Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1403/07-1
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – Na decisão administrativa em recurso, no que concerne à materialidade dos factos que são imputados à arguida, não foi feito o exame crítico da prova a que alude o nº 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal.
II – Simplesmente, não se vislumbra a necessidade de tal exame:
- Primeiro porque o citado artigo 58° o não exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas (no sentido de que a fundamentação das decisões administrativas se basta com a indicação das provas, não sendo exigível o seu exame crítico, contrariamente ao que ocorre com as decisões judiciais, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10-7-2003, procº nº 903/03, rel. Maria Augusta).
- Depois, porque a decisão administrativa que aplica uma coima não é uma sentença nem se lhe pode equiparar pelo que não há que chamar à colação o artigo 374° do Código de Processo Penal (cfr. v.g. os Acs da Rel. de Coimbra de 13-1-1999, recº nº 955/98, de 17-3-1999, recº nº 11/99, ambos in www.trc.pt).
- Finalmente, porque os requisitos consignados no citado artigo 58° visam claramente assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.
III – Por isso, sublinham os Consº Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58° “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercido desses direitos”(Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3° ed., Lisboa, 2006, pág. 387)
IV – Mesmo aqueles para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa constitui nulidade nos termos do artigo 379° do Código de Processo Penal, são forçados a admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença.
V – 0 que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa”(Ac. da Rel. de Coimbra de 4-6-2003, CoI. De Jur. Ano XXV!lI, tomo 3, pág 40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 23-4-2000, procº nº 1223/03, in www.trc.pt).
VI – Acresce que, devendo a fundamentação ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir, no caso dos autos, a questão se reveste extrema simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se tome clara para a arguida como de resto, para qualquer cidadão: foi-lhe imputado o facto de a mesma funcionar com o estabelecimento de restauração e bebidas há cerca de um ano, sem possuir a respectiva licença de utilização
VII – No caso concreto, a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e as razão por que tais factos lhe foram imputados, sendo certo, por outro lado que, é obvio, face ao seu teor, qual o processo lógico da formação daquela decisão Administrativa.
VIII - Improcede, por conseguinte, a pretendida nulidade por falta de exame crítico da prova nos termos do artº 374º nº 2 do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
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I- Relatório
No recurso de contra-ordenação n.º 1693/06.OTBFLG do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, por despacho de 30 de Janeiro de 2007 foi julgada nula a decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal de Felgueiras em 27 de Dezembro de 2005, que aplicara à arguida P. P. Maria, Lda, com os demais sinais dos autos, a coima de € 2.500,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista na alínea g) do n.º1 e n.º5, do artigo 38º do Dec.-Lei n.º 168/97, de 4 de Julho (falta de alvará de licença de utilização), e ordenado o arquivamento dos autos.
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Inconformado com tal despacho, o Ministério Público dele interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
1. Na sentença recorrida a Meritíssima Juíza a quo absolveu a arguida P. P. Maria, Lda. da prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelos artigos 14° e 28° do Decreto-Lei n.º 168/97 de 04/07, com a redacção conferida pelos Decretos-Leis n.ºs 139/99 de 24/04,222/00 de 09/09 e 57/02 de 11/03 devido à decisão administrativa não ter apreciado criticamente diversas peças processuais nas quais baseou a sua decisão, ser omissa no que concerne à gravidade da culpa, da contra-ordenação e das condições económicas da arguida e ter remetido a respectiva fundamentação para outros elementos;
2. Não é elemento fundamental da decisão administrativa a pronúncia relativamente à gravidade da contra-ordenação, uma vez que este é um factor essencialmente legislativo que é aferido pelo montante da respectiva coima;
3. Relativamente às omissões da decisão administrativa relativas ao grau de culpa da arguida e da sua condição económica, verifica-se que as mesmas correspondem, respectivamente, a irregularidade ou nulidade sanável, pelo que, caso se entendesse que as mesmas seriam determinantes para a decisão a proferir, não se deveria ter dispensado a realização da audiência de julgamento onde se poderia facilmente (como habitualmente se faz em julgamentos até de maior gravidade) suprir aquelas insuficiências;
4. O dever de fundamentação constitui uma protecção dos cidadãos que lhes confere o direito de saberem a razão pela qual determinada decisão afectou a sua esfera jurídica;
5. A fundamentação deve ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir;
6. Foi imputado à arguida o facto de a mesma funcionar com o estabelecimento de restauração e bebidas há cerca de um ano, sem possuir a respectiva licença de utilização;
7. A questão em causa nos presentes autos é de extrema simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se torne clara para a arguida;
8. No caso concreto, verifica-se que, independentemente da menor perfeição formal da decisão administrativa, esta atingiu os objectivos referidos em 4., uma vez que a arguida se defendeu com adequação formal através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrando que conhecia perfeitamente os factos que lhe eram imputados e a razão por que o foram;
9. Assim que o Ministério Público torna presentes os autos ao juiz, estes valem como acusação - cfr. artigo 62°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º433/82, de 27/10- sendo esta composta pelo conjunto de documentos apresentados ao juiz, onde se inclui o auto de notícia para o qual foi remetida parte da decisão administrativa;
10. A arguida conhecia perfeitamente o teor da decisão/acusação;
11. Deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a arguida pela prática da contra-ordenação, p. e p. pelos artigos 14° e 28° do Decreto-Lei n.o 168/97 de 04/07, com a redacção conferida pelos Decretos-Leis n.ºs 139/99 de 24/04, 222/00 de 09/09 e 57/02 de 11/03.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal por despacho constante de fls. 117.

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A arguida respondeu pronunciando-se doutamente pela manutenção do julgado.
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Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer pronunciando-se no sentido de o recurso merecer provimento.

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Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com o formalismo aplicável.
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II- Fundamentação
1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):
«Por legal e tempestivo, admito o recurso interposto pela arguida P. P. Maria, Lda.
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I.
Pela Câmara Municipal de Felgueiras, mediante decisão de fls. 29, foi aplicada a coima de € 2.500,00 à arguida P. P. Maria, Lda.
Notificada sobre o conteúdo da referida decisão, inconformada, nos termos do art. 59º do D.L. 433/82, com a redacção dada pelo D.L. nº 244/95 de 14 de Setembro, interpôs a arguida o presente recurso, a fls 42 e ss, cujo teor aqui se dá por reproduzido para os legais e devidos efeitos, invocando para além da prescrição do processo contra-ordenacional, a nulidade da decisão administrativa. Assim, alegou, neste particular, em síntese, que não consta da predita decisão os elementos necessários para que a arguida pudesse conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, aludindo aos factos que lhe são imputados por remissão para peças processuais, não fundamentando convincentemente a decisão, nem fazendo alusão ou ponderando os aspectos referidos à situação da arguida, nomeadamente à sua culpa.
II.
Como se sabe, este tribunal funciona em relação à decisão proferida pela entidade administrativa, como “segunda instância”.
Nessa medida, aplicando-se aos presentes autos as regras do processo criminal - cfr. o artº 41º do D.L. nº 433/82, de 27.10 -, o objecto do presente recurso está limitado ao definido pelas conclusões.
Ocorre todavia, que não obstante isso, o tribunal não está limitado a conhecer as nulidades que não se devam considerar sanadas (aqui, de resto, são inclusivamente arguidas).
Com efeito, nos termos do art. 410º, nº 3 do C.P.P., estabelece-se que “o recurso pode ainda ter como fundamento (...) a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanado”.
Vejamos então, se a decisão administrativa padece de qualquer vício dessa natureza.
Depois de descrever os factos dados como provados, em sede de “convicção”, seguindo uma motivação tabelar remete a decisão administrativa para várias peças, sem as apreciar criticamente, conferindo-lhes, vg credibilidade e reproduzindo, quando necessário, o teor das peças e os depoimentos que considerasse essenciais para fundamentar o processo lógico da decisão prolatada.
Ademais, no que concerne à determinação da medida da pena, seguindo, igualmente e aqui mais notoriamente um percurso preestabelecido, refere apenas que ponderados os elementos determinantes da medida da coima (culpa, gravidade da contra-ordenação, situação económica e benefício alcançado, que refere não se ter apurado), conclui ser de aplicar à arguida a coima em apreço. Ou seja, não se pronuncia sobre a gravidade da culpa e da contra-ordenação (elevada, média ou diminuta) nem pondera a situação económica da arguida, que não chegou a ser sequer indagada.
Face ao exposto, conclui-se que da decisão administrativa não resulta qualquer referência sustentada quanto às provas obtidas e nas quais a entidade administrativa se baseou para decidir como o fez. Limita-se a entidade administrativa, com feito, apenas, como referido, a remeter para outros elementos. Ora, isto não é forma suficiente para poder ser qualificada como motivação, uma vez que não se perscruta ou aquilata qual o percurso lógico que levou o julgador administrativo a assentar os factos que dá como provados e porque não assentou quaisquer outros.
Procedendo desta forma, a entidade administrativa inibiu a arguida, ao não conhecer a fundamentação em que se alicerçou para os determinar, de exercer o seu efectivo direito de defesa, facto este que só ocorre com conhecimento perfeito dos factos que lhe são, em concreto, imputados e dos meios probatórios utilizados - vide, neste sentido, assim, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, 2º Ed. VISLIS, Editores, p. 334.
Isto posto, volvendo ao caso em espécie, a entidade administrativa violou o artº 58º, nº 1, al. b), do D.L. 433/82 de 27 de Outubro, na redacção introduzida pelo D.L. nº 244/95, de 14 de Setembro, o que tem como consequência a nulidade da decisão administrativa, nos termos conjugados dos art. 374º, nº 2; 379º, nº 1 e 120º, nº 2 do C.P.Penal - ver Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa in ob. cit. p. 334. Aqui refere-se que a falta de requisitos previstos no nº 1 e 2 constitui uma nulidade da decisão de harmonia com o preceituado nos art. 374º, nºs 2 e 3 e 379º, nº 1, al. a) do C.P.Penal.
Neste mesmo sentido, pode ainda ver-se o acórdão da Rel. do Porto de 25.02.98 (ver CJ de XXIII, T.I, p. 242), onde se escreve que “é nula a decisão administrativa que aplica uma coima, se dela não constar a indicação da prova obtida, por força da remissão do nº 1, do artº 41º, do D.L. 433/82 pois, embora não se trate de uma sentença, está no mesmo plano na medida em que é a decisão que culmina o processo de contra-ordenação na fase administrativa, impondo sanções” - cfr., mais recentemente, o acórdão da Rel. de Lisboa de 05.02.04 (ver CJ de XXIX, TI, p. 129).
Face ao exposto, a consequência será o arquivamento dos autos, conforme, aliás, se defende neste último acórdão citado.
III.
Nesta conformidade, dando procedência à arguição das nulidades invocadas e analisadas, julga-se nula a decisão administrativa e, em consequência, ordeno o arquivamento dos autos.
Sem custas por não serem devidas
Notifique.
Deposite.»
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2. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)
Neste recurso, são as seguintes as questões a apreciar:
· a indicação de provas por remissão e a falta de exame crítico da prova;
· a falta de fundamentação da coima aplicada.
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3. A questão da indicação das provas por remissão e da falta de exame crítico da prova.
§1.A este respeito lê-se na decisão recorrida:
«Depois de descrever os factos dados como provados, em sede de “convicção”, seguindo uma motivação tabelar remete a decisão administrativa para várias peças, sem as apreciar criticamente, conferindo-lhes, vg credibilidade e reproduzindo, quando necessário, o teor das peças e os depoimentos que considerasse essenciais para fundamentar o processo lógico da decisão prolatada. »

E mais à frente volta-se a sublinhar que:
Face ao exposto, conclui-se que da decisão administrativa não resulta qualquer referência sustentada quanto às provas obtidas e nas quais a entidade administrativa se baseou para decidir como o fez. Limita-se a entidade administrativa, com efeito, apenas, como referido, a remeter para outros elementos. Ora, isto não é forma suficiente para poder ser qualificada como motivação, uma vez que não se perscruta ou aquilata qual o percurso lógico que levou o julgador administrativo a assentar os factos que dá como provados e porque não assentou quaisquer outros.
Procedendo desta forma, a entidade administrativa inibiu a arguida, ao não conhecer a fundamentação em que se alicerçou para os determinar, de exercer o seu efectivo direito de defesa, facto este que só ocorre com conhecimento perfeito dos factos que lhe são, em concreto, imputados e dos meios probatórios utilizados - vide, neste sentido, assim, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, 2º Ed. VISLIS, Editores, p. 334.

Não podemos, porém, subscrever a aliás douta decisão recorrida.
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§2. O artigo 58º do RGCC enuncia os requisitos da decisão condenatória do processo contra-ordenacional.
Nos termos do n.º 1 daquele normativo, “A decisão que aplique a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão.
d) A coima e as sanções acessórias.”
Ora, lendo e relendo a decisão administrativa em causa facilmente se constata que todos aqueles requisitos nela foram observados.
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§3. Antes do mais, com referência à indicação das provas obtidas, lê-se na decisão administrativa que:

«Assim contra, P. P. Maria, Lda., com sede no lugar de Pedra Maria, da freguesia de Varziela, do concelho de Felgueiras, a qual se encontra devidamente identificada a folhas dois destes autos, foram imputados os factos constantes de folhas três (auto de notícia de contra-ordenação) que antecedem e consistem no seguinte:
No dia vinte de Novembro, do ano dois mil e dois, pelas quinze horas e quarenta e cinco minutos, a arguida estava a explorar o estabelecimento de bebidas com fabrico de pastelaria, denominado "Padaria Pedra Maria", no rés-do-chão do prédio sito no lugar supra-mencionado, sem que estivesse munida do respectivo alvará de licença ou de autorização de utilização para fabrico ou serviço de bebidas.
Os factos descritos constituem contra-ordenação por violação do disposto nos arts. 14° e 28° do Decreto- Lei número 168/97, de 04 de Julho, com nova redacção dada pelos D.L. n° 139/99, de 24.04, D.L. n° 222/00, de 09.09 e D.L. n° 57/02 de 1l.º3 integrando as contra-ordenações previstas na alínea g) do n°. 1 do artigo 38° do citado diploma, punida pelo n° 5 do citado artigo 38° (falta de alvará de licença de utilização) com coima de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a € 30.000 (trinta mil euros).
(…)
Face aos elementos existentes no processo de contra-ordenação nomeadamente o auto de notícia de contra-ordenação elaborado pela Polícia Municipal a folhas dois dos autos, defesa apresentada pela arguida de folhas oito a onze, informação n° 19001IlPM/03 de 05 de Novembro de 2003 a folhas doze dos autos e o auto de inquirição da testemunha a folhas dezassete dos autos, consideram-se provados os factos constantes do auto de notícia de contra-ordenação acima relatados e dúvidas não subsistem que o arguido cometeu objectivamente e subjectivamente a contra-ordenação prevista na alínea g) do n.o 1 do artigo 38° do Decreto-Lei n.o 168/97, de 04 de Julho.
Os factos descritos e provados permitem-nos concluir que a arguida agiu, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e, mesmo assim, não se coibiu de a concretizar já que sabia que só podia explorar aquele estabelecimento desde que estivesse munida do respectivo alvará de licença ou de autorização de utilização para serviços de bebidas, mas não o fez.
A arguida ao explorar o estabelecimento acima mencionado sem licença de utilização estava a violar interesses de ordem pública em geral, bem como o do consumidor nomeadamente zelando pelas condições de higiene e salubridade do estabelecimento. A utilização dos estabelecimentos de bebidas sem o devido reconhecimento por parte da Câmara, das condições necessárias para a sua exploração deve ser punida nos termos legais.(…)»

A indicação das provas é clara.
Tais provas consistiram, segundo a decisão administrativa, nos seguintes elementos:
- auto de notícia de contra-ordenação elaborado pela Polícia Municipal a folhas dois dos autos, cujo conteúdo foi transcrito na decisão condenatória;
- defesa apresentada pela arguida de folhas oito a onze;
- informação n° 19001IlPM/03 de 05 de Novembro de 2003 a folhas doze dos autos[actualmente fls. 14, onde a Polícia Municipal informa, para além do mais sem interesse para estes autos, que uma patrulha daquela PM constatou que a firma Padaria Pedra Maria Lda se encontrava em pleno funcionamento];
- auto de inquirição da testemunha a folhas dezassete dos autos[actualmente a fls. 17, onde a testemunha inquirida se limita a confirmar os autos constantes do auto de notícia que assinou na qualidade de testemunha];
Não é verdade que, como se afirma na decisão recorrida, a decisão administrativa “Limita-se a entidade administrativa, com efeito, apenas, como referido, a remeter para outros elementos.”
Basta para o efeito atentar no teor do primeiro parágrafo daquela decisão que acima ficou transcrito, onde se transcreve o teor do auto de notícia.
É certo que algumas das provas foram indicadas por remissão.
Simplesmente o citado artigo 58º não exclui que a indicação das provas se possa fazer por remissão [cfr. expressamente neste sentido os Acs da Rel. do Porto de 20-10-1999, proc.º n.º 10619 in www.trp.pt, da Rel. de Lisboa de 22-5-2002, proc.º n.º 3501/02-4 citado in Simas Santos - Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006 e da Rel. de Évora de 14-1-2003, Col. de Jur., ano XXVII, tomo 1, pág. 258; sobre a admissibilidade da remissão se pronunciaram igualmente os Acs da Rel de Lisboa de 24-5-2006, proc.º n.º 3362/06-3ª, rel. Carlos Sousa, e de 13-10-2005, proc.º n.º 7612/05-9ª, rel. Carlos Benido, ambos in www. pgdlisboa. pt e o Ac. da Rel. do Porto de 20-12-2006 (remissão para o auto de notícia), este último in www.dgsi.pt].
É claro que na decisão administrativa em causa, no que concerne à materialidade dos factos que são imputados à arguida não foi feito o exame crítico da prova a que alude o n.º2 do artigo 374º do Código de processo Penal.
Simplesmente, não se vislumbra a necessidade de tal exame.
Primeiro porque o citado artigo 58º o não exige expressamente, limitando-se a exigir a indicação das provas (no sentido de que a fundamentação das decisões administrativas se basta com a indicação das provas, não sendo exigível o seu exame crítico, contrariamente ao que ocorre com as decisões judiciais, cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 10-7-2003, proc.º n.º 903/03, rel. Maria Augusta).
Depois, porque a decisão administrativa que aplica uma coima não é uma sentença nem se lhe pode equiparar pelo que não há que chamar à colação o artigo 374º do Código de Processo Penal (cfr. v.g. os Acs da Rel. de Coimbra de 13-1-1999, rec.º n.º 955/98, de 17-3-1999, rec.º n.º 11/99, ambas in www.trc.pt).
Finalmente os requisitos consignados no citado artigo 58º visam claramente assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.
Por isso, sublinham os Cons.º Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58º “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos”(Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3º ed., Lisboa, 2006, pág. 387)
Mesmo aqueles para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa constitui nulidade nos termos do artigo 379º do Código de processo Penal, são forçados a admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença. O que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa”(Ac. da Rel. de Coimbra de 4-6-2003, Col. de Jur. ano XXVIII, tomo 3, pág. 40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados cfr. Ac da Rel. de Coimbra de 23-4-20003, proc.º n.º 1223/03, in www.trc.pt).
Por outro lado, como bem observa o Ministério Público recorrente a fundamentação deve ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir;
Ora, no caso dos autos, a questão reveste extrema simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se torne clara para a arguida, como, de resto, para qualquer cidadão: foi-lhe imputado o facto de a mesma funcionar com o estabelecimento de restauração e bebidas há cerca de um ano, sem possuir a respectiva licença de utilização.
No caso concreto, a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e as razão por que tais factos lhe foram imputados.
De resto, a recorrente (que foi aliás acusada, em processo criminal, por crime de desobediência por manter aberto o estabelecimento em questão não obstante ter sido ordenada a cessação da sua utilização) em momento algum nega que não tivesse licença ou, o que é o mesmo, em momento algum alega ser titular daquela licença.
E é óbvio, face ao teor da decisão administrativa qual o processo lógico da formação daquela decisão.
Improcede por conseguinte a apontada nulidade.
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4. A questão da falta de fundamentação da coima
§1. A este respeito lê-se na decisão recorrida:
«Ademais, no que concerne à determinação da medida da pena, seguindo, igualmente e aqui mais notoriamente um percurso preestabelecido, refere apenas que ponderados os elementos determinantes da medida da coima (culpa, gravidade da contra-ordenação, situação económica e benefício alcançado, que refere não se ter apurado), conclui ser de aplicar à arguida a coima em apreço. Ou seja, não se pronuncia sobre a gravidade da culpa e da contra-ordenação (elevada, média ou diminuta) nem pondera a situação económica da arguida, que não chegou a ser sequer indagada.»

Uma vez mais, não podemos acompanhar a argumentação da Mª Juíza.
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§2. Nos termos do n.º1 do artigo 18º do RGCC “A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da contra-ordenação”
Na decisão administrativa lê-se a este respeito:
«De acordo com as informações dos serviços do Departamento de Planeamento, aquele estabelecimento não está legalizado pelo que se considera a contra-ordenação emergente de tal infracção grave.
No caso concreto, não se verifica a exclusão da i1icitude.
Nestes termos, ponderados os elementos determinantes da medida da coima (artigo 18°. do Decreto-Lei n°. 433/82, de 27 de Outubro) a culpa, a gravidade da contra-ordenação, a situação económica, o benefício económico que a mesmo retirou da prática da contra-ordenação, o qual não foi possível apurar, decido aplicar a coima de €25000 (dois mil e quinhentos euros) e nos termos do n° 2 do art. 92° e do n° 2 do art. 94° do D. L. n° 43 82, de 27/10 e art. 32° e seguintes do Código das Custas Judiciais (D.L. n° 224 -A/96 de 26/11) fixo as custas do processo em € 6,35 (seis euros e trinta e cinco cêntimos(…)»

Constata-se, deste modo, que para além da expressa referência ao citado artigo 18º, a decisão administrativa ponderou expressamente a gravidade da infracção (que qualificou de “grave”), a culpa da arguida e o benefício económico retirado da prática da contra-ordenação (esclarecendo que não foi possível apurar tal benefício).
Pode, pois, concluir-se que na sua decisão a autoridade administrativa referiu expressamente os fundamentos da medida da coima.
Entende a M.ª Juíza que a decisão administrativa se não pronuncia sobre a gravidade da culpa e da contra-ordenação (elevada, média ou diminuta) nem pondera a situação económica da arguida, que não chegou a ser sequer indagada.
A lei, porém, não exige o grau de concretização implícito na argumentação da decisão recorrida.
Acresce que quanto à gravidade da contra-ordenação a M.ª juíza labora num lapso evidente, uma vez que na decisão administrativa se refere expressamente que “De acordo com as informações dos serviços do Departamento de Planeamento, aquele estabelecimento não está legalizado pelo que se considera a contra-ordenação emergente de tal infracção grave.”
Também quanto à gravidade da culpa a mesma é possível ser inferida do sétimo parágrafo da decisão administrativa [“Os factos descritos e provados permitem-nos concluir que a arguida agiu, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e, mesmo assim, não se coibiu de a concretizar já que sabia que só podia explorar aquele estabelecimento desde que estivesse munida do respectivo alvará de licença ou de autorização de utilização para serviços de bebidas, mas não o fez.]
Finalmente, quanto à situação económica da arguida a mesma foi expressamente ponderada na decisão administrativa, embora não tivesse sido concretizada o que, já vimos, a lei não exige. Não se vislumbra, de resto, qualquer efeito útil em tal concretização, na medida em que a contra-ordenação em causa é sancionada com coima de €2500 a €30.000, e a arguida foi sancionada com o mínimo legal (€2500).
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5. A decisão administrativa não padece, pois, dos vícios que lhe foram apontados no despacho recorrido.
Ex abundante sempre se dirá que nem mesmo perfilando a tese segundo a qual a falta dos requisitos previstos no citado artigo 58º constituiu nulidade (o que, como é sabido está longe de ser pacífico já que um importante sector da doutrina e da jurisprudência considera estarmos perante meras irregularidades com o regime previsto no artigo 123º do Código de Processo Penal – cfr. v.g. António Beça Pereira, Regime geral das Contra-Ordenações e Coimas, 6ª ed, Coimbra, 2005, pág. 109, e os Acs da Rel de Lisboa de 5-2-1997, rec.º n.º 5583, da Rel. do Porto de 19-2-1997, rec.º n.º 40009, de 18-12-1996, rec.º n.º 40656,) esta acarreteria o arquivamento dos autos, mas tão somente a anulação da decisão administrativa e a sua repetição (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 25-2-1998, Col. de Jur. ano XXIII, tomo 1, pág. 242).
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6. Não se verificando os vícios que motivaram a decisão de arquivamento, procede o presente recurso com a consequente revogação do despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que analise as demais questões suscitadas no recurso de impugnação e sobre as quais a Mª juiz se não pronunciou, a saber:
a) prescrição do procedimento contra-ordenacional;
b) nulidade do processo por à arguida não ter sido”remetido qualquer dos elementos necessários para que a mesma pudesse conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, pelo que o processo fica afectado de nulidade (cf. Assento 1/2003, de 25 de Janeiro);
c) nulidade da decisão administrativa por não especificar os factos imputados à arguida, já que “somente remete para o auto de fls 2”;
d) atenuação especial da punição nos termos do artigo 18º, n.º3 do RGCC;
e) aplicação de admoestação nos termos do artigo 51º do RGCC.

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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, em revogar o despacho recorrido, por não se verificarem os vícios ali apontados à decisão administrativa, o qual deverá ser substituído por outro que conheça das demais questões que constituem o objecto do recurso de impugnação.
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Sem tributação.
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Guimarães, 24 de Setembro de 2007