Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2565/07-1
Relator: GOMES DA SILVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
FACTO IMPEDITIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/31/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: 1. Face aos ditames recolhidos na experiência comum e às regras científicas ineludivelmente aceites, a taxa de alcoolémia de 2,57 g/l afecta, de forma grave e duradoura, os reflexos, a capacidade de atenção e discernimento do condutor, perturbando as suas capacidades sensoriais, potenciando a audácia sem controlo e diminuindo muito a resistência à fadiga.
2. Para efeito de exclusão da responsabilidade, no domínio do seguro facultativo, é irrelevante que entre o estado de alcoolizado (ou de embriaguez) do condutor e o acidente ou as suas sequelas intervenha um nexo de causalidade adequada.
3. Pelo contrário, bastará à seguradora, com vista à exclusão da responsabilidade civil facultativa, alegar e provar que o condutor, na ocasião do sinistro, estava sob a influência do álcool, como facto impeditivo do pretenso direito ao ressarcimento.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


I –

INTRODUÇÃO

1. Aos 2006.03.20, MANUEL O... e JOAQUINA R... intentaram contra COMPANHIA DE SEGUROS A..., S.A. acção declarativa de condenação, com processo comum, sob s forma sumária.

2. Propuseram-se obter decisão que condenasse a R. a pagar-lhes a quantia de 5.000 €, acrescida de juros contados desde a data da citação.

3. Alegaram, em síntese:
Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 5070/891823, Manuel O..., filho dos AA., declarou transferir para a R., que aceitou, os riscos inerentes à circulação do seu veículo nº 25-40-SE, entre os quais a obrigação de pagar aos beneficiários o capital de 1.000.000$00 em caso de morte.
O Manuel O... veio a falecer, em 6 de Abril de 2003, em consequência de acidente de viação ocorrido nesse dia, na Estrada Nacional 310, ao Km 17,4.

4. Contestou a R..
Impugnou parcialmente os fundamentos da acção e alegou:
De acordo com as condições especiais do contrato de seguro celebrado com o filho dos AA., estão excluídos do contrato os acidentes “consequentes de alcoolismo, uso de estupefacientes fora prescrição médica, ou demência do condutor”.
Na ocasião do acidente que o vitimou, Manuel O... conduzia sob efeito do álcool.

5. Responderam os AA., impugnando a matéria alegada na contestação e concluindo como na petição inicial.

6. Julgada a causa, foi lançada sentença que, tendo por procedente a acção, condenou a R. COMPANHIA DE SEGUROS A..., S.A., a pagar aos AA. Manuel O... e JOAQUINA R... a quantia de 5.000 €, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento, sobre o capital em dívida de 5.000 €, à taxa legal de 4%.

7. Tendo interposto recurso, a R. elencou súmula conclusiva.
Os Apelados contra-alegaram.

8. Colhidos os legais vistos, cabe apreciar e decidir.


II-

FUNDAMENTOS FÁCTICOS

São os seguintes os factos provados:

1. Os AA. são pais de Manuel O..., solteiro, maior, residente que foi na Rua da Igreja, em Briteiros, freguesia de S. Salvador, Concelho de Guimarães.
2. O referido Manuel O... faleceu no dia 6 de Abril de 2003.
3. A morte do referido Manuel sobreveio como consequência directa das lesões traumáticas que sofreu em acidente de viação ocorrido na Estrada nacional nº 310, ao Km 17,4, na área dessa comarca, no dia 6 de Abril de 2003, pelas 6 horas.
4. Tal ocorreu no sentido Brito/Taipas.
5. Ao volante do seu veículo automóvel de passageiros de matrícula nº 25-40-SE.
6. O acidente ocorreu porque, na sequência de uma curva para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, o veículo conduzido pelo referido Manuel despistou-se.
7. Embateu num veículo estacionado do seu lado direito.
8. Voltou para dentro da estrada.
9. Embateu depois num morro de terra e sinalização existente no lado esquerdo.
10. E imobilizou-se, cerca de 50 m mais à frente, junto à mesma berma direita, atendo o seu sentido de marcha.
11. Pela apólice nº 5070/891823/50, o referido Manuel declarou transferir e a R. declarou assumir os riscos inerentes à circulação do veículo nº 25-40-SE.
12. Entre tais riscos, atentas as coberturas e garantias seguras, declarou a R. assumir a obrigação de pagar aos beneficiários delas o capital de 1.000.000$00, em caso de morte do Manuel , enquanto ocupante e condutor daquela viatura no momento do acidente que o vitimou.
13. De acordo com o art. 3º-d) da condição especial 13, estão excluídos do contrato os acidentes “consequentes de alcoolismo, uso de estupefacientes fora prescrição médica, ou demência do condutor”.
14. Os beneficiários de tal cobertura são os herdeiros de Manuel .
15. O Manuel faleceu sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, no estado de solteiro.
16. Não deixou descendência, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus pais, ora AA..
17. O referido Manuel conduzia com uma T.A.S. de 2,57 g/l.


III-

FUNDAMENTOS JURÍDICOS

1.
Vêm presentes as censuras seguintes à sentença:
§ o acidente de viação automóvel derivou, não só em abstracto mas também em concreto, da condução empreendida pelo Manuel sob o efeito do álcool;
§ a alegação e prova de que esse Manuel conduzia o veículo, no momento do acidente, com uma TAS de2,57 g/l faz excluir a responsabilidade da Apelante.
Dilucidemos as questões postas para reapreciação, em ordem à eventual revogação da sentença.

2.
a)
As bebidas alcoólicas são usadas desde a mais longínqua antiguidade, pelo comum dos povos. Há dezenas de anos que Portugal é um dos países com Maios elevado ratio de consumo por habitante.
Mais do que estimulante, o álcool funciona como depressor, que prejudica as capacidades psicofisiológicas, mesmo quando ingerido em pequenas quantidades.
das mais antigas O nosso País é, desde há muitos anos, um dos dois com mais elevada taxa de sinistralidade, a nível da EU.
Entrando na circulação sanguínea e atingindo o cérebro, é patente que, de imediato, passa a afectar as capacidades sensoriais, perceptivas, cognitivas e motoras, inclusive o controlo muscular e o equlíbrio do corpo. A sua acção acarreta graves riscos para o execrcício da condução automóvel, desde logo porque detona a euforia e descontrola a audácia, diminui a capacidade de vigilância sobre os factores externos, nomeadamente ao nível da atenção e da visão.
O exercício da condução automóvel tem regras, entre as quais se contam as referentes à segurança rodoviária; esta é, indiscutívelmente, um valor ou um bem que tem de ser preservado.
Ora é precisamente neste âmbito que o exercício da condução sob o efeito do álcool, assume particular destaque, porquanto os veículos automóveis são, reconhecidamente, geradores de risco para a vida, integridade física e bens, seja de toda a comunidade, sejam daqueles que utilizam a via pública e suas proximidades.

b)
Por alcoolismo deve entender-se o conjunto de problemáticas relacionadas com o consumo excessivo e prolongado do álcool ou, mais prosaicamente, o vício de ingestão excessiva e regular de bebidas alcoólicas e todas as consequências daí decorrentes.
Através da substância psicoactiva lícita de abuso mais divulgado, o alcoolismo atinge cerca de 1.800.000 portugueses (13,7%), com o per capita de 9,6 litros de álcool puro. E, acometendo de 10% a 12% da população mundial, com maior incidência nos homens, sobretudo entre os 18 e os 29 anos, é responsável por cerca de 60% dos acidentes de trânsito.
Sete em cada dez condutores portugueses admitem beber frequentemente, mesmo quando vão conduzir; isto apesar de a grande maioria (86%) reconhecer que a condução sob o efeito de álcool tem influência na sinistralidade rodoviária. Ou seja: a condução após ingestão de álcool é um hábito implantado na sociedade portuguesa.
Tudo concorre, afinal, para que o risco de envolvimento em acidente mortal do factor 2, à taxa de alcoolémia de 0,5g/l, se potencie, assim, para o extraordinário valor de 80, à TAS de 2 g/l, provocando vertigens, sonolência, confusão mental, desequilíbrio e visão dupla e até desfocada; tudo isto sem ignorar as características individuais e mormente o agravamento dessas consequências, se inexistir ingestão de comida (o que será trivial nas altas madrugadas).

c)
A “guerra civil estradal” tem engrossado tanto o número de mortos e estropiados que as negras estatísticas fizeram divulgar, entre certos estrangeiros (a, para nós, muito desprestigiante) recomendação de não se arriscarem a conduzir nas nossas estradas.
O combate a tão elevados índices de sinistralidade tem passado, ainda que timidamente, desde a Lei nº 3/82, pela penalização da condução de veículos automóveis sob influência do álcool (como crime de perigo abstracto), no pressuposto de que a excessiva ingestão de bebidas alcoólicas implica a perda de atenção, de reflexos e da destreza de movimentos, tão indispensáveis para enfrentar os inúmeros perigos que, amiúde, surgem imprevistamente e demandam uma cada vez maior aptidão para os ultrapassar com sucesso.
Ultimamente, esse combate, mesmo tendo conhecido algumas hesitações (cfr. valor da TAS), tem evoluído, desde a penalização da condução sob a influência de substâncias consideradas estupefacientes ou psicotrópicas, conforme o art. 81º CE, para maiores preocupações, já não tanto por efeito de uma descridibilizada “Prevenção Rodoviária Portuguesa”, mas, sobretudo, por acções repressivas da corrupção que enxameia as entidades policiais fiscalizadoras e pela oportuna intervenção de associações de cidadãos fortemente empenhados em limitar o morticínio diário.
Nesse particular aspecto, as seguradoras podem proporcionar significativos impulsos para a requerida mudança, desde que o legislador resolva empecilhos para consciencializar duramente os cidadãos da enormidade do risco assumido.
O novo CE, conquanto contenha punições muito mais severas e adequadas aos novos tempos, ainda não se revelou como um mais eficaz instrumento de política estradal e de salvaguarda da integridade física de quem utiliza as vias públicas. É preciso muito mais, mesmo ao nível de uma nova filosofia de menos tolerância perante os abusos de álcool e de estupefacientes (com drástica diminuição para jovens e reincidentes), associada a mais exigência na habilitação para conduzir, mais severidade na cassação de cartas, com limite etário para a condução e mesmo com a inclusão de presunção desfavorável ao condutor (quando perante a responsabilidade civil, sobretudo por lesões corporais, quando encontrado em situação de limitação das suas faculdades), seja capaz de reconduzir os utilizadores das nossas estradas (portugueses e estrangeiros) ao estreito cumprimento das regras e a uma sensação de menor pânico, de modo a posicionarmo-nos, enfim, num lugar mais aceitável a nível europeu.

3.
a)
Uma das medidas iniciais que visava desaconselhar a condução sob o efeito do álcool (cfr. art. 19º-c) DL nº 522/85, de 21 de Dezembro) era a instituição do direito de regresso por parte da seguradora que solvesse indemnizações por danos ocorridos “se o condutor tiver agido sob a influência do álcool”.
Ao julgador, hic et nunc, é que cabe interpretar e fazer aplicar o direito constituído, mesmo questionando fortemente a bondade dos actuais normativos, como acima se deixou suficientemente aludido. Na verdade, ainda que provada, tal factualidade não basta por si só para operar o nascimento daquele direito de regresso, tal como se apresenta a redacção do preceito e a sucessão de muitíssima jurisprudência, uniformizada pelo Ac. STJ de 2002.05.28, DR de 2002.07.18 (Ac. nº 6/02, com 14 votos de vencido em 33 presenças); é que, fazendo intervir a ratio legis, entende-se comummente não poder penalizar-se o segurado só porque ingeriu álcool em quantidade superior à legalmente estipulada, tendo de exigir-se ainda a verificação do nexo de causalidade entre o acidente e o estado de alcoolémia.
A tese que fez vencimento remeteu para plano secundário a dificuldade da prova da adequação causal. Como se sustentava no Ac. STJ, de 2003.02.03, “a resposta extrai-se de regras da vida real. Há que fazer alguma transigência, no contexto ponderativo de certos casos limite, evitando um qualquer juízo de arbítrio, sem cair no fundamentalismo formal do ritual da prova.
O coeficiente de exigência probatória material tem que ser contido nos limites do razoável das circunstâncias concretas, do concreto tipo de nexo causal - onde as presunções judiciais, as regras da experiência comum e da vida não podem deixar de ter uma intervenção significativa - sem, todavia, se abrir mão da exigência do princípio - que é salutar - de que à seguradora competirá a prova da relevância da alcoolemia na produção do acidente, e sem se cair no automatismo ou presunção da causa, que a reverta a uma singela condição sine qua non do resultado.
Não é possível - sejamos realistas - a demonstração directa do nexo causal entre a condução sob influência do álcool e o resultado danoso provocado pelo condutor alcoolizado, em casos do tipo em consideração. Com efeito, à assinalada transigência bastará a prova bastante, porventura a prova de primeira aparência, cabendo ao condutor a contraprova, apontando factos de que resulte a séria possibilidade de um decurso atípico…
Não se pode exigir muito mais numa área considerada de prova diabólica a cuja dificuldade de demonstração directa o julgador não pode ser indiferente.

b)
Na situação em análise, estamos remetidos a um especial circunstancialismo, verificado objectivamente: a condução efectuada por um jovem, vindo de concluir 29 anos, sob efeito de elevada taxa de alcoolémia, às seis da manhã do dia 6 de Abril de 2003, domingo, que lhe determinou a morte em consequência de acidente, sem que outrem haja intervindo nele.
A acção em que a causa se plasma não é a daquele direito de regresso da seguradora
(nas situações de seguro obrigatório - cfr. art. 19º-c) DL nº 522/85, de 21 de Dezembro), mas antes a peticionada condenação daquela a pagar aos habilitados ascendentes a quantia de 5.000 €, a título de compensação indemnizatória pela morte do condutor (seguro do ramo vida), como estava clausulado.
Para além disso, as partes haviam contratualizado uma especial condição, susceptível de afastar a operância da satisfação daquela indemnização: ficavam excluídos do contrato os acidentes consequentes de alcoolismo, uso de estupefacientes fora de prescrição médica, ou demência do condutor.
Não tendo sido possível ir mais além na determinação das causas do acidente que demonstrem a verificação do nexo causal, sempre é indesmentível que um grau muito elevada probabilidade aponta para que o resultado danoso verificado (morte do Manuel ) se enquadra numa consequência típica da condução sob influência do álcool. Neste particular enquadramento do direito probatório material e processual do nexo causal, em situações sui generis (abuso de álcool, estupefacientes) o problema perde importância e parece ficar facilitado, uma vez que resulta plenamente demonstrada a influência da elevadíssima taxa de alcoólica existente no sangue do segurado para a eclosão do acidente.
Na verdade, como explicação razoável para o estado de euforia, de morbidez e imponderação próprios que aquele percentagem de álcool no sangue potenciou, levando ao embutimento da sensibilidade e da capacidade avaliativa do risco de conduzir, a verdadeira causa normativa (e não puramente condição naturalística) situa-se, com um grau elevado de probabilidade típica do nexo causal, no significativo excesso de bebida revelado pelo exame pericial efectuado; tal excesso, se prevenido, teria provavelmente evitado o resultado danoso verificado, em si, e em tamanhas dimensões, permitindo a observância de condições normais de avaliação da condução em concreto (decerto, já com uso de cinto de segurança – cfr. participação policial de fls. 18 e 19), com domínio e perfeito controle do automóvel, obviando à produção do trágico resultado danoso ou, ao menos, limitando a extensão das suas consequências tão graves.
Claro que os Apelados, que até esconderam o resultado do exame laboratorial que anexava o relatório da autópsia (confrontem-se fls. 16 e 17 com 53 a 56, já disponíveis na data da apresentação da acção), se opõem à tese da Recorrente, inclusive à custa de deambulações pelos sinónimos de “alcoolismo” e “consequente”.
Todavia, ao invés do que eles pretendem, não se pode tirar dessa resposta a consequência de a R. não ter provado o nexo de causalidade adequado entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. Em boa verdade, determinar se aquela fatal taxa de alcoolémia foi ou não causal do sinistro, é um quid a decidir, em face dos factos apurados. A relação causal entre o excesso de álcool no sangue e o acidente não se demonstra de forma directa, perceptivelmente, mas por presunções a partir do conjunto de circunstâncias concretas, e estas põem à evidência, por razões avalizadas pela ciência, que o acidente ocorreu por causa do estado de embriaguez (embora pudesse ter concorrido outra).
A Recorrente provou, além do mais que lhe competia provar (art. 342º-nº1 CC), que o acidente se deu por o condutor estar sob a influência do álcool, que isso lhe diminuíu as capacidades de condução e que, por isso (ou também por isso), o sinistro eclodiu. De resto, para além da embriaguez a diminuir as capacidades para conduzir, não se descortina no probatório qualquer razão plausível para o acidente (e os AA. não a articularam).

c)
Aquelas cláusulas que se impõe apreciar integram-se num contrato formal, sendo certo que a sua validade depende de o respectivo conteúdo ser consubstanciado num documento escrito, denominado apólice, da qual devem constar, além do mais, o nome do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, o respectivo objecto e a natureza e o valor e os riscos cobertos (art. 426º-§ único C. Com.).
Regula-se pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do C. Com. (art. 427º).
As declarações negociais imputadas ao antecessor dos Apelados e à Apelante traduzem um contrato de seguro de vida, em complemento do de responsabilidade civil por danos causados a terceiros em conseuêenci ade sinistro estradal.
O contrato de seguro do ramo vida reporta-se à pessoa segura, total e permanentemente incapacitada de exercer qualquer actividade que tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efectuar os actos essenciais da sua vida corrente.
Interpretemos agora as mencionadas cláusulas contratuais.
A regra nos negócios jurídicos em geral é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante. A excepção ocorre nos casos em que não seja razoável imputar ao declarante aquele sentido declarativo ou em que o declaratário conheça a vontade real do declarante (art. 236º CC).
O sentido decisivo da declaração negocial é, pois, o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente e capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas.
No que concerne aos negócios jurídicos formais, como ocorre no caso em apreço, há, porém, o limite de a declaração não poder valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º-nº1 CC). Assim, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objectivo da respectiva interpretação, como corolário da solenidade do negócio, tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que o envolve.
Estando-se perante um negócio jurídico oneroso e formal, o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário está limitado por um mínimo literal constante do texto das condições gerais e particulares do contrato de seguro consubstanciado na respectiva apólice. Mas na interpretação da vontade dos outorgantes podem relevar várias circunstâncias, designadamente os termos da apólice e da lei aplicável, as prévias negociações entre as partes, a qualidade profissional destas, a terminologia técnico-jurídica utilizada no sector e a conduta de execução do contrato.
Um declaratário normal, colocado na posição do recorrido, interpretaria aquele conceito de “alcoolismo” como acima se deixou anotado, não com o que os Recorridos acentuaram a fls. 137, sobretudo com a exigência de “alcoolização permanente do organismo, nunca saindo este do efeito do álcool”; e o de “acidente consequente de alcoolismo” o que dele derivou, em termos normativos, ainda que pudesse ter intervindo concausa na sua génese, mas não apenas aqueles em que se demosntrado relações de nexo determinativo, absoluto e causal; aquele vocábulo só veicula a ideia de “que se segue”, que se deuz naturalmente”, “que pode ter consequências de monta” (cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira), que não “em consequência directa e necessária”.
Ou seja, quiseram as partes excluir o ressarcimento, em termos do contrato de seguro facultativamente celebrado, nas situações que se apresentassem como claramente emergentes de abuso de bebidas alcoólicas (consumo de estupefacientes ou demência), ainda que a exclusiva ou maior causa ponderada não fosse possível de apurar-se com efectiva certeza.
Está claro que a condução automóvel não constitui um direito fundamental e é permitida apenas àqueles que estão habilitados para tal e cumpram as respectivas e cada vez mais cuidadas regras. É que nenhuma lógica faria assegurar o pagamento de indemnização a quem se coloca culposamente em estado de incapacidade para atinada e lucidamente praticar actividade tão perigosa e exigente como a de condução de veículos automóveis. Isto porque, face às regras da experiência comum e cientifica, a influência de 2,57 gramas em cada litros de sangue do Manuel , pelas 6 horas, era idónea a provocar nele acentuada incapacidade sensitiva e neuromotora, fortemente diminuidora da sua percepção e reacção na actividade de condução automóvel que empreendia.
Ao cabo e ao resto, se outra amplitude (no caso, menor) tivessem querido dar à dita exclusão de responsabilidade, decerto que teriam escolhido redacção mais intuitiva e mais próxima da elaborada normativamente (cfr. art. 563º CC).
Finalmente, tendo a TAS intervindo decisivamente na produção do acidente, inexiste qualquer colisão com o Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 6/2002, de 28/5.


IV –

CONCLUSÃO DECISÓRIA

É por isso que, em nome do Povo, acordamos em:

1. julgar procedente a apelação e

2. revogar a sentença, tendo-se a Apelante por absolvida do pedido.


Custas pelos sucumbentes.


Guimarães, 2008.01.31,