Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
109/07.0TBPCR.G1
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: DOAÇÃO MODAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A cláusula modal, ou encargo modal é uma cláusula acessória típica dos negócios jurídicos que envolvem liberalidades e, embora constitua um dever jurídico, não corresponde a uma contraprestação.
2. Se numa doação a donatária não cumprir o encargo modal que lhe foi imposto, os doadores poderão exigir o respectivo cumprimento, mas só poderão resolver o contrato se neste estiver prevista tal faculdade, não bastando provar-se que o contrato não teria sido celebrado se os doadores previssem que o encargo não seria cumprido.
3. Não havendo motivo para a revogação da doação por ingratidão, nem estiver prevista no contrato a faculdade de o mesmo ser resolvido por incumprimento do encargo modal, verificando-se este incumprimento, mas não se provando outras circunstâncias de que se possa concluir haver uma clamorosa ofensa aos princípios da boa fé e dos bons costumes e do fim social e económico do direito, a impossibilidade de resolução não constitui abuso de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO.

JR e esposa GM intentaram a presente acção declarativa com processo sumário contra MMR alegando, em síntese, que, por escritura pública de 11 de Maio de 2001 doaram um imóvel à sua filha, ora ré, com reserva de usufruto para os doadores e por conta das suas quotas disponíveis, com o encargo de a donatária lhes prestar assistência na doença, designadamente dispensando-lhes acompanhamento necessário, quer na sua residência, quer nas deslocações para receber assistência e tratamento médico, sendo que a ré, que à data da escritura residia com os autores no imóvel em causa, ausentou-se para França em Maio de 2006 e nunca mais prestou qualquer assistência aos autores, seus pais, apesar de estes terem necessitado e continuando a necessitar de auxílio para o acompanhamento médico e tratamento das várias doenças de que sofrem, o que é do conhecimento da ré, pelo que o comportamento desta integra uma violação das obrigações impostas aquando da celebração da escritura e constitui fundamento de resolução da doação ao abrigo do artigo 966º do CC, mesmo porque os autores nunca teriam aceite efectuar esta doação se soubessem que a ré não cumpriria os encargos a que a condicionaram, o que também é do conhecimento da ré, que não cumpriu os cumpriu e intencional e definitivamente e assim facultou aos autores a possibilidade de resolução, nos termos dos artigos 432º e 801º do CC.
Concluíram, pedindo que seja declarada resolvida a doação e em consequência que se ordene a restituição do prédio ao património dos autores e o cancelamento de todos os registo que tenham sido feitos com base na referida escritura.
Não foi apresentada contestação, na sequência da citação edital da ré e da citação do Ministério Público, nem, posteriormente, pelo cônjuge da ré MT, que veio a ser chamado para intervir ao lado desta.
Saneados os autos, procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.
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Inconformados, os autores interpuseram recurso, que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.
Os recorrentes alegaram, formulando as seguintes conclusões:
1- O facto de na escritura de doação com encargos não constar expressamente o direito de resolução não impede o doador de a resolver com base em incumprimento culposo dos encargos, devendo, para tanto, atender-se às circunstâncias do caso concreto e ao que foi efectivamente contratado entre as partes.
2- Quando se refere no art. 966 do CC que “o doador ou os seus herdeiros também podem pedir a resolução da doação da doação fundada no não cumprimento dos encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato” tal apenas significa que do contrato celebrado entre as partes deve poder resultar o direito à resolução (ou seja, extinção do contrato por incumprimento culposo ou impossibilidade absoluta), não resultando daí que tal efeito tenha de constar expressamente do texto do contrato ou do documento que o formaliza.
3- Se o legislador quisesse que o direito de resolução constasse expressamente do texto do contrato tê-lo-ia dito referindo-se a “documento”, tal como sucede nos arts 1549 e 1723 alínea c) do Cód. Civil.
4- Salvo melhor opinião, entendem os autores que o art. 966 do CC não exige que o direito de resolução conste do documento escrito que formaliza o contrato, bastando que face ao contrato celebrado tal direito possa ser exercido nos termos gerais.
5- Por outro lado, entendem os autores que a exigência de o direito de resolução constar do documento ou texto do contrato visa proteger terceiros adquirentes, por forma a que estes tenham conhecimento de que a doação poderá ser resolvida, situação que os afectará.
6- O disposto no art. 966 do Cód. Civil ao estabelecer que o doador ou os seus herdeiros também podem pedir a resolução da doação quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato deve ser interpretado restritivamente, aplicando-se apenas nas relações com terceiros, mas já não nas relações imediatas, ou seja, entre o doador e o donatário, à semelhança, aliás, do entendimento que vem sendo preconizado na interpretação do disposto no artigo 1723 alínea c) do C.C.
7- Quando se estiver apenas no domínio das relações imediatas, ou seja, quando estiver apenas em causa a relação contratual entre o doador e o donatário e o incumprimento dos encargos, não há razão para a exigência de que o direito de resolução conste do documento ou texto do contrato, até porque, a maioria das vezes, tal imposição pode deteriorar ou minar a relação de confiança mútua que está na génese da celebração da doação com encargos.
8- Numa situação de doação com encargos, estando apenas em causa o cumprimento dos encargos estabelecidos no contrato e continuando o prédio na esfera patrimonial do donatário, o direito de resolução deve ser apreciado à luz das regras que disciplinam o cumprimento/incumprimento dos contratos, independentemente de o direito de resolução constar ou não do texto do contrato.
9- Exigir que o direito de resolução conste do documento ou do texto para que o doador possa resolver a doação com base no incumprimento culposo dos encargos assumidos e aceites pelo donatário, quando o prédio ainda não se tenha transmitido para terceiro, constitui e constituirá, muitas vezes, uma situação de injustiça, ética e moralmente censurável e que excede manifestamente os limites impostos pela boa fé e bons costumes, que o Direito não pode permitir.
10- Conforme consta da escritura pública de fls… dos autos os autores declararam doar à ré a raiz da sua casa de habitação, com o encargo de esta lhes prestar assistência na doença, designadamente dispensando-lhes o acompanhamento necessário, tanto na residência deles como quando tenham de se deslocar, a fim de receber assistência médica ou hospitalar, tendo a ré declarado aceitar a doação nos termos exarados.
11- A ré aceitou a doação com os encargos aí estipulados ou contratados, encargos que integram e fazem parte essencial do contrato de doação celebrado entre as partes, constituindo o seu não cumprimento culposo uma questão de incumprimento contratual, sujeito à disciplina do artigo 801 do Cód. Civil.
12- Os encargos assumidos e aceites pela ré donatária constituem, no caso em apreço, uma verdadeira contra-prestação que a ré não cumpriu culposamente, conforme resulta dos factos provados.
13- Tendo a ré donatária faltado culposa e intencionalmente ao cumprimento das obrigações que assumiu e aceitou como contrapartida da doação feita pelos autores, assiste a estes o direito de resolver o contrato nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 801 do CC.
14- Mesmo que se entenda que os encargos aceites pela ré donatária não constituem verdadeiras contraprestações, mas obrigações acessórias ou laterais, tais encargos não deixam de constituir um verdadeiro dever jurídico podendo integrar, como no caso em apreço, uma autêntica obrigação do donatário.
15- “E como se sabe, a violação dos deveres laterais ou deveres acessórios de conduta – integrante da chamada obrigacional complexa ou relação contratual e essenciais ao correcto processamento da obrigação principal, atento o princípio geral da boa fé estabelecido no art. 762 do Cód. Civil – também acarreta, pela sua gravidade, as mesmas consequências que o incumprimento das obrigações principais” – Ac. RL de 17/12/2009; Proc. 4738/05.8 TBAMD.L1-8 in www.dgsi.pt.
16- No caso dos autos, não tendo a ré donatária cumprido, porque não quis, as obrigações de prestar assistência e auxílio que foram essenciais e determinantes da vontade dos autores e integrantes da relação contratual, assiste aos doadores (autores) o direito de resolver o contrato em questão, devendo, assim, a acção ser julgada provada e procedente.
17- No caso sub judice, a manutenção da doação como válida, face ao incumprimento culposo e voluntário das obrigações e encargos que a ré assumiu e aceitou como contrapartida pela doação, constitui e representa uma situação de abuso de direito, violando o sentido de justiça e dos fins sociais e económicos que presidiram à doação.
18- Face à redacção e ao conteúdo da escritura de fls… resulta que os autores doaram à ré a raiz da sua casa de habitação, com o encargo de esta lhes prestar assistência na doença, dispensando-lhes o acompanhamento necessário para todas as deslocações, doação que a ré aceitou nesses termos.
19- Os autores fizeram a doação nesses moldes porque eram e são pessoas doentes e porque precisavam de ajuda de terceira pessoa para os assistir na doença e auxiliar em todas as deslocações, o que era e é do conhecimento da ré, sua filha, que tinha consciência do estado de saúde dos seus pais e das suas necessidades.
20- Sabia, pois, a ré que o encargo de assistir na doença os autores e de os acompanhar em todas as suas deslocações e em tudo o que fosse necessário foi e era a contrapartida da doação feita, que a ré expressamente aceitou.
21- Tendo-se provado que a ré se ausentou para França, não tendo mais prestado auxílio ou assistência aos autores, seus pais e alheando-se completamente da vida destes, não se preocupando com a sua doença, nem com a satisfação das suas necessidades, tendo consciência do seu estado de saúde e das suas necessidades diárias, a ré violou culposa, voluntaria e intencionalmente as obrigações assumidas.
22- Manter-se como válida a doação efectuada e impedindo-se os autores de a poderem resolver, neste caso concreto, em que a ré donatária culposa, voluntária e intencionalmente deixou de cumprir as suas obrigações, alheando-se por completo dos autores, do seu estado de saúde e das suas necessidades (que estiveram na base e na génese da doação celebrada) viola o mais elementar sentido de justiça e a consciência ético-jurídica dominante, o princípio da boa fé e os bons costumes.
23- Não é justo que os autores não possam resolver a doação celebrada com a ré quando esta faltou e falta culposamente ao cumprimento das obrigações e encargos que assumiu e que foram essenciais e determinantes para o “animus donandi” dos autores, doação que os autores fizeram com o fim e objectivo de a ré os assistir e cuidar na doença e em todas as suas necessidades, fim que ficou frustrado com o incumprimento culposo da ré.
24- A manutenção da doação como válida (não podendo ser resolvida pelos autores), apesar do incumprimento voluntário da ré e do seu comportamento de total desinteresse e alheamento dos autores, do seu estado de saúde e das suas necessidades, viola as regras da boa fé, dos bons costumes e do fim que presidiu à celebração da doação, constituindo uma verdadeira situação de abuso de direito, que não pode ser validada, nem sancionada.
25- Assim, também com base no instituto do Abuso de Direito por parte da ré, deve ser reconhecido e declarado que aos autores assiste o direito de resolver o contrato de doação em causa.
26- Deve, pois, revogar-se a douta sentença recorrida, julgando-se a acção provada e procedente, condenando-se a ré nos pedidos formulados na p.i.
27- Subsidiariamente, deve ser anulada a decisão proferida em 1ª instância, com vista à ampliação da matéria de facto alegada nos artigos 34, 41 e 43 da p.i. por ser essencial para a boa decisão da causa, nomeadamente para a questão da anulação ou da resolução do contrato de doação com base no disposto nos arts 252 e 437 do Cód. Civil.
28- A douta decisão recorrida violou e viola por errada interpretação e aplicação o disposto nos arts 966 e 334 do Cód. Civil e 511 nº1 do CPC.
NESTES TERMOS
e mais de direito aplicáveis que V. Exªs melhor e doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso interposto, revogando-se a douta decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que julgue a acção provada e procedente.
SUBSIDIARIAMENTE
deve anular-se a douta decisão de 1ª instância, aditando-se à base instrutória a matéria alegada nos arts 34, 41 e 43 da p.i., ordenando-se a repetição do julgamento para apuramento da matéria de facto ampliada, com as legais consequências.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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As questões a decidir são:
I) Se há direito à resolução da doação pelo incumprimento do encargo imposto à donatária na respectiva escritura.
II) Se deverá anular-se a decisão e submeter à produção de prova os factos constantes nos artigos 34º, 41º e 43ºda PI (se os doadores apenas celebraram a escritura mediante o encargo em causa, se nunca a teriam celebrado se previssem que o encargo não seria cumprido, se a ré tem conhecimento destes factos).
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FACTOS.
Os factos considerados provados pela sentença recorrida são os seguintes:
1. Por escritura pública de doação, celebrada no dia 11 de Maio de 2001, no Cartório Notarial de Paredes de Coura, os autores declararam que, com reserva de usufruto para eles doadores e por conta das suas quotas disponíveis, doam à sua filha, aqui ré, o prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão, primeiro andar e rossios, destinados a habitação e comércio, com superfície coberta de 223 m2 e descoberta de 200 m2, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Paredes de Coura, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes de Coura, sob o nº…, inscrito na matriz sob o artigo …, com o encargo da donatária lhes prestar assistência na doença, designadamente dispensando-lhes o acompanhamento necessário, tanto na residência deles como quando tenham de se deslocar, a fim de receber assistência médica ou hospitalar, tendo a ré declarado aceitar a doação nos termos exarados.
2. A autora nasceu no dia 1 de Março de 1931 e o autor no 6 de Abril de 1931.
3. Aquando da celebração da escritura pública referida em 1., a autora residia, juntamente com os autores, no imóvel referido em 1.
4. Em meados de 2006, a ré ausentou-se para França não tendo mais prestado qualquer auxílio ou assistência aos seus pais, autores.
5. O autor sofre de patologia osteo-articular, renal, cardio-respiratória, é hipertenso e diabético, o que implica cuidados diários, nomeadamente a nível da alimentação.
6. Sendo que por vezes sofre alguma alteração súbita dos valores de glicemia, inclusive perdendo momentaneamente a visão, carecendo de cuidados médicos imediatos.
7. O autor sofreu duas intervenções cirúrgicas, uma ao estômago e outra à próstata.
8. Periodicamente, o autor tem de se deslocar a consultas médicas de especialidade, nomeadamente ao Hospital de Fão e a um consultório médico em Vila Nova de Cerveira.
9. O autor tem de se deslocar regularmente ao Centro de Saúde de Paredes de Coura, local onde é efectuado o controle geral do seu estado de saúde, nomeadamente tensão arterial, valores de glicemia, peso e todos os demais factores clínicos que possam implicar agravamento das doenças de que é portador.
10. Após a ausência da ré, entre outros, o autor teve de se deslocar ao Centro de Saúde de Paredes de Coura nos dias 25 de Maio de 2006, 28 de Novembro de 2006, 31 de Janeiro de 2007, 27 de Março de 2007 e 5 de Junho de 2007.
11. A autora sofre de patologia cardio-circulatória, osteo-articular e senilidade, necessitando de acompanhamento médico regular e vigilância doméstica constante, atentas as perdas de memória momentâneas e alteração súbita do estado psíquico.
12. Não obstante o estado de saúde dos autores, a ré alheou-se completamente da vida dos seus pais, não se preocupando com a sua doença nem com a satisfação das suas necessidades.
13. Sendo que, após a ausência da ré toda a assistência que os autores necessitaram e necessitam foi prestada, como ainda é, por terceiras pessoas que não aquela.
14. Após a ré ter-se ausentado para França os autores necessitaram, como ainda necessitam, de constante assistência na doença, nomeadamente quem lhes administre a medicação, confeccione refeições adequadas ao seu estado de doença, auxilie a sua higiene e lhes preste os demais cuidados de saúde.
15. Após a ausência da ré, os autores necessitaram, como ainda necessitam, de acompanhamento nas suas deslocações ao médico, ao hospital e ao Centro de Saúde.
16. A ré tem consciência do estado de saúde e necessidades diárias consequentes dos autores.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Resolução do contrato de doação com o fundamento no incumprimento do encargo imposto à donatária.
Conforme resulta dos factos provados, os autores celebraram com a ré um contrato de doação, previsto no artigo 940º do CC, que o define como “…o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.
Trata-se assim de um contrato, ou negócio jurídico bilateral, uma vez que pressupõe duas vontade negociais – a proposta de doação e a aceitação, caducando a primeira se não houver aceitação, nos termos do artigo 945º do CC – mas o contrato é unilateral, porque, embora contendo duas vontades negociais, só acarreta obrigações para uma das partes – por contraposição aos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, que acarretam obrigações para ambas as partes, ligadas entre si por um nexo de causalidade (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, 268).
Porém, permite o artigo 963º do CC que, na doação (e o artigo 2244º noutros negócios jurídicos que constituem liberalidades), as partes aponham uma cláusula modal – ou modo, ou encargo – que é uma cláusula acessória típica dos negócios que envolvam liberalidades, em que o doador (ou disponente) impõe ao donatário (ou beneficiário da liberalidade) a obrigação de actuar de uma certa forma, no interesse do doador, de terceiro ou do próprio donatário (cfr. Mota Pinto, obra citada, 454).
Embora constitua um verdadeiro dever jurídico que o doador pode exigir judicialmente do donatário (artigos 965º e 817º do CC), a cláusula modal não constitui uma contraprestação do donatário, não estando ligada à obrigação do doador por nexo de causalidade.
Por outro lado, dispõe o artigo 966º do CC que “o doador, ou os seus herdeiros, também podem pedir a resolução da doação, fundada no não cumprimento dos encargos, quando esse direito lhes seja conferido pelo contrato”.
Trata-se de uma norma especial que afasta o regime geral previsto no artigo 801º do CC e por força da qual a violação da cláusula acessória, que impõe o dever acessório do donatário de cumprir um encargo, só permite a resolução do contrato pelo doador se as partes lhe atribuíram esse efeito no contrato.
Ou seja, se houver incumprimento desta cláusula acessória do contrato, só é possível ao doador resolver o contrato, se esse direito estiver previsto no mesmo, caso contrário, a única faculdade de que o doador dispõe é o de exigir o cumprimento do encargo, não podendo operar a resolução e não sendo aplicável o regime do artigo 801º do CC (cfr. Mota Pinto, obra citada, 458, Pedro Martinez “Da Cessação do Contrato”, 2ª edição, 294, P. Lima e A. Varela, CC anotado, volume II, 271 e 272, ac. RC 24/05/2005, RP 23/02/2006, 8/07/2010, STJ 7/10/2010, todos em www.dgsi.pt).
No presente caso, ficou provado que os autores, na qualidade de doadores, doaram à ré um prédio, impondo-lhe o encargo de esta os assistir na doença, o que a ré aceitou, nada tendo sido previsto para o caso do incumprimento deste encargo.
Provou-se também que a ré, claramente, incumpriu o encargo, pois ausentou-se deixando de prestar assistência aos autores, apesar de estes dela necessitarem e de esse facto ser do conhecimento da ré.
Contudo e como bem considerou a decisão recorrida, não tendo as partes contemplado no contrato a possibilidade de resolver o contrato por incumprimento do encargo imposto à ré, não poderão os autores resolver o contrato.
Alegam os autores que, face a este incumprimento da ré, a impossibilidade de resolução do contrato constitui um abuso de direito por parte desta.
Mas não têm razão.
Estabelecendo o artigo 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito, tal abuso só se verifica quando a actuação do titular é clamorosamente censurável e injusta.
Por muito censurável que se apresente o comportamento da ré, o mesmo não chega sequer para integrar a situação que, ao abrigo do artigo 970º do CC, permite a cessação do contrato de doação por revogação.
Com efeito, prevê o referido artigo 970º que a doação é revogável por ingratidão do donatário, contendo o artigo 974º a definição de ingratidão para este efeito, a qual se verifica nos casos em que o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador, ou quando se verifique algumas das ocorrências que justificam a deserdação, ou seja, os casos previstos nos artigos 2034º e 2166º, que manifestamente não ocorrem nos presentes autos.
O conceito de “ingratidão” exigido por lei é muito mais exigente e específico do que o significado corrente e eventualmente subjectivo que esta palavra tem.
Por isso, mesmo que, perante os doadores, a conduta da ré se revista de ingratidão, a lei exige critérios objectivos para aferir essa ingratidão: ou as partes a definem logo no contrato, prevendo a possibilidade de resolução no caso de incumprimento, ou se verificam os requisitos objectivos e exigentes que a lei impõe para que se considere verificada a “ingratidão” que permite a revogação.
No caso dos autos não se verificou nenhum destes dois casos, provando-se apenas que, com a sua conduta, a ré incumpriu o encargo imposto na doação.
Mas, para além deste incumprimento, não se provou qualquer outra circunstância que permita concluir que os princípios impostos pela boa fé e bons costumes e que o fim social e económico do seu direito foram clamorosamente ofendidos e excedidos.
Entender-se que o simples incumprimento do encargo sem possibilidade de resolução do contrato pelo doador constitui uma situação de abuso de direito por parte do donatário equivaleria a tornar absolutamente inúteis as disposições legais acima indicadas, que determinam que a resolução só pode ter lugar se for contemplada no contrato e que a revogação só tem lugar nos casos muito exigentes de indignidade e deserdação.
Não têm, portanto os doadores, ora autores, face aos factos provados, o direito de resolver o contrato.
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II) Produção de prova relativamente aos factos alegados nos artigos 34º, 41º e 43º da PI.
Pretendem os autores, subsidiariamente, que seja anulada a decisão e sejam submetidos a prova os factos constantes nos artigos 34º, 41º e 43º da PI, onde se alega que os autores só fizeram a doação por causa do encargo imposto à ré e que nunca o teriam feito se soubessem que esta não o cumpriria, o que era do conhecimento da ré.
Porém, a prova destes factos não poderia alterar o sentido da decisão.
Isto porque, mesmo provando-se que a cláusula modal foi a causa impulsiva do contrato, só poderá haver resolução se esta foi prevista no contrato (cfr. neste sentido Mota Pinto, obra citada, página 458).
E o conhecimento da ré deste facto também não fará diferença.
Isto porque a resolução constitui uma forma de cessação do contrato que opera com base em factos posteriores à respectiva celebração, ou seja, em factos que ocorrem na vigência do contrato (cfr. A, Varela, “Das Obrigações em Geral”, 5ª edição, página 273), como é o caso da resolução por incumprimento dos contratos em geral, previsto no artigo 801º do CC.
Deste modo, ao celebrar um contrato, é manifesto que qualquer outorgante provavelmente não o celebraria se soubesse que haveria incumprimento e é igualmente manifesto que o outro contraente tem conhecimento deste facto.
Mas, se houver incumprimento, não é esse sentimento do 1º contraente e esse conhecimento do 2º contraente que determinam a resolução, mas sim o incumprimento em si.
No caso da doação com encargo em que este não vem a ser cumprido e não foi prevista a resolução, esta não é possível, mas não é o facto de os doadores não a terem celebrado se soubessem que o incumprimento teria lugar, nem o conhecimento do donatário deste facto que permitem a resolução.
Só se houvesse um vício na formação da vontade, contemporâneo à celebração do contrato é poderia haver lugar à nulidade ou anulabilidade do contrato, nos termos dos artigos 240º e seguintes do CC.
Mas nada foi alegado nesse sentido, baseando-se os recorrentes apenas no incumprimento do contrato posteriormente à sua celebração, não sendo invocado factos que pudessem levar a concluir que a ré tivesse já a intenção de não cumprir e tivesse usado de qualquer artifício para determinar os autores à outorga da doação.
Sendo irrelevantes para a decisão, por si só, os factos alegados nos artigos 34º, 41º e 43º da PI, improcede o recurso também nesta parte.
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DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelos apelantes.
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2011-03-22