Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1691/04-1
Relator: ANTÓNIO RIBEIRO
Descritores: ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
CAMINHO PÚBLICO
ATRAVESSADOURO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/01/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Em acção de simples apreciação negativa, compete aos demandados a prova dos factos constitutivos do direito a que se arrogam (art.343º, nº1 do CPC);
II. A aquisição da dominialidade, que permite qualificar um caminho como público, depende, em regra, de dois requisitos: pertencer a coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública, entendendo-se esta como a aptidão das coisas para satisfazerem necessidades colectivas;
III. Posse imemorial é aquela que se perde na memória dos homens e dos tempos – de que já não há memória de quando se iniciou – não integrando tal conceito uma posse exercida há mais de 30, 40 e 50 anos;
IV. Os caminhos municipais estão sob a administração das Câmaras Municipais, dependendo de deliberação da Assembleia Municipal a afectação duma parcela de terreno à dominialidade pública;
V. Devem considerar-se «atravessadouros», entretanto abolidos nos termos do art.1383º do Código Civil (CC), por não se dirigirem a ponte ou fonte de manifesta utilidade e desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões – e não caminhos públicos – as faixas de terreno utilizadas para passagem do público, através de um prédio particular, para atalhar ou encurtar determinados trajectos em distâncias pouco significativas, nomeadamente quando se trata de fazer a ligação entre caminhos públicos;
VI. Nos termos do artigo 62º da Constituição da República, a propriedade privada é não só reconhecida e garantida mas também a forma de propriedade largamente prevalecente, de acordo, aliás, com os valores civilizacionais que partilhamos; só em casos de manifesta utilidade pública, quando está em causa o assegurar da satisfação de legítimas e relevantes necessidades colectivas, faz sentido a aquisição da dominialidade sobre prédios particulares, ainda assim mediante o pagamento da «justa indemnização»;
VII. Sem este entendimento restritivo, haveria o risco de conferir tutela a interesses meramente particulares que, não o logrando conseguir através das autoridades administrativas, poderiam ver reconhecidas, através dos Tribunais, verdadeiras expropriações de propriedade privada para utilidade particular, também legalmente admitidas mas dependentes da competente indemnização (cfr. arts. 1308º, 1340º, 1343º e 1554º do CC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:



I – Relatório;

Apelantes: "A" e outros (autores);
Apelados: "B" e outros (réus);
1ª Vara Mista de Guimarães – acção ordinária nº 56/1999.

*****

"A", "B" e marido "C", residentes no Lugar ..., Guimarães, intentaram a presente acção, com processo ordinário, contra a Assembleia de Freguesia de Donim e "D" e mulher "E", residentes no Lugar do B..., Guimarães, pedindo que se declare que pela propriedade deles (autores), identificada na petição inicial, não passa nem nunca passou qualquer caminho de servidão a favor do prédio vizinho ou de outro prédio e que por isso a mesma nunca foi onerada por servidão de passagem a favor dos réus, e ainda que pela referida propriedade dos autores nunca passou nem existiu ou existe qualquer caminho público ou atravessadouro; que os moradores da freguesia de Donim nunca fizeram uso directo e imediato de qualquer caminho público ou atravessadouro que atravesse a propriedade dos autores; que nem a Assembleia de Freguesia nem qualquer outro órgão da Junta, ou esta ou qualquer outra autarquia, se apropriaram de modo legítimo de qualquer caminho público na propriedade dos autores, designadamente do caminho em questão, e que nunca fizeram neste quaisquer obras de conservação, como nunca o administraram.

Contestaram apenas os réus "D" e mulher, começando por arguir excepção de caso julgado, alegando haver identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir entre a presente acção e a que, com o nº 192/89, correu termos na 5ª secção do Tribunal Judicial de Guimarães.
No mais impugnaram os factos alegados pelos autores, contrapondo a sua versão e pugnando pela improcedência da acção.

Na réplica, os autores mantiveram a posição antes assumida na petição inicial, pedindo a condenação dos réus em multa, e indemnização a favor dos autores, por litigarem de má-fé.

Proferido despacho saneador, em que se julgou improcedente a excepção de caso julgado deduzida pelos réus, sem que tal decisão tivesse sido impugnada, foram seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo a matéria de facto sido decidida pela forma que consta a fls.262-265.
Seguidamente foi proferida sentença (fls.272-277, dactilografada a fls.330-334), em que se julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.


Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os autores o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulam, em suma, as seguintes conclusões:

1ª Não se provou o requisito da propriedade do caminho por parte de uma entidade de direito público, com afectação à utilidade pública, resultante de acto administrativo ou de prática consentida pela administração;
2ª A qualificação de um caminho como público pressupõe o seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais e a sua apropriação por entidade de direito público, com afectação à utilidade pública, resultante de facto administrativo ou de prática consentida pela administração;
3ª O caminho em discussão, com 80 metros de comprimento, não está, de todo, no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais;
4ª 30, 40 e 50 anos não confere ao caminho posse imemorial;
5ª A sua antiguidade não se perde na memória dos homens, designadamente daqueles que depuseram em julgamento;
6ª Mesmo que tal caminho estivesse afecto ao trânsito de populações, animais e viaturas, faltava-lhe o requisito da imemorialidade para que pudesse ser classificado como público;
7ª Do quadro factual dos autos resulta que o caminho em litígio não salvaguarda quaisquer interesses colectivos, relevantes e actuais das populações;
8ª Não está afecto, pela sua dimensão e características (80 metros de comprimento e largura não apurada), ao trânsito automóvel, rural, de pessoas, animais, acesso a fonte, igreja ou encurtamento de distâncias;
9ª Não se extrai dos autos qualquer exemplo factual de interesses colectivos e actuais no caminho, que apenas salvaguardará o interesse dos 2ºs réus, recorridos, no tratamento de uma árvore. Nada mais.
10º Consistindo a presente uma acção de apreciação negativa, competia aos recorridos a prova de que o caminho está desde tempos imemoriais no uso directo e imediato do público e dos interesses colectivos e actuais na sua conservação, nos termos do artigo 343º, nº 1 do Código Civil (CC), prova essa que não lograram fazer, tanto mais que no art. 27 da sua contestação reconhecem desconhecer a natureza pública do caminho;
11ª Ao qualificar o caminho como público, o tribunal errou na aplicação do direito, violando o disposto no art.1383º do CC;
12ª O caminho, a existir, não é público, pos ausência dos pressupostos legais, constituindo apenas um mero atalho, ou antigo atravessadouro, que, ao abrigo do citado preceito substantivo, se encontra abolido;
13ª Com a sua decisão o tribunal violou os arts.343º, nº 1 e 1383º do Código Civil.

Contra alegaram os réus contestantes, "A" e mulher, pugnando pela confirmação do julgado, afirmando que não é condição da dominialidade pública de um caminho a sua apropriação por parte de entidade de direito público, com afectação à utilidade pública, resultante de facto administrativo ou de prática consentida pela administração.



II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).

As questões suscitadas pelos recorrentes podem sintetizar-se nos seguintes pontos:
a) Se os réus recorridos lograram fazer a prova, como lhes competia, dos pressupostos que levam à classificação de um caminho como público;
b) Se para essa qualificação é exigível o requisito da afectação à utilidade pública desde tempos imemoriais e se, para tal, bastam os 30, 40 e 50 anos consignados nos factos provados e na sentença impugnada;
c) Se é ainda exigível a apropriação do caminho por entidade de direito público, com afectação a utilidades colectivas relevantes e actuais das populações, resultante de acto administrativo ou da prática consentida pela administração.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:

1. Os AA. são donos e legítimos possuidores dos seguintes prédios:- Campo do Rosende ou do Pradinho, Bouça de Rosende, actualmente terreno de cultivo e Bouça do Ourado ou Bouça do Eirado, tudo unido, situados no lugar de ..., freguesia de Donim, desta comarca, inscritos na matriz rústica respectiva sob os artºs ...º, ..., ... e ...º da mesma freguesia, fazendo parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº .... (A).
2. Os AA. compraram estes prédios em 5-1-79 a António M... e esposa por escritura pública. (B).
3. Independentemente desta transmissão os AA, por si e antepossuidores, desde há mais de 10, 15, 20, 40, 50 e mais anos, ininterruptamente e até agora, têm cultivado os campos, semeando, cultivando e colhendo milho, centeio, feijão, procedido às podas das árvores, conservando e fabricando estas suas terras. (C).
4. Tudo com conhecimento de todas as pessoas do lugar e freguesia, sem oposição de ninguém, com consciência de que ninguém prejudicam e com ânimo de donos.
4-a. Na acção ordinária nº 192/98, 3º Juizo, 5ª Secção deste Tribunal ficou decidido, com trânsito em julgado, que estes terrenos são pertença exclusiva dos AA. (D).
5. Os terrenos dos AA. confrontam do lado norte com a estrada nacional 110 Taipas/Póvoa de Lanhoso. (E).
6. Dessa estrada sai um caminho público bem calcado e delimitado, com cerca de 3 metros de largura, que liga essa estrada ao portal da casa e propriedade dos 2ºs RR e aos prédios inscritos na matriz sob os artigos 8º e 12º, ou seja, à Bouça do Rosende e à Bouça do Ourado ou Eirado. (F).
7. A partir do extremo sul do caminho público, junto ao portão da casa dos 2ºs RR, depara-se primeiro a Bouça de Rosende (artigo 8º) depois os Campos de Rosende (artigos 6º e 7º). (G).
8. Da estrada nacional até ao portão da casa e propriedade dos 2ºs RR o caminho público tem uma extensão de 60 metros, encontrando-se asfaltado pela autarquia nessa extensão. (1º).
9. Os prédios dos AA ficam em plano superior ao caminho. (9º e 35º).
10. Logo a seguir ao Campo de Rosende passa um ribeiro que faz a confrontação Sul da propriedade dos 2ºs RR. e também dos campos dos AA., ribeiro esse que fica mais baixo em relação ao campo dos AA. (10º).
11. A propriedade dos 2ºs RR. é ladeada por um muro. (12º).
12. O caminho a que se alude em 6 e 8, continua no sentido norte-sul, atravessando o prédio dos AA junto à sua extrema nascente e confinando com a extrema poente dos RR. (26º).
13. Numa distância de cerca de 85m de comprimento e com largura não concretamente apurada. (27º).
14. O leito deste caminho corre, em toda a sua extensão, do lado sul da propriedade dos RR, que é murada. (28º).
15. A cerca de 15 metros do seu início, sensivelmente no alinhamento do poço da propriedade dos RR, tinha uma abertura para a direita, para acesso aos prédios dos AA (29º).
16. Continuando sempre, em declive descendente, até à extrema poente-sul do prédio dos RR, onde entroncava noutro caminho público aí existente (antiga estrada) (30º).
17. Este caminho existe, com a descrita configuração, há tempos imemoriais – mais de 30, 40 e 50 anos. (31º).
18. Desde tempos imemoriais que tal caminho está no uso directo e imediato do público. (32º).
19. Está afecto ao trânsito de pessoas sem descriminação. (33º).
20. Este caminho confinava no seu lado nascente com os RR, em toda a extensão do seu prédio, e no lado poente confinava com os AA.. (34º).
21. Antes de entroncar na antiga estrada o caminho passava um ribeiro (36º).
22. Desde tempos imemoriais, há mais de 30, 40, ou 50 anos, os 2ºs RR, os anteproprietários do seu prédio e outras pessoas indiscriminadamente, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, utilizam este caminho, nele passando quando têm necessidade. (37º).
23. Designadamente os 2ºs RR, para tratar duma árvore de vinho que possuem, localizada a meio da extrema norte do seu prédio e que, por estar inclinada para o caminho público, não lhes é possível tratar do seu prédio. (38º).
24. Este caminho também serve a Quinta da Forcada, Seara da Forcada, Bouça de Sande, Campo da Bouça e Campo de Rosende. (39º).
25. Todos estes prédios, pertencentes aos herdeiros do Dr. João A..., têm acesso à via pública pelo referido caminho. (40º).
26. Utilizando os respectivos caseiros tal caminho para o acesso aos referidos prédios sempre que necessitam, à vista de todos e sem oposição de ninguém. (41º).
27. Em data imprecisa do mês de Junho de 1987 os AA aterraram o leito do caminho. (42º).
28. Impedindo os RR e restantes pessoas de passar no referido caminho. (44º).
29. Conteúdo dos documentos de fls. 35 a 38. (artº 46º) – Neste ponto, porque a formulação vinda da 1ª instância nada refere quanto ao conteúdo dos documentos que refere, cumpre-nos suprir essa omissão:
a) Em sessão realizada em 25.06.1995, a Assembleia de Freguesia e Junta de Freguesia de Donim deliberaram por unanimidade aprovar a «rectificação do caminho» Barreiro-Avelonhas, que liga directamente à EN 310, «para caminho público» (fls.36-37);
b) A Junta de Freguesia de Donim fez publicar um edital, para dar conhecimento daquela deliberação(fls.38);

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2. De direito;

a) Se os réus recorridos lograram fazer a prova, como lhes competia, dos pressupostos que levam à classificação de um caminho como público;

Sendo inequívoco, em face da forma como os autores configuraram a acção e perante os pedidos que formularam, estarmos perante acção de simples apreciação ou declaração negativa, competia aos réus a prova dos factos constitutivos do direito a que se arrogam, conforme prescreve o nº 1 do artigo 343º do Código Civil (CC).

Para podermos concluir pela prova, ou falta dela, desses factos, teremos de passar à análise da matéria abordada nas duas alíneas infra.

b) Se para essa qualificação é exigível o requisito da afectação à utilidade pública desde tempos imemoriais e se, para tal, bastam os 30, 40 e 50 anos consignados nos factos provados e na sentença impugnada;

Fundou-se o Tribunal a quo, ao que parece (embora sem o citar), na doutrina fixada pelo assento do STJ de 19.04.1989, que hoje deve considerar-se como acórdão de uniformização de jurisprudência nos termos do actual artigo 732º-A do CPC.
Aí se estabeleceu a orientação de que «são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público».
Já nos acórdãos da Relação do Porto de 08.01.87 (in Col. Jur., 1987, 1º, 199) e da Relação de Coimbra de 09.06.87 (in Col. Jur., 1987, 3º, 34) se decidira que «para um caminho ser considerado público basta o uso directo e imediato pelo público, sem necessidade de ter sido apropriado ou produzido por uma pessoa colectiva de direito público, ou que esta haja praticado actos de administração, jurisdição ou conservação».

Criticando o assento de 19.04.89, assinalou Henrique Mesquita que, seguindo à letra a doutrina nele perfilhada, «todos os atravessadouros com posse imemorial teriam de ser qualificados como caminhos públicos».

Na mesma linha, Pires de Lima e Antunes Varela (no Código Civil Anotado, 2ª edição, Vol. III, págs. 281 e 282) escreveram que «traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem de ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos artigos 1383º e 1384º, que apenas ressalvam os que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade (...) Sempre (...) que o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383º, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz a passagem caiu no domínio público, através de algum dos títulos por que pode ser adquirida a dominialidade».

Também António Carvalho Martins, nosso ilustre colega nesta Relação (em “Caminhos Públicos e Atravessadouros”, Coimbra Editora, 1987, pág. 66) defende que «a dominialidade pressupõe a posse e superintendência dos bens, não bastando o simples uso pelo público para caracterizar as coisas como públicas. Só há afectação onde se exerce a jurisdição administrativa (...) O uso público e o domínio público são dois conceitos inteiramente distintos (...) Não é o facto de ser livremente usado por toda a gente que dá ao caminho a natureza de público, mas sim o facto de o caminho ser destinado ao uso público, ao uso de todos». Mais à frente (pág. 67, nota 61) acrescenta o mesmo autor que «para que um caminho outrora particular se converta em público, é necessário que, pelo abandono do proprietário, este deixe prescrever os seus direitos e que o Estado ou outra pessoa colectiva de direito público pratiquem actos ou factos que representam, através da conservação, reparação, regulamentação do trânsito, etc., a intenção ou o “animus” sem o qual não há posse jurídica».

Perante as mencionadas divergências quanto aos requisitos da qualificação de um caminho como público, o acórdão do STJ de 15.06.2000 (publicado no BMJ 498º-226), relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Miranda Gusmão, em sintonia, aliás, com a doutrina do acórdão do mesmo Tribunal de 10.11.1993 (in BMJ 431º-300 e C.J.-STJ, ano I, tomo III, pág.135), veio estabelecer que a aquisição da dominialidade depende, em regra, de dois requisitos: pertencer a coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública; Nessa conformidade afirma que o “Assento” de 19.04.89 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância e ainda, de forma extensiva, quando afirma que deixou de subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e está afecto à utilidade pública.

Concretizando tal ideia, acrescenta o mesmo acórdão que, «face à interpretação dada, a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros» assenta no seguinte:
i - Um caminho no uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública, ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância;
ii - De contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem qualificar-se como atravessadouros.

Cumpre então averiguar se, perante a factualidade provada, podemos concluir que a faixa de terreno em litígio, com 80 metros de comprimento e largura «não concretamente apurada», vem estando afecta, desde tempos imemoriais, à utilidade pública, visando a satisfação de interesses colectivos relevantes.

Para o que agora interessa, vem provado que:

Este caminho existe, com a descrita configuração, há tempos imemoriais – mais de 30, 40 e 50 anos. (31º).
Desde tempos imemoriais que tal caminho está no uso directo e imediato do público (32º), estando afecto ao trânsito de pessoas sem descriminação. (33º).
Desde tempos imemoriais, há mais de 30, 40, ou 50 anos, os 2ºs RR, os anteproprietários do seu prédio e outras pessoas indiscriminadamente, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, utilizam este caminho, nele passando quando têm necessidade (37º), designadamente os 2ºs RR, para tratar duma árvore de vinho que possuem, localizada a meio da extrema norte do seu prédio e que, por estar inclinada para o caminho público, não lhes é possível tratar do seu prédio (38º).
Este caminho também serve a Quinta da Forcada, Seara da Forcada, Bouça de Sande, Campo da Bouça e Campo de Rosende (39º).
Todos estes prédios, pertencentes aos herdeiros do Dr. João A..., têm acesso à via pública pelo referido caminho (40º).
Utilizando os respectivos caseiros tal caminho para o acesso aos referidos prédios sempre que necessitam, à vista de todos e sem oposição de ninguém (41º).
Em data imprecisa do mês de Junho de 1987 os AA aterraram o leito do caminho (42º), impedindo os RR e restantes pessoas de passar por ele (44º).

Apreciando estes factos, ressalta desde logo que a expressão «desde tempos imemoriais» não confere com a que lhe segue «há mais de 30, 40 e 50 anos…»
Se é há mais de 50 anos, então não pode dizer-se que seja desde tempos imemoriais, pois esses são aqueles de que já não há memória dos vivos (v.g. já o meu avô dizia que o pai e o avô dele por ali passavam…e que não tinham ideia de quando se iniciara essa afectação da faixa de terreno em questão). Ora não foi isto que ficou demonstrado.

Quanto à relevância do interesse público, também a factualidade provada carece de suficiente precisão, sendo certo que nada mais os réus recorridos alegaram que permitisse à Mmª Juiz a quo maior investigação (vide arts.34º a 39º da contestação e art.664º do Código de Processo Civil – CPC).
Será que a afirmação de que «desde tempos imemoriais, há mais de 30, 40, ou 50 anos, os 2ºs RR, os anteproprietários do seu prédio e outras pessoas indiscriminadamente, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, utilizam este caminho, nele passando quando têm necessidade, designadamente os 2ºs RR, para tratar duma árvore de vinho que possuem, localizada a meio da extrema norte do seu prédio e que, por estar inclinada para o caminho público, não lhes é possível tratar do seu prédio» e que «este caminho também serve a Quinta da Forcada, Seara da Forcada, Bouça de Sande, Campo da Bouça e Campo de Rosende» é suficiente para revelar uma afectação da mencionada faixa de terreno a utilidades públicas, no sentido de proporcionar a satisfação de interesses colectivos relevantes?

O interesse dos réus consiste, pelos vistos, em poderem tratar uma árvore… Quanto ao público em geral, passaria por essa porção de terra quando tinha «necessidade». Mas necessidade para quê? A sentença não o diz porque os réus também o não alegaram.
Diz-se, na sequência do que os réus articularam, que o caminho serve também várias quintas ou propriedades. Mas serve como, visando a satisfação de que utilidades?
Como está provado, os recorrentes aterraram o leito do caminho em Junho de 1987. Pelos vistos ninguém se queixou, nem mesmo a Junta de Freguesia. Seria razoável, se efectivamente a passagem pela faixa de terreno em causa se destinasse à satisfação de relevantes interesses colectivos, que ninguém se opusesse, ou viesse posteriormente a questionar aquela conduta dos autores?
Será possível ter como público um caminho cuja largura nem sequer foi possível apurar? Onde está então a imemorialidade? Aqueles que afiançaram que o caminho existiria há mais de 50 anos não se lembravam da largura do mesmo, ainda que por aproximação? Destinava-se apenas à passagem de pessoas a pé ou também de carros de bois e depois tractores? Nada disto foi esclarecido, desde logo pelos réus recorridos, a quem competia a alegação dos factos, com vista à subsequente prova.

Há que concluir, pois, que os factos dados como provados são insusceptíveis de levar à demonstração de que o “caminho” está, ou esteve, afecto ao uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, ou que a sua utilização visasse a satisfação de interesses colectivos suficientemente relevantes.

c) Se é ainda exigível a apropriação do caminho por entidade de direito público, com afectação a utilidades colectivas relevantes e actuais das populações, resultante de acto administrativo ou da prática consentida pela administração.

Segundo Marcello Caetano (in manual de Direito Administrativo, vol.II, 10ª edição, págs.886-888), a «utilidade pública» consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas, sendo esta característica que traduz o fundamento da sua publicidade.
Dos documentos juntos pelos réus a fls.35-38 resulta, como vimos supra (item 29, alíneas a e b dos factos), que a Assembleia de Freguesia deliberou, em 25.06.1995, no sentido de que o caminho em questão passasse a ser considerado público (então não o era já desde tempos imemoriais?).

Essa deliberação, desacompanhada de quaisquer actos concretos que manifestem uma efectiva actuação de soberania, ou de intenção apropriativa, carece de qualquer alcance útil para a questão aqui em apreço (não tem mais valor do que a circunstância – aflorada pelos recorridos na contestação – de se mencionar a existência do caminho no projecto de licenciamento da habitação do autor, apresentado à Câmara de Guimarães, ou na própria escritura de aquisição dos seus prédios – cfr.arts.51º e 52º da contestação).

Tais argumentos valem bem menos do que a constatação de a, também demandada nesta acção, Freguesia de Donim não ter contestado, sendo aliás contraditados pelo teor do que é certificado pela Câmara Municipal de Guimarães, a fls.246-247, ou seja que «o arruamento em causa tem sessenta metros de comprimento» (e não 140 = 60+80) e que «o referido caminho não é do domínio público municipal».

Como os caminhos municipais estão sob a administração das Câmaras Municipais e não das Juntas de Freguesia, sempre dependeria de deliberação da Assembleia Municipal a afectação da aludida parcela de terreno à dominialidade pública (artigos 49º, 51º e 52º da Lei das Autarquias vigente à época – Decreto-Lei nº 100/84, de 29.03, com as alterações introduzidas pela Lei nº 28/91, de 12.06).
Repare-se que também o Supremo Tribunal Administrativo, em decisão de 08.07.1999, proferida em acção intentada pelos ora autores naquela jurisdição (junta por cópia, a fls.48-60), afirmou a impossibilidade de concluir pela existência de qualquer caminho sobre a propriedade daqueles, público ou privado (fls.59 verso).

Nos termos da Constituição da República (art.62º), e de acordo com a civilização e valores que partilhamos, a propriedade privada é não só reconhecida, mas também a forma de propriedade largamente prevalecente. Só em casos de manifesta utilidade pública, quando está em causa o assegurar da satisfação de legítimas e relevantes necessidades colectivas, faz sentido a aquisição da dominialidade sobre prédios particulares.

Sem esse entendimento restritivo, haveria o risco de conferir tutela a interesses meramente particulares que, não o logrando das autoridades administrativas, poderiam ver reconhecidas, através dos Tribunais, verdadeiras expropriações de propriedade privada para utilidade particular, nomeadamente com vista a (não dizemos que seja o caso dos aqui recorridos) um acessozinho mais cómodo e curto à estrada nacional para os respectivos automóveis, quando não avultados lucros com a especulação imobiliária, beneficiária das mais valias resultantes de novel via pública e consequentes potencialidades construtivas assim criadas.

Para esse efeito também consente a lei procedimentos adequados, que, todavia, não dispensam, como não podia deixar de ser, o pagamento da competente indemnização ao expropriado.

A questão da eventual existência de uma servidão de passagem nem sequer se coloca aqui, uma vez que réus contestantes não alegaram, nesse sentido, factos suficientes para integrar tal figura.
Da matéria provada, aliás, apenas se poderá admitir ter existido, se tanto, um atravessadouro, que eventualmente ligaria dois caminhos públicos, com passagem pelo ribeiro, para pessoas a pé ou com animais, que entretanto teria deixado de ser utilizado há muito e, em qualquer caso, abolido, nos termos do art.1383º do CC.


IV – Decisão;

Em face do exposto, na procedência da apelação, acordam em revogar a sentença recorrida e, consequentemente, em julgar a acção procedente, declarando-se que:
a) A propriedade dos autores, supra identificada, não está onerada, nem nunca esteve, designadamente com referência à faixa de terreno em causa, com qualquer servidão de passagem a favor de prédio vizinho ou de outro prédio, dos réus ou de outrem;
b) A mesma propriedade dos autores, com referência à mesma faixa de terreno, nunca foi onerada por caminho público;
c) Jamais os moradores da freguesia de Donim fizeram uso de qualquer caminho sobre tal propriedade;
d) Jamais qualquer órgão autárquico – Junta de Freguesia de Donim ou outro – se apropriou (legitimamente) de qualquer faixa de terreno da mencionada propriedade dos autores-recorrentes, designadamente afectando-a a caminho público.
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Custas, em ambas as instâncias, pelos réus apelados.


Guimarães, 2005.06.01