Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ANTÓNIO SOBRINHO | ||
Descritores: | DANOS NÃO PATRIMONIAIS DANOS PATRIMONIAIS | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/27/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE A APELAÇÃO DA RÉ - PROCEDENTE A APELAÇÃO DO AUTOR | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1. Os padecimentos, angústias e contrariedades que o lesado sofreu são indemnizáveis a título de danos não patrimoniais, abrangendo o denominado dano biológico, por, no caso sub judice, se traduzir essencialmente numa afectação da potencialidade física, psíquica ou intelectual do lesado (necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia), para além do agravamento natural resultante da idade. 2. Mas o dano biológico pode ser indemnizável como dano patrimonial nas situações em que a lesão potencia futuramente, durante a vida activa do lesado, uma perda da sua capacidade de ganho. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório; Recorrente (s) e recorridos: - “R... – Companhia de Seguros de ... (ré), S.A.” e António F... (autor); Vara Mista de Braga – acção ordinária. ***** António F... demandou na presente acção de condenação a “R... Companhia de Seguros de ..., S.A.”, reclamando desta o pagamento da quantia de 45.000,00 Eur. (quarenta e cinco mil euros), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, e da quantia mensal de 3.325,00 Eur. (três mil, trezentos e vinte e cinco euros), a título de renda vitalícia e enquanto perdurar a necessidade de custear despesas relativas a medicamentos, assistência médica e assistência domiciliária permanente, a primeira acrescida de juros de mora, taxa anual em vigor, a contar da citação, até integral pagamento. Alegou, em síntese, que ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo de matrícula RO-..., objecto de seguro na ré, e o autor, enquanto peão. Foi responsável o condutor do aludido veículo automóvel, por o ter atropelado numa passadeira, causando-lhe danos corporais. A Ré contestou, assumindo a responsabilidade civil emergente da circulação do RO-... e aceitando que a responsabilidade pelo acidente descrito na petição pertenceu ao seu segurado, porém não aceita o valor peticionado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, afirmando desconhecer factos atinentes à vida pessoal do autor. Saneado o processo e seleccionados os factos provados e a provar, o autor procedeu à ampliação do pedido no início da audiência de julgamento, alegando que após a propositura da acção já suportou mais despesas, sendo 2.721,74 Eur. (dois mil, setecentos e vinte e um euros e setenta e quatro cêntimos) de tratamentos, medicamentos, fraldas, transportes e outros, e 36.769,00 Eur. (trinta e seis mil, setecentos e sessenta e nove euros) pela assistência de saúde domiciliária, que suporta desde Novembro de 2008. Realizou-se a audiência de julgamento, decidindo-se, a final, sobre a matéria de facto. Seguidamente foi proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, se condenou a Ré a pagar ao autor a quantia de 79.490,74 Eur. (setenta e nove mil, quatrocentos e noventa euros e setenta e quatro cêntimos), respeitante à indemnização em dinheiro relativa ao ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida do valor que o autor vier a suportar, a partir de Fevereiro de 2010 até final da sua vida, relativo a assistência domiciliária permanente, deduzidos os valores já pagos mensalmente por força do arbitramento de reparação provisória. A quantia fixada vence juros, à taxa legal em vigor de 4%, a contar desde a citação da ré para a acção – a 19.10.2007, até efectivo e integral pagamento. Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso a ré (recurso independente) e o autor (recurso subordinado), de cujas alegações se extraem, em súmula, as seguintes conclusões: A – RECURSO DA RÉ: 1.ª A matéria de facto constante dos pontos 35 e 36 foi incorrectamente julgada, a qual devia ter sido considerada não provada. 2.ª – O tribunal fundou a sua convicção na audição da testemunha Maria C... e cujo depoimento – artigo 24º da base instrutória – se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, de 16:09:01 a 16:24:17. «11ª - Como o presente depoimento foi objecto de gravação, aqui se dando o mesmo integralmente por reproduzido para os devidos e legais efeitos, vejamos se o Tribunal andou bem ou mal ao fundar as respostas positivas à matéria factual aqui alegada, plasmando a sua convicção no depoimento da testemunha como o fez. Entendemos que não! 12.ª - Desta feita, violou, assim, o disposto nos artigos 552º a 567º do Código de Processo Civil, preceitos que se encontram inseridos em secção cuja epígrafe é “Prova por confissão das partes” a qual, por incidir exclusivamente sobre factos desfavoráveis à parte (cfr. art.º 352.º do Código Civil), é inadmissível quanto a factos alegados pelo depoente e em que este baseia a sua pretensão. 13.ª - Assim, não podia o Tribunal a quo aproveitar o depoimento prestado pelo Autor, face à ausência de outro depoimento e dar como provados os factos vertidos e acima indicados, apenas com o seu depoimento, desde logo, porque o mesmo nunca em momento algum pode ser considerado – e não é – principio de prova, sob pena de violar a substância endógena em que aquela figura assenta, subvertendo-se o principio do ónus da prova, plasmado no artigo 342º do Código Civil. 14.ª - Ao agir como agiu e ao permitir o depoimento de parte do Autor, considerando o seu teor para, assim, dar como provado determinados factos alegados pelo Autor no seu petitório que não foram sustentados por outro meio de prova, o Tribunal a quo violou, ainda, os princípios que dimanam do art. 20.º da Lei Fundamental. 15.ª - Do que vai acima exposto, é apodíctico afirmar-se que, em nossa modesta opinião e salvo o devido respeito, ao decidir como efectivamente decidiu, e ao valorar o depoimento do Autor para dar como provados o artigo 24.º da base instrutória, mormente no que à fixação dos actos da causa diz respeito, o tribunal não procedeu à melhor e mais correcta valoração das provas produzidas. 16.ª - Perante tudo o exposto, entende-se que a indemnização por danos não patrimoniais é exagerada, devendo, antes, situar-se no máximo € em 15.000,00. 17.ª - Do que acima vai exposto, é pacifico concluir-se que, ao decidir nos termos da douta Sentença em recurso, o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação e aplicação, sendo manifesto o erro na apreciação da prova, tudo a determinar os termos do art. 712 nº1 als. a) e b), nº2, 3, 4 e 5 do CPC e bem assim dos art. 496. e 494.º do CC e 494º e 495 º do CPC. » (sic). B – RECURSO DO AUTOR: 1 - O apelante formulou nos presentes autos pedido de indemnização no montante global de € 45000,00, como forma de compensação dos danos não patrimoniais e do dano funcional ou biológico sofridos, correspondendo a quantia de € 30000,00 aos primeiros e a quantia de € 15000,00 aos segundos, que qualificou na categoria de danos patrimoniais. 2- A douta sentença recorrida fixou essa indemnização no montante de € 30000,00, considerando que nesse montante já se encontra integrado o dano funcional resultante da incapacidade geral fixada, o qual foi considerado, também, como um dano de natureza não patrimonial. 3- Independentemente da sua qualificação jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano moral – ou eventualmente como «tertium genus», como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afectação da saúde e plena integridade física do lesado, 4- “o dano biológico, com todo um cortejo de incapacidades funcionais provenientes das sequelas de um acidente de viação, representando uma alteração morfológica do lesado, limitativa da sua capacidade de viver a vida como vivia antes do mesmo acidente, por violação da sua personalidade humana, traduz-se aqui num prejuízo concreto, consistente na privação ou diminuição do gozo de bens espirituais, insusceptíveis de avaliação pecuniária, como a saúde, a inteligência, os sentimentos, a vontade, a capacidade afectiva e criadora, a liberdade, a reserva da privacidade individual e o prazer pela vida e pelos bens materiais” – cfr. Ac da RP, de 07-04-1997, in CJ Ano XXII – 1997 – Tomo II, Pág. 204. 5- Dano esse cuja verificação não depende do exercício de qualquer actividade profissional remunerada, porquanto incide sobre a valoração da incapacidade do lesado, não como trabalhador, mas como pessoa que se encontra afectada por incapacidade fisiológica significativa. 6- Sendo certo que, “a mera afectação da pessoa do ponto de vista funcional, isto é, sem se traduzir em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios” – cfr. Ac. STJ, de 09-10-2008, proferida no proc. 08B2686; Ac STJ de 19-05-2009, proferida no proc. 298/06.0TBSJM.S1, in www.dgsi.pt. 7- O dano biológico sofrido pelo apelante consiste, assim, na perda genérica de potencialidades funcionais, na degradação do padrão de vida do apelante, na penosidade acrescida e, até, na privação no exercício das tarefas do dia a dia constatados nos autos, danos esses que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito. 8- A indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pelo apelante deverá compensá-lo da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua vivência actual, de modo a compensar as deficiências funcionais que constituem sequelas das lesões sofridas, por forma a compensar um mesmo nível de vida de que se viu absolutamente privado. 9- Indemnização esta que deverá ser atribuída a par da que é devida a título de danos não patrimoniais pelas dores físicas e sofrimentos psíquicos (pretium doloris). 10- Cumpre, assim, rememorar os factos descritos sob os nºs 13 a 26 da matéria de facto provada, onde se descrevem as lesões que o A. sofreu, os tratamentos a que foi submetido, e as sequelas que aquelas lesões deixaram, quer ao nível físico, quer psíquico, bem como os transcritos sob os nºs 30 e 31, que retratam o estado de saúde daquele antes do sinistro, factos esses que aqui se dão por reproduzidos para os devidos e legais efeitos. 11- Do mesmo modo, assume relevância o relatório médico-legal, que aponta para um “quantum doloris” de grau 4, numa escala de 7, o que constitui um grau indicativo da grande intensidade de dor sofrida pelo apelante, bem como a existência de uma cicatriz em Z, do tipo cirúrgico, com cumprimento total de 17 cm, no ráquis, tratando-se de um dano estético indemnizável que, por recurso ao relatório médico-legal, aponta para o grau 4, numa escala de 7.. 12- Assume ainda particular relevo a condição actual do apelante, que passa a maior parte do tempo dos seus dias acamado, não se consegue manter de pé, necessita de cadeira de rodas para deambular, usa fraldas permanentemente, 13- tendo ficado abundantemente demonstrada a perda total de autonomia do apelante e a necessidade permanente de terceira pessoa para assegurar as suas necessidades básicas, como vestir-se, lavar-se, mudar fraldas, alimentar-se, acomodar-se na cama, deslocar-se na cadeira de rodas e demais tarefas básicas que não consegue efectuar sozinho. 14- A indemnização dos danos não patrimoniais e do dano funcional ou biológico, ainda que qualificada segundo uma perspectiva não patrimonial, por merecerem ambos a tutela do direito, deve ser fixada equitativamente pelo Tribunal, com base na ponderação dos factores previstos no art. 494.º – grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso. (cfr. art. 496.º e 562º do Cód. Civil). 15- Sendo certo que, as sequelas de que padece o apelante devem ser situadas e valoradas ao nível de uma pessoa de 80 anos que, até ao acidente, era saudável, activo, independente e alegre e que deixou, definitivamente, de poder executar um sem número de tarefas comuns, de fruir de uma forma normal a sua vida, para passar a aguardar penosamente pelo fim dos seus dias, 16- vivendo numa cama, triste, desinteressado, nervoso, e carecendo da assistência de terceiras pessoas para todos os seus actos, sendo ainda evidente que a tristeza que se apodera dos idosos em situação idêntica é responsável pelo acelerar do “terminus” da vida destes, por se considerarem como inúteis. 17- É ainda previsível que todo este sofrimento e a angústia pela sensação de dependência e de incapacidade se vá prolongar pela vida fora do apelante, agravando-se com a idade, o que também terá de ser levado em conta, sendo certo que já se passaram mais de quatro anos desde a data do acidente. 18- Ora, se é verdade que a vida é o bem supremo, em certa medida o apelante, ficando no estado em que as lesões e as sequelas o deixaram, perdeu algo que se aproxima daquele bem, devendo a indemnização pelos danos não patrimoniais aproximar-se àquela que usualmente é atribuída nas circunstâncias em que a vida se perde. 19- Tendo por razoável chamar à colação os valores que actualmente se atribuem pela perda do direito à vida (50.000 a 60.000 euros), deverá fixar-se a indemnização pelos danos não patrimoniais e pelo dano funcional ou biológico sofridos em consequência do acidente no montante peticionado de € 45000,00. 20- Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artºs 70º, 494, 496º e 562º do Cód. Civil. Termos em que, revogando a douta sentença recorrida, na parte em que condenou a apelada ao pagamento da quantia de € 30000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pelo apelante, e substituindo-a por outra que a condene no pagamento da quantia global de € 45000,00, a título de danos não patrimoniais e do dano funcional e biológico sofridos pelo apelante, Apresentou o recorrido/autor as respectivas contra-alegações, pugnando, além do mais, pela improcedência do recurso da ré. II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar; O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC). A – Recurso de Apelação da Ré: As questões suscitadas pela Recorrente radicam no seguinte: - Alteração da matéria de facto relativamente aos pontos de facto provados nºs 35º e 36º supra; - Montante da indemnização devida pelo dano não patrimonial; B – Recurso de Apelação do Autor: É a seguinte a questão a resolver: - Montante da indemnização devida pelo dano não patrimonial; Colhidos os vistos, cumpre decidir. III – Fundamentos; 1. De facto; A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte: 1. No dia 17 de Janeiro de 2006, pelas 16.30 horas, ao Km 63,5 da E.N 201, que liga Braga a Prado, em Real, Braga, ocorreu o atropelamento do autor. 2. Nele intervieram o próprio autor, que seguia como peão, e o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula RO-..., propriedade de João E..., naquele momento conduzido por Fernando T.... 3. No momento do acidente era de dia, o estado do tempo era de chuva e o piso encontrava-se molhado. 4. No local do embate a E.N 101 é ladeada por habitações e configura uma recta de boa visibilidade, com berma pavimentada, piso betuminoso e em regular estado de conservação, cuja faixa de rodagem, com 6,90 metros, permite a circulação de veículos em dois sentidos de trânsito. 5. Aquando do embate, atento o sentido de trânsito do veículo interveniente (Braga/Prado), logo após o cruzamento com a via que dá acesso à variante de Real e a Martim, em frente ao local de paragem de autocarro, existia uma passadeira destinada a permitir a passagem de peões, que se encontrava assinalada por marcação no pavimento bem como por sinais verticais indicadores de proximidade desse local. 6. No momento do embate, o autor fazia a travessia da faixa de rodagem pela aludida passadeira, no sentido nascente/poente, tendo já percorrido cerca de dois metros da faixa de rodagem. 7. O condutor do veículo deslocava-se na direcção Braga/Prado pela sua hemifaixa direita, a velocidade superior a 50 Km/hora, e não atentou na presença do autor que efectuava a travessia da passadeira à sua frente, por se encontrar no momento a rectificar o espelho retrovisor do veículo. 8. Em consequência daquela sua condução, que originou não se tivesse apercebido da presença do autor, que se encontrava à sua frente, o condutor do veículo não conseguiu imobilizá-lo em segurança. 9. E veio a embater com a parte da frente do RO no autor, assim o atropelando, na hemi-faixa direita. 10. Pela força do embate o autor foi projectado cerca de 10 metros para a frente e caiu desamparado no solo, na hemi-faixa direita de rodagem, atento o mesmo sentido de marcha, a cerca de 3,40 metros de distância da frente do veículo atropelante, que se imobilizou ao transpor totalmente a referida passadeira. 11. Na altura do acidente o autor tinha 80 anos. 12. A “R... – Companhia de Seguros de ..., S.A.” celebrou um contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0008..., por via do qual assumiu a responsabilidade pelo danos causados a terceiros, com a circulação do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula RO-..., propriedade de João E..., e que no momento do embate circulava sob a sua direcção efectiva e interesse. 13. Em consequência do embate e da queda o autor sofreu traumatismo crânio-encefálico, fractura das asas do ilíaco direito, factura dos acetábulos esquerdo e direito, fractura dos ramos iliosquiopúbicos bilateralmente e hematoma retroperitoneal (politraumatismos na anca e na bacia). 14. E que o obrigaram a internamento no Hospital de São Marcos, em Braga (para onde foi imediatamente transportado por ambulância), internamento que perdurou desde do dia do acidente até ao dia 1 de Março de 2006. 15. Durante aquele internamento, que se prolongou por 43 dias, foi o autor submetido a intervenção cirúrgica para tratamento das lesões sofridas, bem como s sujeitou a sessões diárias de tratamento conservador e fisiátrico, com tracção cutânea. 16. No dia da alta, a 1 de Março de 2006, foi o autor transferido para a Clínica de Santa Tecla, em Braga, onde se apresentou sem mobilização dos membros inferiores, trémulo dos membros superiores, com infecção urinária e algaliado, e escara de decúbito na região sagrada, lesões essas que resultaram directamente do acidente e motivaram novo internamento que se prolongou até ao dia 16 de Junho de 2006. 17. Durante o período em que esteve internado na referida clínica (108 dias), o autor recebeu novos cuidados clínicos, tendo sido submetido a tratamento de Medicina Física e de Reabilitação, em regime de duas sessões diárias, sendo ainda sujeito a nova intervenção cirúrgica reconstrutiva para tratamento de escara de decúbito na região sagrada, bem como tratamento clínico a infecção urinária e a colite isquémica entretanto ocorrida. 18. No dia 16 de Junho de 2006, data da cura clínica, foram-lhe diagnosticadas como sequelas permanentes protusão acetabular e fracturas viciosamente consolidadas dos ramos iliosquiopúbicos. 19. Daí resultando a incapacidade parcial permanente de 49,1%. 20. O autor não mobiliza os membros inferiores, não se consegue manter de pé, não consegue mexer-se na cama por forma, sequer, a mudar de posição, nem permanecer sentado a não ser na cadeira de rodas. 21. A qual se viu forçado a adquirir e utilizar com a ajuda de terceira pessoa – a qual apenas tolera por minutos dadas as dores que lhe são infligidas, passando a maior parte do tempo dos seus dias em cama articulada que, também, se viu forçado a adquirir. 22. O autor usa fralda, não consegue vestir-se ou despir-se, não sendo capaz de desenvolver quaisquer actividades, sejam as de lazer ou outras a que estava habituado e de que se viu privado. 23. O autor depende do apoio de terceira pessoa das 24 horas do dia para satisfação das suas necessidades vitais, nomeadamente nos cuidados requeridos pela sua situação de doença, no que se incluiu a manutenção física – e nos cuidados de higiene, mudança de fraldas, vestir-se, alimentar-se, acomodar-se na cama, deslocar-se em cadeira de rodas, bem como nas demais tarefas básicas que não consegue efectuar sozinho. 24. Na altura do embate, bem como nos dias subsequentes em que esteve internado, sofreu o autor a angústia de poder a vir falecer. 25. Durante todos o período de internamento, no tempo que mediou entre o acidente e a sua recuperação, viu-se o autor forçado a vários exames, consultas e tratamentos e reabilitações, no que se incluem duas intervenções cirúrgicas, actos estes que lhe causaram dores. 26. Dores que tem continuado e continuará a sofrer durante o resto da sua vida. 27. O autor é viúvo. 28. Aufere com único rendimento uma pensão de reforma, cuja quantia mensal ascendia a 190,56 (cento e noventa euros e cinquenta e seis cêntimos) em 2006, e a 218,59 Eur. (duzentos e dezoito euros e cinquenta e nove cêntimos) em 2008. (resposta aos quesitos 1.º a 16.º da base instrutória) 29. O autor reside e já residia antes do acidente com um sobrinho seu, António F..., que o vem ajudando. 30. Apesar de idade de 80 anos, o autor era robusto e sadio, sem qualquer deficiência física ou orgânica que lhe dificultasse a vida normal, capaz de reger a sua pessoa e bens. 31. Era pessoa alegre, activa, independente, com gosto no contacto e interacção com as pessoas e o mundo exterior, sentindo-se triste, desinteressado, introvertido e nervoso, por via do embate e lesões sofridas. 32. A ré efectuou o pagamento da despesa relacionada com o internamento na Clínica de Santa Tecla. 33. A 1 de Agosto de 2007 a ré pagou 3.085,16 Eur. (três mil e oitenta e cinco euros e dezasseis cêntimos) ao autor, relativos a despesas médicas e medicamentosas, material ortopédico, deslocações e outras suportadas por este último até tal data. 34. Necessitará ainda o autor, durante toda a sua vida, de custear a aquisição regular de medicamentos e de equipamentos e materiais relacionados com a sua condição, no que despenderá, em média, quantia não inferior a 120,00 Eur.(cento e vinte euros). 35. Por carecer o autor de assistência a efectuar por terceira pessoa nas 24 horas do dia, despenderá a quantia média mensal de 2.500,00 Eur. (dois mil e quinhentos euros) com tal despesa. (resposta aos quesitos de 18.º a 24.º da base instrutória) 36. Entre 12 de Outubro de 2007 e 19 de Outubro de 2009 o autor gastou 2.721,74 Eur. (dois mil, setecentos e vinte e um euros e setenta e quatro cêntimos) de tratamentos, medicamentos, fraldas, transportes e outros, e 36.769,00 Eur. (trinta e seis mil, setecentos e sessenta e nove euros) pela assistência de saúde domiciliária, que suportou entre Novembro de 2008 e Novembro de 2009. (matéria que resultou provada em audiência, e resultante da ampliação do pedido admitida por despacho não impugnado). ***** 2. De direito; Questão Prévia: Nas suas contra-alegações suscita o autor a questão de intempestividade do recurso de apelação da ré, com o fundamento de ter excedido o prazo de apresentação das alegações, em virtude de não ter manifestado o interesse em impugnar a matéria de facto. Vejamos. Sobre o prazo para alegações, o artº 698º, do CPC, estatui , numa primeira linha - no seu nº 1 - o prazo de 30 dias para o recorrente alegar por escrito. Caso o recorrente reaprecie a prova gravada, esse prazo passa a ser de mais 10 dias. Ou seja, impugnada a matéria de facto nas alegações de recurso, o prazo legal previsto é de 40 dias. Face ao texto da lei vertido em tal preceito, não se impõe ao recorrente que, em momento anterior ao decurso do prazo de 40 dias, manifeste, expressa ou tacitamente, que o recurso terá por objecto a reapreciação da prova gravada. O que é necessário, para beneficiar desse prazo de 40 dias, é que efectivamente no recurso interposto se impugne a matéria de facto. Outra interpretação daquele normativo traduz-se numa situação mais gravosa para o recorrente e não consentida legalmente, até porque privilegiaria uma justiça formal em detrimento de uma justiça material. Salvo o devido respeito e melhor opinião, não colhe o argumento de que, assim sendo, a regra transforma-se em excepção e vice-versa. Na verdade, a ratio legis daquele prazo - de 40 dias - é de se facultar ao recorrente que impugna a matéria de facto um prazo mais longo para a reapreciação da prova gravada. In casu, a recorrente não deixou de fazer essa reapreciação. Julga-se, pois, improcedente a questão prévia suscitada. A – Recurso da Ré: - Alteração da matéria de facto relativamente aos pontos de facto provados nºs 35º e 36º supra; Argumenta recorrente que os pontos de factos nºs 35 e 36 não se provaram. A factualidade em causa, considerada como provada pelo tribunal recorrido, é a seguinte: «35. Por carecer o autor de assistência a efectuar por terceira pessoa nas 24 horas do dia, despenderá a quantia média mensal de 2.500,00 Eur. (dois mil e quinhentos euros) com tal despesa. (resposta aos quesitos de 18.º a 24.º da base instrutória) 36. Entre 12 de Outubro de 2007 e 19 de Outubro de 2009 o autor gastou 2.721,74 Eur. (dois mil, setecentos e vinte e um euros e setenta e quatro cêntimos) de tratamentos, medicamentos, fraldas, transportes e outros, e 36.769,00 Eur. (trinta e seis mil, setecentos e sessenta e nove euros) pela assistência de saúde domiciliária, que suportou entre Novembro de 2008 e Novembro de 2009. (matéria que resultou provada em audiência, e resultante da ampliação do pedido admitida por despacho não impugnado)». Para fundamentar essa alteração, a recorrente questiona o conteúdo do depoimento da testemunha Maria C..., nomeadamente em termos de credibilidade, e o aproveitamento do depoimento prestado pelo autor, por confessar apenas factos que lhe são favoráveis. Do mesmo modo, foram mal avaliados os documentos juntos pelo autor na audiência de julgamento. Em suma, aduz o recorrente um erro de julgamento genericamente com base na prova testemunhal e documental. Convenhamos que esta argumentação não merece qualquer acolhimento pelas razões que infra analisaremos. Encontrando-se gravados os depoimentos prestados na audiência de julgamento e cumprindo a recorrente, nas suas alegações, o ónus imposto pelo artigo 690º-A do Código de Processo Civil (CPC), importa reapreciar a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, à luz dos elementos de prova existentes no processo, nos termos do art.712º, nº1 alínea a) e nº2 do mesmo Código. Como vem sendo salientado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a reapreciação da matéria de facto pela Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 712º do CPC, não pode confundir-se com um novo julgamento. Destina-se, essencialmente, à sanação de manifestos erros de julgamento, de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova. Acresce que, em matéria de valoração das provas, nomeadamente dos depoimentos e dos documentos em questão nos autos, o tribunal a quo aprecia-os livremente, por força do disposto no artº 655º, nº1, do CPC. Além disso, o mesmo tribunal recorrido, na parte relativa à decisão sobre a matéria de facto, observou adequadamente o comando do nº 2 do artigo 653º do CPC, explicitando, de forma exaustiva e consistente, os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, analisando criticamente as provas produzidas (de forma detalhada e reportada aos elementos de prova carreados para os autos, seja de natureza testemunhal, pericial ou documental ). Neste particular, destaca-se os seguintes excertos: « O Tribunal fundou a sua convicção por meio da análise crítica da prova produzida em audiência, considerando os documentos juntos aos autos no confronto com o relatório pericial elaborado no Gabinete Médico-Legal e com a prova testemunhal apresentada. (…) Quanto ao quesito 24º considerou o Tribunal o depoimento de Maria C... que emitiu e assinou os recibos juntos em audiência (fls. 146 a 155), cujo depoimento se nos afigurou credível e convincente, e a qual confirmou o teor daqueles mesmos documentos, mostrando conhecimento directo da situação pessoal do autor, por se tratar de uma das pessoas que lhe tem prestado diariamente cuidados domiciliários, e que concretizou em audiência, não tendo obviamente na causa qualquer interesse». Se é certo que a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional, ou discricionária, antes se traduzindo numa valoração objectivante, racional e crítica, que vai buscar às regras comuns da lógica, da experiência, do bom senso e, quando é o caso, da ciência, as ferramentas fundamentais e, simultaneamente, a sua legitimação ( Como se sublinhou no Acórdão da Relação de Lisboa de 19.09.2000, in CJ, IV, 186, «porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.» Em sentido idêntico veja-se o Acórdão da mesma Relação, de 27.03.2001, in CJ, III, 86, quando adverte que a utilização da gravação dos depoimentos em audiência não modela de forma diversa o princípio ínsito no art. 655º do CPC, nem dispensa as operações de carácter racional ou psicológico que geram a convicção do julgador, nem substituem esta convicção por uma fita gravada.) – importa também ter presente que essa reapreciação pelo tribunal superior não se destina pura e simples a substituir a convicção do tribunal recorrido por uma outra. O que se impõe é que o tribunal ad quem afira se a convicção a que chegou o tribunal a quo é consentida, permitida pelos meios de prova produzidos em audiência, segundo as regras processuais vigentes, e se, em última instância, não foi cometido nenhum erro manifesto ou clamoroso. Dito de outro modo, na esteira do Ac. do STJ de 10.5.07 (Proc. 06B1868): “O tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova) mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Claro – repete-se – que por mais sugestiva ou adequada que seja ou pareça a fundamentação do tribunal recorrido, o tribunal tem de conhecer as provas produzidas, tem de ouvir as cassetes (nos pontos indicados, ao menos) sempre, porque só a partir dessa audição – e do confronto dela com as mais provas - pode aferir dessa adequação ou razoabilidade. Mas se esta existe não há que alterar o que quer que seja, não há que substituir a razoabilidade afirmada por uma outra razoabilidade à qual necessariamente faltariam alguns elementos de suporte – já se falou nisso acima - que ajudaram a estruturar a primeira. Estaria a substituir-se uma razoabilidade por uma outra, todavia mais débil.”
|