Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
111/17.3YLPRT.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: OBJECTO DO LITÍGIO
SELEÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VÁRIAS SOLUÇÕES PLAUSÍVEIS DA QUESTÃO DE DIREITO
CONHECIMENTO DO MÉRITO NO DESPACHO SANEADOR
INCIDENTE DE FALSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A exemplo do que sucedia no anterior art. 511º do CPC, o juiz -ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC). deve continuar a seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.

II. Nessa conformidade, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, não se devendo ter em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.

III. O legislador, no novo Código, manteve a orientação que já vinha da reforma processual de 95/96 do anterior CPC, e integrou a arguição da falsidade no âmbito da prova documental, sem a autonomizar, com a imposição da dedução de um incidente de instância – tudo em conformidade com o que decorre do disposto nos arts. 444º e ss. do CPC- salvo, claro, os casos excepcionais previstos no art. 450º (processamento como incidente).

IV Nestas circunstâncias, no caso concreto, não tinha a Requerida que deduzir qualquer incidente de falsidade, antes impondo o legislador que, no âmbito da pronúncia sobre os documentos, arguisse a falsidade do acto de notificação judicial avulsa praticado.

V. Tendo efectuado essa arguição na oposição que deduziu, o referido acto de notificação judicial avulsa perdeu a força probatória plena de que gozava na qualidade de documento autêntico (arts. 372º do CC), e, nessa medida, nada impede que sobre a factualidade alegada, em sede da arguição da sua falsidade, a Requerida possa produzir todos os meios de prova admissíveis, inclusivamente, prova testemunhal.

VI. Nesta sequência, teria tal matéria de facto de ser incluída na enunciação dos temas de prova, por se tratar de matéria de facto ainda controvertida, prosseguindo os autos, para além da fase do saneamento do processo, com a produção da prova que as partes tenham apresentado sobre a aludida matéria de arguição da falsidade.”
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO

Recorrente(s):- Maria;
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I. Relatório:

Manuela propôs procedimento especial de despejo relativo ao imóvel, sito na Rua …, Vizela, contra Maria e Joaquim, com fundamento na não entrega do locado, após cessação, por denúncia, do contrato de arrendamento com efeitos a partir de 30.11.2016.
Juntou prova documental e testemunhal para o efeito.
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Citados os Requeridos, a Requerida Maria deduziu oposição, invocando a nulidade do título que serviu de denúncia, por vício da sua comunicação, e, subsidiariamente, a necessidade de diferimento da desocupação.
Indicou prova testemunhal.
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Foi cumprido o princípio do contraditório, quanto à possibilidade de conhecimento imediato de eventuais excepções e do mérito da causa.
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Cada uma das partes se pronunciou da forma que consta de fls. 85, v. e 86 (Requerente) e 93, v. (Requerida).
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Na sequência, foi proferida a seguinte decisão, em sede de despacho saneador sentença:

III. Decisão:

Pelo exposto, julga-se improcedente a oposição apresentada pela Requerida, por improcedente a impugnação do título para desocupação do locado, e, consequentemente, decide-se:

-declarar válida e eficaz a denúncia do contrato de arrendamento melhor id. em 1. dos factos provados e com efeitos a partir de 30.11.2016;
-condenar os Requeridos a desocupar o locado, de pessoas e bens, e a entregá-lo à Requerida (será Requerente);
-autorizar a entrada imediata no locado, se necessário e desde que verificados os demais requisitos legais (art.º 15.º, n.º7, do NRAU); e
-absolver a Requerida da condenação como litigante de má fé.”
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É justamente desta decisão que a Requerida/Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“I Conclusões

A. A ora Recorrente deduziu oposição ao procedimento especial de despejo e sem que sequer fosse a acção submetida a julgamento foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição apresentada pela Recorrente, por improcedente a impugnação do título para desocupação do locado,
B. Não pode a ora Recorrente conformar-se com tal decisão visto que foram dados como provados e não provados factos que estão em manifesta oposição com a alegação e propondo-se a Recorrente a fazer prova dos mesmos em julgamento, tendo-lhe sido vedada tal possibilidade.
C. Não pode a Recorrente conformar-se com terem os factos a) b) c) d) sido dados como não provados e vão ainda impugnados os factos provados 6 e 7 que deviam ter sido dados como não provados.
D. De facto, consta dos documentos juntos aos autos uma “certidão de notificação sob a forma de citação” na qual a agente de execução assinalou que “o notificando recusou receber ou assinar a presente certidão, tendo sido por mim informado de que a nota de notificação e os documentos ficam à sua disposição na secretaria judicial”, sucede que tal não corresponde à verdade.
E. Em data que não consegue precisar mas que admite possa ter sido em Outubro de 2015, se apresentou na Rua … uma pessoa que disse ser agente de execução e que queria que a ora Recorrente assinasse uns documentos. Como o marido da Recorrente transmitiu à agente de execução, a Recorrente – que não se encontrava no local - antes de assinar pretendia que fossem lidos pelo seu advogado e uma vez que a agente de execução não trazia cópias para deixar ficou de passar lá outro dia para deixar os documentos para serem lidos e assinados, o que nunca mais fez.
F. Ficando a Recorrente a aguardar o contacto, contacto esse, que conforme exposto, consigo nunca se verificou, mas apenas com o seu marido, pessoa que lá se encontrava no dia citado. Em momento algum lhe foi entregue qualquer documento ou transmitido que quaisquer documentos ficavam disponíveis onde quer que fosse. Tanto mais que nem sequer o seu contacto a agente de execução deixou, não tendo a Recorrente qualquer informação sobre o número de processo ou tribunal. Tendo-lhe sido apenas dito que se tratava de uma notificação por causa de um arrendamento, e nada mais.
G. Nas situações do artº 239º, nº 1, do CPC – contacto pessoal do solicitador de execução com o citando -, aquele comunica a este que fica citado para a acção cujo duplicado da petição inicial lhe exibe e entrega, referindo-lhe ainda o tribunal e juízo por onde corre o processo, bem como o prazo dentro do qual pode oferecer a sua defesa, a necessidade ou não de patrocínio judiciário, e as cominações em que incorre caso não conteste – arts. 239º, nº 2 e 235º, nº 1 e 2 do CPC
H. Nas situações em que o citando se recusa a receber os duplicados da petição e a assinar a respectiva certidão, prevê a lei que o solicitador dê conhecimento ao citando de que os documentos ficam à sua disposição na secretaria judicial, devendo fazer constar da certidão de citação a ocorrência verificada – nº 4 do art.º 239º do CPC.
I. Nestes casos, refere o nº 5 do artº 239º do CPC que a secretaria notifica ainda o citando, enviando-lhe carta registada com a indicação de que o duplicado nela se encontra à sua disposição, traduzindo-se a omissão desta diligência na omissão de uma formalidade prescrita na lei, conducente à nulidade da citação, nos termos do artº 198º, nº 1, do CPC, nulidade da citação que expressamente se argui e consequentemente não constitui a notificação judicial avulsa acompanhada de tal nota qualquer titulo para desocupação.
J. Atenta a nulidade por falta de citação não poderá constituir-se título para desocupação do locado, e consequentemente deveria a oposição ser julgada procedente.
K. Devia assim o Tribunal ter dado como provados os factos não provados a), b), c) e d) e não podia o tribunal ter dado como provado o facto 6 e 7.
L. Uma vez que a senhoria não procedeu ainda validamente à denúncia do contrato, e considerando que terá de o fazer com um ano de antecedência, atentos os factos que resultarão da alteração da matéria de facto provada e não provada sempre teria a oposição de ser julgada procedente.
M. Como expôs e até dado como provado no facto 10, a Recorrente tem instalado no local arrendado um comércio de restauração e bebida “Restaurante C” retirando daí os proventos para a sua subsistência e do seu agregado familiar, tem despesas assumidas e contratos com fornecedores que não pode repentinamente por termo.
N. Existem razões sociais, nomeadamente devido à situação económica que ficaria caso fosse imediatamente desocupado o locado, que impõe o diferimento da desocupação por um período mínimo de 5 meses, o que requereu, tendo sido tal improcedente sem ser produzida qualquer prova.
O. A Recorrente discorda da oportunidade da decisão, que ocorreu sem que tivesse havido uma audiência de julgamento onde apresentasse e interpretasse todas as provas carreadas para o processo que permitiriam enquadrar a matéria em discussão;
P. Ao não ter sido produzida qualquer outra prova, nomeadamente a prova testemunhal indicada na oposição, a Recorrente ficou automaticamente prejudicada; Ao permitir a produção de prova, evitar-se-ia a incorrecta apreciação dos factos e sua aplicação ao direito, como acabou por acontecer; Ao decidir como decidiu, tal sentença limitou de imediato e com consequências a defesa da Recorrente;
Q. Tal ausência de prestação de prova configura, salvo melhor opinião, a violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa, o que implica por omissão a prática de um acto nulo, nulidade que influi directamente na decisão da causa, sendo que tal omissão infringe os princípios constitucionais da igualdade do acesso ao direito do contraditório e da proibição da indefesa;
R. A Mma. Juíza não podia conhecer do mérito da causa, como o fez e no sentido em que o fez, uma vez que havia necessidade de se produzir prova atendendo à interpretação da vontade real dos intervenientes, tendo assim sido violado o art. 456º Cód. Proc. Civil. A sentença proferida deve ser declarada nula, por encerrar uma decisão-surpresa, matéria esta vedada pelo art. 3º nº 3 Cód. Proc. Civil;
S. Deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com as legais consequências, pelo que deve ser revogada a sentença e substituída por outra que julgue improcedente por não provada a acção, com todas as consequências legais...”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente coloca a seguinte questão:

-saber se o Tribunal não podia conhecer do mérito da causa, em sede da fase de saneamento do processo, como o fez, e no sentido em que o fez, uma vez que havia necessidade de se produzir prova sobre os factos 6 e 7 da matéria de facto provada, e os factos constantes das als. a) a d) da matéria de facto provada.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

“II. Fundamentação:
II.A. Dos Factos:
II.A.(1) Dos Factos Provados:
Com relevo, está demonstrado que:

1. Por negócio reduzido a escrito em 07.11.2007, a Requerente, na qualidade de dona e possuidora, disponibilizou à Requerida, que aceitou, parte do rés-do-chão (sul) do prédio urbano, sito na Rua …, Vizela, e para exploração do estabelecimento de restauração e bebidas, mediante a contrapartida do pagamento, pela requerida, de renda anual de € 3.000,00, a actualizar anualmente.
2. À data do negócio, a Requerida estava casada com o Requerido.
3. O negócio supra id. foi celebrado para durar um ano, com o seu início em 01.12.2007 e termo a 30.11.2008, tendo sido fixado entre as partes a sua renovação por períodos iguais e sucessivos de um ano, enquanto não fosse denunciado por qualquer das partes.
4. As partes estipularam que a faculdade de denunciar o negócio id. em 1. no seu termo ou no termo de qualquer uma das renovações tinha de ser exercida com uma antecedência de um ano.
5. A 22.09.2015, a Requerente peticionou a notificação judicial avulsa dos Requeridos da denúncia do negócio id. em 1. e com efeitos a 30.11.2016 e de querer o imóvel restituído, livre e devoluto a partir dessa data.
6. A 22.10.2015, pelas 19h40m, na Rua …, a Sra. Agente de Execução, Andreia, procedeu à notificação por contacto pessoal da Requerida e do Requerido.
7. A Requerida e Requerido recusaram-se a receber ou a assinar a certidão de notificação apresentada pela Sra. AE, tendo sido por esta informados de que a nota de notificação e os documentos ficaram às suas disposições na secretaria judicial - Instância Local Cível J2 – Tribunal de Guimarães.
8. A 09.01.2017 a Requerente propôs contra os Requeridos o presente procedimento especial de despejo, com fundamento nos efeitos do negócio celebrado e da notificação judicial avulsa supra id. .
9. Os Requeridos foram notificados por carta registada para o presente procedimento especial de despejo a 27.02.2017.
10. A Requerida explora no dito imóvel um restaurante e é daí que retira os proventos para a sua subsistência e do seu agregado familiar.
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II.A.2. Dos Factos Não Provados:

Com relevo para a decisão, ficou por provar que:

a. O Requerido informou a Sra. AE que pretendia dar a ler e ler a notificação judicial avulsa, antes de a assinar.
b. A Sra. AE não trazia cópias para efeito de a., e comprometeu-se a regressar noutra data para deixar para prévia leitura a notificação judicial avulsa id. em 6..
c. A Sra. AE não regressou ao contacto com os Requeridos.
d. Aquando da deslocação, a Sra. AE não deixou quaisquer documentos/informações com os Requeridos alusivos à diligência de notificação para que foi designada.
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Não ficaram por provar outros factos alegados pelas partes ou que resultem da instrução da causa.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiu em cima a questão que importa apreciar e decidir.
Assim, a Requerida, no presente Recurso, levanta a questão de saber se o Tribunal não podia conhecer do mérito da causa, em sede da fase de saneamento do processo, uma vez que havia necessidade de se produzir prova sobre os factos 6 e 7 da matéria de facto provada, e os factos constantes das als. a) a d) da matéria de facto não provada.

Vejamos se assim será.
Conforme resulta da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto (e de Direito), o Tribunal sustentou a sua decisão no que concerne aos factos questionados:

-na prova documental;
-e na impossibilidade de a Requerida poder produzir prova sobre os factos abrangidos pela força probatória plena de que beneficiava o acto de notificação judicial avulsa (enquanto documento autêntico) - arts. 369º, n.º 1, 370º, n.º1, e 371º, todos do Código Civil.
Considerou o Tribunal que aquela força probatória só podia ser contrariada (ilidida) por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto dela objecto (artº 347º do Código Civil e, concretamente, no caso dos presentes autos – artº 372.º do Código Civil), não podendo essa prova do contrário fazer-se por testemunhas ou presunções judiciais, como pretendia a Requerida (ao ter oferecido, com a sua oposição, uma testemunha para ser inquirida pelo tribunal), atento o disposto nos arts. 351.º, 392.º e 393.º n.º 2 do Código Civil.
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Antes de entrarmos nesta questão, importa aqui fazer algumas considerações gerais, quanto à opção do Tribunal Recorrido em proferir na fase do saneamento do processo, desde logo, decisão de mérito.
Como é sabido, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 595º do CPC, o despacho saneador destina-se a “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.
Tal acontecerá (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental(1).
Ora, o Tribunal Recorrido, para fundamentar a sua opção de, desde logo, em sede de despacho saneador, proferir decisão de mérito, mencionou, de uma forma genérica, que: “…Em face do alegado pelas partes, dos elementos probatórios juntos aos autos e sobre os quais foi exercido o contraditório, entende o tribunal estar em condições de proferir de imediato decisão, sem necessidade de produção de mais prova, como disso deu nota às partes, o que passa a fazer de seguida (art.º 15.º-H, n.º3, do NRAU) ”.
A fundamentação dessa sua opção só surge, porém, de uma forma mais concretizada, na motivação da decisão sobre a matéria de facto.
Na verdade, é nesse momento que o Tribunal Recorrido esclarece que a Requerida, apesar de ter alegado um conjunto de factos relativos à forma como a notificação judicial avulsa foi efectivada, não pode produzir prova sobre esses factos, porque esses factos estão abrangidos pela força probatória plena do acto praticado pelo Sr. Solicitador de execução, já que este, como é pacífico entre as partes, constitui um Documento Autêntico com força probatória plena.

Entendeu, assim, o Tribunal Recorrido que:

“… tratando-se de certidão emitida por quem tem competência para tal, como é inquestionável, configura um documento autêntico na definição do art.º 363.º, nº2, do Código Civil e tem a força probatória plena que a lei prevê para tais documentos (arts. 369.º, n.º 1, 370.º, n.º1, e 371.º todos do Código Civil), isto é, faz prova – que apenas admite prova em contrário – dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
Ora, a prova legal plena só pode ser contrariada (ilidida) por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto dela objecto (art.º 347.º do Código Civil e, concretamente, a dos autos – art.º 372.º do Código Civil).
In casu, está-se diante de prova plena qualificada, isto é, a prova do contrário não pode fazer-se por testemunhas ou presunções judiciais, como certamente pretendia a Requerida (ao ter oferecido, com a sua oposição, uma testemunha para ser inquirida pelo tribunal), atento o disposto nos arts. 351.º, 392.º e 393.º n.º 2 do Código Civil (acresce que nem do documento resulta a menção à testemunha id. pela Requerente na sua peça processual). E diz-se certamente, pois desde logo, a Requerida também não fez uso do único meio processual para se obter declaração judicial da falsidade de documento autêntico e quanto à parte praticada e percepcionada pelo seu autor.”
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Assim, consegue-se atingir que o que levou o Tribunal Recorrido a considerar que “o estado dos autos permitia decidir de mérito no despacho saneador” foram as seguintes situações:

-quanto aos factos provados: o facto de toda a matéria de facto se encontrar provada por acordo ou pelos documentos juntos aos autos.
-e quanto aos factos não provados: o facto de a Requerida estar impedida de produzir prova sobre os factos, por si alegados, por estarem abrangidos pela força probatória plena da notificação judicial avulsa.
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Ora, se são estes os fundamentos que permitiram ao Tribunal Recorrido optar pela decisão de mérito, em sede despacho saneador, importa verificar se efectivamente podia, “em face dos elementos constantes dos autos” agora concretizados, efectuar o julgamento de facto que realizou, tendo em conta os meios de prova já produzidos (acordo e prova documental), e sem necessidade que fossem produzidos os demais meios de prova oferecidos (ou que viessem a ser oferecidos) pelas partes.
Avança-se já que o nosso entendimento é que não.
Em primeiro lugar, importa dizer que o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a partilhada pelo juiz da causa (2).
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior art. 511º do CPC, o juiz, ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC), deve (continuar a) seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, “…o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final” (3).
Na verdade, “… quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados… Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica…” (4).
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema (5).
Dito isto, e em segundo lugar, importa entrar directamente na questão atrás enunciada, e que contende com a possibilidade da Requerida produzir prova sobre os factos por si alegados, tendo em consideração a força probatória do documento autêntico que constitui a notificação judicial avulsa efectivada pelo Sr. Solicitador de Execução.
Entendeu o Tribunal Recorrido que tal prova (nomeadamente, testemunhal) era inadmissível, e, consequentemente, julgou como não provados os factos que haviam sido alegados pela Recorrente- als. a) a d) dos factos considerados não provados.
Dentro destas circunstâncias, obviamente que, tendo o Tribunal impedido a Recorrente de produzir prova sobre os factos por si alegados, tais factos teriam que necessariamente resultar como não provados.
Sucede que, salvo o devido pela opinião contrária, contrariamente ao defendido pelo Tribunal Recorrido, a verdade é que o que a Requerida pretendeu, com a alegação dos referidos factos, foi justamente impugnar o teor do acto de notificação judicial avulsa efectivado por falsidade.
Na verdade, tal decorre, de uma forma evidente, das seguintes alegações (que se mostram resumidas nas alegações do Recurso da seguinte forma):

“… consta dos documentos juntos aos autos uma “certidão de notificação sob a forma de citação” na qual a agente de execução assinalou que “o notificando recusou receber ou assinar a presente certidão, tendo sido por mim informado de que a nota de notificação e os documentos ficam à sua disposição na secretaria judicial”, sucede que tal não corresponde à verdade.
E. Em data que não consegue precisar mas que admite possa ter sido em Outubro de 2015, se apresentou na Rua … uma pessoa que disse ser agente de execução e que queria que a ora recorrente assinasse uns documentos. Como o marido da recorrente transmitiu à agente de execução, a recorrente – que não se encontrava no local - antes de assinar pretendia que fossem lidos pelo seu advogado e uma vez que a agente de execução não trazia cópias para deixar ficou de passar lá outro dia para deixar os documentos para serem lidos e assinados, o que nunca mais fez.
F. Ficando a recorrente a aguardar o contacto, contacto esse, que conforme exposto, consigo nunca se verificou, mas apenas com o seu marido, pessoa que lá se encontrava no dia citado. Em momento algum lhe foi entregue qualquer documento ou transmitido que quaisquer documentos ficavam disponíveis onde quer que fosse. Tanto mais que nem sequer o seu contacto a agente de execução deixou, não tendo a recorrente qualquer informação sobre o número de processo ou tribunal. Tendo-lhe sido apenas dito que se tratava de uma notificação por causa de um arrendamento, e nada mais.
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Ora, em face destas alegações fácticas, não temos dúvidas em poder afirmar que, contrariamente ao defendido pelo Tribunal Recorrido, a Requerida, na oposição que deduziu, formulou um pedido de declaração de falsidade do documento autêntico em causa (notificação judicial avulsa).
Como é sabido- e talvez isso tenha confundido o Tribunal Recorrido- o legislador processual civil deixou de prever, para este efeito, a dedução de um incidente (autónomo) de falsidade.
Na verdade, importa esclarecer que no actual CPC não existe, regra geral, propriamente um incidente de falsidade, tal como sucedia no CPC anterior, já que os arts. 360º a 370º, que o previam neste último (até à reforma processual de 95/96), foram revogados já naquele regime, e essa revogação continuou a ser acolhida no novo CPC.
Com efeito, o legislador, no novo Código, manteve essa orientação, e integrou a arguição da falsidade no âmbito da prova documental, sem a autonomizar com a imposição da dedução de um incidente de instância – como decorre do disposto nos arts. 444º e ss. do CPC- salvo, claro, os casos excepcionais previstos no art. 450º (processamento como incidente) que não contendem com a presente situação.

Senão vejamos.

Dispõe agora o artigo 444º do CPC sobre a impugnação da genuinidade de documento, que tal impugnação deve ser feita no prazo de 10 dias contados da apresentação do documento (nº 1) ou no articulado seguinte, se o documento tiver sido junto com o articulado que não seja o último (nº2).
Tal normativo é também aplicável quando se pretenda arguir “a falsidade do documento” (nº 1 do artigo 446º do CPC).
Esclarece, depois, o art. 449º do CPC a forma como a instrução e julgamento se deve processar nestas situações, especificando, designadamente, que a matéria que contenda com o julgamento da arguida falsidade do documento deve ser “… considerada nos temas da prova enunciados ou a enunciar nos termos do nº 1 do artigo 596º…”, incidindo a produção de prova, bem como a decisão, tanto sobre a matéria do incidente como sobre o fundo da causa.
Deste regime processual decorre, assim, que o legislador passou a prever “…um incidente simplificado, destinado à arguição, não só da falsidade documental, mas também de outros vícios do documento, inquinadores da sua autenticidade ou força probatória…” (6).
“Todas estas arguições (previstas nos arts. 446º e ss.), embora umas visem atacar a genuinidade (ou autenticidade) presumida do documento e outras destruir a sua força probatória, têm de comum constituírem meios de ilidir presunções estabelecidas por documentos escritos e impunha-se, por isso, que fossem consideradas pela lei do processo e nela tivessem idêntico tratamento, suprimindo-se o incidente de falsidade para criar um novo incidente, de previsão adequada às realidades da lei civil e de processamento mais simples” (7).
Assim, como refere Salvador da Costa (8), “…o velho incidente de falsidade que existia foi excluído do elenco típico de incidentes e diluído neste amplo procedimento incidental atípico e objecto diversificado…
Pretendeu-se, no âmbito da impugnação probatória, criar um meio processual único e de tramitação simplificada que permitisse a arguição de todas as excepções deduzidas contra a admissibilidade ou a força probatória dos documentos em geral apresentados em processos pendentes, independentemente de se tratar ou não do vício de falsidade verdadeiro e próprio…”.
“Atendendo à sua estrutura, parcialmente decalcada do incidente de falsidade, embora não configure um incidente de instância, por virtude da ausência de autónoma tramitação em relação à da causa, envolve autonomia relativa, decorrente da causa de pedir, arguição e resposta, oferecimento de prova, contraditório, individualização do despacho de rejeição e aditamento do despacho identificativo do litígio e enunciativo das questões de facto que constituam os temas da prova.
Em consequência, propendemos a considerar que se consubstancia em incidente inominado e atípico, instrumentalizado pela notificação oficiosa à parte contrária, pela secretaria, da junção ao processo de qualquer documento, nos termos dos artigos 427º e 443º, nº1 do CPC…” (9).
Nesta conformidade, no caso concreto, não tinha a Requerida que deduzir qualquer incidente de falsidade, antes impondo o legislador que, no âmbito da pronúncia sobre os documentos, esta arguisse a falsidade do acto de notificação avulsa praticado, no âmbito do aludido incidente simplificado.
Foi exactamente essa a posição processual assumida pela Requerida, pelo que, o Tribunal Recorrido, em cumprimento do citado regime processual, teria que ter cumprido o princípio do contraditório (cfr. art. 448º do CPC- já cumprido, embora se tenha invocado o disposto no art. 3º, nº 3 do CPC) e, de seguida, instruído a causa formulando pertinentes temas da prova quanto a esta matéria da falsidade.

Pelo exposto, considera-se que, salvo o devido respeito, tendo sido arguida a falsidade do acto de notificação, e tendo sido posta em causa a força probatória plena do Documento, teria o Tribunal Recorrido de considerar tal matéria na enunciação dos temas da prova (por se tratar de matéria de facto controvertida) e, subsequente, admitir os meios de prova e realizar o respectivo julgamento (de facto e de direito).

Assim, afigura-se-nos que o Tribunal Recorrido não podia, desde já, proferir a decisão aqui posta em crise, não só porque desconsiderou o aludido comando de se dever atender à necessidade de ponderar a factualidade de acordo com as soluções igualmente plausíveis da questão de direito, mas também porque não teve em atenção que a Requerida quando alegou os factos que aqui se encontram em discussão, o que pretendeu efectuar foi justamente impugnar por falsidade o teor da notificação judicial avulsa.

Na verdade, como se disse, para tanto basta atender no teor das alegações fácticas carreadas para o processo pela Recorrente, onde a mesma expressamente impugna o documento em causa por falsidade (“por não corresponder à verdade”).
Ora, ao fazê-lo, a Requerida pôs em causa a força probatória plena do acto de notificação judicial avulsa, que, como é pacífico, decorria do facto de se tratar de um documento autêntico.
Vejamos de que forma o legislador afirma essa força probatória, procedendo-se a um enquadramento sumário dos tipos de documentos legalmente consagrados.

Segundo o disposto no art. 362º do CC diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto, como é o caso de um papel onde se desenharam caracteres da linguagem escrita para expressar declarações de vontade dos respectivos subscritores.

Por seu turno, o documento é autêntico quando foi exarado, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; e é particular em todas as demais situações (cfr. art. 363.º, n.º 2 do CC).
Por outro lado, ainda, os documentos particulares podem ser autenticados, quando se mostrem confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais (cfr. art. 363º, n.º 3 do Cód. Civil).
Uma vez que são diferentes as formas como são exarados e distintos os graus de segurança quanto ao teor do que se faz constar do documento, os documentos têm forças probatórias diferenciadas.

No caso dos documentos autênticos, a força probatória plena está associada ao que foi praticado ou percepcionado pela autoridade ou oficial público que o lavrou.
No caso dos documentos particulares, a força probatória depende da atitude que a parte a quem o documento é imputado toma perante este quando é apresentado em juízo como meio de prova.
Interessa-nos a força probatória dos documentos autênticos.
A questão que a Recorrente, no fundo, coloca é a de saber se, contrariamente ao decidido, devia a matéria de facto por si alegada, em sede de arguição de falsidade do documento, ser tida em conta na enunciação dos temas da prova e se, nessa medida, devia ter sido produzida a prova apresentada quanto a essa factualidade.
É incontroverso que o acto em causa deve ser considerado um documento autêntico (arts. 362º, 363º e 369º e ss. do CC).
No respeitante à força probatória dos documentos autênticos, dispõe o artigo 371º, nº 1, do CC, que "os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora …”.
Acrescenta, no entanto, o art. 372º do CPC que “… a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (nº 1) ”.
O documento autêntico é falso “…quando o documentador não tenha praticado um facto que atesta ter praticado ou quando não se tenha verificado um facto que ele atesta ter sido objecto da sua percepção (art. 372º, nº 2 do CC) (…) “o documento é ainda falso quando a própria declaração que dele consta como tendo sido feita pelo respectivo autor na realidade não teve lugar” (10).
Assim, “a força probatória plena do documento autêntico só pode ser ilidida mediante a arguição e prova da falsidade, isto é, de um ou mais factos abrangidos pela força probatória do documento na realidade não se verificaram, não sendo, portanto, quanto a eles, verdadeira a declaração do documentador…” (11).
Deste regime legal decorre, pois, que se não for arguida a falsidade do documento, não é, de facto, admissível a prova por testemunhas para pôr em causa a força probatória plena do documento (art. 393º do CC- salvo quanto “ à simples interpretação do contexto do documento “ – nº 3 do citado dispositivo legal).
Todavia, no caso concreto, há que ter em conta que, contrariamente ao entendimento do Tribunal Recorrido, se tem que considerar, em face das alegações fácticas apresentadas pela Requerida na Oposição, que esta impugnou o conteúdo do documento por ser falso.
Julga-se, assim, que, tendo a Requerida assumido essa posição processual, não há dúvidas que a restrição de inadmissibilidade da prova testemunhal imposta pelos citados preceito legados fica excluída.

Ou seja, o documento, por força da prova da sua não correspondência dos factos com a realidade (falsidade), perde consequentemente a sua eficácia como fonte de prova dos factos coberto por aquela força probatória plena.
Assim, “… verifica-se que o conceito de falsidade aparece intimamente ligado ao da força probatória plena e que a sua utilidade prática consistirá em eliminar através da sua arguição e prova essa força probatória… “ (12).
Ora, mostrando-se o documento autêntico devidamente impugnado em termos processuais, obviamente que a impugnação (por falsidade) não poderá estar abrangida, em termos de admissibilidade da prova testemunhal, pela força probatória plena do documento reconhecidamente verdadeiro, pois que a sua arguição visa justamente eliminar a eficácia dessa força probatória plena.
Por assim ser, ao arguir a falsidade da prova documental, a força probatória do documento deixa de verificar-se, e a sua eficácia como meio de prova passa a depender da livre apreciação do julgador, que, naturalmente, o confronta com os demais elementos probatórios que possui (e que constam do processo).
Importa aqui distinguir dois momentos.
Num primeiro momento, há que estabelecer a genuinidade do documento e só depois, num segundo momento, há que determinar a sua força probatória e a eficácia do meio de prova, só ilidível mediante a arguição da falsidade.
Nesta conformidade, pode-se concluir que o Tribunal Recorrido partiu de um pressuposto que não se verifica no caso concreto, para concluir pela inadmissibilidade da produção de prova testemunhal sobre a factualidade correspondente à arguida falsidade do documento.
Na verdade, em face da impugnação (por falsidade) do documento, evidentemente este último perde a eficácia probatória plena que o Tribunal Recorrido lhe pretendia atribuir.
Consequentemente, dentro do aludido princípio da livre apreciação da prova, nada impedirá que se produza prova testemunhal sobre a falsidade alegada.
Com efeito, a Requerida impugnou por falsidade o documento em causa, pelo que, mostrando-se preenchida a hipótese prevista no nº 1 do art. 372º do CC, inequívoco se torna que o aludido documento não tem (ou perdeu a …) força probatória plena, podendo, assim, ser produzida prova testemunhal sobre o conteúdo do documento, nomeadamente, no sentido de ilidir a força probatória plena que, não fora a invocação da falsidade, lhe poderia competir.
Nessa medida, não podia o Tribunal Recorrido ter considerado que o documento em causa mantinha a sua força probatória plena, depois da Requerida, na oposição, ter arguido a sua falsidade.
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Aqui chegados- noutra vertente da questão, e ainda com interesse para o que se discute nos presentes autos- importa distinguir várias situações.
Uma dessas situações é a falta de realização de um acto judicial (por ex. a falta de citação).
Esta situação não pode ser confundida com a nulidade desse acto judicial (por ex. a nulidade da citação), nem com a arguição da falsidade do acto judicial (falsidade da citação) (13).
Na verdade, importa não confundir estas situações (14).
Dá-se a falta de realização do acto judicial, quando se invoca que o acto em causa nem sequer teve lugar, apesar de isso ter sido mencionado pela entidade que documentou o acto (15).
Já no caso da nulidade do acto judicial, o que se invoca é que, apesar do acto ter sido praticado, o mesmo não cumpriu uma qualquer formalidade ou requisito legal a que devia obediência.
Finalmente, o acto judicial será falso quando existe desconformidade entre o facto representativo nele contido e a realidade de algum dos seus elementos. Ou seja, atestou-se um facto ou uma percepção no documento que não se verificou (16).
Feitas estas distinções, facilmente se concluirá que a Requerida invocou, na oposição que apresentou, estes dois últimos vícios do acto de notificação judicial avulsa.
Por um lado, invocou a omissão das formalidades legais que, segundo ela, deveriam ter sido praticadas (omissão do cumprimento do nº 5 do art. 239º do CPC) - vício de nulidade do acto judicial praticado.
Por outro lado, invocou que as declarações constantes do acto praticado não estão conformes à realidade efectivamente ocorrida- vício de falsidade.
Quanto à primeira questão, ela não constitui objecto do presente Recurso (ou, pelo menos, mostra-se prejudicada na sua apreciação, face ao que aqui se irá decidir).
Quanto à segunda questão, é inequívoco que, como se referiu, a Requerida invocou expressamente a falsidade do acto de notificação judicial avulsa praticado (ou seja, “a falta de correspondência entre o conteúdo daquilo que se tenha atestado e o que realmente se verificou”, nomeadamente, quando expressamente impugna- “por tal não corresponder à verdade”- a parte em que na notificação se atesta o seguinte: “o notificando recusou receber ou assinar a presente certidão, tendo sido por mim informado de que a nota de notificação e os documentos ficam à sua disposição na secretaria judicial”) - v. o que se refere na nota 16.
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Aqui chegados, importa, ainda, entrar noutra vertente da análise da questão em discussão nos autos.
Como é sabido, nos termos do disposto no artigo 256º, n.º 1, do actual CPC: “As notificações avulsas dependem de despacho prévio que as ordene e são feitas pelo agente de execução, designado para o efeito pelo requerente ou pela secretaria, ou por funcionário de justiça, nos termos do n.º 9 do artigo 231º, na própria pessoa do notificando, à vista do requerimento, entregando-se ao notificado o duplicado e cópia dos documentos que o acompanhem.”
Como resulta do disposto no artigo 256º, nºs 4 e 5, do CPC, a notificação judicial avulsa inicia-se com um acto da parte interessada, isto é, o respectivo requerimento.
Apresentado o requerimento ao juiz, este profere despacho fundamentado a deferir ou a indeferir o requerido.
Se indeferido, a fundamentação deverá ser mais cuidada, mormente, porque o despacho é recorrível para a Relação – cf. artigo 257.º, n.º 2, do CPC.
No caso de deferimento da notificação avulsa, não há oposição – cf. artigo 257º, n.º 1, do CPC.
No entanto, não está vedado ao notificado reagir através da arguição da nulidade da notificação, nos termos gerais do regime das nulidades dos actos processuais, possibilidade essa que se infere do disposto no artigo 323.º, n.º 3, do CC.
Na verdade, como escreve o Prof. Alberto dos Reis (17), o que se estabelece no artigo 257º, nº 1, do CPC, “… não obsta a que o notificado argua qualquer nulidade de que enferme a notificação. O que o texto veda é a oposição à notificação; ora uma coisa é arguir a nulidade de um acto, outra é deduzir oposição a esse acto. (…). Isso (a oposição à notificação) é que o notificado não pode fazer no processo de notificação; mas pode reclamar contra qualquer nulidade, se porventura a notificação foi feita com inobservância das formalidades legais.”.
Proferido o despacho de deferimento, segue-se o ritualismo previsto no artigo 256.º do CPC.
No caso concreto, no entanto, ter-se-á ainda de atender ao que se mostra preceituado nos arts. 9º e 10º da Lei 79/2014.
Destas considerações resulta também que, mesmo atendendo ao regime específico das notificações judiciais avulsas, a Requerida não estava impedida de invocar os vícios de nulidade e de falsidade do acto de notificação avulsa efectivado.
Ora, sendo assim, também se confirma, por esta via, que, tendo a Requerida, oportunamente, invocado a falsidade do acto praticado, podia arguir a nulidade e a falsidade do acto judicial praticado, e produzir prova, nomeadamente, testemunhal, sobre os factos de onde decorria essa sua invocação.
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Aqui chegados, importa retirar as necessárias conclusões de tudo quanto se acaba de dizer, nas diferentes vertentes que foram analisadas.
Na verdade, tendo em consideração tudo o que se acaba de expor, não pode haver dúvidas que, no caso concreto, se impõe que a decisão a proferir, em sede de mérito, deva aguardar a produção dos meios de prova oferecidos, ou que venham a ser produzidos pelas partes, seja em sede da fase instrutória do processo, seja em sede da Audiência Final, designadamente no que concerne à matéria da arguição da falsidade do documento.
Na verdade, afastada, como se julga ter demonstrado, a impossibilidade de produzir prova, inclusivamente prova testemunhal, sobre a aludida factualidade, terão necessariamente de ser enunciados temas da prova relacionados com a invocada falsidade do documento autêntico, já que se trata de matéria de facto controvertida, cuja prova não pode ser obstaculizada à Requerida, a partir do momento em que a mesma invocou expressamente a não conformidade do aí declarado com a realidade fáctica atestada no documento.
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Devem, pois, os presentes autos prosseguir os seus ulteriores termos processuais, com a elaboração do despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (os já referidos que contendem com a matéria de facto constante dos pontos 6 e 7 e als. a) a d) e ainda os que o Tribunal recorrido entender ser pertinente formular), sendo de admitir que, produzindo-se prova sobre a alegada omissão das formalidades do acto de notificação judicial avulsa, se logre alcançar a almejada decisão conscienciosa da questão de mérito aqui precipitadamente decidida.
É, pois, nesse exacto ponto que, procedendo a apelação, deve ser revogada a sentença, com a consequência de, em 1ª Instância, dever retomar-se a fase de saneamento do processo, substituindo-se a decisão aqui revogada, por decisão que atenda àquela matéria de facto que se considerou relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, à luz das posições assumidas nos articulados e do regime dos arts. 597º, 595º e 596º do CPC.
Assim, e pelo exposto, deve proceder a presente apelação, revogando-se a decisão impugnada, que deve ser substituída por outra que dê obediência ao acima exposto.
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III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:

- julgar procedente a presente apelação, e, em consequência, revogar a sentença recorrida, que deve ser substituída por outra decisão que ordene o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, retomando a fase do saneamento do processo, com a elaboração do despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, em que se dê obediência ao acima exposto;
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Sem custas (artigo 527.º, nº 1 do CPC).
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Guimarães, 18 de Dezembro de 2017

(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)
(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)
(Dr. José Alberto Moreira Dias)

1. Cf. com referência a idêntica norma do anterior Código de Processo Civil – artigo 511º, n.º1, al b) – ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, pág. 131-132.
2. Cf. Ac. da RL de 17/12/2001, publicado em www.dgsi.pt.
3. Ac da Relação de Coimbra de 2-07-2013, publicado em www.dgsi.pt.
4. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 256/7.
5. Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 257; cfr. Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum à luz do CPC de 2013”, pág. 186.
6. Lebre de Freitas, in “CPC anotado”, Vol. II, pág. 269.
7. Lebre de Freitas, in “CPC anotado”, Vol. II, pág. 270.
8. In “Incidentes de Instância”, pág. 265.
9. Salvador da Costa, in “Incidentes de Instância”, pág. 266.
10. Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum”, pág. 233/4.
11. Lebre de Freitas, in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), pág. 461.
12. Lebre de Freitas, "A Falsidade no Direito Probatório", pág. 45.
13. Abrantes Geraldes, in “Temas Judiciários”, I Vol.”, pág. 158 refere o seguinte: “Não se encontra no CPC qualquer norma que trate diferenciadamente o acto de notificação relativamente aos restantes actos judiciais, como sucede com a citação. Daí que, sem prejuízo de determinadas situações que possam qualificar-se de inexistentes, ou integrar-se no regime previsto para a falsidade de actos judiciais, prevendo a lei o cumprimento de determinadas formalidades é da análise dos factos que forem constatados e da sua conjugação com o art. 201º (do anterior CPC) que o juiz deve partir para efeitos de considerar ou não a existência de alguma nulidade…”.
14. V., com pertinência, o ac. da RG 25.11.2010, in CJ, t. 5, pág. 282 e ss.. Abrantes Geraldes efectua, também, estas distinções, no seu livro “Temas Judiciários”, I Vol.”, págs. 87 a 109.
15. Neste caso (por ex. falta de citação) “trata-se da pura inexistência do acto”- Lebre de Freitas, in “CPC anotado”, Vol. I, pág. 364.
16. Segundo Abrantes Geraldes, in “Temas Judiciários”, I Vol.”, pág. 105 “a falsidade (da citação) pode derivar da completa omissão do acto afirmado no processo (v. g. a irreal entrega da carta ao citando, ausência do alegado contacto directo entre o funcionário e o citando) ou da falta de correspondência entre o conteúdo daquilo que se tenha atestado e o que realmente se verificou (v. g. entrega do duplicado, data da citação, informações obrigatórias).
17. In “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2.º, págs. 742/743.