Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2687/12.2YXLSB.G1
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: PRESCRIÇÃO
ENTREGA DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Peticionando o Autor a entrega de documentos (recibo e comprovativos de despesas) de que se arroga proprietário, ao exercício desta pretensão reivindicativa não é aplicável qualquer prazo de prescrição, nomeadamente o prazo ordinário de prescrição – art. 1313º do Cód. Civil.
2. Improcedendo a excepção de prescrição, é, de todo inútil, conhecer-se das nulidades da sentença por omissão de pronúncia quanto a eventuais causas interruptivas ou suspensivas do prazo prescricional, ficando a dita questão prejudicada em termos de seu conhecimento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório:

a)- Nos presentes autos de acção declarativa, que prosseguem agora sob a forma de processo comum, veio AA… peticionar a condenação dos RR. BB… e Outros na devolução/entrega de determinados documentos, por si enviados a 12.08.1991, bem como, ainda, a condenação dos mesmos RR. no pagamento da quantia de € 8. 000, 00, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais decorrentes da não entrega dos documentos por si reclamados.
Para tanto, em síntese, invocou o Autor que exerceu funções de assessoria jurídico-fiscal para a sociedade “ Construções CC…, Lda. ”, com quem celebrou o respectivo contrato de prestação de serviços, auferindo um vencimento mensal de esc. 500.000$00, acrescido do valor das despesas com as suas deslocações a Viana do Castelo e com telecomunicações.
Sucede, no entanto, que a dita sociedade não pagou a remuneração (avença) do mês de Julho de 1991, no valor de esc. 500.000$00, bem como as despesas (deslocações/estadia e telecomunicações) por si efectuadas nesse mês de Julho de 1991.
Por essa razão, veio o Autor, com data de 12.08.1991, a enviar carta registada dirigida à dita sociedade (vide documento n.º 4 com a petição inicial), contendo ela o «recibo da avença do mês de Julho de 1991, bem como os comprovativos das despesas efectuadas pelo A. no exercício de funções».
Todavia, não obstante o recebimento da aludida carta, não lhe foram pagos os valores por si reclamados, assim como não lhe foram devolvidos os documentos enviados, sendo certo que tem ele insistido junto dos ora RR. pela restituição dos mesmos e que estes lhe pertencem.
Por via deste comportamento dos RR. (não devolução dos seus documentos), alega o Autor ter sofrido «incómodos e despesas» para exigir a restituição dos mesmos, em razão do conclui pela condenação solidaria dos RR. no montante de € 2. 500, 00, a título de danos morais e patrimoniais - cfr. arts. 32º a 39º da petição inicial.
Por outro lado, não estando a afastada a hipótese de os RR. não virem a apresentar/entregar os aludidos documentos, peticiona, ainda, o Autor, nesse contexto, que sejam os RR. condenados solidariamente no pagamento de quantia de € 5. 500, 00, a título de danos morais (vexame, afectação negativa das suas qualidades profissionais – pois que, face ao não pagamento dos seus honorários e despesas, foi posta em causa a sua actividade profisssional –, incómodos, mal estar e desconforto sofridos) e danos patrimoniais (despesas com deslocações a Viana do Castelo e telefonemas a exigir os ditos documentos).
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b)- Citados os RR., vieram estes deduzir contestação.
Os RR. BB impugnaram a matéria alegada pelo Autor, sustentando, no essencial, que nada ficou por pagar ao Autor pelos serviços por si prestados à extinta “ Construções CC, Lda. ” e, ainda, que nunca os documentos ora reclamados chegaram ao seu conhecimento ou estiveram na sua posse. Mais, ainda, invocaram que o direito invocado pelo Autor se encontra manifestamente prescrito, pois que este «não pode ser peticionado sem qualquer limite temporal.»
Concluíram, assim, pela procedência da excepção de prescrição antes referida e pela absolvição do pedido.
Por seu turno, o Réu DD veio também impugnar a matéria alegada pelo Autor, sustentando que desconhece em absoluto qualquer empresa com a denominação atribuída pelo Autor e, ainda, que uma qualquer medida ou actuação sua só poderia ter lugar, no prazo legal para o efeito, e no âmbito do eventual processo de falência.
Concluiu, assim, pela procedência das excepções deduzidas e pela absolvição do pedido.
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c)- O Autor respondeu à contestação dos RR. salientando que, quanto à prescrição, ela não existe «em face da documentação e de toda a alegação constante da petição inicial.»
Por outro lado, ainda, nesta matéria, acrescentou que, por via da presente acção «não pretende o pagamento de serviços prestados, mas sim a devolução dos seus documentos
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d)- Em posterior audiência prévia, veio a ser proferida sentença que julgou procedente a excepção de prescrição, absolvendo os RR. dos pedidos contra si formulados (cfr. art. 595º, n.ºs 1 al. b)- e 3, 2ª parte, do NPC).

e)- Não se conformando com o assim decidido foi interposto recurso pelo Autor, pugnando o Recorrente pela revogação da sentença proferida e apresentando as seguintes conclusões:
1ª) Recorre-se da douta sentença proferida, a qual julga procedente a exceção de prescrição invocada nos autos pelos RR., absolvendo-os do pedido, sem, no entanto, conhecer das causas de interrupção da prescrição, nomeadamente o facto do aqui Recorrente ter intentado outras ações judiciais contra os aqui RR e contra a Empresa – Construções CC, Lda., que os mesmos representam.
2ª) A douta sentença do J4 da Secção Cível, Inst. Local da Comarca de Viana do Castelo, a qual decidiu:
“Pelo exposto, julga-se a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvem-se os Réus dos pedidos contra si deduzidos.”
3ª) O aqui Recorrente intentou a presente ação declarativa de condenação contra os aqui RR., peticionando a restituição de documentos, enviados aos responsáveis da empresa Construções CC, Lda., 12 de agosto de 1991, pretendendo ainda, paralelamente, que sejam os Réus condenados no pagamento de uma indemnização por danos morais causados pela não devolução atempada dessa documentação.
4ª) A douta sentença proferida refere:
“Por outro lado, pretendendo o Autor a devolução de documentos seus que alegadamente enviou a terceiros, a contagem desse prazo de prescrição deverá iniciar-se no momento em que esses documentos deixaram de estar na sua posse e ingressaram na esfera de disponibilidade dos respectivos destinatários, ou seja, de acordo com a alegação constante da petição incial, em 12.08.1991.”
5ª) Continuando:
“Este raciocínio serve ainda para o pedido indemnizatório formulado, em virtude do seu fundamento também se reconduzir à não devolução dos documentos em questão.”
“Ora, tendo como referência aquela data, verifica-se que, na altura em que deu entrada em juízo a petição inicial (28.06.2012), há mais de 10 meses que já se encontrava integralmente decorrido o supra aludido prazo de 20 anos.
Consequentemente, tratando-se de um prazo de prescrição comum, terá de se considerar extinto o direito que o Autor pretendia fazer valer e totalmente improcedente a presente acção.”
6ª) O aqui Recorrente, na sua P.I., artº 14º, refere que: “Tendo o A. posteriormente, em 20/07/1992 enviando outra carta, a qual foi recebida pelo RR, a solicitar novamente o pagamento dos valores em divida, conforme doc.s 5, 6 e 7 que se juntam.”
7ª) Deve entender-se tal missiva como a última interpelação do A., aqui Recorrente, ou seja, é a partir desta data que se começa a contar o prazo prescricional – 20/07/1992.
8ª) Porém, como os Recorridos não pagaram no prazo estipulado pelo Recorrente, viu-se este “obrigado” a intentar uma ação judicial para cobrança da referida divida, ação essa que seguiu os seus termos na 10ª vara cível de Lisboa, 3ª Secção, Proc. 221/1996, como se referiu no artº 15º da P.I..
9ª) Paralelamente, o aqui Recorrente apresentou também queixa-crime contra os aqui Recorridos, pelo crime de abuso de confiança, ao se apropriarem de tais documentos fazendo uso dos mesmos e não pagar tais serviços, inquérito que seguiu os seus termos no Tribunal Judicial de Sintra, Proc. 1703/96.8TBSNT, conforme referido no artº 16º da P.I., sendo certo que a decisão final neste processo teve lugar em finais do ano de 2014, no J1 do T.I.C. de Sintra.
10ª) Ainda de referir que o aqui Recorrente intentou uma outra ação judicial, contra a “ Construções CC, Lda. ”, peticionando a devolução destes mesmos documentos, Proc. nº 1576/11.2YXLSB, que correu termos no 8º Juízo Cível de Lisboa, tendo sido proferida sentença em 16/04/2012.
11ª) Refere o artº 323º do CC:
“1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.”
Em complemento refere o artº 327º: “1. Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo.”
12ª) Desde 1996, sempre o aqui Recorrente esteve em litígio com os aqui Recorridos, não se podendo dizer que se encontra prescrito o seu direito, pois sempre agiu de forma a acautelar o mesmo. Pois, os elementos de identificação desses processos e a existência dos mesmos foram claramente identificados na P.I. e sobre tal circunstancialismo o Mm. Juiz “a quo” não se pronunciou.
13ª) Somos pois de concluir que, o Mm. Juiz “a quo” não decidiu sobre questões que podia e devia conhecer, tendo dessa forma cometido a nulidade constante do art. 615º nº 1 al. d) do CPC, o que aqui se invoca, devendo concluir-se não se verificar a exceção de prescrição, alterando-se a douta sentença proferida.
Sem prescindir,
14ª) O aqui Recorrente solicitou Apoio Judiciário, para intentar a presente ação, em agosto de 2011, tendo-lhe sido nomeada em 05 de janeiro de 2012 a primeira defensora oficiosa. No entanto, a patrona nomeada apresentou pedido de escusa, tendo nessa sequência sido nomeada a signatária, em 21 de maio de 2012.
15ª) A Lei do Apoio Judiciário nada regulamenta relativamente ao efeito do pedido de apoio judiciário quanto à prescrição do respetivo direito, quando a ação não haja ainda sido intentada. Refere-se apenas à situação do apoio judiciário interromper o decurso do prazo prescricional quando a ação está já em curso, artº 34º nº 2 da Lei 47/2007 de 28/08.
16ª) O aqui Recorrente invoca a Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, de 27/10/2003, Proc. 0314298, segundo a qual:
“I – O pedido de nomeação de patrono só interrompe a prescrição quando for formulado na pendência da acção.
II – O pedido de nomeação de patrono para propositura de acção não interrompe a prescrição em curso, mas a acção considera-se proposta na data em que tal pedido tiver sido formulado, considerando-se a prescrição interrompida decorrido que sejam cinco dias sobre aquela data.”
17ª) Ora, esta é a posição da Jurisprudência dominante que sobre esta matéria se tem pronunciado, entendendo-se que o pedido de nomeação de patrono destinado à instauração de ação não interrompe o prazo de prescrição que esteja em curso, mas a ação é de considerar como proposta na data em que tal pedido tiver sido deduzido e a prescrição como interrompida uma vez que se mostrem decorridos cinco dias a partir daquele pedido.
18ª) Assim, em Agosto de 2011, por força da apresentação daquele pedido de nomeação de patrono, no âmbito do apoio judiciário, considera-se interrompido o prazo prescricional, ficando inutilizado o tempo de prescrição anteriormente decorrido, neste sentido Ac. do STJ, de 04/03/2010, Proc. 1472/04.0TVPRT-C.S1 – “em consequência da interrupção o tempo decorrido fica inutilizado, começando o prazo integral a correr de novo a partir do acto interruptivo (artº 326º CC). Em tal caso, todo o tempo decorrido até à interrupção é perdido, iniciando-se a contagem do novo prazo.”
19ª) Pois, sendo obrigatório o patrocínio judiciário, o interessado não poderá praticar o acto processual sem que tenha obtido previamente a nomeação de patrono ou constituído advogado, estabelecendo a Lei Fundamental que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos (artº 20º nº 1 da CRP). Pois, doutro modo, poderia ocorrer inadmissível encurtamento do prazo prescricional para aqueles que não têm recursos financeiros para contratar um Advogado.
20ª) Com a nomeação da nova patrona, cessou, por isso, a interrupção do prazo, iniciando-se novo prazo prescricional, prazo esse que não estava decorrido ao tempo da instauração desta ação (28.06.2012).
21ª) Donde que, contrariamente ao decidido pelo douto Tribunal “a quo”, não ocorreu, salvo o devido respeito, prescrição do direito que se pretende fazer valer na presente ação.
22ª) Pelo exposto andou mal o Mm. Juiz “a quo”, ao considerar prescrito o direito do aqui Recorrente, nos termos supra referidos, tendo por errada interpretação e aplicação violado as disposições constantes do artº 615º do CPC e artºs 323º, 326º e 327º, todos do CC.

f)- Não foram oferecidas contra-alegações.

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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Fundamentos:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, n.º 3, e 639º, nºs 1 e 2, do NCPC.
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No seguimento desta orientação, cumpre decidir.
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Neste âmbito, as questões que importa decidir são saber (1º) se ocorre a alegada nulidade da sentença por omissão de pronúncia, (2º) se ocorre a prescrição do direito do Autor como se sustenta na sentença recorrida.
Decidindo.
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A primeira questão que importaria enfrentar seria a da nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que a mesma, em certas circunstâncias, é impeditiva do conhecimento do objecto do recurso.
No caso em apreço, todavia, como melhor se justifica no contexto do presente Acordão, nada obsta a que o tribunal conheça do mérito do recurso.
Com efeito, em sede de nulidade da sentença, sustenta o Recorrente que o Sr. Juiz a quo nela não conheceu das questões atinentes à alegada interrupção e suspensão do prazo prescricional, o que inquinaria a sentença com o aludido vício de omissão de pronúncia – art. 615º, n.º 1 al. d)- do CPC.
Todavia, uma vez que as questões antes referidas (interrupção e suspensão do prazo de prescrição), só colhem sentido de ser conhecidas no âmbito da própria excepção de prescrição, conheceremos, em primeiro lugar, da dita exceptio e, nesse contexto, se necessário, da questão da nulidade da sentença.
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Dito isto, cumpre conhecer da excepção de prescrição.
Decidindo.
Na sentença recorrida sustentou-se a procedência da excepção de prescrição nos seguintes termos: « Como bem assinala o Autor na sua resposta, o objectivo visado com a instauração da presente acção é o da restituição de documentos, alegadamente enviados aos responsáveis da empresa Construções CC, Ld.ª em 12 de Agosto de 1991, pretendendo-se ainda, paralelamente, que sejam os Réus condenados no pagamento de uma indemnização por danos morais causados pela não devolução atempada dessa documentação.
Ao caso em apreço aplica-se o prazo ordinário da prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º, do Código Civil.
Por outro lado, pretendendo o Autor a devolução de documentos seus que alegadamente enviou a terceiros, a contagem desse prazo de prescrição deverá iniciar-se no momento em que esses documentos deixaram de estar na sua posse e ingressaram na esfera de disponibilidade dos respectivos destinatários, ou seja, de acordo com a alegação constante da petição inicial, em 12.08.1991.
Este raciocínio serve ainda para o pedido indemnizatório formulado, em virtude do seu fundamento também se reconduzir à não devolução dos documentos em questão.
Ora, tendo como referência aquela data, verifica-se que, na altura em que deu entrada em juízo a petição inicial (28.06.2012), há mais de 10 meses que já se encontrava integralmente decorrido o supra aludido prazo de 20 anos.
Consequentemente, tratando-se de um prazo de prescrição comum, terá de se considerar extinto o direito que o Autor pretendia fazer valer e totalmente improcedente a presente acção
A prescrição (extintiva) consiste na perda ou extinção de um direito disponível, ou não declarado, por lei, isento de prescrição, por virtude do seu não exercício durante certo período de tempo - cfr. art. 298º.
Conforme é lição pacífica da doutrina, a prescrição consiste no instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem em virtude do seu não exercício durante um determinado período de tempo fixado na lei. Vide, neste sentido, por todos Manuel de Andrade, “ Teoria Geral da Relação Jurídica ”, Almedina, 1987, pág. 445.
Segundo a doutrina dominante, o fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo fixado por lei.
Na lição do Il. Professor – e acolhida pela generalidade da doutrina e jurisprudência –, para além da consideração de uma actuação negligente do titular do direito, que inculcaria a ideia da renúncia ao direito ou, até, de uma censura pela incúria do credor ao exercitá-lo, estão ainda associadas à prescrição outras considerações de certeza ou segurança jurídica, que exige que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre elas se criando expectativas e organizando plano de vida, se mantenham, considerações de protecção dos devedores contra as dificuldades de prova do cumprimento a que estariam sujeitos no caso de serem demandados muito para lá da data da constituição do crédito e, ainda, considerações no sentido de exercer um certo «estímulo educativo» sobre os titulares dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação. Vide, neste sentido, por todos, Almeida Costa, “ Direito das Obrigações ”, Almedina, 11ª edição, 2008, pág. 1120-1123, A. Menezes Cordeiro, “ Tratado de Direito Civil ”, I – Parte Geral, Tomo IV, Almedina, 2007, pág. 160-162 e AC STJ de 26.02.2004, processo n.º 03B798, relator Araújo de Barros, in www.dgsi.pt .
Este conjunto de considerações tem conduzido, aliás, ao nível de outras legislações europeias, a um acentuado encurtamento dos prazos de prescrição, em especial do prazo ordinário de prescrição, como dá nota Júlio Gomes, in “ Comentário... ”, cit., pág. 754-755. Veja-se os casos citados da lei civil italiana e suíça em que os prazos de prescrição ordinária foram reduzidos para 10 anos e da legislação alemã em que o dito prazo foi reduzido para 3 anos, embora, neste último caso, com significativas limitações.
A prescrição, todavia, como se sabe, não opera ipso iure, antes, para ser eficaz, tem de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita – cfr. art. 303º.
Por outro lado, invocada, de forma procedente, a prescrição, tem «o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito.» - cfr. art. 304º, n.º 1.
Trata-se assim, a prescrição, de uma causa extintiva das obrigações civis ou perfeitas, transformando-as em obrigações meramente naturais – Vide, neste sentido, Almeida Costa, op. cit., pág. 1121.
No caso concreto em apreço, como se evidencia do relatório acima efectuado, vieram os RR. BB invocar expressamente a prescrição do direito do Autor, prescrição que o Sr. Juiz a quo veio a julgar procedente com o argumento essencial de que entre a data em que o Autor ficou desapossado dos documentos em apreço (recibo da avença e comprovativos das despesas com deslocações, alojamento, refeições e telecomunicações), enviados a acompanhar a carta de 12.08.1991, dirigida à sociedade “ Construções CC, Lda. ” – vide doc. n.º 4 junto com a p.i. – e a data de propositura da presente acção já havia decorrido um período superior a 20 anos, razão porque, à luz do prazo de prescrição ordinário previsto no art. 309º do Cód. Civil, o direito do Autor se mostrava prescrito.
Ora, com o devido respeito por opinião em contrário, não podemos acompanhar a posição do Sr. Juiz a quo.
Vejamos.
Como referiu o Autor na sua petição inicial e na sua réplica, e aliás, é salientado também pelo Sr. Juiz a quo na sentença em apreço, por via da presente acção não visa o Autor o pagamento do valor da avença de Julho de 1991 ou o pagamento das despesas efectuadas no exercício das suas funções, naquele período temporal.
A finalidade ou pretensão do Autor é outra, qual seja a de, enquanto proprietário de determinados documentos (recibo de avença e comprovativos de despesas efectuadas) exigir, por esta via judicial, a entrega dos mesmos dos ora RR. enquanto seus possuidores ou «responsáveis» pela respectiva guarda e conservação, e, ainda, o pagamento de uma indemnização por (alegados) prejuízos sofridos em consequência da não restituição dos ditos documentos.
Digamos, portanto, que o que está em causa é uma «típica» acção reivindicativa, embora com a particularidade de ter ela por objecto documentos que (alegadamente) os RR. terão na sua posse ou que deverão manter, e que, por isso, estariam obrigados a entregar ao ora Autor, como proprietário dos mesmos.
Ora, perante esta pretensão e respectiva causa de pedir, e independentemente de o Autor não explicitar mínimamente qual o exacto interesse (concreto e merecedor de tutela jurídica) que pretende acautelar com a obtenção de tais documentos – documentos com mais de 20 anos .... –, certo é que o que está em causa nos autos, à luz da causa de pedir e do pedido, é a propriedade de tais documentos e a inerente entrega dos mesmos contra quem (alegadamente) os terá na sua posse ou está obrigado a conservar/guardar e, por via disso, estará também vinculado a proceder à respectiva restituição.
Porém, sendo assim, como é, logo se alcança que o direito de propriedade do Autor não pode estar sujeito ao prazo prescricional invocado na decisão em apreço.
Com efeito, como já acima se referiu, a prescrição consiste na perda ou extinção de um direito disponível, ou não declarado, por lei, isento de prescrição, por virtude do seu não exercício durante certo tempo – cfr. art. 298º, n.º 1.
Em suma, como resulta do citado preceito, não estão sujeitos a prescrição pelo seu não exercício durante certo período de tempo, os direitos indisponíveis ou aqueles que a lei declare isentos de prescrição.
Ora, como prevê expressamente o n.º 3 do mesmo art. 298º, «os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem...» (sublinhado nosso)
Vale por dizer que, de acordo com a própria ressalva do n.º 1 do art. 298º, o direito de propriedade não está sujeito a prazo de prescrição, nomeadamente ao prazo de prescrição ordinário previsto no art. 309º.
Neste sentido, referem A. Varela/P. Lima, “ Código Civil Anotado ”, Volume I, Coimbra Editora, 4ª edição, 1987, pág. 272, «quanto ao direito de propriedade, a sua imprescritibilidade resulta da imprescritibilidade da acção de reivindicação (cfr. art. 1313º).»
No mesmo sentido, refere Pedro Pais de Vasconcelos, “ Teoria Geral do Direito Civil ”, Almedina, 7ª edição, 2014, que «a prescrição aplica-se a todos os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição. São imprescritíveis e indisponíveis os direitos de personalidade, pela sua própria natureza, e são também insusceptíveis de prescrição os direitos reais de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície e servidão.» Vide, ainda, no mesmo sentido, Júlio Gomes, op. cit., pág. 741-742, L. Carvalho Fernandes, “ Lições de Direitos Reais ”, Quid Iuris, 6ª edição, 2010, pág. 267, L. Menezes Leitão, “ Direitos Reais ”, Almedina, 2009, pág. 264 e A. Varela/P. Lima, “ Código Civil Anotado “, III volume, Coimbra Editora, 2ª edição, 1987, pág. 117.
Em consequência, ainda que, apenas para efeitos de raciocínio, o Autor, durante 20 anos, não tivesse exercido qualquer direito sobre os aludidos documentos, nomeadamente reclamando-os de outrem, sempre esse seu direito de propriedade sobre os mesmos não se mostrava prescrito e, portanto, sob essa perspectiva não podia o direito do Autor à entrega dos documentos julgar-se extinto por prescrição, pois que esta figura, como acima exposto, não é aplicável ao caso concreto dos autos, em que está em causa, repete-se, apenas e só a entrega de documentos de que o Autor se arroga proprietário e que (alegadamente) estarão na posse dos ora RR. ou que estes terão de conservar e guardar, obrigando-se a restituí-los ao Autor se este o exigir.
Sendo assim, como se julga, ter-se-á de concluir que a excepção de prescrição tem, em contrário do decidido, que improceder na estrita medida em que, como exposto, ela não é aplicável ao direito (de propriedade) que, por via da presente acção, se pretende exercer.
A questão pode colocar-se em outra sede, qual seja a de conservação e guarda da escrita comercial da sociedade “ Construções CC, Lda. ” e se estes deveres são «intemporais» ou, ainda, em sede de responsabilidade pessoal de ex-gerentes e ex-liquidatário de sociedade comercial extinta.
Porém, estas outras questões extravasam já o objecto do recurso e em nada contendem com a excepção de prescrição, que, como se expôs, não se verifica.
E, em consequência, sendo improcedente, como é, a dita excepção de prescrição, mostra-se prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo Recorrente quanto às alegadas causas de suspensão ou interrupção do prazo prescricional, pois que são elas irrelevantes ou dispiciendas para o conhecimento da excepção de prescrição e atenta a sua sobredita improcedência – cfr. art. 608º, n.º 2 do NCPC.
De facto, em face da improcedência da excepção de prescrição, mostra-se prejudicado o conhecimento das alegadas nulidades da sentença por omissão de pronúncia, nulidades que, como já acima exposto, se reportavam ao não conhecimento de causas interruptivas ou suspensivas da prescrição. É que, sendo nosso julgamento que não existe a aludida prescrição extintiva, seria, de todo, inútil conhecer das causas interruptivas ou suspensivas da mesma.
Nestes termos, e sendo este o objecto do recurso (como decorre das conclusões do apelante e das questões debatidas nos autos), deverá a presente apelação proceder, prosseguindo os autos os seus termos, se inexistirem outras razões que a tal obstem.


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IV. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e devendo os autos prosseguir os seus termos, como exposto.
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Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Guimarães, 8.10.2015
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PROCESSO N.º 2687/12.2YXLSB.G1

Sumário:
1. Peticionando o Autor a entrega de documentos (recibo e comprovativos de despesas) de que se arroga proprietário, ao exercício desta pretensão reivindicativa não é aplicável qualquer prazo de prescrição, nomeadamente o prazo ordinário de prescrição – art. 1313º do Cód. Civil.
2. Improcedendo a excepção de prescrição, é, de todo inútil, conhecer-se das nulidades da sentença por omissão de pronúncia quanto a eventuais causas interruptivas ou suspensivas do prazo prescricional, ficando a dita questão prejudicada em termos de seu conhecimento.
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Dr. Jorge Seabra
Dr. José Amaral
Drª Maria Dolores Silva