSAO DE RECIBOS
PROPRIEDADE DO RECIBO
RESPONSABILIDADE DOS GERENTES DE SOCIEDADE
RESTITUIÇÃO DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A emissão do recibo pelo prestador de serviços é uma obrigação legal a que este está vinculado.
DD. Independentemente de ter sido ou não paga a importância relativamente à qual o recibo se destinava a dar quitação, emitido este e entregue ao destinatário, o emissor não detém qualquer direito de propriedade sobre o mesmo, sem prejuízo de vir a demonstrar que a declaração constante do referido recibo não corresponde à verdade, porque ocorreu no momento da sua emissão algum dos vícios da vontade regulados no Código Civil, ou mediante a prova de que o declarado não corresponde à verdade.
DDI. Os gerentes da sociedade respondem perante os credores sociais da sociedade nos termos do artº 78º do CSC.
IV. Decorridos mais de 10 anos sobre a data em que os documentos destinados à contabilidade de uma sociedade lhe foram entregues, não estando esta obrigada a manter os mesmos (artº 40º, nº 1 do CSC) , não poderá ser compelida a restitui-los.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

AA instaurou apresente acção de condenação, sob a forma de processo sumário, contra:
. 1º BB,
.2º CC,
.3º DDe
.4º EE, alegando, em suma que, prestou serviços de coordenação e assessoriajurídico-fiscal à sociedade FF, Lda., os quais se iniciaram em Maiode 1991, tendo sido para o efeito contratado pelo terceiro Réu, na qualidade derepresentante da referida sociedade, da qual eram também gerentes os primeiro esegundos Réus. Sucede que ao Autor apenas foram pagas as avenças relativas aosmeses de Maio e Junho de 1991, não tendo sido paga a avença do mês de Julho de1991, no montante de 500.000$00, cujo recibo foi emitido e enviado para os responsáveis da referida empresa,nem as despesas ocorridas nesse mês, cujos respectivos comprovativos foramenviados juntamente com o recibo da avença.
Entretanto (em 2004), a sociedade foi declarada falida e o 4º R. foi nomeado seu liquidatário judicial.
Os RR. conluiaram-se para não lhe pagar nem devolver os documentos.
A falta dedevolução dos documentos enviados,causou-lhe incómodos e despesas.
Peticiona, a final, a condenação dos Réus a devolver-lhe os documentos, enviados em 12/08/1991, referentes ao recibo da avença do mês de Julhode 1991, e comprovativos das despesas efectuadas por si no exercício dasfunções para que foi contratado, a condenação dos Réus a pagar-lhe umaindemnização, a título de danos morais e danos patrimoniais que teve de suportar,por falta da devolução dos documentos, em quantia nunca inferior a € 2.500,00. Subsidiariamente, e para o caso dosdocumentos exigidos não serem devolvidos, peticiona a condenação dos Réus apagar-lhe uma indemnização de € 5.500,00, por todos os danos que lhe causaram, coma omissão de devolução de tais documentos.
Os RR. contestaram, nos seguintes termos:
Os RR. BB, CC impugnaram a matéria alegada pelo Autor, sustentando que a R. em 1991 não era ainda sócia nem gerente da sociedade FF, Lda. Mais alegaram que não contrataram o A. para o que quer que fosse e se porventura o A. prestou qualquer serviço à referida sociedade, o mesmo foi pago e nunca os documentos reclamados chegaram ao seu conhecimento ou estiveram na sua posse. Invocaram ainda a prescrição do direito do autor.
O R. DD alegou que o A. prestou um serviço pontual à referida sociedade que lhe foi pago. Não recebeu quaisquer documentos, e crê que também não o receberam os1º e 2ºs RR. Deixou de ser sócio e gerente da mencionada Sociedade em Maio de 1994. Igualmente invocou a prescrição.
O R. EE veio também impugnar os factos alegados pelo A., invocando desconhecer qualquer sociedade com a denominação atribuída pelo A. e ainda que qualquer medida ou actuação sua só poderia ter lugar no âmbito do eventual processo de insolvência, invocando ainda a incompetência em razão do território do tribunal e a sua ilegitimidade.
O A. respondeu àsexceções suscitadas,pugnando pela sua improcedência.
Por despacho de 24.06.2014, e por ter sido considerado que a factualidade alegada pelo A. era “vaga, confusa e insuficiente para sustentar os pedidos do Autor”, o A. foi convidado a apresentar no prazo de 20 dias, petição inicial aperfeiçoada, em que concretizasse, especificasse e situasse no tempo os comportamentos ilícitos que imputa a cada um dos Réus e concretizasse e quantificasse os danos causados por cada um deles. O A. não apresentou petição corrigida.
Foi proferida sentença que julgou procedente a excepção de prescrição e absolveu os RR. do pedido.
Inconformado, o A. interpôs recurso para este Tribunal que por acórdão de 8 de Outubro de 2015 revogou a sentença eordenou o prosseguimento dos autos.
Foi designado dia para uma audiência prévia na qualpor se entender que o estado dos autos já permitia o conhecimento imediato dos pedidos, foi proferido saneador/ sentença que julgou a acção improcedente.
De novo o A., inconformado, veio interpor recurso para este Tribunal, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
1ª) Vem o presente recurso interposto da douta sentença do J4 da Secção Cível, Inst. Local da Comarca de Viana do Castelo, a qual decidiu:
Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente, por manifesta improcedência, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados.”
2ª) O aqui Recorrente intentou a presente ação declarativa de condenação, em 28/06/2012 uma vez que se viu lesado com as atitudes dos RR, os quais lhe causaram danos.
3ª) Peticiona o Recorrente contra os aqui RR., a restituição de documentos, enviados aos responsáveis da empresa FF, Lda., 12 de agosto de 1991, pretendendo ainda, paralelamente, que sejam os Réus condenados no pagamento de uma indemnização por danos morais causados pela não devolução atempada dessa documentação.
4ª) A douta sentença proferida refere, a fls. 6:
Transpondo as referidas considerações jurídicas para o caso "subjudice" conclui-se que os documentos de que o Autor se arrogar proprietário, não lhe pertencem, mas pertencem à sociedade FF, Lda., que apenas tinha a obrigação de os conservar pelo prazo de 10 anos. Ao Autor apenas pertence o duplicado do recibo emitido em 23 de julho de 1991.”
5ª) Tal não poderá ser assim, e isto porque, o aqui Recorrente, na sua P.I., refere o circunstancialismos verificado e o problema aqui invocado é que os RR não pagaram a avença referente ao mês de julho/1991, nem as despesas de deslocação, documentos que o aqui Recorrente enviou aos RR para pagarem.
6ª) Daí que se entenda que os RR não podiam incluir tais documentos na contabilidade da sociedade, pois o valor referido nos mesmos não foi entregue ao A., havendo dessa forma uma claro abuso por parte dos RR na utilização de tais documentos.
7ª) É pois esta a questão que deve ser analisada e neste prisma, não se podendo aplicar ao presente caso a douta argumentação esgrimida pela Mma. Juiz “aquo”, pois tais documentos não poderiam pertencer à contabilidade da sociedade, uma vez que não foram liquidados.
8ª) Daqui decorrerá, naturalmente, que o Autor tem direito aos documentos de que se arroga proprietário e que o é, pois tais documentos deveriam ter subjacente um pagamento, por parte dos RR, o qual não ocorreu.
Por outro lado,
9ª) Dos autos consta a missiva enviada pelo Recorrente aos RR, em 20/07/1992, interpelando-se par tal pagamento.
10ª) Como os Recorridos não pagaram no prazo estipulado pelo Recorrente, viu-se este “obrigado” a intentar várias acções judiciais, tando contra os RR como contra a Sociedade.
11ª) Desde, pelo menos, 1996 sempre o aqui Recorrente esteve em litígio com os aqui Recorridos, pois sempre agiu por forma a acautelar o seu direito, ou seja, muito antes dos referidos 10 anos indicados na douta sentença.
12ª) Todo este circunstancialismo consta dos autos, a existência destes processos judiciais anteriores, bem como a utilização por parte dos RR deste documentos abusivamente - pois não pagaram os valores neles referidos, consta dos autos, sendo que Mma. Juiz "a quo" não os levou em conta, como lhe competia.
13ª) Devemos pois concluir que, a Mma. Juiz “a quo” não conheceu/levou em consideração questões que podia e devia conhecer, tendo dessa forma cometido a nulidade constante do artº 615º nº 1 al. d) do CPC, o que aqui se invoca, devendo alterar-se a douta sentença proferida.
Ademais sempre se dirá o seguinte,
14ª) O aqui Recorrente solicitou Apoio Judiciário, para intentar a presente ação, em agosto de 2011, tendo-lhe sido nomeada em 05 de janeiro de 2012 a primeira defensora oficiosa, conforme documentos juntos aos autos.
15ª) Segundo a Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, de 27/10/2003, Proc. 0314298:
I – O pedido de nomeação de patrono só interrompe a prescrição quando for formulado na pendência da acção.
DD – O pedido de nomeação de patrono para propositura de acção não interrompe a prescrição em curso, mas a acção considera-se proposta na data em que tal pedido tiver sido formulado, considerando-se a prescrição interrompida decorrido que sejam cinco dias sobre aquela data.”
16ª) Ora, esta é a posição da Jurisprudência dominante que sobre esta matéria se tem pronunciado, entendendo-se que o pedido de nomeação de patrono destinado à instauração de ação não interrompe qualquer prazo prescricional que esteja em curso, mas a ação é de considerar como proposta na data em que tal pedido tiver sido deduzido e a prescrição como interrompida uma vez que se mostrem decorridos cinco dias a partir daquele pedido.
17ª) Pois, doutro modo, poderia ocorrer inadmissível encurtamento do prazo prescricional para aqueles que não têm recursos financeiros para contratar um Advogado.
18ª) Pois, sendo obrigatório o patrocínio judiciário, o interessado não poderá praticar o acto processual sem que tenha obtido previamente a nomeação de patrono ou constituído advogado, estabelecendo a Lei Fundamental que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos (artº 20º nº 1 da CRP).
19ª) Pelo exposto andou mal a Mma. Juiz “a quo”, ao considerar decorrido o prazo de 10 anos sobre a entrega de tais documentos aos RR, prazo de obrigação da sociedade em conservação de tais documentos, pois tais documentos foram integrados n contabilidade da sociedade, pelos RR abusivamente, situação que não foi analisada pela Mma. Juiz "a quo", tendo por errada interpretação e aplicação violado as disposições constantes do artº 615º do CPC e artºs 323º, 326º e 327º, todos do CC.
20ª) Nestes termos e nos mais de direito requer-se a V.Exas. que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência seja revogada a douta Sentença proferida e substituída por outra que mande prosseguir os presente autos para julgamento.

Nenhum dos RR. contra-alegou.

DD – Objecto do recurso
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
.os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questões a decidir são as seguintes:
.se a sentença é nula por falta de conhecimento de questões;
.se, na eventualidade da dívida reclamada não ter sido paga, assiste ao A. o direito de propriedade sobre os documentos alegadamente por si remetidos à Sociedade de FF, Lda., posteriormente denominada JJ, Lda.
.se os RR. respondem por danos causados pela não restituição dos documentos.

DDI – Fundamentação
A situação factual é a supra descrita e ainda os seguintes factos, com assento na documentação junta aos autos:
. Por sentença de 19.05.2004 foi declarada a falência de JJ, Lda.
. Na mesma sentença foi nomeado liquidatário o Dr. KK, com escritório na em Esposende.
.DD era sócio da FF, Lda. desde a sua constituição em 1980 e em 1994 cedeu as suas quotas a favor de BB e cessou funções como gerente, facto que foi inscrito no registo mediante a apresentação Av.3-Ap, de 14.07.1994.
. Em 1980 foram nomeados gerentes os sócios DD e BB.
.Em 18.07.1991, mediante a apresentação 12/910718, foi averbada a renúncia à gerência de BB.
.Em 14.07.94 foi registada a transmissão a favor da R. CC de uma quota de euros 10.400$00, não sendo até essa altura a R. detentora de qualquer participação no capital social da FF, Lda.
. A sociedade FF, Limitada, em 1999, alterou a sua denominação para JJ, Limitada.
. Os RR. BB e CC eram os únicos sócios da referida sociedade em 27.03.2002, exercendo a sócia CC nessa data as funções de gerente.

Da nulidade da sentença
A sentença será nula, quer no caso de o juiz deixar de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (artº 615º, nº 1, alínea d), do CPC). Desde logo, importa precisar o que deve entender-se por questões, cujo conhecimento ou não conhecimento constitui nulidade por excesso ou falta de pronúncia. Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “themadecidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no artº 615, nº 1, al. d) do CPC. Por questões deve entender-se “os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente cumpre, ao juiz, conhecer”(autores e obra citada, pág. 670). Deve assim distinguir-se as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes.

Como é sabido, a nulidade por falta de pronúncia, ocorre quando o juiz deixe de conhecer de questões de que devia tomar conhecimento. Este normativo tem de ser interpretado em conjugação com o disposto no artº 608, nº 2, 2ª parte, do CPC, que impõe que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se a não ser das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe impuser o conhecimento oficiosos de outras.

Ora, não se vislumbra, nem o apelante o diz, quais as questões concretas, em sentido técnico, de que o Tribunal não conheceu e que devia ter conhecido. As questões concretas são todas aquelas de conhecimento oficioso e as concretamente suscitadas pelas partes que, no que concerne ao apelante, são as seguintes:direito à restituição dos documentose direito a ser indemnizado por danos morais e não patrimoniais. Ora o tribunal conheceu da 1ª questão e julgou prejudicadas a 2ª questão, não deixando de referir que, ainda que esta não estivesse prejudicada, sempre seriam os demais pedidos improcedentes por falta de factos, não se podendo olvidar que o tribunal convidou o ora apelante a aperfeiçoar a petição inicial, mas este não correspondeu ao convite.
Não padece assim a sentença da alegada nulidade.

Do mérito
Entende o apelante que a sentença deve ser revogada, pois que parte do pressuposto erróneo de que a sociedade não era obrigada a conservar os documentos por mais de 10 anos (e consequentemente também não o eram os seus sócios e o liquidatário judicial), encontrando-se esse prazo há muito largamente ultrapassado, pois que tal prazo se aplica apenas aos documentos pertença da R. e no presente caso os documentos cuja devolução o apelante pretende são de sua propriedade, porquanto não lhe foi paga a quantia relativamente à qual visava dar quitação.
O apelante instaurou a presente acção, tal como já foi realçado no despacho que o convidou a corrigir a petição, de modo vago, confuso e insuficiente em termos factuais. E o A. ao longo da petição inicial não expôs, em momento algum, as razões de direito que servem de fundamento à acção, como estava obrigado por força do disposto no artº 467º, nº 1, alínea d) do CPC em vigor à data da instauração da acção (actual 552º, nº1, alínea d)).
Na sentença recorrida entendeu-se que não assistia ao ora apelante o direito a que se arroga, uma vez que o comerciante é que é o proprietário dos documentos, acrescendo que apenas é obrigado a guardar e a conservar a escrituração mercantil pelo período de 10 anos, nos termos do artº 40º do Código Comercial.Ao Autor apenas pertence o duplicado do recibo emitido em 23 de Julho de 1991.
Escreveu-se a propósito na sentença recorrida:
“O comerciante só é obrigado a guardar e conservar a escrituração mercantil e os documentos a ela relativos pelo período de 10 anos, nos termos do disposto no art.º 40º do Cód. Comercial.
Decorrido o referido prazo de 10 anos, cessa a obrigatoriedade de guarda e conservação desses documentos, podendo o comerciante destruí-los.
Na versão originária do Código Comercial, o comerciante estava obrigada à guarda e conservação da escrituração mercantil a respectivos documentos pelo período de 20 anos. Tal prazo foi reduzido para 10 anos, com a redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 41/72, de 04 de Fevereiro, prazo esse que foi mantido com as alterações introduzidas ao Código Comercial pelo Decreto-lei nº 76-A/2006, de 29/03.
(…)
A guarda e conservação da escrituração mercantil tem uma função probatória, conforme resulta do disposto nos art.ºs 41º a 44º do Cód. Comercial, inferindo-se das referidas normas que os documentos relativos à escrituração mercantil pertencem ao próprio comerciante, que os guarda e conserva no seu próprio interesse, designadamente para efeitos de inspecções fiscais.
Com efeito, decorre das referidas disposições legais que os documentos que integram escrituração mercantil do comerciante são propriedade deste. É o que se infere do art.º 41º quando estabelece que “As autoridades administrativas ou judiciárias, ao analisarem se o comerciante organiza ou não devidamente a sua escrituração mercantil…”; do art.º 42º quando estabelece que “A exibição judicial da escrituração mercantil e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados…”; do art.º 43º, nº 1 quando preceitua que “…só pode proceder-se a exame e escrituração dos documentos a favor dos comerciantes, a instâncias da parte ou oficiosamente, quando a pessoa a quem pertençam…”; do art.º 44º, parágrafo 2º “Os assentos lançados em livros de comércio, regularmente arrumados, fazem prova em favor dos seus respectivos proprietários,…”
Assim, das normas supra referidas decorre que a escrituração mercantil e todos os documentos a ela relativos, pertencem ao respectivo comerciante.
Transpondo as referidas considerações jurídicas para o caso “subjudice” conclui-se que os documentos de que o Autor se arroga proprietário, não lhe pertencem, mas pertencem à sociedade FF, Lda., que apenas tinha a obrigação de os conservar pelo prazo de 10 anos. Ao Autor apenas pertence o duplicado do recibo emitido em 23 de Julho de 1991.
Conclui-se, assim, que ao Autor não assiste qualquer direito a exigir a restituição dos referidos documentos que integraram a contabilidade da referida sociedade comercial, seja, porque esta só estava obrigada legalmente a conservá-los pelo prazo de 10 anos, seja, porque tais documentos são propriedade desta sociedade e não do Autor.
Destrate, não assistindo ao Autor o direito invocado, falece totalmente a sua pretensão, por manifesta improcedência.”

Dispunha o artº 115º do Código do IRS aprovado pelo DL 442-A/88, na redacção vigente à data da alegada emissão do recibo pelo A.(23 de Julho de 1991):
.1.— Os titulares dos rendimentos da categoria B são obrigados:
.a)A passar recibo, em impresso de modelo oficial, de todas as importâncias recebidas dos seus clientes, pelas prestações de serviços referidas na alínea b) do n.o 1 do artigo 3.o , ainda que a título de provisão, adiantamento ou reembolso de despesas, bem como dos rendimentos indicados na alínea c) do n.o 1 do mesmo artigo; ou
.b) A emitir factura ou documento equivalente por cada transmissão de bens, prestação de serviços ou outras operações efectuadas, e a emitir documento de quitação de todas as importâncias recebidas.
.4. As pessoas que paguem rendimentos previstos no artigo 3.o são obrigadas a exigir os respectivos recibos, facturas ou documentos equivalentes e a conservá-los durante os cinco anos civis subsequentes, salvo se tiverem de dar-lhes outro destino devidamente justificado.

Como resulta da alínea a) do nº 1 do preceito legal acabado de citar, o apelante pessoa singular, titular de rendimentos da categoria B, estava obrigado a passar recibos de todas as importâncias recebidas dos seus clientes.
No caso, de acordo com a versão do apelante, este emitiu o recibo e remeteu-o, mas fê-lo sem ter sido pago previamente, como se impunha, pelo que, em seu entender lhe assiste o direito à sua devolução uma vez que, de acordo com a sua alegação, não chegou a ser pago.
A questão do pagamento já terá sido discutida na acção 221/96 que correu termos na 10ª Vara Cível de Lisboa, 3ª seção,que o A. alegou ter instaurado para o efeito de obter o pagamento, desconhecendo-se o resultado final desta, pois que nenhuma das partes o referiu, mas que se afigura ter sido desfavorável ao apelante, uma vez que este instaurou acção para reaver um documento que dá quitação do pagamento, alegando que o pagamento não foi feito. O A. foi convidado a juntar documentos relativamente às duas acções a que alude nos artºs 15º e 16º e também nada juntou.
A emissão do recibo como se salienta na sentença recorrida é uma obrigação legal a que o prestador de serviços está vinculado.
Independentemente de ter sido ou não paga a importância relativamente à qual o recibo se destinava a dar quitação, emitido este e entregue ao destinatário, não se afigura que o emissor detenha qualquer direito de propriedade sobre o mesmo, sem prejuízo de vir a demonstrar que a declaração constante do referido recibo não corresponde à verdade, porque ocorreu no momento da sua emissão algum dos vícios da vontade regulados no Código Civil, ou mediante a prova de que o declarado não corresponde à verdade, até porque a declaração foi feita perante a sociedade e não perante os RR., pelo que não tem valor de confissão, não se colocando nesta acção as limitações do artº 393º, nº 2 e artº 351º do CC.
Relativamente aos demais documentos respeitantes a despesas com deslocações entre Lisboa e Viana do Castelo e alojamento em Viana do Castelo, refeições e telecomunicações, o A. nem alegou quaisquer factos que provados, permitissem concluir que estas facturas/recibos lhe pertenciam, nomeadamente alegando que foram emitidos em seu nome.
Assim, não há que restituir os documentos por não serem pertença do apelante.
Mas ainda que se considerasse que os documentos eram da propriedade do apelante, a obrigação de restituir os documentosseria da Sociedade e não dos 1ºs a 3º RR, assim como a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização por danos morais e patrimoniais sofridos em consequência da não restituição. Os gerentes e os administradores das sociedades só respondem perante os credores sociais em casos específicos.Quem contratou o A. para lhe prestar determinados serviços foi a sociedade FF, Lda., como se retira do artº 1º, 3º, 4º e 28º da p.i. e dos documentos juntos com a p.i.comodocs nºs 1 a 3, emitidos em nome da referida sociedade.

O A. demandou os três primeiros R.R. por terem exercido funções como gerentes da Sociedade de Construções, Rites, Lda., uma vez que faz alusão a esta qualidade (artº 1º e 3º da p.i.).

Dispõe a alínea b) do nº 1 do artº 64º do CSC que os gerentes ou administradores da sociedade devem observar “deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.

Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade, qualidade que reveste o A., quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (nº 1 do artº 78º do CSC).

Relativamente ao liquidatário judicial, o revogado DL 132/93 (CPEREF), de 23/04, em vigor à data da declaração de insolvência da FF, Lda. posteriormente JJ, Lda, não continha, ao contrário do actual DL 53/2004, de 18/03 que revogou o DL 132/93,qualquer disposição que contemplasse expressamente a responsabilidade do liquidatário judicial ou do gestor judicial. Actualmente o artº 59º do CIRE (aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de Março) estabelece os casos em que o administrador da insolvência responde, pelo que no âmbito do CPEREF, a eventual responsabilidade do liquidatário apenas poderia ser equacionada à luz dos artºs 483º e ss do CC.

Ora o A., embora tenha sido notificado para caracterizar em que consistiu o comportamento ilícito de cada réu, optou por nada aperfeiçoar. Não explica, porém, porque razão demanda o R. BB que cessou as funções de gerente em data anterior à emissão do recibo e transmitiu a sua quota (está registada a renúncia e a cessão em 18.07.91 e o recibo, de acordo com o apelante, foi emitido em 23 de Julho de 1991), mas que voltou a adquirir uma participação social em 1994. Igualmente não explica porque é que demanda a R. CC que não era sócia nem gerente à data do não pagamento, tendo adquirido uma participação social apenas em 1994 e sido nomeada gerente em 11.10.1999 (de acordo com as certidões juntas pelos 1ºs e 2ºs RR que não estão completas).Na ausência de um melhor esclarecimento do circunstancialismo factual, interpretamos a petição inicial, no sentido de que o A. terá instaurado a ação nestes moldes, por considerar que os RR. são responsáveis enquanto gerentes, desde a data da contratação do apelante ate à data em que a sociedade foi declarada falida, altura em que a administração terá passado a ser da competência do liquidatário judicial.

A responsabilidade prevista no artº 78º do CSC é a responsabilidade baseada na culpa. É unânime o entendimento de que no domínio do artº 78º e também do artº 79º do CSC não há lugar à presunção da culpa a que se refere o nº1 artº 72º do CSC, pelo que o ónus da prova segue a regra geral da responsabilidade extracontratual, recaindo sobre o A. o ónus de provar os diversos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, designadamente a culpa ( artº 487º e 342 º do C. Civil), conforme desde logo resulta da remissão para os nºs 2 a 6 do artº 72º, excluindo o nº1 do artº 72º, preceito onde precisamente se encontra consagrada uma presunção de culpa(1).

Como se refere no Ac. do STJ de 12.01.2012(2), “o nó górdio hermenêutico desta questão consiste na aferição do sentido e abrangência da expressão «disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes»”.

Para Coutinho de Abreu(3) “pressuposto primeiro da responsabilidade em análise é a inobservância das “disposições legais ou contratuais destinadas à protecção” dos credores sociais. A ilicitude, aqui, compreende a violação, não de todo e qualquer dever impendendo sobre os administradores, mas tão-só dos deveres prescritos em “disposições legais ou contratuais” de protecção dos credores sociais.”

Este autor não avança com um conceito do que se deve entender por “disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores sociais”, dando, no entanto, alguns exemplos de situações que se reconduzem à previsão legal, tais como as normas que provêem à conservação do capital social, ou as que limitam a própria capacidade jurídica das sociedades (artº 6º). Fora do âmbito do CSC, indica o artº 18º do CIRE que prescreve o dever de os administrado­res requererem a declaração de insolvência da socie­dade em certas circunstâncias.

No entender do mesmo autor tem também de verificar-se um dano para a sociedade, decorrente da violação das normas de protecção dos credores sociais.

O alcance do artº 78º nº 1 do CSC deve ser interpretado no sentido de não incluir na abrangência da sua previsão todas as normas aplicáveis ao exercício das funções dos titulares dos órgãos sociais e, portanto, ao cumprimento dos seus deveres funcionais, o que criaria um estado de total insegurança jurídica no tocante à responsabilidade dos titulares dos órgãos em questão(4).

A inobservância de normas legais do direito societário constitui um dano directo da sociedade, desde que se verifique o necessário de causalidade, e um dano indirecto dos credores sociais, desde que essa diminuição se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.(5) Deve entender-se por património insuficiente para satisfação dos respectivos créditos, a insuficiência do activo líquido disponível em relação ao passivo exigível.

A aplicação do nº 1 do artº 78º do CSC depende dos seguintes requisitos cumulativos(6):

a)que o facto do gerente/administrador constitua uma inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos interesses dos credores sociais;

b)que o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos;

c)que o acto do gerente/administrador possa considerar-se causa adequada do dano.

No caso da falência da sociedade, os direitos dos credores podem ser exercidos, durante o processo de falência, pela administração da massa falida (artº 78º nº 4 do CSC).

A presente ação estaria assim sempre voltada ao insucesso por falta de alegação de factos suscetíveis de integrarem os pressupostos de aplicação do artº 78º do CSC.

E o mesmo se diga relativamente ao4ºR.. O apelante também não caracterizou factualmente a sua conduta, sendo que no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos teria de ter alegado factos relativamente ao facto, à culpa, à ilicitude, aos danos e ao nexo de causalidade, limitando-se a alegar que o liquidatário judicial “tinha necessariamente de ter conhecimento deste crédito do A., pois já existiam acções em Tribunal, mas em conluio com os demais RR. nada foi pago ao A., nem os seus documentos devolvidos “, nem sequer tendo alegado, que os documentos cuja devolução reclama e alega pertencerem-lhe foram entregues ao liquidatário, por integrarem os documentos da contabilidade da falida, em cumprimento do disposto no artº 176º do CPEREF. Nem alegou também que o liquidatário conhecia que ele era credor. A circunstância de haver acções pendentes em Tribunal, como o apelante alegou, por si só não significa que o crédito existisse, mas apenas que o A. se intitulou credor. E também nada refere porque razão está ainda decorridos 13 anos sobre a declaração da falência a demandar o 4º R. para lhe restituir documentos. O processo ainda não terminou e o 4º R. mantém-se em funções?

Também, tanto relativamente aos 1º a 3º RR como relativamente ao 4º R., o apelante não concretiza porque razão a não restituição dos documentos lhe causou os danosque reclama.

Mas, também aqui, ainda que assim não se entendesse, à data da instauração da ação, já não recaía sobre os RR. a obrigação de devolver os documentos.

De acordo com o disposto no artº 40º, nº1 do Código Comercial a obrigação dos comerciantes de arquivar a correspondência emitida e recebida, assim como a escrituração mercantil e os documentos a ela relativos conserva-se durante 10 anos e o artº 98º, nº 5 do DL 442-B/88, de 30/11 - CIRC (na redação vigente à data, dispondo actualmente sobre a obrigação de guarda e conservação o artº 118º, nº 2 do CIRS) igualmente exigia a conservação dos livros de contabilidade, registos auxiliares e respectivos documentos de suporte durante o prazo de 10 anos, podendo os documentos de suporte dos livros e registos contabilísticos que não sejam documentos autênticos ou autenticados, decorridos três exercícios após aquele a que se reportam e obtida autorização prévia do director geral das Contribuições e Impostos, ser substituídos, para efeitos fiscais, por microfilme que constituam a sua reprodução fiel e obedeçam às condições que forem estabelecidas (artº 98º, nº 7), prazo que há muito se mostrava ultrapassado quando a acção foi instaurada. Idêntica obrigação e pelo mesmo prazo se impõe actualmente.
Ora, decorridos à data da instauração da ação mais de 20 anos sobre a data da alegada entrega dos documentos, os RR. não estão obrigados a entregá-los, pois que há muito que cessou a sua obrigação de conservar a correspondência recebida.
O apelante veio invocar a prescrição.
Como regra todos os direitos estão sujeitos a prescrição. Mas o que está em causa no artº 40º do Cod. Com. e no artº 98º do CIRC não é a consagração de qualquer direito, mas o estabelecimento de deveres de conservação de documentos. E quanto ao direito de propriedade invocado pelo A., já foi decidido por este tribunal da Relação que era imprescritível, pelo que não se entende a alusão do apelante aos artigos 323º, 326º e do CC, pois que não está em causa qualquer prazo sujeito a prescrição.
Assim, a decisão recorrida não merece censura.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.

Guimarães, 1 de Junho de 2017


1.Tânia Meireles da Cunha,na sua dissertação de Mestrado, intitulada Da Responsabilidade dos Gestores das Sociedades perante os Credores Sociais (A Culpa nas Responsabilidades Civil e Tributária), 2ª edição, Almedina. pg.68.
2.Proferido no proc. 916/03, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser encontrados todos os acórdãos que venham a ser indicados, sem indicação da fonte.
3.No seu estudo “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, pg.70.
4.Miguel Pupo Correia, Sobre a Responsabilidade por Dívidas Sociais dos Membros dos Órgãos da Sociedade, in ROA, ano 61 (Abril 2001),pg. 667.
5.Crf. Ac. do TRG de 11.10.2011, proferido no proc. 4206/07 e Raul Ventura e Brito Correia, Responsabilidade Civil dos Administradores, pg. 445.
6.Tânia Meireles da Cunha, obra e página já citadas.