Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
122/09.2TBVRM.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: DELIBERAÇÃO SOCIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – O artigo 294 n.º 1 do CSC permite que, por via dos estatutos duma sociedade, seja deliberado, por maioria absoluta, uma distribuição de dividendos inferior a 50% dos lucros distribuíveis.
2 – Como a deliberação impugnada foi com maioria absoluta e restringiu os dividendos a menos de 50%, não é ilegal nos termos daquele normativo.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

A. intentou a presente acção com processo comum ordinário contra B,, peticionando seja decretada a anulação da deliberação aprovada, no dia 31 de Março de 2009, pela assembleia geral da Ré, na parte atinente à distribuição dos dividendos pelos accionistas.

Para tanto alega, em suma, que foi aprovada nessa assembleia-geral, por
maioria de 62,40876%, a afectação dos resultados de exploração no valor de € 62.476,27, dos quais € 3.200,00 a reservas legais, € 49.276,27 a reservas livres e € 10.000,00 a distribuição aos accionistas, enquanto dividendos.

Mais aduz que tal deliberação é ilegal, por violação do disposto no artigo 294º do Código das Sociedades Comerciais, devendo ser anulada, nos termos do disposto nos artigos 56º, n.º1, al. a) e d) e 58º, n.º 1, al. a) e b), ambos do Código das Sociedades Comerciais.

Contestou a Ré, pugnando pela improcedência da acção, invocando, por via de excepção, o teor dos estatutos sociais, em especial a norma do artigo 8º desses estatutos.

Replicou o Autor, defendendo a improcedência da excepção.
Foi designada audiência preliminar, na qual, tendo-se constatado que os factos assentes permitiam conhecer do mérito da causa, após tentativa de conciliação, se facultou às partes a discussão de facto e de direito, tendo estas dado por reproduzidos os respectivos articulados.

E foi julgada improcedente a acção e absolvida a ré do pedido.

Inconformado com o decidido, o autor interpôs recurso de apelação, formulando conclusões.

Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Damos como assente a matéria de facto fixada na decisão recorrida, que passamos a transcrever:

1. A B. é uma sociedade comercial na forma anónima, com sede na Av. Manuel Francisco da Costa, Lugar do Gerês, freguesia de Vilar da Veiga, concelho de Terras do Bouro, com capital social €1.100.000,00, correspondente a 220.000 acções ao portador com o valor nominal de €5,00 cada, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Terras do Bouro, sob o nº 14, e foi constituída por escritura pública de 19.04.1924, lavrada no Cartório do Notário Dr. Silva Lino, do Porto –cfr. certidão permanente 1528- 2782-6164, disponível em www.portaldaempresa.pt, cujo teor se dá por reproduzido.
2. A sociedade é de duração indeterminada e tem por objecto social a exploração de nascentes das águas do Gerês e actividades turísticas - –cfr. certidão permanente.
3. O pacto social está plasmado nos respectivos estatutos, cuja última redacção, actualmente em vigor, foi aprovada em assembleia-geral de 28 de Setembro de 2006 – cfr. doc. de fls. 107 a 11º dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
4. Nos termos do disposto no § 1 do artigo 6.º dos estatutos da Ré, a cada 100 acções corresponde um voto.
5. Dispõe o artigo 8.º dos estatutos da Ré:
“A Assembleia-geral poderá funcionar à primeira convocação quando estejam presentes pelo menos cinco accionistas cujas acções correspondam ao mínimo de presentes pelo menos cinco accionistas cujas acções correspondam ao mínimo de25% do capital, excepto no caso previsto no parágrafo imediato.
§ 1 – As Assembleias que tenham por fim a reforma de Estatutos, emissões de obrigações ou reforço e redução de capital devem constituir-se com a maioria absoluta do capital social.

§ 2 – A constituição de provisões ou reservas que excedam os limites estabelecidos pela lei só poderão ser constituídas quando em primeira convocatória obtiver a aprovação de maioria absoluta do capital social. Quando a assembleia-geral se realizar em segunda convocatória ou em data marcada desde logo na primeira convocatória, as deliberações sobre esta matéria poderão fazer-se por maioria simples.”.
6. E prevê o artigo 20.º dos estatutos da Ré: “Além do Fundo de Reserva Legal, a Assembleia poderá criar outros fundos especiais”.
7. O autor é titular de 26.649 acções ao portador da ré.
8. Foi convocada para funcionar no dia 31 de Março de 2009, em primeira convocatória, e no 29 de Abril de 2009, em segunda convocatória, sempre pelas 11 horas, no Hotel Tuela, na Rua Arquitecto Marques da Silva, 200, no Porto, a assembleia geral anual da ré.
9. Da ordem de trabalhos dessa assembleia-geral constava, ao que ora interessa, no Ponto 2º: «Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados» - cfr. doc. de fls. 15, cujo teor se dá por reproduzido.
10. Na data, hora e local indicados na convocatória reuniu-se a assembleia-geral da sociedade, conforme é espelhado na respectiva acta – cfr. doc. de fls. 16 a 26, cujo teor se dá por reproduzido.
11. No seu âmbito, foi apresentada à assembleia geral o relatório de gestão do qual constava uma proposta de afectação dos resultados de exploração de €62.476,27, dos quais €3.200,00 a reservas legais, €49.276,27 a reservas livres e €10.000,00 a distribuição aos accionistas, enquanto dividendos.
12. Submetida a votação, a proposta apresentada no âmbito do ponto dois da ordem de trabalhos, foi aprovada por maioria de 62,40876%, encontrada do seguinte modo :
1.368 votos a favor, correspondentes à soma dos votos dos accionistas C., D., E., pelo Grupo F., correspondentes a 136.947 acções; e
824 Votos contra, correspondentes à soma dos votos dos accionistas G, H.I.J., correspondentes a 82.539 acções.

Das conclusões do recurso ressalta a questão de saber se é inválida a deliberação que não afectou 50% dos lucros distribuíveis aos sócios, por violação do disposto no artigo 294 n.º 1 do CSC.

A questão cinge-se à interpretação do artigo 294 n.º 1 do CSC. conjugado com o artigo 8.º §1 e 2 dos estatutos da ré.

Segundo o autor, aquele normativo visa tutelar o direito dos sócios a quinhoar nos lucros, cujo limite mínimo é de 50% dos resultados de exercício que sejam distribuíveis. E este limite não pode ser alterado por convenção contratual, que seria nula, sendo apenas permitida a sua derrogação por deliberação da assembleia com uma maioria qualificada de ¾ dos votos correspondentes ao capital social. E apoia-se na doutrina defendida por Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, pag. 97 e seguintes e ainda em Manuel António Pita, Direito aos Lucros”, Almedina, pag 148.

Na perspectiva do autor, 50% dos lucros distribuíveis seria intangível, a não ser através duma deliberação da assembleia-geral com uma maioria de ¾.

Este preceito legal tem sido alvo de análise pela doutrina, que se encontra dividida, mas em que domina a que defende que o limite de 50% também pode ser derrogado pelos estatutos da sociedade, desde que confira à assembleia geral o poder de decidir, de poder ponderar o interesse geral da sociedade e dos sócios, em cada momento. Se estes nada disserem sobre o assunto aplica-se a norma supletiva nos termos prescritos no artigo 294 n.º 1 do CSC. (conferir, entre outros – Luís Brito Correia, Direito Comercial Vol. 2.º, AAFDL, 1989, pag. 312; António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pag. 135 a 139; Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2.ª edição, pag. 336, em anotação ao artigo 217 n.º 1 do CSC. cuja redacção é idêntica à do artigo 294 n.º 1 do mesmo diploma).

No plano jurisprudencial, temos a destacar o Ac. do STJ de 7 de Janeiro de 1993, publicado na CJ. (STJ) 1993, Tomo, I, pag. 5 e seguintes, onde faz uma resenha histórica da interpretação do artigo 20 da Lei da Sociedade por Quotas de 11 de Abril de 1901, conjugado com o artigo 217 n.º 2 do CSC, em que conclui que o STJ interpretou aquele primeiro normativo no sentido de que era permitido aos sócios, através dos estatutos e da assembleia geral, derrogar a norma supletiva de distribuição de lucros. E, como as normas são idênticas neste ponto quanto a “ salvo estipulação em contrário ou …sem prejuízo de disposições contratuais diversas.” a interpretação do artigo 217 n.º 2 do CSC deveria ser na mesma linha. E temos ainda um Ac. da RC. De 26 de Setembro de 2000, publicado na CJ, 2000, Tomo IV, pag. 24 a 27, em que defende também que o artigo 294 n.º 1 do CSC. permite que os estatutos possam alterar o teor do mesmo no que tange à distribuição mínima de 50% dos lucros distribuíveis.

E esta Relação já se pronunciou sobre uma mesma questão na apelação 191/07.0TBVRM.G1, a 9 de Março de 2010, em que fui um dos adjuntos e relatora a Desembargadora Rosa Tching, e que nele foi defendido que era permitido aos estatutos derrogarem a norma supletiva sobre a distribuição dos lucros, plasmada no artigo 294 n.º 1 do CSC., de molde a que a assembleia geral, com maioria absoluta e não com maioria de ¾, poderia deliberar no sentido da supressão da distribuição dos lucros, afectando-os a outros fins permitidos. E isto porque a assembleia tinha o poder e a possibilidade de ponderar em cada caso o interesse colectivo e individual, para deliberar no sentido em que deveria prevalecer o interesse geral sobre o dos sócios.

E, para uma melhor fundamentação deste ponto, vamos intercalar uma parte dos fundamentos do acórdão: “Assim e no que respeita às sociedades anónimas, dos lucros apurados no termo de cada exercício, a sociedade tem de reter necessariamente, para além dos que se mostrem necessários à manutenção do capital e à cobertura de prejuízos transitados de exercícios anteriores, os lucros destinados à formação ou reconstituição das reservas impostas por lei (cuja percentagem mínima e montante mínimo são, segundo o disposto no art. 295º, nº1 do C.S.C., de 20% dos lucros da sociedade e de 5% do capital social, respectivamente), ou pelo contrato de sociedade (que, nos termos da citada disposição legal pode fixar percentagem e montante mínimo mais elevado do que os aludidos 20% e 5%).
Todavia, há que conciliar esta limitação com o direito dos sócios à distribuição dos lucros, consagrado no art. 294 n.º1º do C.S.C., o qual dispõe que “Salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de ¾ dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído aos accionistas metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível”.
Daqui decorre, por um lado, que a sociedade só está obrigada à distribuição do excedente dos lucros de exercício, ou seja, se houver excedente dos lucros, depois de deduzidos os necessários à manutenção do capital, à cobertura de prejuízos transitados de exercícios anteriores e à formação ou reconstituição das reservas impostas por lei ou pelo contrato de sociedade.
E, por outro lado, que, relativamente a estes lucros distribuíveis, a sociedade está obrigada a proceder à distribuição de metade, salvo diferente cláusula contratual ou deliberação aprovada por maioria de ¾ dos votos correspondentes ao capital social.
Segundo Albino Matos , “A referida cláusula contratual pode assumir um conteúdo perceptivo – obrigando à distribuição do lucro, seja de todo o lucro legalmente distribuível, seja de uma dada parte superior à metade que a lei exige; e pode ao invés, revestir um sentido proibitivo – impedindo a distribuição, total ou parcialmente. Enfim, pode ainda a cláusula não só afastar simplesmente a exigência legal de maioria qualificada e admitir a deliberação por simples maioria, como agravar aquela exigência, impondo uma maioria mais elevada ou mesmo a unanimidade”
Significa tudo isto, no dizer de João Labareda , que a regra geral enunciada no nº1 do citado art. 294º e que atribui aos sócios o direito à partilha anual de metade dos lucros distribuíveis, tem natureza supletiva, podendo ser afastada por duas vias. “A primeira é a existência de uma cláusula contratual em contrário, nada obstando à previsão da possibilidade de não haver qualquer distribuição no final do exercício. Neste caso competirá à assembleia-geral deliberar, nos termos gerais, sobre o destino dos lucros, salvo se estiver prevista a constituição de certo tipo de reservas e os lucros obtidos não forem de molde a proporcionar remanescente.
A outra, é a de, na omissão do pacto, a própria assembleia, então, por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social, deliberar não distribuir ou distribuir menos de metade dos lucros obtidos”.
Isto porque, tal como ensina o Prof. Raul Ventura , num e noutro caso “está respeitada a intenção da lei; esta assegura aos sócios a distribuição de metade dos lucros, mas não contra a vontade deles; se no contrato de sociedade todos permitem a derrogação dessa regra, tanto faz que o façam por estabelecimento de percentagens diferentes, como deixando à assembleia o referido poder”.
Ora, a este respeito, estabelece o artigo 8º dos Estatutos da Ré que:
“ A Assembleia-geral poderá funcionar à primeira convocação quando estejam presentes pelo menos cinco accionistas cujas acções correspondam ao mínimo de 25% do capital, excepto no caso previsto no parágrafo imediato.
(…)
§ 2 – A constituição de provisões ou reservas que excedam os limites estabelecidos na Lei só poderão ser constituídas quando em primeira convocatória obtiver a aprovação da maioria absoluta do Capital Social. Quando a Assembleia-geral se realizar em segunda convocatória ou em data desde logo marcada na primeira convocatória, as deliberações sobre esta matéria poderão fazer-se por maioria simples”.
Mas se assim é, não podemos deixar de entender que com esta cláusula pretendeu-se, por um lado, dar ampla liberdade e margem de manobra aos accionistas para, através dos lucros distribuíveis, constituírem não só reserva legal em percentagem superior à definida no citado art. 295º, nº1 como outras “reservas livres” , o que tem subjacente, como é obvio, a vontade de não distribuição dos lucros ou de atribuição dos lucros apurados em percentagem menor à definida no art. 294º, nº1 do C.S.C., por pretender-se solidificar, por esta forma, a posição económico-financeira da sociedade.
E, por outro lado, autorizar a assembleia-geral a aprovar, por maioria simples, deliberação tomada quanto à constituição de reservas, em segunda convocatória.
Por tudo isto e porque, no caso dos autos, ficou provado que a deliberação em causa – no sentido de relativamente aos resultados de exploração de € 42 084,54, afectar € 2 176,68 a reservas legais e € 39 907,68 a reservas livres – foi aprovada em segunda convocatória realizada no dia 27 de Abril de 2007 por maioria simples com os votos a favor do grupo F. e os votos contra do grupo J., julgamos que a Mmª Juíza a quo ao decidir que, na situação em apreço, não era necessário que os accionistas deliberassem por maioria qualificada de ¾, interpretou correctamente o texto do referido artigo 8º dos Estatutos da ré”.

Depois da explanação da nossa posição sobre a interpretação do artigo 294 n.º1 do CSC. resta-nos aplicar estes princípios ao caso sub judice.

Em face do artigo 8.º § 2 dos estatutos, é permitida à ré, em assembleia-geral, com votação igual à maioria absoluta, deliberar no sentido de constituir provisões ou reservas que excedam os limites estabelecidos pela lei. Ora as reservas permitidas referem-se às reservas livres que a assembleia destinou no montante de 49.276,27 €. E que o autor defende que é ilegal, porque deveria integrar os dividendos, que foram apenas de 10.000 €. Aquele montante atinge o direito a receber 50% dos lucros distribuíveis, cuja derrogação só é permitida pela deliberação duma maioria de ¾ e não de uma maioria absoluta.

Mas como o já acima dissemos, a assembleia tem poderes estatutários que lhe conferem a possibilidade de ponderar a distribuição dos lucros em montante inferior a 50% dos distribuíveis, ou até de suprimir, em cada ano, a distribuição dos lucros, desde que se não torne abusiva. O que quer dizer que a cláusula em questão altera o sentido supletivo da parte final da norma. Daí que, com a maioria absoluta que foi obtida na votação, a deliberação impugnada não sofre do vício apontado pelo autor, pelo que não está ferida de ilegalidade.

Concluindo:

1 – O artigo 294 n.º 1 do CSC permite que, por via dos estatutos duma sociedade, seja deliberado, por maioria absoluta, uma distribuição de dividendos inferior a 50% dos lucros distribuíveis.
2 – Como a deliberação impugnada foi com maioria absoluta e restringiu os dividendos a menos de 50%, não é ilegal nos termos daquele normativo.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão impugnada.

Custas a cargo do autor apelante.

Guimarães,