Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO DIOGO RODRIGUES | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO DENÚNCIA DEVERES DO ARRENDATÁRIO RESOLUÇÃO DO CONTRATO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 02/23/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | 1- Os contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, não podem ser, no domínio da lei atual, objeto de denúncia pelo senhorio, mediante comunicação prévia ao arrendatário, nos termos do artigo 1110.º, al. c), do Código Civil. 2- O arrendatário, tal como o proprietário, devem abster-se de produzir, a partir do prédio em que habitam, ruídos que violem o direito ao sossego e boa vizinhança daqueles que os rodeiam. 3- A violação desse dever é suscetível de fundamentar a resolução do contrato de arrendamento, por parte do senhorio. 4- No entanto, essa resolução só pode ser decretada se tal incumprimento for grave em si ou nas suas consequências. Caso contrário, o comportamento pode ser violador dos apontados direitos, mas não suficiente para decretar a extinção do contrato. | ||
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Decisão Texto Integral: | 1- Os contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, não podem ser, no domínio da lei atual, objeto de denúncia pelo senhorio, mediante comunicação prévia ao arrendatário, nos termos do artigo 1110.º, al. c), do Código Civil. 2- O arrendatário, tal como o proprietário, devem abster-se de produzir, a partir do prédio em que habitam, ruídos que violem o direito ao sossego e boa vizinhança daqueles que os rodeiam. 3- A violação desse dever é suscetível de fundamentar a resolução do contrato de arrendamento, por parte do senhorio. 4- No entanto, essa resolução só pode ser decretada se tal incumprimento for grave em si ou nas suas consequências. Caso contrário, o comportamento pode ser violador dos apontados direitos, mas não suficiente para decretar a extinção do contrato. * Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I- Relatório 1- F, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M, alegando em breve resumo, que por carta registada com aviso de receção datada de 19/03/2013, comunicou à Ré que o contrato de arrendamento para habitação que mantinha com a mesma cessava, por denúncia, no dia 20/03/2015. Todavia, a A. não lhe entregou o locado e continuou a habitá-lo, nele praticando factos violadores do sossego e boa vizinhança, que descreve. Por isso mesmo, entende que este é motivo de resolução do referido contrato. Assim, pede que se julgue provada a referida denúncia ou, caso assim não se entenda, se considere provada a citada resolução e, em qualquer caso, se condene a Ré a entregar-lhe o locado, livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe as rendas que se vençam na pendência desta ação até aquela entrega. 2- Contestou a Ré, refutando esta pretensão, porquanto nem a denúncia foi válida, nem a resolução ora invocada tem fundamento. Pede, assim, a improcedência desta ação e a condenação da A. como litigante de má-fé. 3- Em resposta, a A. impugnou os fundamentos deste pedido. 4- Supervenientemente, a A. veio ainda alegar novos factos pretensamente integradores da causa de resolução por si invocada, o que a Ré também impugnou. 5- Terminados os articulados e a instrução da causa foi proferida sentença que julgou a presente ação improcedente e absolveu a Ré do pedido. 6- Inconformada com esta sentença, dela recorre a A., concluindo a sua motivação recursiva nos termos seguintes: “Da denúncia: • O contrato de arrendamento foi celebrado de forma verbal com o primitivo arrendatário, pai da Recorrida em data não posterior a 1981, tendo aquele falecido em 5-10-2002. • Fazendo uso das normas transitórias, constantes do artigo 26º, 28º, 57º e 58º da Lei 6/2006, o Tribunal considerou que a denúncia efetuada pela Recorrente não poderia proceder, já que era de aplicar a norma do artigo 57º, isto é, o arrendamento celebrado com data anterior a 1990, transmitiu-se em 2002 para a filha, ora Recorrida. • Todavia, a norma do artigo 57º, apenas prevê que haja transmissão do arrendamento nas circunstâncias ai melhor referenciadas. • No caso concreto e tratando-se de filha, regem as als. d) e e) do nº 1, que apenas prevê a transmissão para os filhos: i) com menos de 1 ano de idade, ii) ou que convivessem com o arrendatário há mais de 1 ano e fosse menor de idade, ou tendo idade inferior a 26 anos e frequente o 11º ou 12º de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior. • Não foram alegados nenhum destes factos para obstar à denúncia, apenas alegou a recorrida que, sendo o contrato com data não posterior a 1981, o mesmo se transmitiu para a Recorrida em 2002, por força da morte do seu pai e como tal o regime previsto no artigo 1101º al. c) do código civil, não se aplica, por força daquelas normas transitórias. • A recorrida nasceu em 15-10-1960. Tendo casado em 26-3-1983, divorciou-se em 23-7-2003. Ou seja, à data do óbito do seu pai, primitivo arrendatário, tinha 42 anos de idade e por isso não preenchia os requisitos que obstassem á denúncia. • O artigo 28º/2 da lei 6/2006, manda desaplicar a norma do artigo 1101 al. c) do código civil a contratos celebrados antes da vigência do RAU, todavia tal pressupunha que não tivesse havido transmissão do arrendamento, o que não foi o caso. Da resolução: • Em face dos factos dados como provados encontram-se reunidos os requisitos para que fosse procedente o pedido formulado e ser decretado o despejo, por violação da al. a) do nº 2 do artigo 1.083º do código civil. • O Tribunal desvalorizou o facto de a Recorrente ser pessoa de 73 anos, viúva, Mãe de 6 filhos e avó, que vive sozinha e que não consegue impor-se e mesmo defender-se perante a Recorrida sua sobrinha e bem assim o filho desta, bastante mais nova que, em total desrespeito pela regras básicas de educação, cidadania e vizinhança, com constantes berrarias com o filho, gera desassossego e perturbação, com uso de linguagem imprópria e mesmo obscena, sendo constantemente desrespeitada pela sua sobrinha, ora recorrida, que a trata, entre outros de” filha da puta “, “ vai para a puta que te pariu “, “ vai levar no cu “ ( cfr 29 dos factos assentes ). • O Tribunal apesar de considerar tais comportamentos, perturbadores do sossego da Recorrente, entende porém, não constituirem factos graves, geradores de incumprimento contratual. • Não faz parta da normalidade da vida que nas relações de vizinhança se devam tolerar comportamentos como aqueles que se provaram e muito menos que a Recorrente seja obrigada a suportar com o barulho e incómodos próprios de discussões frequentes havidas entre a recorrida e seu filho, as quais acabam em gritarias e linguagem obscena. Seja obrigada a suportar a agressividade própria dessas discussões ao ponto do filho dizer à mãe que a ia matar, ao mesmo tempo que, em altos brados, a apelidava de “puta”. • As regras da experiência comum é que nas relações de vizinhança: se disponha de silêncio, não se perturbe com o volume de som excessivo das televisões e rádios, não se arrastem móveis, não haja constantes ou frequentes discussões, o filho não diga que a mãe é puta e que haja entre estes frequentes discussões, a sobrinha/recorrida não trate a Tia/recorrente de puta. • Refere o Tribunal que existiam insultos de parte a parte e a corroborar essa prova existe uma queixa apresentada pela Recorrida contra a Recorrente. Ora essa queixa, sem mais nada, não é mais do que o de o depoimento da Recorrida que quando prestado no Tribunal, de nada valeu, como consta da sentença, mas se prestado à autoridade policial, parece que já merece relevo para o Tribunal. • O Tribunal considerou não provados os factos constantes das als. e), f), j), k), m), u), da sentença, todavia quer a vizinha, F quer a filha da recorrente, M, confirmaram esses factos, sendo que a vizinha é a única pessoa próxima das habitações da recorrente e recorrida e por isso se impugna a matéria de facto. • Foi violado o disposto na al. a) do nº 2 do artigo 1.083º e o disposto no artigo 1101º. al.c) do Código Civil”. Pede, assim, que se conceda provimento ao presente recurso e se revogue a sentença recorrida, condenando-se a Ré a ver decretado o despejo e a entregar-lhe o locado. 7- A Ré respondeu em apoio do julgado. 8- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la. * II- Mérito do recurso1- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, do Código de Processo Civil), é constituído pelas seguintes questões fundamentais: a) Em primeiro lugar, saber se deve haver lugar à modificação da matéria de facto nos termos pretendidos pela Apelante; b) Em segundo lugar, determinar se pode ser legitimada a denúncia do contrato de arrendamento pela senhoria; c) E, por fim, decidir se o referido contrato pode ser declarado resolvido, pelos fundamentos invocados pela Apelante. * 2- Fundamentação2.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos: 1. A Autora é dona e legitima proprietária de um prédio urbano composto de andar e rés-do-chão, situado na Rua do Coto, Nº …, freguesia de Mascotelos, Guimarães, o qual se encontra inscrito na matriz urbana sob o artigo ….º. 2. Parte do rés-do-chão era destinado a habitação e outra parte a comércio. 3. Por acordo verbal, celebrado em data não posterior a 1981, a Autora deu de arrendamento ao seu irmão e pai da Ré, F, para sua habitação própria e permanente, a parte do rés-do-chão destinada a habitação, que é composta por cozinha, 3 quartos de dormir, sala de estar/jantar, uma casa de banho e um corredor. 4. Por óbito do primitivo arrendatário (o pai da ré), ocorrido em 5-10-2002, o dito acordo foi transmitido à sua filha, ora Ré, uma vez que vivia na companhia e dependência de seu pai. 5. A renda mensal acordada ascende a 64,89€. 6. A A., por carta datada de 7 de Abril de 2009, comunicou à R. que procedia à denúncia do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1101º, alínea c), do CCivil, alegando que o mesmo terminaria no dia 7 de Abril de 2014. 7. Por carta registada com aviso de recepção, datada de 19-03-2013, a Autora notificou a Ré de que, por força do disposto nos artigos 9º, 10º, 26º e 57º da Lei n.º 6/2006, alterada pela Lei n.º 31/2012 de 14/8, deveria considerar o contrato de arrendamento abrangido pelo novo regime do arrendamento urbano, previsto na Lei n.º 31/2012. 8. Mais comunicou a Autora à Ré que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1101º, al. c), do código civil, com a redacção dada pela Lei n.º 31/2012, o contrato de arrendamento cessava por denúncia dois anos após a recepção, data a partir da qual deveria o arrendado ser entregue livre e devoluto de pessoas e bens. 9. A dita carta foi rececionada pela Ré em 20-03-2013. 10. Decorrido o prazo de 2 anos, a Ré não entregou o arrendado à Autora. 11. Devidamente mandato pela Autora, o seu advogado remeteu à Ré carta a solicitar a entrega do locado livre de pessoas e bens. 12. Solicitação a que a Ré não anuiu. 13. A Autora é emigrante em França 14. e, conjuntamente com seus filhos e netos, usa o prédio melhor identificado supra em 1., para passar duas ou três temporadas por ano em Portugal, 15. com maior incidência no verão, período em que passa mais tempo, cerca de 3 a 4 semanas. 16. Os 6 filhos e respetivos netos da Autora, também emigrados em França, usam a mesma casa de habitação que é usada por esta, especialmente em Agosto. 17. A A. tem 73 anos de idade 18. e encontra-se reformada. 19. A R., sobrinha da A., vive no locado juntamente com o seu filho, 20. que conta com 17 anos de idade. 21. São frequentes as discussões entre Ré e seu filho, 22. as quais, por vezes, acabam em gritarias e linguagem obscena, 23. a última das quais ocorrida em 15 de Agosto de 2015, ao final da tarde e quando a noite começava já a cair, 24. sendo que o filho da Ré, de faca em punho, disse à mãe que a ia matar, 25. ao mesmo tempo que, em altos brados, a apelidou de “puta”. 26. As ditas discussões são audíveis pela A. e pelos familiares que consigo vivem, no interior da casa de habitação onde se encontram, 27. e, quando ocorrem, perturbam-lhe o sossego. 28. Tais discussões são, igualmente, audíveis no interior da casa de habitação dos vizinhos. 29. Por vezes, geram-se discussões entre a Autora e alguns seus familiares que consigo vivem, por um lado, e a Ré e o filho desta, por outro, apelidando-se mutuamente de “filha da puta”, dizendo “vai para a puta que te pariu”, “vai levar no cú”, e dizendo a R. e o filho desta à A. “vai para a tua terra (França)”, e “não tens que vir para aqui”. 30. A última vez em que ocorreu uma discussão como a descrita em 29. dos factos provados, foi em Agosto de 2014. 31. Em 2006, a aqui R. intentou contra a ora A. uma acção declarativa, com forma de processo sumária, que correu os seus termos pelo 4º Juízo Cível deste tribunal, com o n.º de processo 1083/06.5TBGMR, no âmbito da qual foi proferida a sentença transitada em julgado, constante de fls. 47 a 57, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. * 2.2- Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:a. O acordo aludido em 3, foi celebrado em data posterior a 1990. b. A A., quando em Portugal, ocupa a habitação que fica situada por cima da casa arrendada à Ré, c. partilhando ambas o espaço comum ou quintal que circunda a habitação d. e, também, a mesma entrada da rua para ao quintal. e. A Ré tem constantes gritarias para com a Autora, em que é acompanhada muitas vezes pelo seu filho, f. sendo que sempre que a Autora passa temporadas na sua casa, em especial em Agosto, a Ré, por tudo e por nada, apelida a Autora de “filha da puta”, dizendo-lhe “vai para a puta que te pariu”, “vai levar no cu”, “vai para a tua terra (França)”, e “não tens que vir para aqui”. g. A R. dirigiu à A. as ditas expressões na semana da páscoa de 2015. h. O filho da R. (H) arremessa com pedras à Autora e à casa desta, i. sendo que, também, já a ameaçou com uma faca. j. A Ré e o seu filho, quando descobrem que a Autora está no seu quarto de dormir que é encostado à casa da Ré, aumentam o volume do som da televisão, de tal forma audível na casa da Autora que lhe perturba o descanso nocturno. k. Quando há jogos de futebol, seja de tarde seja à noite, o filho da Autora, aumenta também o volume de som da televisão e usa linguagem grosseira e agressiva, tal como “filho da puta, caralho, foda-se”, l. que repete vivamente, bem sabendo que é audível na casa da A. m. e que, além de perturbar o seu sossego, deixa-a nervosa. n. O filho da Ré, com conhecimento desta, partiu as cancelas de acesso à casa da Autora, o. partiu as fechaduras de outra cancela, p. partiu os tijolos de cimento q. e bate com um pau nas grades, fazendo estragos na mesma e barulhos. r. Em Agosto de 2008, a Ré agrediu fisicamente a filha da Autora (M). s. No dia 15 de Agosto de 2015, quando o filho da Ré andava de faca em punho atrás da mãe, dizendo que a ia matar, esta vociferava, dizendo “olha que sou tua mãe”, t. retorquindo o filho dizendo-lhe “na minha frente não vejo mãe nenhuma, vejo uma puta do caralho”. u. A A., que padece de alguns problemas de saúde, sofre e sente-se perturbada com os supra-mencionados comportamentos da R. e do seu filho. v. A A. decidiu-se pela venda da casa, o que, até à data, não conseguiu. w. A A. deduziu pretensão cuja falta de fundamento não poderia ignorar, sendo que, para tanto, alterou grosseiramente a verdade dos factos relevantes para a boa decisão da causa, designadamente no que concerne à data em que foi celebrado o dito contrato de arrendamento, que a A. sabia, à data em que a presente ação foi intentada, que remontava a 1981. * 2.3- Da pretendida modificação da matéria de factoEstão em causa os factos descritos nas als. e), f), j), k), m), u), do capítulo dos factos não provados, que acabamos de transcrever. Embora não o diga expressamente, a Apelante defende que estes factos devem ter o destino probatório oposto àquele que lhes foi dado na sentença recorrida; ou seja, devem ser julgados provados. E isso, com base nos depoimentos das testemunhas, F e M, que é como quem diz, respetivamente, a sua vizinha e filha. Em breve síntese, nos aludidos factos estão em causa três temáticas: os epítetos que a Ré e o seu filho dirigiram à A. [als.f) e k)]; a atitude de ambos perante a A. quando alegadamente descobrem que esta está no seu quarto de dormir [al. j) e k)]; e as consequências que essas atitudes provocam na A. [als. m) e u)]. Pois bem, como é fácil de intuir, estas consequências só são de ter em conta se se provarem as suas causas. Nessa medida, será por estas últimas que iniciaremos a nossa abordagem. Quanto à primeira temática, o que se pretende saber é se “sempre que a Autora passa temporadas na sua casa, em especial em Agosto, a Ré, por tudo e por nada, apelida a Autora de “filha da puta”, dizendo-lhe “vai para a puta que te pariu”, “vai levar no cu”, “vai para a tua terra (França)”, e “não tens que vir para aqui”; e ainda se “[q]uando há jogos de futebol, seja de tarde seja à noite, o filho da Autora, aumenta também o volume de som da televisão e usa linguagem grosseira e agressiva, tal como “filho da puta, caralho, foda-se”. Ora, no que à primeira afirmação diz respeito, já se julgou demonstrado que, por vezes, geram-se discussões entre a A. e alguns dos seus familiares, por um lado, e a Ré e o filho desta, por outro, durante as quais, são trocadas expressões do tipo assinalado (ponto 29). Assim, esta asserção já engloba necessariamente as expressões que a Ré dirige à A., não havendo, por isso, do nosso ponto de vista, nada mais a acrescentar, porque da prova testemunhal indicada pela Apelante também não resulta maior precisão. E dessa prova também não resulta, com suficiente segurança, que “[q]uando há jogos de futebol, seja de tarde seja à noite, o filho da Autora, aumenta também o volume de som da televisão e usa linguagem grosseira e agressiva, tal como “filho da puta, caralho, foda-se””. É que, de entre as duas testemunhas indicadas, a única que poderia comprovar esta afirmação seria a filha da A. e não a vizinha (F), que durante o seu depoimento não aludiu a esta realidade, mas apenas ao que viu do exterior das habitações. Mas, a filha da A., como foi fácil de perceber, tem uma grande animosidade para com a Ré, o que leva a questionar a isenção do seu depoimento. Além disso, na parte final do seu testemunho (por sinal, não transcrito pela A.) chegou a afirmar que, quando as janelas estão fechadas, não se ouve muito o ruido provocado pela Ré e pelo filho. O que, aliado à circunstância do tribunal recorrido ter expressado a sua dúvida sobre estes factos, por a Ré e a irmã terem apresentado “uma versão dos acontecimentos radicalmente diversa” (fls. 160), nos leva a manter o destino probatório dos apontados factos. Em suma, nada há a alterar na factualidade impugnada. Passemos à análise da questão seguinte. 2.4- O que está em causa, como já tivemos oportunidade de assinalar, é a questão de saber se pode ser legitimada a denúncia do contrato de arrendamento, efetuada pela senhoria/Apelante Em rigor, esta última, ou seja, a Apelante, não denunciou o contrato em causa apenas uma vez. Fê-lo no dia 07/04/2009, quando, por carta expedida nessa data, “comunicou à R. que procedia à denúncia do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1101º, alínea c), do CCivil, alegando que o mesmo terminaria no dia 7 de Abril de 2014” (ponto 6 dos Factos Provados). Mas fê-lo também no dia 19/03/2013, quando, por carta registada com aviso de receção, datada do mesmo dia “notificou a Ré de que, por força do disposto nos artigos 9º, 10º, 26º e 57º da Lei n.º 6/2006, alterada pela Lei n.º 31/2012 de 14/8, deveria considerar o contrato de arrendamento abrangido pelo novo regime do arrendamento urbano, previsto na Lei n.º 31/2012” e que “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1101º, al. c), do Código Civil, com a redação dada pela Lei n.º 31/2012, o contrato de arrendamento cessava por denúncia dois anos após a receção…” (pontos 7 e 9 dos Factos Provados). Na sentença recorrida parece ter-se abordado apenas esta última denúncia, visto que se considerou o regime decorrente da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012 de 14 de agosto, que ainda não estava em vigor à data em que foi concretizada a primeira das citadas comunicações (07/04/2009). Mas, de qualquer modo, entendeu que à A. não assistia o direito de denúncia do contrato em questão, porquanto o mesmo, tendo sido celebrado em data anterior à entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, isto é, antes de 1981, não está abrangido pela previsão contida na al. c) do artigo 1101.º, do Código Civil. E, por esse motivo, aí se julgou improcedente este fundamento de despejo. Mas a A. retoma neste recurso essa sua pretensão, alegando, em suma, se bem percebemos (porque a exposição da A. não é clara), que a posição contratual do pai da Ré não se transmitiu a esta última porque a mesma não demonstrou possuir, à data do óbito daquele, os requisitos legais para operar essa transmissão. Como tal, o estipulado no artigo 1101.º, al. c) do Código Civil, deve aqui ser aplicado. Este modo de ver, no entanto, além de aparentar confundir a caducidade com a denúncia, enquanto modos diversos de extinção dos contratos, colide com um dado de facto que não foi impugnado e que, portanto, se deve ter por definitivamente assente. Referimo-nos à afirmação contida no ponto 4 dos Factos Provados, que expressamente consigna que “[p]or óbito do primitivo arrendatário (o pai da Ré), ocorrido em 05/10/2002, o dito acordo foi transmitido à sua filha, ora Ré, uma vez que vivia na companhia e dependência de seu pai” (ponto 4 dos Factos Provados). Por conseguinte, esta transmissão deve ter-se por assente e não mais pode ser discutida neste processo. E quando assim é, ou seja, quando há transmissão da posição contratual no arrendamento, por morte do primitivo arrendatário, o contrato não se modifica a não ser num dos seus aspetos subjetivos. Isto é, a relação locatícia mantém-se em todas as suas demais características, inclusive, portanto, na sua antiguidade(1). Ora, no caso presente, o contrato de arrendamento, que é para habitação, iniciou-se em data não posterior a 1981. Assim, por força do disposto nos artigos 26.º, n.º 4, al. c) e 28.º, da Lei n.º 6/2006, o preceituado na al. c) do artigo 1101.º, do Código Civil, não tinha aplicação àquele contrato quando a primeira denúncia foi levada a cabo pela A. É o que estabelece expressamente a primeira das normas indicadas, a qual aqui é aplicável por força da segunda. Mas também não tinha aplicação quando foi realizada a segunda denúncia pela A. Efetivamente, nessa data, 19/03/2013, também o artigo 28.º, n.º 2, da referida Lei n.º 6/2006, mas agora na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2012, estipula que aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, como é o caso, não se aplica o preceituado no artigo 1101.º, al. c), do Código Civil; ou seja, “é mantido o vinculismo que sempre caracterizou estes contratos, o que limita a faculdade de denúncia pelo senhorio aos casos agora referidos no art. 1101 a) e b), salvo nas hipóteses hoje previstas no art. 28º, nº 3, NRAU”(2), que não se verificam na situação presente. Daí que não se possa legitimar nenhuma das já referidas denúncias levadas a cabo pela A. 2.5- Resta, então, decidir se o referido contrato pode ser declarado resolvido, pelos fundamentos invocados pela Apelante Na sentença recorrida, entendeu-se que não; que os factos apurados não justificam, do ponto de vista legal, essa resolução. Mas a A. insiste na posição contrária. Defende, em suma, que esses mesmos factos traduzem uma “violação reiterada e grave das regras de sossego e boa vizinhança” e que, portanto, a dita resolução deve ser decretada. Tudo está, pois, em saber se há, ou não, fundamento legal para a resolução do contrato de arrendamento que a A. mantém com a Ré. Como ponto de partida para a indagação da resposta a esta questão deve ter-se presente que a resolução dos contratos é um meio jurídico para a sua dissolução, motivada pela ocorrência de um facto ou situação que lesa as legitimas espectativas e interesses de, pelo menos, uma das partes. Por isso mesmo, a lei e/ou o próprio contrato permitem que essa dissolução possa ter lugar, acabando de vez, como é regra, com todos os efeitos jurídicos já produzidos (artigos 432.º, n.º 1, e 434.º, n.º 1, do Código Civil)(3). E isso mediante simples declaração unilateral recipienda ou recetícia de uma das partes à outra (artigo 436.º, n.º 1, do Código Civil), visto que se trata de um direito potestativo extintivo(4). No caso da resolução legal, é frequente(5) a mesma derivar do incumprimento de prestações contratuais que estão a cargo de uma das partes. E, no contrato de arrendamento, não é diferente. Ambos, senhorio e inquilino, estão sujeitos a obrigações reciprocas (artigos 1031.º, 1038.º e 1071.º a 1074.º, do Código Civil) as quais, se incumpridas em determinados condicionalismos legais, podem dar azo à rutura contratual por meio de resolução. O artigo 1083.º. n.º 1, do Código Civil, é bem explicito a este propósito: “Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base no incumprimento pela outra parte”. Mas, como é regra, não é qualquer incumprimento que justifica a resolução contratual. É antes e apenas “fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento…” – n.º 2 do citado artigo 1083.º do Código Civil. Ou seja, a resolução em geral, e esta também em particular, pressupõe uma ideia de inexigibilidade ou justa causa para a perda do interesse do credor na prestação do devedor, em virtude de um facto ou situação lesiva desse mesmo interesse. Mas, como é consensual na doutrina e jurisprudência, não é um qualquer interesse. Só um interesse juridicamente relevante justifica a rutura contratual. Por isso, prevê a lei, por exemplo, no artigo 808.º, n.º 2, do Código Civil, que esse interesse seja apreciado em termos objetivos. O que não quer dizer, “ de forma alguma, que se não atenda ao interesse subjetivo do credor, e designadamente a fins visados pelo credor que, não tendo sido integrados no conteúdo do contrato, representam simples motivos em princípio irrelevantes. O que essa objetividade quer significar é, antes, que a importância do interesse afetado pelo incumprimento, aferida embora em função do sujeito, há-de ser apreciada objetivamente, com base em elementos suscetíveis de serem valorados por qualquer pessoa (designadamente pelo próprio devedor ou pelo juiz), e não segundo o juízo valorativo arbitrário do próprio credor. Isto fundamentalmente porque o direito de resolução legal tem a sua fonte imediata na lei”(6). Não basta, pois, que o credor afirme, mesmo convictamente, que a prestação já não lhe interessa, para se considere que perdeu o interesse na mesma. É necessário conferir se, em face das circunstâncias concretas e objetivas, essa perda de interesse corresponde, ou não, aos padrões de normalidade social aplicáveis ao caso, pois que só assim se pode considerar a perda de interesse subjetivo, objetivamente justificada(7)/(8). Ora, é justamente desta perda de interesse que a A., como vimos, se queixa. Do arrendado, no fundo, estar a ser usado de forma anormal, em relação à função para que foi contratualmente destinado. Mais concretamente ainda, de estar a ser usado para violar os seus direitos de personalidade, no que ao direito ao sossego e bom nome diz respeito, quando a relação locatícia que mantém com a Ré pressupunha, justamente, o contrário. E, efetivamente, assim é; ou seja, a relação locatícia, tal como as relações de vizinhança entre proprietários, pressupõe o pleno respeito por esses direitos. Os arrendatários, na verdade, “estão sujeitos às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis, tanto nas relações de vizinhança como nas relações entre arrendatários de partes comuns de uma mesma coisa” – artigo 1071.º do Código Civil. E uma dessas limitações é, justamente, a que decorre da obrigação de não produzir “fumo, fuligem, vapores, cheiros calor ou ruídos”, bem como trepidações e quaisquer outros factos semelhantes, “sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam” – artigo 1346.º do Código Civil. O incumprimento desta obrigação, assim, pode gerar o direito do senhorio a resolver o contrato de arrendamento. O artigo 1083.º, n.º 2, al. a), do Código Civil, é bem claro a este propósito, quando dispõe que essa resolução pode derivar da “violação das regras de sossego e de boa vizinhança”. E não é necessário sequer, como antes sucedia, que se trate de uma violação reiterada. Hoje, ao contrário do que previa a redação deste preceito introduzida pela Lei n.º 6/2006, a lei não exige a reiteração na violação de tais regras. Basta que seja pontual. No entanto, a nosso ver e como é jurisprudência maioritária, essa violação não pode, em qualquer caso, deixar de ser grave, em si ou nas suas consequências, como prevê o corpo deste normativo(9). De resto, a eliminação, pela lei atual, da referida exigência demonstra bem quanto é importante tratar-se de uma violação grave no apontado sentido, pois, caso contrário, qualquer infração às regras sobre higiene, sossego, de boa vizinhança ou mesmo às normas constantes do regulamento do condomínio, quando seja esse o caso, preencheria o fundamento da resolução, o que seria manifestamente atentatório do princípio da proporcionalidade. Resta, então, saber o que deve entende-se pelos referidos atributos no caso concreto. Já vimos que para aferir a perda do interesse do credor não basta que o mesmo se queixe dessa perda. É necessário ainda que a mesma esteja objetivamente justificada. E deve ter-se por objetivamente justificada em razão das finalidades do próprio contrato. Não só das suas finalidades típicas, mas também das finalidades concretas do contrato em apreço, o qual, por esse motivo, deve ser dissolvido. Ora, o contrato de arrendamento em análise destina-se a conferir à Ré e ao seu agregado familiar o direito ao gozo do locado, com particular destaque para o direito à habitação. Nesse sentido, tratando-se da fração de um prédio urbano mais vasto, no qual, inclusive, a A. tem também instalada a sua habitação ocasional, a Ré tinha e tem a obrigação de não a perturbar, nem aos outros vizinhos, designadamente com os ruídos produzidos pelas suas discussões com o filho e com a linguagem obscena que nela é usada. Este, como já vimos, era um dever que tinha também como proprietária. Portanto, essas discussões, sendo audíveis para toda a vizinhança (A. incluída) e perturbando o sossego que lhe é legalmente devido, não podem deixar de se considerar como violadoras do contrato de arrendamento em apreço. Se esta conclusão é linear, porém, já o mesmo não podemos dizer da gravidade dessa falta para comprometer a subsistência de tal contrato. É que, como se refere, e bem, na sentença recorrida, não sabemos, ao certo, qual a frequência de tais discussões. De resto, este é um conceito conclusivo cujo conteúdo não pode ser preenchido apenas em razão da alegada saturação da A. com esta situação. Por outro lado, se é verdade que a Ré e o respetivo filho trocam entre si epítetos que não são comuns na generalidade das relações familiares, não deixa de ser igualmente certo que, como está provado, por vezes, geram-se também discussões entre a A. e alguns dos familiares que consigo vivem, por um lado, e a Ré e o filho desta, por outro, que não são muito diferentes no seu estilo e conteúdo, ao trocarem iguais impropérios entre si. A tal ponto que, neste contexto, não se pode afirmar que os mesmos mereçam censurabilidade jurídica idêntica à que se exige para outros contextos sociológicos onde esses termos não são usados. Daí que na avaliação da gravidade das referidas faltas de cumprimento contratuais não se possa deixar de atender a essa realidade. Neste contexto, pois, ou seja não sabendo nós a frequência com que as discussões entre a Ré e o seu filho têm lugar e não podendo também valorizar-se em excesso a linguagem que nelas é usada pelas razões já descritas, entendemos que, na ponderação do direito à habitação da Ré e o direito ao sossego e boa vizinhança da A., quando ocasionalmente é vizinha daquela, não se pode concluir, perante os factos provados, que as faltas por aquela cometidas em relação a estes últimos direitos, impliquem, por si só ou pelas suas consequências, o sacrifício daquele direito primeiramente referido. O que vale por dizer que a sentença recorrida é de manter, assim improcedendo este recurso. * III – Decisão* Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida. * Porque decaiu na sua pretensão, as custas deste recurso serão pagas pela A.- artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.1- Cfr. neste sentido, o Ac. RLx, de 29/05/2012, Processo n.º 1321/11.2YXLSB.L1-1, consultável em www.dgsi.pt, no qual se afirma que “A transmissão de arrendamento, por morte do arrendatário, para cônjuge, parente ou afim, não [configura] situação de novo arrendamento mas, sim, subsistência da mesma locação, com outro titular”. E, nesse sentido indica o Ac. da R.L de 20/10/1994, in Col. Jur. XIX, 4, 123, citado a fls. 555 de Arrendamento Urbano, Aragão Seia, 6ª. ed., Almedina. 2- Luis Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 2013, 6ª ed., Almedina, págs. 212 e 213. 3- Luis A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed. Revista, Universidade Católica Editora, págs. 480 e 481. 4- Para melhor enquadramento desta figura podem ler-se, entre outros, Luis A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed. Revista, Universidade Católica Editora, págs. 480 e 481 e Batista Machado, Batista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Braga, 1991, pag.125 e segs. 5- Mas não único, pois que pode derivar da alteração anormal das circunstâncias (artigo 437.º, n.º 1, do Código Civil). 6- Batista Machado, Ob. Cit., pág. 137. 7- Cfr. Antunes Varela, RLJ ano 118, pág.54 e segs. 8- Cfr. neste sentido, ao nível jurisprudencial, por exemplo, embora para outros tipos contratuais, Acs STJ de 18/02/2003, Proc. nº 03B3697, de 08/05/2007, Proc. nº 07A932, Ac. RC de 23/1/2001, Proc. nº 3131/2000, todos consultáveis em www dgsi.pt. 9- Neste sentido, embora no domínio de legislação anterior, Ac. RLx de 15/10/2009, Proc. 613/08.2TBALM.L1-2. Já no domínio da legislação atualmente em vigor, Ac. RP de 08/11/2016, Proc. 1264/15.0T8GDM.P1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt |