Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4865/16.6T8VNF.G1
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: DIREITO AO CONTRADITÓRIO
DEVER DE AUDIÊNCIA PREVIA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1- O direito ao contraditório compreende o direito das partes invocarem as pertinentes razões de facto e de direito que sejam necessárias para a defesa das suas posições processuais, o direito a oferecer as próprias provas, a controlar aquelas que são apresentadas pela parte contrária e ainda o direito de se pronunciar sobre o valor probatório de todas elas.
2- O dever de audição prévia, enquanto emanação do princípio do contraditório, só existe relativamente às soluções, de facto ou de direito, que, de todo, não possam ser previstas pelas partes.
3- Não é esse o caso, em relação ao julgamento de um pedido que foi julgado improcedente, devido à ausência de factos suscetíveis de preencher o direito alegado pelo autor desse pedido.
4- Findos os articulados, o juiz deve, ou seja, está obrigado, a providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias e a convidar ao aperfeiçoamento dos articulados quanto à matéria de facto. Tal como deve determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
5- No entanto, tal como no regime processual civil anterior, o aperfeiçoamento dos articulados só deve constituir remédio para os casos em que os factos principais da causa, ou seja, os que integram a causa de pedir e as exceções, sejam escassos ou não se encontrem suficientemente concretizados. Não, quando a causa de pedir ou as exceções não se apresentem, de todo, factualmente identificadas e caracterizadas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório
1- I, instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra o F, alegando, em breve resumo, que é titular de duas quotas (212.500,00€ e 37.500,00€) no capital social desta sociedade, titularidade essa que lhe foi judicialmente conferida em ação de divisão de coisa comum que identifica.
Nessa qualidade, interveio na assembleia geral ordinária, realizada no dia 30/06/2016, que tinha a seguinte ordem de trabalhos:
1.º- Deliberar sobre o relatório de gestão e contas de exercício, referentes ao ano de 2015;
2.º- Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados do exercício de 2015;
3.º- Solicitação do reembolso do saldo de suprimentos.
Sem o seu voto favorável, foram aprovadas as seguintes deliberações:
- quanto ao primeiro ponto da ordem de trabalhos - foram aprovados o relatório de gestão, o balanço e contas referentes ao exercício de 2015;
- quanto ao segundo ponto da ordem de trabalhos – “relativamente aos resultados líquidos apurados no exercício de dois mil e quinze, no montante global de cento e sete mil vinte e oito euros e doze cêntimos, foi deliberado constituir reservas legais no montante de cinco mil trezentos e cinquenta e um euros e quarenta e um cêntimos e constituir reserva especial para lucros retidos e reinvestidos no montante de sessenta mil euros e constituir reservas livres no montante de quarenta e um mil, seiscentos e setenta e seis euros e setenta e um cêntimos.”
- quanto ao terceiro ponto da ordem de trabalhos – rejeitar a proposta de reembolso imediato da totalidade do valor do saldo da conta de suprimento.
Sucede que, na senda do que tem sucedido desde o ano de 2010, em que faleceu o seu pai e anterior sócio, e deixaram de ser distribuídos lucros ou dividendos, as referidas deliberações são abusivas e nulas, porquanto visam, no fundo, vedar-lhe o acesso a qualquer benefício inerente à participação social de que é titular, bem como a perpetuação dos gerentes (que são os demais sócios) no controlo e fruição absolutos e exclusivos de todos os ativos da sociedade. O que lhe causa prejuízo a ela, A., e à própria Ré. Até porque esta não carece dos suprimentos cujo reembolso foi proposto.
Concluiu, assim, pedindo que sejam declaradas nulas ou anuláveis as deliberações tomadas na sobredita assembleia geral da Ré, datada de 30/6/2016.
2- Contestou a Ré, refutando esta pretensão, porquanto, em suma, não reconhece como verdadeiras as acusações da A..
3- Terminados os articulados, teve lugar a audiência prévia, na qual foi tentada a conciliação das partes e, frustrada esta, se advertiram as partes para a “possibilidade de decidir, sem produção de outra prova, do mérito da causa”, tendo sido concedida a palavra aos mandatários das partes “para, em cumprimento do disposto no artº 591º, nº 1 al b) do C.P.Civil, dizerem os que lhes aprouvesse. Ambos disseram pretender reproduzir o teor dos articulados”.
4- Seguidamente, foi proferida sentença na qual se decidiu:
“a) Julgar verificada a nulidade da deliberação de rejeição de reembolso de suprimentos, nos termos do artigo 56. o, n. o I, aI. c) do CIRE, por se tratar de matéria excluída da competência dos sócios;
b) Julgar inverificada a nulidade e a anulabilidade invocadas pela Autora quanto às demais duas deliberações tomadas na assembleia geral da Ré, datada de 30/6/2016, e, consequentemente, decido absolver a Ré dos pedidos contra ela deduzidos”.
5- Inconformada com esta sentença, dela recorre a A. terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1- Desde logo, cumpre afirmar o total incumprimento da parte do tribunal recorrido do dever de proferir despacho de aperfeiçoamento, contrariando frontalmente o actual regime processual civil e a jurisprudência unânime na matéria.
2- A ser como o tribunal recorrido diz (que não é), deveria ter havido lugar à prolacção de convite ao aperfeiçoamento, considerando até a recente alteração processual civil.
3- Todavia, ao não ter dado cumprimento a tal dever, o tribunal recorrido incorreu em nulidade insanável, emergente da violação do disposto no art. 590, n.º 4 CPC, sancionada com nulidade, aqui expressamente suscitada, para além da omissão/incumprimento evidente dos deveres a que, actualmente mais do que nunca, os tribunais estão vinculados.
4 - O despacho, no que aqui interessa, que foi proferido na audiência prévia foi o seguinte:
«Seguidamente, frustrada tentativa de conciliação, a Mm" Juíza advertiu os II. Mandatários quanto à possibilidade de decidir, sem produção de outra prova, do mérito da causa, dando-lhes a palavra para em cumprimento do disposto no art° 591°, nº 1 al. b) do C. P. Civil, dizerem o que lhes aprouvesse. Ambos disseram pretender reproduzir o teor dos articulados.»
4 - Não era exigível que as partes interpretassem o despacho com o sentido de que o tribunal as convidava a uma pronúncia sobre um efeito jurídico não requerido no processo, pelo que se tratou de uma verdadeira surpresa para ambos os litigantes, considerando que o tribunal não dirigiu nenhum convite à pronuncia das partes e o despacho em causa não consubstancia qualquer convite, nem pode ser interpretado como tal, pelo que verifica-se a prolacção de decisão ­surpresa nos autos, uma vez que se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria.
5- Nem recorrente, nem recorrida, poderiam supor que os presentes autos viriam a ser decididos decretando UM EFEITO NUNCA PETICIONADO (e sem sustentação legal), contrariando frontalmente o actual regime processual civil e a jurisprudência unânime na matéria.
6- É, pois, uma DECISÃO SURPRESA, absoluta e imperativamente proibida por Lei, contrariando frontalmente o actual regime processual civil e a jurisprudência unânime supra-citada a titulo meramente exemplificativo.
7- No final da sua contestação, a recorrida limita-se requerer a improcedência da acção e, ao longo do seu articulado, não invoca separadamente qualquer excepção (como obriga o disposto na alínea c) do art. 572 CPC) e muito menos a recorrida teve a oportunidade de se pronunciar sobre tal possibilidade que, de modo igualmente surpreendente, serviu para a fazer improceder a sua pretensão, pelo que está violado, de forma irreversivelmente gravosa e até inconstitucional, o princípio do contraditório, com a inerente nulidade.
10- O tribunal recorrido ultrapassou os limites do requerido pela recorrida e, por sua própria iniciativa, definiu os limites da demanda totalmente fora dos limites traçados pelas próprias partes, violando-se assim o princípio do dispositivo e fazendo-se um uso excessivo e ilícito do princípio do inquisitório.
11- A petição inicial integra a factualidade (mais do que) suficiente para o prosseguimento dos autos e para a produção de prova correspondente, com vista à sua procedência, como resulta também da circunstância da recorrida ter apresentado a sua douta contestação sem suscitar qualquer reserva ou reparo, tendo exercido o contraditório cabalmente, discutindo e abordando todos os pontos invocados pela recorrente na sua petição inicial.
12- E a prova inequívoca de que a petição inicial tem factos mais do que suficientes é a douta sentença proferida no proc.nº 4863/16.0T8VNF (vd. doc.nº 1), que julgou procedente a pretensão da aqui recorrente, em que a A. é a mesma, que se refere a sociedade em que os sócios são os mesmos e em que as respectivas posições societárias têm a mesma proporção e em que apenas difere o exercício (ou seja o ano civil) a que se reportam as deliberações sociais impugnadas, sendo os argumentos invocados e a matéria alegada essencialmente idêntica à dos presentes autos e que demonstra não haver qualquer omissão de alegação (pelo menos a MMº Juiz que proferiu a referida Douta Sentença foi capaz de perceber perfeitamente o quadro fáctico existente) e que o alegado pela A. foi mais do que suficiente para a procedência da nulidade da deliberação que vedou à A. o direito à distribuição de lucros.
13- Como o tribunal recorrido sabe (a litispendência e o caso julgado são do conhecimento oficioso - arts. 577, i) e 578 CPC) , a recorrente, mesmo enquanto contitular de quota indivisa, tentou impugnar as anteriores deliberações sociais referentes aos anteriores exercícios (tendo todas as impugnações corrido termos na 2ª Secção de Comércio de Vila Nova de Famalicão) desde que, em 2010, adquiriu, por sucessão, as participações sociais em questão (ainda que, numa primeira fase, em comum com outro interessado) não correspondendo à verdade, nem tendo qualquer base efectiva, sugerir ou de alguma forma fazer referência a que a A. só passou a tentar exercer os seus direitos a partir de 2014 ou 2015.
14- Só se for ordenada a produção da prova requerida na petição inicial, serão apurados e comprovados os factos aludidos na sentença recorrida, a que a recorrente não pode aceder sem determinação judicial, pelo que se se adoptar a tese do tribunal recorrido, tal fará com que a recorrente e seus legítimos direitos fiquem desprovidos de tutela jurisdicional.
15- A Douta Decisão recorrida viola, nomeadamente, o disposto nos arts. 3 e 590 CPC.”.
Pede, assim, que se revogue a decisão recorrida, a qual deve substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos até final, com produção de prova, ou que julgue, desde já, a ação procedente.
Junta cópia da sentença proferida no Processo n.º 4863/16.0T8VNF.
6- Em resposta, a Ré pugna pela manutenção do julgado e pela inadmissibilidade legal de junção do documento apresentado pela A. com as alegações de recurso.
7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II- Questão prévia:
Da alegada inadmissibilidade de junção do documento apresentado pela A., com as suas alegações de recurso.
Nnos termos do artigo 651.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, “[a]s partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância”.
Por sua vez, dispõe o artigo 425º que “[d]epois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Da conjugação destas normas, resulta que a junção de documentos em sede de recurso depende da alegação e prova pela parte apresentante de uma de duas situações: impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; e ter o julgamento da primeira instância tornado necessária a consideração de prova documental adicional que anteriormente não se configurava como tal ao objecto da acção(1). Nunca para provar factos que já antes da sentença a parte sabia que estava sujeita a prova(2).
Por outro lado, os documentos, enquanto meios de prova, destinam-se a provar factos (artigo 341.º, do Código Civil); não teses jurídicas.
Ora a A., com a apresentação de cópia da sentença proferida no Processo n.º 4863/16.0T8VNF, o que pretende evidenciar, justamente, é a sua tese jurídica no sentido de que a petição inicial tem factos mais do que suficientes para o julgamento de mérito (cl. 12ª).
De modo que, não sendo esta a finalidade legalmente consagrada para a junção de documentos, enquanto meios de prova, não se admite a junção da referida cópia e, consequentemente, determina-se o seu posterior desentranhamento dos autos e a entrega ao apresentante, após trânsito em julgado desta decisão.
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III- Mérito do recurso
1- Definição do seu objecto
O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objeto deste recurso reconduz-se, essencialmente, às seguintes questões:
a) Em primeiro lugar, saber se a instância recorrida violou os princípios indicados pela A.;
b) E, depois, decidir se a mesma devia ter sido convidada a aperfeiçoar a petição inicial.
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2- Fundamentação
A- Na instância recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
a) A Autora é titular das seguintes participações no capital social da Ré: uma quota no valor nominal de 212.500,00€ e uma quota no valor de 37.500,00€, titularidade essa, registada pela Ap. de 17/6/2015, que adveio por sentença proferida no Processo de divisão de coisa comum n.º 611/14.7TJVNF, que correu termos no Juiz 3 da Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão;
b) No dia 30 de junho de 2016, foi realizada sessão ordinária da assembleia geral da Ré, com a seguinte ordem de trabalhos:
i. Primeiro: deliberar sobre o relatório de gestão e contas de exercício referentes ao ano de 2015;
ii. Deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados do exercício de 2015;
iii. Solicitação do reembolso do saldo de suprimentos;
c) Na assembleia de b), foram aprovadas, sem o voto favorável da Autora e com os votos favoráveis de M e de J, as seguintes deliberações:
i. Aprovar o relatório de gestão, o balanço e contas referentes ao exercício de 2015;
ii. «relativamente aos resultados líquidos apurados no exercício de dois mil e quinze, no montante global de cento e sete mil vinte e oito euros e doze cêntimos, foi deliberado constituir reservas legais no montante de cinco mil trezentos e cinquenta e um euros e quarenta e um cêntimos e constituir reserva especial para lucros retidos e reinvestidos no montante de sessenta mil euros e constituir reservas livres no montante de quarenta e um mil, seiscentos e setenta e seis euros e setenta e um cêntimos.»
iii. rejeitar a proposta de reembolso imediato da totalidade do valor do saldo da conta de suprimentos.
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B- Apreciação dos fundamentos do recurso
O que nele está em causa, fundamentalmente, é a parte da sentença recorrida que julgou inverificada a nulidade e a anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia geral da Ré, datada de 30/6/2016, que aprovaram o relatório de gestão e contas e a aplicação dos resultados do exercício de 2015.
Em relação a essas deliberações, a instância recorrida, ao contrário daquilo que era defendido pela A., não as considerou abusivas.
Desde logo, porque na alegação da A. aquela instância referiu não ter vislumbrado “que a deliberação de aprovação do relatório e de constituição de reservas possa ter, por qualquer forma, prejudicado a sociedade Ré, dado que, por um lado, nem isso é alegado, por outro, nem a deliberação de constituição de reservas poderia, a partida, prejudicar a sociedade (mas sim beneficiá-la). Por outro lado, a Autora não alega qualquer desconformidade nas contas do exercício que foram aprovadas”.
Já no que concerne ao eventual prejuízo para a A., afirmou-se na sentença recorrida que a alegação por aquela feita, a esse propósito, era vaga e genérica.
“Na verdade, para além da alegação de intenções que perpassa a petição inicial, foi simplesmente alegado de forma genérica que, desde 2010, os demais sócios têm vindo a perpetuar as funções de gerentes, assim impedindo que à Autora cheguem quaisquer benefícios.
Urge não esquecer que a quota por ela adquirida em partes iguais em Novembro de 2010 - ­veja-se a certidão da CRC - permaneceu indivisa e apenas foi dividida, por iniciativa de terceiro, em acção de divisão de coisa comum cuja sentença transitou em julgado em Maio de 2015. Esse processo tem data de autuação do ano de 2014!
Não vemos, pois, que tenha sido alegada qualquer prática reiterada no tempo e excessiva que visasse prejudicá-la, tanto mais que o seu direito, enquanto titular única de uma quota, apenas foi registado treze dias antes da realização da assembleia aqui em causa.
Por outro lado, a Autora não alega factos que pudessem necessitar de prova, nomeadamente, respeitantes ao valor das remunerações dos outros dois sócios (gerentes) ou de gratificações ou prémios por eles auferidos, ou de privilégios, como o uso de veículos ou de gastos pessoais suportados pela sociedade e que apenas beneficiariam os sócios gerentes.
Assim sendo, e restando uma alegação de intenções vagas, nada mais resta do que julgar, desde já, improcedente, nesta parte, a presente acção, por se tratar, não de uma alegação deficiente, mas de uma total ausência de alegação de factos que pudessem levar a suportar os efeitos jurídicos pretendidos”.
E é contra esta parte da decisão que a A. se mostra inconformada.
Sustenta ela, no fundo, que tal decisão constitui uma surpresa, visto que não foi antecedida do necessário contraditório, nem foi sequer antes equacionada. Mais: constitui uma exacerbação do princípio do inquisitório.
Por outro lado, a haver falta de factos para a procedência do pedido – no que não concede, visto que numa outra decisão judicial já se optou pela solução contrária – devia a mesma ter sido convidada a aperfeiçoar a petição inicial.
Ora, estas críticas, como veremos, não podem ser acolhidas.
Mas, para o compreender, importa começar por recordar que o princípio do contraditório emana de um outro princípio que se traduz na exigência constitucional do direito de ação ou direito de agir em juízo através de um processo equitativo (artigo 20.º da CRP). E este último, por sua vez, ou seja, a noção de processo equitativo, abarca diversas dimensões às quais não é alheia a própria conformação do processo, de modo a que, através dele, se obtenha uma tutela judicial efetiva, em termos materialmente adequados.
Ora, uma das formas de alcançar esse resultado, no âmbito estritamente civil, é conferindo às partes o direito ao contraditório; ou seja, o direito a invocar as pertinentes razões de facto e de direito que sejam necessárias para a defesa das suas posições processuais, o direito a oferecer as próprias provas, a controlar aquelas que são apresentadas pela parte contrária e ainda o direito de se pronunciar sobre o valor probatório de todas elas.
Estes direitos estão legalmente consagrados, mas dedicam-lhe particular atenção os artigos 3º e 415.º, ambos do Código de Processo Civil.
Segundo o primeiro, “[o] tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição” (n.º 1).
“Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” (n.º 2).
E, como regra, “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Especificamente em relação às provas, dispõe o citado artigo 415.º que, “[s]alvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas (n.º 1).
“Quanto às provas constituendas, a parte é notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e é admitida a intervir nesses atos nos termos da lei; relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória” (n.º 2).
Se bem repararmos, qualquer um destes preceitos prevê limitações aos referidos direitos. Em casos excecionais, previstos na lei, podem ser tomadas providências contra determinada pessoa sem que a mesma seja previamente ouvida; tal como, também em casos excecionais, podem ser admitidas e produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem as mesmas hajam de ser opostas. E isso sem que sejam afetados os referidos princípios. O que se passa é que, nesses casos, o contraditório é diferido para momento posterior. Assim, por exemplo, nos procedimentos cautelares decididos sem contraditório prévio, a oposição é subsequente ao decretamento da providência (artigo 372.º, n.º 2, do Código de Processo Civil). E, em relação às provas, a audiência contraditória é permitida a partir do momento em que a parte seja admitida a intervir. Nessa altura, a parte cuja audição foi dispensada pode examinar as provas produzidas sem a sua intervenção e deduzir contra as mesmas todas as contraprovas que entender, desde que legalmente consentidas. Mas já não pode, porque materialmente irrealizável, intervir no ato da sua produção. Ou seja, o princípio da audiência contraditória sofre aqui limitações idênticas às que ocorrem em relação às provas pré-constituídas; isto é, a parte opositora não pode exercer mais do que o direito a impugnar o valor e eficácia dessa prova(3).
Tal não significa, porém, que o referido princípio tenha sido comprimido de forma injustificada. O que se passa é que o legislador, por razões de interesse público ligadas à eficácia do sistema de justiça e à salvaguarda de outros direitos que sobrelevam os interesses de uma das partes, permite as referidas limitações. Mas delas não resulta, qualquer violação inadmissível ao princípio do contraditório, uma vez que este, no plano da prova, como já vimos, se exprime nessas situações, essencialmente, através de outras dimensões que continuam asseguradas.
Ora, tendo presente este enquadramento, bem se vê, julgamos nós, que, no caso presente, não houve qualquer violação do princípio do contraditório. A A. teve a possibilidade de alegar todas as razões de facto e de direito que teve por pertinentes para a defesa dos direitos que entende assistir-lhe, teve igualmente acesso à contestação da Ré e à prova pela mesma oferecida, e, nessa medida, a contraditoriedade foi respeitada.
Por outro lado, também não cremos que tenha sido violado, ou sequer exacerbado, o princípio do inquisitório. A instância recorrida cingiu-se ao pedido e analisou-o em função dos fundamentos e provas aportadas pelas partes e, portanto, não excedeu os poderes que a lei lhe confere. O que se passa é que, em relação a uma parte desse pedido, não lhe conferiu procedência. Mas essa decisão e os seus fundamentos são perfeitamente legítimos.
E são legítimos não só em função das regras substantivas, mas também processuais.
Especificamente, não há na decisão recorrida qualquer surpresa legalmente relevante.
Na verdade, o dever de audição prévia, enquanto emanação do princípio do contraditório, só existe relativamente às soluções, de facto ou de direito, que, de todo, não possam ser previstas pelas partes (artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Por outras palavras, só “estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou, no mínimo e concedendo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que a parte o havia feito”(4).
Ora, se há soluções que as partes têm, mas muitas vezes não querem prever, é a improcedência de um pedido, motivado pela ausência de factos que preencham o direito alegado. E foi isso que sucedeu no caso presente.
Daí que, repetimos, não haja na sentença recorrida qualquer surpresa legalmente relevante.
De resto, e ao contrário do que parece pretender a Apelante, também não cremos que o tribunal recorrido tivesse de anunciar este desfecho na audiência prévia. Esse desfecho, na verdade, é um múnus exclusivamente jurisdicional e, por isso, não tem de ser previamente anunciado.
Por fim, resta a alegada omissão do dever do convite ao aperfeiçoamento.
É hoje inequívoco que, findos os articulados, o juiz deve, ou seja, está obrigado, a providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias e a convidar ao aperfeiçoamento dos articulados quanto à matéria de facto. Tal como deve determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador. É o que decorre do disposto no artigo 590.º nºs 2 als. a) a c), 3 e 4 do Código de Processo Civil.
No entanto, tal como no regime processual civil anterior, o aperfeiçoamento dos articulados só deve constituir remédio para os casos em que os factos principais(5) da causa, ou seja, os que integram a causa de pedir e as exceções, sejam escassos ou não se encontrem suficientemente concretizados. Não já, por regra, quanto aos factos instrumentais, uma vez que estes se destinam a servir de suporte à demonstração dos primeiros e podem ser oficiosamente considerados (artigo 5.º, n.º 2 al. a), do Código de Processo Civil).
Por outro lado, fora da previsão do aludido preceito estão também os casos em que a causa de pedir ou a exceção não se apresentem, de todo, factualmente identificados. Nessas hipóteses, estaremos perante situações de verdadeira ineptidão da petição inicial ou nulidade da exceção e não perante insuficiência de alegação no sentido indicado. É mais do que isso. É, no fundo, uma absoluta ausência de alegação factual(6).
Ora o que se verifica na situação em apreço é que, em relação ao prejuízo que a A. diz sofrer com as deliberações impugnadas, nenhum evento concreto, naturalístico ou não, é alegado que permita identificar ou quantificar esse prejuízo.
Refere a A., por exemplo, que as deliberações impugnadas visaram vedar-lhe “o acesso a qualquer benefício inerente à participação social de que é titular”, “visando ainda a perpetuação dos gerentes (que são os demais sócios) no controlo e fruição absolutos e exclusivos de todos os activos da sociedade (incluindo vários carros de luxo de valor superior a cem mil euros cada um)”, “fazendo com que a participação social da A. seja totalmente desprovida de concretização efectiva”, “quer sob o ponto de vista financeiro”, “quer sob o ponto de vista societário”, “pois toda a actuação dos gerentes da R. (que são também os restantes sócios) é guiada pelo objectivo de colocar a A. (como de facto colocam) à margem da sociedade R.”, “e à margem das mais elementares informações sobre os negócios da R. e o que tem andado a gerência a fazer com os (muito avultados) meios financeiros que a R. proporciona”, “ainda que à A. não chegue um único cêntimo”, “como decorre das deliberações ilícitas e abusivas aqui postas em causa”.
Mas nunca concretiza os eventos que permitem formar estes juízos.
Consequentemente, nenhum facto real e essencial havia para completar. Daí que não pudesse ser aperfeiçoado.
Em suma, cremos que argumentação recursiva da A. não é de acolher e, por conseguinte, a sentença recorrida, na parte impugnada, a cuja fundamentação se adere, só pode ser confirmada.
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IV- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida, na parte impugnada.
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- Porque decaiu na sua pretensão recursiva, as custas deste recurso serão suportadas pela A.- artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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1 - Cfr. Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 184.
2 - Cfr. neste sentido, entre outros, o Acórdão desta Relação, de 27/02/2014, Proc. 323/12.6TBFLG-E.G1 e Ac. RC de 18/11/2014, Proc. 628/13.9TBGRD.C1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
3 - Cfr. neste sentido, Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil, Os Princípios Estruturantes, Almedina, 2013, pág. 43.
4 - Ac. RC de 13/11/2012, Processo n.º 572/11.4TBCND.C1, consultável em www.dgsi.pt.
5 - Essenciais e complementares.
6 - Cfr. sobre esta problemática no domínio da lei processual civil anterior, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág.383 e 384.