Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
444/13.8TBAVV.G1
Relator: EDGAR GOUVEIA VALENTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Sendo a Ré uma entidade privada que foi chamada a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas (abastecimento de água e saneamento públicos) através de um contrato administrativo (in casu, de concessão), com a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo, pelo que as suas acções e omissões se devem integrar e ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo e assim, considerando que os Autores pretendem ser ressarcidos com vista a receberem uma indemnização em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da Ré em consequência de uma actividade por ela desenvolvida na qualidade de concessionária do abastecimento de água e saneamento públicos (mais especificamente na actividade de construção das infra-estruturas destinadas àqueles fins), conclui-se que a sua eventual responsabilização, por actos e omissões decorrentes dessa sua actividade, se insere no âmbito de aplicação do artº 1°, n° 5 da Lei 67/2007 e, consequentemente, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer do pleito (artº 4°, n° 1, alínea i) do ETAF).
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
1 – Relatório.
C.. e mulher M.. (AA) intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra Águas.., (R), pedindo o seguinte:
A - Declarar-se que os AA são legítimos proprietários das águas captadas no poço aludido no artº 1º da petição inicial (PI);
B - Declarar-se que os AA são donos dos canos de uma polegada que conduzem as águas do dito poço até à casa de habitação de que são proprietários, referida no artº 3º da mesma PI;
C - Condenar-se a R a repor, substituindo-as por outras novas de uma polegada, as canalizações inutilizadas e destruídas, instaladas ao longo da berma direita, considerando o sentido Arcos – Ponte de Lima, ao km 67,200 da E.N. 202, na extensão de cerca de 30m, desde as Alminhas da Srª da Piedade até ao ponto onde flecte para atravessamento pelo sub-solo da faixa de rodagem daquela EN 202 até à entrada da horta propriedade de M.., situada junto à berma direita da referida estrada ou por outro trajecto que venha a ser considerado mais adequado desde que tenha o seu início junto às referidas Alminhas de Nª Srª da Piedade e o seu termo à entrada da horta daquela M..;
D - Condenar-se a R a pagar aos autores a indemnização, por danos materiais e morais já sofridos do montante de € 45.000,00, além dos danos vincendos que ainda decorrem até à reposição das referidas canalizações, a liquidar posteriormente;
E - Condenar-se ainda, a R nas custas.
Para o efeito, alegam, em síntese que [1], por escrito particular de 22.08.1995 o A adquiriu a M.. e mulher M.. a água de um poço já explorada num terreno de que os vendedores eram donos, sito no referido lugar de Piedade e o direito de exploração de mais águas no subsolo, na distância de 3 m e largura de 1,5 m na direcção do caminho norte a poente, e desde aquela data os autores encontram-se na fruição daquelas águas, utilizando-as para uso doméstico da sua casa e para rega dos legumes, árvores de fruto, relva e jardim anexos à sua habitação. Mais alegam que as obras de encanamento de tais águas através das bermas e faixa de rodagem da EN 202 foram devidamente autorizadas e licenciadas pela autoridade competente – então Direcção de Estradas do Distrito de Viana do Castelo e actualmente Estadas de Portugal, E.P. – através do diploma de licença nº 105 emitido em 04.02.1996 e paga a taxa devida.
Afirmam também que em data que ao certo se ignora mas que se supõem ser em princípios ou meados do ano de 2009, a R procedeu à execução do subsistema de abastecimento de águas de São Jorge – Arcos de Valdevez a montante de Nogueira – Viana do Castelo, e ao proceder à instalação de tais condutas, ao km 37.600 da referida E.N., destruiu e inutilizou os canos que conduziam as águas dos AA para o seu prédio.
Assevera que, com a descrita actuação da R, o A sofreu danos patrimoniais e morais de que pretende ser indemnizado na quantia de € 25.000,00, ou seja, à razão de € 5.000,00 € ano, e que tiveram os AA igual sofrimento e revolta ao verem o tanque que propositadamente construíram na horta para represamento de tais águas, completamente vazio e a horta, o jardim, a relva e os arbustos a morrerem de sede por falta de rega.
Citada, a R veio contestar, onde, além do mais, peticiona que deve o tribunal a quo declarar-se absolutamente incompetente e absolvê-la da instância pois a matéria em causa pertence ao contencioso administrativo.
Alega para tanto, e em síntese, que a Sociedade R foi constituída pelo DL nº 41/2010, de 29.04, mediante a fusão das sociedades “Águas do Cávado, S. A.”, “Águas do Minho e Lima, S.A.” e “Águas do Ave, S. A.” (artº 4º, 1) sendo que os direitos e obrigações destas últimas sociedades, após a sua extinção por fusão, se transmitiram para a, aqui, R, com efeitos a partir de 04.07.2010.
Para tanto, e previamente à publicação daquele diploma legal, aquelas três Sociedades, através dos seus órgãos próprios – a Assembleia Geral – e estando representada a totalidade dos respectivos capitais sociais, aprovaram por unanimidade (a) – a criação do sistema multimunicipal de abastecimento de água e saneamento do noroeste em substituição dos geridos até aí pelas três outras sociedades; e (b) – a constituição, por DL, da Sociedade “Águas.. S.A.”, aqui R, mediante a fusão das sociedades “Águas do Cávado, S. A.”, “Águas do Minho e Lima, S. A.” e “Águas do Ave, S. A.” para gerir aquele último sistema multimunicipal.
A Sociedade assim criada, e, aqui R, sucedeu, por isso, em todos os direitos e obrigações que integravam o património de todas e de cada uma daquelas Sociedades, designadamente, o da “Águas do Minho e Lima, S. A.”, sociedade esta, “Águas do Minho e Lima, S. A.”, que, por sua vez, fora constituída pelo DL nº 158/2000, de 25.07, no âmbito do seguinte enquadramento legal:
O Decreto-Lei nº 372/93, de 29.10, constatada a necessidade de se promover uma verdadeira indústria da água (e do tratamento de resíduos sólidos), que supõe “... a definição de uma estratégia rigorosa que acautele os interesses nacionais, possibilite o aumento do grau de empresarialização no sector (...) e permita a aceleração do ritmo de investimento”, promoveu a alteração da Lei de Delimitação dos Sectores (Lei nº 46/77, de 08.07), passando a permitir o acesso às actividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, e de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, em regime de concessão, a empresas que resultem da associação de entidades do sector público, ainda que com outras entidades privadas, com a condição de as primeiras manterem uma posição maioritária no capital social dessas empresas.
Na decorrência dessa alteração legislativa, e reunidas que se mostraram as necessárias condições, consagrou-se, legislativamente, o regime legal da gestão e exploração de sistemas que tivessem por objecto aquelas actividades.
Assim, o DL 379/93, de 05.11, veio definir o referido regime legal, distinguindo os sistemas municipais dos sistemas multimunicipais, e estatuindo os princípios informadores desse regime: (a) – prossecução do interesse público;(b) – carácter integrado dos sistemas; e(c) – eficiência.
O citado DL, desde logo, criou o Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Minho-Lima, para captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes dos municípios de Arcos de Valdevez, Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Ponte de Lima, Valença, Viana do castelo e Vila Nova de Cerveira. (artº 1º)
Por sua vez, os DL nºs 319/94, de 24.12 e 162/96, de 04.09, vieram definir, respectivamente, para a captação e distribuição de água e para a recolha, tratamento e rejeição de efluentes, o quadro legal concretizador das opções legislativas subjacentes aos diplomas anteriormente citados, consagrando-se, aí, um quadro legal, de carácter geral, contendo os princípios gerais do regime jurídico de constituição, exploração e gestão daqueles sistemas multimunicipais, criados ou a criar, quando atribuídos por concessão a empresa pública ou a sociedade de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos.
Clarificou-se que as actividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público bem como as de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, têm a natureza de serviço público e são exercidas em regime de exclusivo com base num contrato de concessão celebrado entre o Estado e as empresas concessionárias.
No objecto da concessão foi incluída, para além da exploração e gestão do sistema multimunicipal, a concepção, construção, extensão, reparação, manutenção, renovação e melhoria das obras e equipamentos necessários à realização e desenvolvimento daquelas actividades. Finalmente, em anexo a tal diploma legal, foram publicadas as Bases do contrato de concessão.
Então e posteriormente, o DL 158/2000, de 25.07, veio, designadamente: (a) constituir a Sociedade requerida “ÁGUAS.., S. A.” cujos estatutos foram publicados em anexo ao mesmo diploma legal; e (b) adjudicar-lhe a concessão da exploração e gestão do supra identificado sistema multimunicipal.
O contrato de concessão, mediante o qual foi atribuída à Sociedade a concessão da exploração e gestão daquele sistema multimunicipal, foi outorgado em 18.09.2000.
Tal Sociedade, nos termos do diploma que a criou, regia-se por ele, pela lei comercial e pelos seus estatutos. Por outro lado, só tinha como accionistas pessoas colectivas de direito público e revestia a forma de sociedade comercial anónima. O seu capital era, assim, totalmente público. De facto, eram seus accionistas originários a “IPE- ÁGUAS DE PORTUGAL, SGPS, S. A.”, com 75,8% do capital social com direito a voto, e os Municípios abrangidos pelo sistema que, no seu conjunto, detêm 24,2% do capital social, com direito a voto.
Estes elementos caracterizadores da Sociedade, que também são os da R, ligam-se ao disposto no DL nº 558/92, de 17.12, que veio rever o regime jurídico do sector empresarial do Estado. O artº 3º deste último diploma, qualifica como empresas públicas “as sociedades constituídas nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas estaduais possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma directa ou indirecta, uma influência dominante em virtude de alguma das seguintes circunstâncias: (a) detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto; (b) direito de designar ou de destituir a maioria dos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização.”
Conjugadas todas aquelas disposições legais – sendo certo que o accionista maioritário é uma “SGPS”, ainda, detida a 100% pelo Estado – tem de concluir-se que a Ré tem a natureza jurídica de “Empresa Pública”, nos termos e para os efeitos do disposto da legislação referida.
Nessa qualidade, aquela Sociedade integrava o sector empresarial do Estado, o que passou a suceder, agora, com a R, integra o sector empresarial do Estado bem como a administração indirecta do Estado.
Como se viu, a ora R rege-se pelo diploma legal que a criou, pela lei comercial e pelos seus estatutos como sucedia com extinta Sociedade “Águas.., SA”. O diploma legal e os estatutos, bem como o contrato de concessão, consagram algumas limitações ao exercício das funções dos seus órgãos sociais que ficaram dependentes de autorização e ou aprovação do Concedente.
É, pois, claro que o Estado, enquanto Concedente, tutela a actividade da Sociedade R (e fazia-o, do mesmo modo, relativamente Sociedade “Águas.., SA”) e dos seus órgãos sociais. Quer pela definição do seu objecto social, quer pela prévia aprovação dos seus mais importantes instrumentos de acção.
Por outro lado, o accionista Estado é o accionista maioritário, com mais de 50% do capital, pelo que ele pode determinar o sentido de todas as deliberações, designadamente, a eleição dos membros do Conselho de Administração e do seu presidente.
A Sociedade R é, assim, uma empresa pública, sob a forma de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, pertencente ao Sector Empresarial do Estado, integrando a sua administração indirecta, com a natureza de concessionária de serviço público.
Foi no exercício da sua supra identificada actividade que, após a tramitação do indispensável concurso público, a extinta Sociedade “Águas.., S. A.”, em 17.06.2005, celebrou com o chamado um acordo nos termos do qual o mesmo se obrigou a executar os trabalhos de construção civil e a fazer os fornecimentos da obra pública, denominada “Execução do Subsistema de Abastecimento de Água de S. Jorge, Parte 1 - Condutas Adutoras a Montante da Derivação para o Ázere, Parte 2 – Reservatórios de Touvedo e Vila Chã e Parte 3 – Estação Elevatória de Vila Chã (Lote A) / Parte 1 – Condutas Adutoras desde a derivação para o Ázere até Nogueira (Lote B).
Tal obra constitui, por isso, uma obra pública nos termos previstos nos artigos 1º, 2º, 3º, e 3º, 1, h) e 2, do DL 59/99, de 02.03. (diploma que regulava, na altura, o regime jurídico das empreitadas de obras públicas)
Nos presentes autos, a aqui R é demandada por pretensa responsabilidade civil extracontratual face aos AA.
Sendo a R uma empresa pública que integra a administração indirecta do Estado, a verdade é que a apreciação de tal litígio, nos termos do disposto no artigo 4º, 1, g) e i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo DL nº 13/2002, de 19.02, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Este Tribunal sempre seria incompetente em razão da matéria, para apreciar tal pedido contra a R, incompetência que tem carácter absoluto (artº 101º, do CPC), o que determina a absolvição da R desta instância (artº 105º, 1 daquele Código).
*
Foi então proferido despacho judicial, onde se julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do TJ de Arcos de Valdevez para conhecimento e decisão do peticionado pelos AA, absolvendo-se, em consequência, a R da instância, ficando prejudicado o demais peticionado (contestação por impugnação da R e, no âmbito desta, o pedido de intervenção principal provocada)
Não se conformando com este despacho, do mesmo recorreram os AA, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões (transcrição):
“1.ª - Com as alterações do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) foi alargado o âmbito da jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil de pessoas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por normas de direito público ou de direito privado.
2.ª - A Ré não é, contudo, uma pessoa colectiva de direito público mas antes de direito privado – uma sociedade anónima, embora de capitais exclusivamente públicos.
3.ª - A natureza de sociedade comercial de direito privado da Ré intui-se logo pela sua denominação – Águas.., S.A. e vem expressamente referida no Decreto-Lei nº 4/2008 de 29 de Abril que a criou quando, no seu artº 4º - nº 2, se estabelece “a sociedade rege-se pelo disposto no presente Decreto-Lei, nos seus estatutos e na lei comercial”.
4.ª - Também no que toca à fiscalização dos actos da sociedade, e tal como sucede com as sociedades comerciais anónimas, o artº 24º dos estatutos da Ré constantes do anexo àquele Decreto-Lei estipulam que tal fiscalização compete a um conselho fiscal e a um revisor oficial de contas ou sociedade de revisores oficiais de contas.
5.ª - Assim sendo, os únicos Tribunais competentes para conhecer dos pedidos formulados na acção são os Tribunais Judiciais (outrora designados por Tribunais Comuns) e não os Tribunais Administrativos, nos termos do art.º 64.º do Cód. proc. Civil.
6.ª – Ao decidir em contrário o M.mo Juiz Recorridos violou, por erro de interpretação e aplicação, o cit. art.º 64.º do Cód. Proc. Civil e o art.º 4.º - n.º 1, als. a), g) e i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).”
Concluem pedindo que seja dado provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida, declarando-se materialmente competente em razão da matéria o Tribunal Judicial de Arcos de Valdevez para conhecer dos pedidos formulados na acção.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2 - Objecto do recurso.
Uma vez que o objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação, importa conhecer das questões suscitadas pelos recorrentes, bem como as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras. Desta forma, considerando as mencionadas conclusões, cumprirá, in casu, apreciar se o Tribunal da Comarca de Arcos de Valdevez é materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelos AA.
3 – Fundamentação.
3.1 – Síntese da decisão recorrida (transcrição):
“No caso concreto sub judice, atenta a causa de pedir constante na petição inicial, nos presentes autos discute-se da eventual responsabilidade civil extra-contratual da Ré “Águas.., S.A.” por alegados prejuízos sofridos pelos Autores na sequência de alegadamente a Ré ter procedido à execução do subsistema de abastecimento de águas de São Jorge – Arcos de Valdevez a montante de Nogueira – Viana do Castelo, e ao proceder à instalação de tais condutas, ao km 37.600 da referida E.N. a Ré destruiu e inutilizou os canos que conduziam as águas dos Autores para o seu prédio.
Alicerçado nos factos integrantes da causa de pedir, os Autores peticionam na ação a condenação da Ré, além do mais, no pagamento de uma indemnização por danos morais e por danos patrimoniais.
Ora, estabelece o artigo 4.º, n.º 1, als. g) e i) (âmbito da jurisdição) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado pela Declaração de Rectificação n.º 14/2002, de 20 de Março; Declaração de Rectificação n.º 18/2002, de 12 de Abril; Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro; Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro, Lei n.º 1/2008, de 14 de Janeiro; Lei no 2/2008, de 14 de Janeiro, Lei n.º 26/2008, de 27 de Junho, Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31 de Julho, e Lei n.º 55- A/2010, de 31 de Dezembro), que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (...) g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (...) i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.”
Assim, em face da relação jurídica material em debate, do pedido dela emergente, da tendo em conta a natureza jurídica da Ré (empresa pública, concessionária de serviço público) e considerando o teor do citado normativo, forçoso será de concluir que o Tribunal Judicial da Comarca de Arcos de Valdevez é incompetente em razão da matéria para conhecer da ação instaurada contra a Ré “Águas.., S.A.”, pois competentes para dela conhecerem são exclusivamente os Tribunais Administrativos e Fiscais, razão pela qual essa exceção dilatória deve ser declarada e a referida Ré absolvida da instância.
De acordo com o artigo 6.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”
In casu, a verificada existência da exceção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal Judicial não se mostra passível de sanação pelas partes litigantes ou pelo Tribunal.”
3.2 - Conhecimento da questão.
A competência, como campo jurisdicional atribuído ao tribunal para conhecer de determinada questão que lhe é colocada, determina-se pela causa de pedir e pelo pedido formulados pelo autor. [2]
Os tribunais judiciais comuns são competentes para apreciar um acção quando, por exclusão de partes, a competência não se encontre atribuída a “outra ordem jurisdicional”, nomeadamente, a um tribunal administrativo. (artº 18º, nº 1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e artº 64º do Código de Processo Civil)
O que significa dizer que a competência material dos tribunais judiciais se determina através de um critério de competência residual.
Aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 10.03.2005, processo 21/03 [3], “o que determina a competência material dos Tribunais Administrativos para o julgamento de certas acções, é o elas versarem sobre conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas, pelo que a declaração dessa competência pressupõe que se julgue que o conflito nelas desenhado é um conflito de interesses públicos e privados e que o mesmo nasceu e se desenvolveu no âmbito de uma relação jurídica administrativa.”
Por seu turno, relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração.” (Freitas do Amaral in Direito Administrativo, Vol. III, pág. 439).
Aos tribunais administrativos e fiscais, de acordo com o preceituado no artº 212º, nº 3 da Constituição, compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas, administrativas e fiscais.
Na sua esteira dispõe o artº 1º, nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
A competência dessa jurisdição encontra-se ainda prevista e regulada nos artigos 3º, 4º e 44º do ETAF e artigos 18º, 20º e 21º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA).
O artº 4º do ETAF, sob a epígrafe “âmbito da jurisdição”, estatui, no seu nº 1, que:
“Compete aos tribunais da jurisdição administrativa… a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo… ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo…;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo…, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.»
Por seu turno, determina o artº 1°, n° 5 da Lei 67/2007 de 31.12 [4] que as disposições que em tal lei regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo.
“Quer dizer esta disposição, em relação às entidades privadas, faz aplicar-lhes o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, no que toca a acções ou omissões levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público» ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo». Ou seja, desde que as pessoas colectivas de direito privado (e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares) actuem em moldes de direito público, desenvolvam uma actividade administrativa, deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.” [5]
Como diz Carlos Alberto Cadilha, “...tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas”.[6]
Deste modo, o mencionado artº 1º, n° 5 da Lei 67/2007 vem dar expressão normativa prática e complementar ao princípio enunciado no artº 4º, n° 1, alínea i) do ETAF acima citado quando atribuiu competência aos TAF para conhecer da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Emergem daquela disposição (artº 1°, n° 5) dois factores determinativos do conceito de “actividade administrativa”: O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
No caso dos autos, a R é uma entidade privada que foi chamada a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas (abastecimento de água e saneamento públicos) através de um contrato administrativo (in casu, de concessão), com a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.
O DL nº 158/2000
de 25 de Julho, criou (artigo 1º), nos termos e para os efeitos do nº 2 do artº 1º do DL nº 379/93, de 05.11, o Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Minho-Lima para captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes dos municípios de Arcos de Valdevez, Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Ponte de Lima, Valença, Viana do Castelo e Vila Nova de Cerveira. De acordo com o disposto no artigo 2º, nº 1, o “Sistema” poderá ser alargado a outros municípios, mediante reconhecimento de interesse público justificativo, sendo que (nº 2) o interesse público referido no número anterior é reconhecido por despacho do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, sob proposta da sociedade concessionária do Sistema (…). Nos termos do artº 3º, nº 1, é constituída a sociedade Águas do Minho e Lima, S. A. [7] De acordo com o artº 6º, nº1, o exclusivo da exploração e gestão do Sistema é adjudicado, em regime de concessão, a Águas do Minho e Lima, S. A., por um prazo de 30 anos, sendo que (nº 3) a exploração e a gestão abrangem a concepção, a construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção. Nos termos do artº 7º, nº 3, as tarifas a cobrar aos utilizadores serão aprovadas pelo concedente, após emissão de parecer do Instituto Regulador de Águas e Resíduos. Por último, a concessão a que o próprio DL se refere rege-se por este, pela Lei nº 88-A/97, de 25.07, pelas disposições aplicáveis dos DL números 379/93, de 05.11, 319/94, de 24.12 e 162/96, de 04.09, pelo respectivo contrato de concessão e, de um modo geral, pelas disposições legais e regulamentares respeitantes às actividades compreendidas no seu objecto.
É ainda de mencionar que, nos termos do referencial normativo do citado diploma (DL 379/93, de 05.11) é, nos termos do artº 2º, nº 1, entre outros, princípio fundamental do regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais, (a) o princípio da prossecução do interesse público.
Flui como meridiana clareza deste acervo normativo que a actividade a desenvolver pela R no âmbito da concessão em causa se desenvolve num quadro de índole pública, independentemente da sua qualificação como empresa pública. À entidade privada concessionária do abastecimento de água e saneamento público é deferida a colaboração com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública.
Assim, através de um contrato administrativo, as acções e omissões da R concessionária se devem integrar e ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo.
Deste modo, considerando que os AA. pretendem ser ressarcidos com vista a receberem uma indemnização, em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da R em consequência de uma actividade por ela desenvolvida na qualidade de concessionária do abastecimento de água e saneamento públicos (mais especificamente na actividade de construção das infra-estruturas destinadas àqueles fins), conclui-se que a sua eventual responsabilização, por actos e omissões decorrentes dessa sua actividade, se insere no âmbito de aplicação do artº 1°, n° 5 da Lei 67/2007 e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes para conhecer do pleito (artº 4°, n° 1, alínea i) do ETAF).
Consequentemente, nenhuma censura merece a decisão recorrida, que assim se confirmará.
4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso de apelação a cargo dos recorrentes, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com a tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Guimarães, 29 de Maio de 2014
Edgar Gouveia Valente
Paulo Barreto
Filipe Caroço
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[1] Reproduz-se aqui, com pequenas alterações, o relatório da decisão recorrida, pois retrata fielmente as pretensões das partes.
[2] Assim, Manuel de Andrade in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, página 91. Fundamentalmente no mesmo sentido, vide o Acórdão do STJ de 12.09.2013 proferido no processo 204/11.0TTVRL.P1.S1 e disponível em www.dgsi.pt: “É pacífico que esse pressuposto se afere pela forma como o autor configura a acção, sendo esta definida pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes, sem embargo de não estar o tribunal adstrito, neste domínio, às qualificações que autor e/ou ré tenham produzido para definir o objecto da acção.”
[3] Disponível em www.dgsi.pt.
[4] Normativo que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.
[5] Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15.10.2009 proferido no processo 025/09 e disponível em www.dgsi.pt, que ulteriormente seguiremos de perto.
[6] Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Coimbra Editora, 2008, página 49.
[7] Cujos direitos e obrigações vieram a ser transmitidos para a R, nos termos definidos pelo DL 41/2010, de 29.04 (e não, como seguramente por lapso, os recorrentes referem, o DL 4/2008).