Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1897/06-1
Relator: GOMES DA SILVA
Descritores: NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
COMPRA E VENDA
PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A compra de cartão de desconto em produtos e serviços diversos, em função dos preços normais, com pagamento parcelar de anuidade pelo seu uso vitalício, analisa-se num contrato de execução instantânea.
2. Como contrato com eficácia real, com uma só obrigação, sem que cada uma das prestações se apresente como dívida distinta ou de prestação protraída temporalmente, adentro dos negócios do consumo, impõe-se-lhe a redução a escrito, a sua assinatura pelos contraentes e a entrega de um seu exemplar ao consumidor, no momento da sua subscrição (art. 6º-nº1), sem o que importará a respectiva nulidade a inverificação desses requisitos.
3. Daqui decorre a repristinação dos seus efeitos à data da celebração, por virtude da decretada resolução por alteração anormal das circunstâncias a que as partes submeteram a decisão de contratar.
4. Tendo o recorrente cumpriu tempestivamente como se encontrava vinculado, pois que pagara à apelada a quantia de 3.486,52 €, como preço da compra do cartão, e desfeito o negócio, por culpa daquela, sem que algo obste à retroactividade, terá ela de restituir tal quantia, nos termos peticionados.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I –
INTRODUÇÃO
1. Aos 2004.02.17, PAULO F... intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária, contra I... – SOCIEDADE FINANCEIRA PARA AQUISIÇÃO DE CRÉDITO, S.A..

2. Propunha-se obter sentença que:
a) declarasse resolvido o contrato, por incumprimento do mesmo;
b) condenasse a R. a pagar ao A.:
- o montante entregue por este último a título de pagamento do contrato, no montante de € 3 486,52;
- a quantia de € 164,50, referente à estadia em Vilamoura;
- a título de danos morais, a quantia de € 10 000,00; e
· subsidiariamente, se declare resolvido o contrato, nos termos do art. 437º do CC, com as legais consequências, bem como as constantes dos anteriores pedidos;
· subsidiariamente, ainda, caso não proceda o pedido principal e subsidiário, deverá o contrato ser anulado por violação do art. 48º/3 do DL 275/93 de 05 de Agosto na redacção de 2002, com as legais consequências, nomeadamente as referidas nos pedidos anteriores.

3. Alegou, em súmula:
Aos 2000.05.23, o A. celebrou com a R. um contrato que lhe atribuía um cartão de férias, o qual concedia descontos no acto de aquisição e pagamento de bens e serviços, nos preços normais de venda, em empresas, organizações e prestadores de serviços aderentes ao sistema Vip Travel Prestige.
Na mesma data, foi celebrado um aditamento ao contrato, através do qual a R. oferecia ao A. ou beneficiários o direito de utilizar, durante a vigência do contrato, um T1 para 4 pessoas, durante 8 dias (7 noites), a título gratuito, no Algarve, Espanha (La Manga ou Lloret del Mar), o qual ficou em poder da R..
Para a celebração do contrato mostrou-se determinante a oferta da semana de férias gratuita, sendo a única razão que levou o A. a celebrar o contrato.
Como forma de pagamento, o A. entregou à R. a quantia de 3 486,52 €.
Em 2003, reservou uma estadia no empreendimento "Edifício Tália" em Vilamoura, na semana de 31/05 a 07/06/2003.
Posteriormente, em 20/05/2003, a R. comunicou ao A. que apenas podia usufruir da semana de férias se procedesse ao pagamento de uma contrapartida diária fixa, pois não era permitido ceder gratuitamente a estadia no empreendimento em causa.
O A. para usufruir da semana de férias, previamente reservada no Algarve, procedeu ao pagamento à R. da quantia de 164,50 €, manifestando a sua discordância, com a alteração do contrato.
A R. não cumpriu o contrato, motivo pelo qual assiste-lhe o direito de rescindir o contrato e exigir uma indemnização pelos prejuízos sofridos.
Por fim, as cláusulas insertas no texto do contrato, nomeadamente quanto à competência territorial, não foram objecto de previa negociação, nem devidamente explicadas ao A., pelo que o contrato mostra-se ferido de nulidade ao abrigo do regime das cláusulas gerais.

4. Citada editalmente, a R. nada deduziu em defesa.

5. Saneado o processo, dispensou-se a organização da matéria de facto assente e da base instrutória.

6. Julgada a causa e fixada a matéria de facto provada e não provada, mediante despacho que não mereceu censura, foi lançada sentença que, tendo por parcialmente procedente a acção, teve por válida a resolução do contrato.

7. Irresignado, dela apelou o A., tendo sumariado conclusões.

8. Nada foi respondido.

9. Cabe agora reapreciar e decidir.

II –

FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA

Vem tida por provada a seguinte factualidade, não objecto de impugnação e, pois, fixada:

1. Em 23 de Maio de 2000, em Braga, a R. celebrou com o A. um acordo mediante o qual vendeu a este um cartão Vip Travel Prestige.
2. O referido cartão concedia ao A. "um desconto no acto de aquisição e pagamento de bens e serviços, nos preços normais de venda, em empresas, organizações e prestadores de serviços aderentes ao sistema Vip Travel Prestige”.
3. Na cláusula 2.2, convencionou-se a duração vitalícia do cartão Vip Travel Prestige.
4. Na mesma data, ficou acordado entre as partes que a R. oferecia ao A. ou beneficiários o direito de utilizar, durante a vigência do contrato, um T1 para 4 pessoas, durante 8 dias (sete noites), a título gratuito, no Algarve ou em Espanha, na região de La Manga.
5. Esta oferta foi a única razão pela qual o A. celebrou o acordo.
6. Sem ela, o A. jamais teria celebrado o acordo.
7. O A. entregou à R., a título de pagamento:
8. - em 23.05.2000, a quantia de 50 000$00 ( € 249,40 ); e 36 parcelas de 18 028$00 ( € 89,92 );
9. - em 2003, o A. reservou uma estadia no empreendimento "Edifício T...", em Vilamoura, na semana de 31/05 a 07/06/2003.
10. Em 20 de Maio de 2003, a R. remeteu ao A. a carta que se transcreve: "Segundo a legislação em vigor, que regula desde há dois anos os Cartões Turísticos, os Serviços e o Timesharing, é proibido ceder gratuita ou vitaliciamente, por uma ou mais semanas, o uso de apartamentos, visto que isso representa uma venda com vantagens superiores à venda no Timesharing, na medida em que há que pagar anualmente contribuição, manutenção do apartamento, condomínio, água e luz, serviço em que o cliente do Tmiesharing paga anualmente valores superiores a 400€ (quatrocentos euros), além de pagar a semana.
11. Dessa forma, a Lei fez equivaler ao Timesharing tais contratos de cedência gratuita de semanas anualmente obrigando que sejam identificados ao Fisco, Finanças, os clientes desse usufruto os quais usam tais semanas gratuitas, a fim de pagarem impostos autárquicos e SISA e também os condomínios e manutenção, etc..
12. Como queremos evitar tais problemas e despesas aos sócios aderentes anteriores à lei reconvertemos e adaptamos os contratos de acordo com a nova Lei que situa o novo contrato nos descontos de serviços de forma a adaptar a realidade à nova Legislação.
13. Na verdade, tendo nós um serviço de descontos substanciais para o cliente, e prestamos esse serviço poderemos ceder os apartamentos a preços simbólicos, de forma que os clientes comportem as despesas de uso e condomínio, evitando assim ao cliente ter encargos com o Fisco e também para estar de acordo com a Lei alterada há dois anos.
14. Desta forma, o sócio e aderente dos nossos serviços, é obrigado a pagar uma quantia simbólica, a título de aluguer de 17,50 €, por dia, até 31 de Maio e 24,50 €, por dia, em Junho e Outubro.
15. Assim, a sua reserva mantém-se se aceitar as condições impostas por Lei, pelo que aguardamos que o confirme dentro de 8 dias, se aceita as condições ou se quer desistir. "
16. Em 22 de Maio de 2003, o A. enviou uma carta à R., junta como doc nº 3, com o seguinte teor:
17. "Tive agora conhecimento que V. Ex.sª têm procedido à notificação de alguns sócios a dar conta que, a partir de agora, não podem mais gozar, gratuitamente, a semana de férias concedida aquando a celebração do contrato. Não tendo até agora sido notificado de nada, e sendo certo que tenho férias agendadas para a próxima semana de 31 de Maio de 2003 a 07 de Junho de 2003, no empreendimento “Edificio Tália", sito em Vilamoura, desde já agradeço que me informem as condições de gozo dessa semana.
18. Aproveito para relembrar V. Ex.ª que celebrei o contrato já identificado no pressuposto único da concessão de uma semana de férias grátis, que aliás tenho gozado sempre que consigo proceder à reserva atempadamente, não retirando do contrato qualquer outra vantagem, pelo que não aceitarei sem mais a alteração do contrato nos termos referidos.";
19. O A. procedeu ao pagamento da quantia de € 164,50, para usufruir a estadia em Vilamoura.
20. O A. sentiu-se desgostoso por saber que não pode usufruir de uma semana de férias gratuita.
21. As cláusulas inseridas no contrato foram pela R. previamente elaboradas e apresentadas já impressas ao A..
22. O contrato, no que respeita à cláusula 7.3, é do teor seguinte:
23. "O Titular do Cartão Vip Travel Prestige dispõe de um período de retractação, após a assinatura do presente contrato, de dez dias, através de carta registada com aviso de recepção, durante o qual poderá desistir do Cartão sem qualquer encargo, com excepção daqueles que tenham origem na utilização do próprio cartão e as que resultem do cumprimento de obrigações fiscais."
24. O contrato, no que respeita à cláusula 2.3, é do teor seguinte:
25. "O titular do Cartão Vip Travel Prestige autoriza expressamente as empresas do Grupo Intervip a proceder ao tratamento informático dos dados pessoais recolhidos que se destinam ao processamento administrativo futuro para divulgação de bens e serviços comercializados."

III –
FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
1.
Balizando o recurso, o A. elencou censuras à sentença que se reconduzem ao seguinte:
· a resolução do contrato de aquisição de um cartão de desconto implica a restituição de tudo o que houver sido pago como contraprestação desse negócio.

2.
a)
Na sociedade dos nossos dias, os consumidores quase ficam perdidos numa espécie de floresta de enganos, perante a agressividade dos comerciantes e a complexidade da regulamentação do comércio de bens e serviços.
Impreparados, por via da abordagem dos comerciantes nos mais inimagináveis locais, seduzidos por ofertas mirabolantes, pressionados por uma máquina de marketing bem montada e incapazes de comparar, nesses locais, em pouco tempo, a qualidade e o preço daquela oferta com outras que facilmente encontrariam no mercado aberto, impunha-se que a legislação se actualizasse, de modo a cobrir esse campo, e estabelecesse eficaz protecção aos consumidores.
Nessa sequência, surgiram diversas Directivas: a nº 85/577/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores no caso dos contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais, e a nº 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, relativa à aproximação das disposições regulamentares e administrativas dos Estados-Membros relativas ao crédito ao consumo, alterada pela nº 90/88/CEE, do Conselho de 22 de Fevereiro de 1990.
Com a revisão constitucional de 1989, ficou enfatizado no art. 60º que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação dos danos”.
Pretender-se-á, agora, habilitar o cidadão-consumidor a uma decisão de “escolha consciente e prudente”, numa área em que, para além do “combate à informação negativa, mentirosa, enganadora ou desleal, é crucial a obrigação geral de informação positiva que impende sobre os profissionais no seu interface (relações de consumo) com os consumidores, obrigação esta cuja matriz é o princípio da boa fé e está expressamente consagrada no art. 9º da Lei nº 29/81, de 22 de Agosto, e genericamente nos arts. 227º, 239º e 762º CC”.
Tentando dar corpo a essa tutela comunitária, adentro dos chamados negócios jurídicos de consumo, como categoria autónoma e especial, o DL nº 359/91, de 21 de Setembro, veio consagrar protecção aos consumidores, inclusive limitadora do princípio da liberdade, impor a redução a escrito do contrato de crédito, a sua assinatura pelos contraentes e a entrega de um seu exemplar ao consumidor, no momento da sua subscrição (art. 6º-nº1), importando a respectiva nulidade a inverificação desses requisitos (art. 7º-nº1).

b)
No âmbito dos contratos de consumo, o apelante celebrou, pois, com a apelada um contrato de compra de cartão de desconto em produtos e serviços diversos, em função dos preços normais (ponto 1.1 do “contrato de associação”, de fls. 11).
Ao preço do contrato – no caso, 50.000$00 (€ 249,40) + 36 parcelas de 18.028$00 (€ 89,92) – ainda acrescia uma anuidade pelo seu uso vitalício (ponto 2.2); e o cartão era entregue só depois de pago 5% daqueloutro (ponto 2.5).
Embora admitisse, como se viu, “pagamento fraccionado” (cfr. ponto 2.6), tratou-se de contrato de execução instantânea (à data de 2000.05.23); na verdade, cada uma das importâncias do contrato de compra e venda do cartão de desconto tinham de ser pagas nos prazos estipulados; assim, o incumprimento do preço fraccionado do cartão importava a cessação das regalias (ponto 2.6) e o da anuidade pelo uso, o correspondente pagamento, acrescido de 50% do valor da dívida (ponto 2.5-único e art. 406º e 762º CC).

c)
Fazendo-o obedecer ao preceituado no DL nº 22/2002, de 31 de Janeiro (e porque não, também, ao DL nº 67/2003, de 8 de Abril, que transpôs a Directiva 1999/44$CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 1999.05.25?), a 1ª instância, qualificou-o como “de execução continuada” (sem que fosse fundamentada tal asserção), como se pressupusesse, como um contrato de fornecimento, um prolongamento ininterrupto no tempo, por via da consignação de mercadorias.
Todavia, trata-se de contrato com eficácia real (arts. 874º, 879º-c) e 936º CC), com uma só obrigação, sem que cada uma das prestações se apresente como dívida distinta ou de prestação protraída temporalmente (cfr. Ac. STJ, de 1996.10.01, www.dgsi.pt)
Daqui decorre a repristinação dos seus efeitos à data da celebração, por virtude da decretada resolução por alteração anormal das circunstâncias a que as partes submeteram a decisão de contratar (arts. 437º, 439º , 433º e 434º CC).
O recorrente cumpriu tempestivamente como se encontrava vinculado: pagou à apelada a quantia de 3.486,52 €, como preço da compra do cartão.
Desfeito o negócio, por culpa daquela, e nada obstando à retroactividade, como se viu, antes convindo que a R. não fique com vantagem indevida, decerto contra sponte sua, terá de restituir tal quantia, nos termos peticionados.
IV –

DECISÃO

Nestes termos, acorda-se, em nome do Povo, em:

1. julgar procedente a apelação e

2. condenar a R. I... – SOCIEDADE FINANCEIRA PARA AQUISIÇÃO DE CRÉDITO, S.A. a restituir àquele a quantia de 3.846,52.

Custas pela sucumbente.
Guimarães, 30 Novembro de 2006