Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO PERES COELHO | ||
Descritores: | SEGURO DE VIDA CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/05/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I- Nos seguros de vida associados a empréstimos bancários o terceiro a favor de quem é feita a promessa adquire directamente o direito à prestação, pelo que esta não integra, nem transita pela herança do promissário. II- Por isso, falecendo o autor da herança sem deixar herdeiros legitimários, não carece de ser relacionada no inventário aberto por óbito do mesmo a quantia recebida da seguradora por terceira beneficiária, por ele indicada aquando da celebração de um seguro de vida grupo contributivo do tipo capitalização. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO Na execução de sentença que instaurou contra a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de AA, representada por BB e CC, veio a exequente DD, inconformada com o despacho que dispensou “EE” de proceder ao depósito à ordem dos autos do capital de três seguros de vida de que o defunto era titular, interpor o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões: 1 - Veio o Tribunal a quo proferir o despacho do qual ora se recorre decidindo dispensar o interveniente EE, de dar cumprimento ao disposto no artigo 777º nº 1 do CPC, deferindo o requerido por aquele interveniente em momento anterior, alegando para o efeito que a indemnização proveniente dos seguros de vida não integram o acervo hereditário da pessoa segura falecida; 2 - Não obstante, com todo o respeito merecido, não pode a exequente concordar com o douto despacho, na medida em que considera que os capitais seguros fazem parte da herança, e portanto são passiveis de serem partilhados, respondendo pelas dívidas da herança, e bem assim não deve ficar o interveniente dispensado de proceder ao depósito do valor dos seguros na conta da secretaria do tribunal; 3 - Nos presentes autos, a herança foi aberta com a morte do de cujus, não obstante a mesma ainda se encontra em situação de não aceitação por parte dos herdeiros e portanto trata-se de uma herança jacente, nos termos e para os efeitos do artigo 2046º e ss. do CC; 4 - Relativamente aos credores da herança, enquanto esta permanece indivisa o devedor é apenas um, ou seja, é aquele património autónomo, dotado de personalidade judiciária; 5 - É portanto a herança jacente que responde pelas dívidas do de cujus, e não os herdeiros, nesta fase quando ainda não são conhecidos e quando ainda não foi realizada a partilha; 6 - Nos termos do artigo 2068º do CC a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do autor, pelos encargos com a testamentária, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados (ex. vi artigo 2070º nº 2 do CC); 7 - E portanto, entendemos que não restam dúvidas de que os bens que devem responder pelas dividas do de cujus sejam os bens da herança, e só depois de serem pagas as dividas do falecido é que se pode efetuar a partilha dos bens da herança (cfr. artigo 2068º e 2070º do CC); 8 - Por outro lado, salvo melhor opinião não concordamos com o facto de nos presentes autos a interveniente seguradora ficar dispensada de depositar a importância total dos seguros à ordem da secretaria, na medida em que o direito da exequente de receber o seu credito deve ficar acautelado; 9 - Não concordamos que os contratos de seguros em causa não integrem o acervo hereditário, na medida em que o direito ao recebimento do capital seguro apenas existe porque se deu o evento morte, que é aliás o evento que tem de ocorrer para que qualquer bem possa entrar na esfera patrimonial dos herdeiros; 10 - E portanto, salvo melhor entendimento, não vemos qualquer diferença entre o direito ao recebimento do capital proveniente de seguros de vida e os direitos provenientes de outros bens que pertencem à herança, e no qual o de cujus investiu com vista a compor a sua própria herança; 11 - Os seguros de vida tratam-se, também eles, de investimentos em vida do de cujus, na medida em que é pago um prémio mensal, trimestral, semestral ou anual, com vista ao pagamento de uma indemnização por morte, ou nestes casos, também por incapacidade; 12 - E constituiria uma verdadeira contrariedade às leis da sucessão deixar de fora bens porque são insusceptíveis de entrar no acervo patrimonial da herança, quando a lei não limita a inclusão de qualquer bem, seja ele um seguro ou qualquer outro direito; 13 - No caso concreto veja-se que a herança ainda continua por aceitar logo o bem em causa - o direito à indemnização proveniente dos seguros de vida - ainda não são dos herdeiros, na medida em que ainda não foram aceites; 14 - Logo, nesta fase ainda se encontram na herança, ainda que futura, do de cujus, e, portanto, responde pelas dívidas deste; 15 - Aliás, sendo o montante que daí advenha transferido para a conta dos herdeiros, estaria a incumprir-se as regras da sucessão no que concerne ao pagamento das dívidas da herança, na medida em que se correria o risco de descapitalizar a herança, em detrimento de um enriquecimento dos herdeiros, quando a herança tem uma dívida quase igual ao activo conhecido; 16 - E mais… depois de a herança ser aceite e de ser efetuada a partilha “os bens da herança respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos” (art. 2097´º do CC); 17 - E efetuada que seja a partilha, cada herdeiro apenas irá responder pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança, o que significa que os seguros, mesmo que não passem pelo acervo patrimonial na herança, respondem pelas dividas do de cujus, quanto mais não seja quando incorporados no acervo patrimonial dos herdeiros, pelo que devem, na presente execução, ficar salvaguardados, para segurança do crédito da exequente; 18 - E portanto, conforme já a exequente havia requerido no seu requerimento datado de 16/06/2016 (ref. 22946797), mesmo que o tribunal considerasse que os bens em causa pertenciam aos herdeiros e não à herança, não é motivo, salvo melhor entendimento, para que se dispense a transferência do referido valor à ordem da secretaria, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 777º nº 1 do CPC; 19 - Na verdade, é essencial que o único bem, até agora conhecido, do de cujus, fique salvaguardado para um eventual pagamento do crédito da exequente, quer seja a herança a responder, quer sejam, mais tarde os herdeiros a fazê-lo, nomeadamente após a partilha; 20 - Não obstante, o Tribunal a quo apenas se limitou a deferir o requerido pelo interveniente EE, não se pronunciando acerca da referida questão, ou seja, de independentemente de o tribunal entender que o bem, em abstrato, pudesse não entrar no acervo patrimonial da herança, pudesse ficar na mesma depositado a ordem da secretaria do Tribunal; 21 - Por fim, a recorrente entende que o tribunal a quo andou mal, na medida em que o interveniente EE não têm legitimidade processual para requerer a dispensa do cumprimento da obrigação do artigo 777º nº 1 do CPC, na medida em que quem tem a efetiva legitimidade para o fazer é o executado ou, neste caso, os representantes da herança, em sede de oposição à penhora; 22 - Posto isto, salvo melhor entendimento, andou mal o tribunal a quo quando dispensou o interveniente EE de cumprir a obrigação do artigo 777º, n.º 1 do CPC, quer considerasse que os seguros faziam parte do acervo patrimonial da herança ou não, por violação dos artigos 2046º, 2068º, 2070º, 2071º, 2097º, 2098º do CC. Termina, pedindo que se revogue o despacho recorrido, ordenando-se a sua substituição por outro que determine que o interveniente dê cumprimento ao disposto no artigo 771º, n.º 1 do NCPC. Não foram oferecidas contra-alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir: * II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC). No caso vertente, as questões a decidir que relevam das conclusões recursórias são as seguintes: - saber se o capital do seguro de vida integra a herança aberta por óbito do tomador, podendo ser afectado à satisfação das dívidas deste, ou pertence aos beneficiários; - saber se, mesmo nesta última hipótese, a seguradora tem legitimidade para suscitar a questão com vista a eximir-se ao cumprimento do disposto no artigo 777º, n. º 1 do Código de Processo Civil. * III. FUNDAMENTAÇÃO Os factos As incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório, conjugadas com o teor das apólices de seguro certificadas a fls. 20, verso, a 44. Relembra-se o teor do despacho recorrido: “Incidente de fls. 18 e ss deduzido pelo interveniente EE e oposição da exequente: Assiste razão ao interveniente e devedor da prestação Santander. Está em causa um seguro de vida. Parafraseando Francisco Guerra da Mota (O Contrato de Seguro Terrestre, Primeiro Volume, pp. 165 e 166) e José Vasques (Contrato de Seguro, pp. 38,75 e 76), o seguro de vida é o contrato pelo qual o segurador recebe do tomador do seguro (segurado), por uma ou mais vezes, certa quantia (prémio) e promete pagar àquele ou a outrem (beneficiário) uma soma de dinheiro determinada (benefício), em caso de vida ou de morte de uma pessoa (pessoa segura ou beneficiária). «O capital seguro, acrescenta Guerra da Mota, ob. cit., p. 167 e 168, pode-se destinar à própria pessoa cuja vida se segura (seguro em caso de vida) ou a outrem designado na apólice (beneficiário), que adquire um mero direito potencial, uma expectativa, que apenas se transforma em definitivo no momento do vencimento do seguro e desde que se encontre vivo e que o benefício se mantenha a seu favor». E diz José Vasques (ob. cit., p. 75): «O seguro de vida é o seguro, efetuado sobre a vida de uma ou várias pessoas seguras, que permite garantir, como cobertura principal, o risco de morte ou de sobrevivência ou ambos». Actualmente a disciplina deste tipo de contratos está definida, designadamente, nos art.s 175º e sgts. do DL 72/08 (regime jurídico do contrato de seguro), e a eles se refere também, e nomeadamente, o art, 124º DL nº 94-B/98. Os seguros de vida em causa foram contratados pelo falecido AA, sendo beneficiários em caso de morte, os seus herdeiros, pelo que o direito ao recebimento do capital, que em vida do segurado era uma mera expectativa, com a verificação do risco seguro, pertence aos próprios herdeiros e não à herança. Nos termos do art. 2031º do CCivil, a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor, de sorte que integrarão o acervo hereditário os bens e direitos de que o de cujus seja titular em tal momento. Ora, o direito ao recebimento do capital seguro, em caso de morte, não pertence ao de cujus mas sim aos beneficiários por si designados, pelo que se entende que os contratos de seguro de vida em apreço não integram o acervo hereditário da pessoa segura falecida. Pelo exposto, deferindo-se ao requerido pelo interveniente EE, dispensa-se o mesmo de proceder ao cumprimento do disposto no artigo 777, nº1 CPC. Notifique”. Decidiu bem a 1ª instância. Com excepção de um deles, associado a um empréstimo bancário e cujo beneficiário irrevogável era a instituição de crédito mutuante, o EE, os seguros de vida de que o falecido AA era titular tinham como beneficiários os seus herdeiros legais (anotando-se que, mesmo naquele, os herdeiros legais do falecido figuravam igualmente como beneficiários do capital remanescente, correspondente ao eventual excesso do capital seguro relativamente ao capital em dívida do empréstimo). Trata-se, portanto, de típicos contratos a favor de terceiro. Regulando esse tipo contratual, prescreve o n.º 1 do artigo 443º do Código Civil que “Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio: diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário a parte a quem a promessa é feita”. Por sua vez, estatui o n.º 1 do preceito seguinte que “O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação”. Finalmente, dispõe o n.º 1 do artigo 451º do mesmo diploma legal que “Se a prestação a terceiro houver de ser cumprida após a morte do promissário, presume-se que só depois do falecimento deste o terceiro adquire o direito a ela”. Decorre da disciplina contida nos normativos transcritos que o terceiro a favor de quem é feita a promessa adquire directamente o direito à prestação, pelo que esta não integra, nem transita pela herança do promissário. Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela em “Código Civil Anotado”, Volume I, 4ª edição, página 427, “Esta aquisição imediata do direito por parte do terceiro beneficiário tem como efeito, entre outros, que nem os herdeiros, nem os credores do promissário têm qualquer direito sobre a prestação do promitente”. Esse tem sido também o entendimento praticamente uniforme na jurisprudência dos Tribunais Superiores, de que são exemplo os arestos cujos sumários passamos a transcrever, todos consultados em www.dgsi.pt.: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Dezembro de 2010: “(…) tratando-se de um seguro de vida, não carece o cabeça de casal, em sede de processo de inventário, de relacionar a quantia paga pela seguradora ao beneficiário do tomador do seguro falecido (o inventariado), pois que não tendo tal quantia transitado pelo património do segurado falecido, não integra manifestamente um bem da respectiva herança e que como tal deva ser partilhado”. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Março de 2013: “Celebrado um seguro de vida em caso de morte do seu tomador, o capital seguro, pago pela seguradora após a morte do tomador a um terceiro beneficiário, designado em testamento por aquele tomador do seguro, não integra o acervo hereditário deste e como tal não está sujeito a redução por inoficiosidade”. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Novembro de 2013: “(…) II - O contrato subscrito pelo inventariado não configura um tradicional seguro de vida risco, pois que incorpora uma vertente de rendimento, mas consubstancia em simultâneo um contrato de seguro pelo qual a seguradora, mediante a entrega de prémio único ou prémios adicionais a pagar pelo tomador do seguro, se obrigou, a favor do segurado ou de terceiro, a proceder ao pagamento de um valor pré-definido, correspondente ao valor da respectiva Conta de Investimento, no caso de morte do segurado, evento futuro e incerto. (…) IV - Ou seja, apesar de não consubstanciar um contrato do ramo vida tout court, não deixa o contrato em apreço de cobrir o risco de vida e de morte da pessoa segura, pois que, ocorrendo a sua morte durante a vigência do contrato, a prestação do segurador decorrente desse risco reveste a favor da pessoa singular designada como “Beneficiário”, pelo que é, em rigor e também, um contrato de seguro de vida. V - Constituiu-se estruturalmente um verdadeiro contrato a favor de terceiro definido pelo art. 443.º do CC, e estando a aquisição do direito à prestação do seguro, pelo terceiro beneficiário, dependente da morte do segurado, não integra o património deste o capital segurado. VI - Falecendo o autor da herança sem deixar herdeiros legitimários, não carece de ser relacionada no inventário aberto por óbito do mesmo a quantia recebida da seguradora por terceira beneficiária, por ele indicada aquando da celebração de um seguro de vida grupo contributivo do tipo capitalização”. Não integrando a herança, o capital dos ajuizados seguros não pode responder pela dívida do autor da sucessão para com a Recorrente, sendo indiferente que a herança se encontre jacente ou indivisa, sem prejuízo de se anotar que a execução foi instaurada contra a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de AA, representada pelos seus herdeiros, o que faz presumir que estes a aceitaram [1]. Argumenta ainda a Recorrente que a seguradora não tem legitimidade para requerer a dispensa de cumprimento do disposto no artigo 777º, n. º 1 do Código de Processo Civil. Manifestamente sem razão. Podendo contestar a obrigação propriamente dita, é evidente que a seguradora pode também, reconhecendo-a, suscitar a questão da titularidade do correlativo direito. Improcede, pois, a apelação. * IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela apelante. __________________________ Relator __________________________ 1º Adjunto __________________________ 2º Adjunto [1] Importa lembrar que a herança jacente, definida pelo 2046º do Código Civil como a “herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado”, tem personalidade judiciária, nos termos do artigo 12º, alínea a), do Código de Processo Civil. |