Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1520/15.8T8VRL.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
COMODATO
CESSAÇÃO DO COMODATO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DE COMODATÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O contrato de exploração de estabelecimento comercial sofre as vicissitudes do contrato estabelecido entre a cedente e a proprietária, uma vez que a exploração do estabelecimento está ligada à utilização de um determinado espaço.
.Assim, cessando o contrato que permitia à cedente o uso e fruição do espaço onde funciona o estabelecimento, necessariamente terá que cessar o contrato de cessão de exploração.
. O contrato de comodato não cessa obrigatoriamente com a morte do comodatário. Em princípio, deve entender-se que o comodante quer beneficiar apenas o comodatário e não os seus herdeiros, mas como se trata de uma presunção de vontade e não de uma disposição imposta por razões de ordem pública, é de admitir que os contraentes convencionem a continuação do comodato por morte deste, podendo esta transmissão resultar de declaração expressa, como de factos que com toda a probabilidade a revelem, não carecendo de ser reduzida a escrito.
. Se a referência à intransmissibilidade está ligada ao pagamento de uma indemnização e ao direito à atribuição de outro local e é corroborada pela circunstância da proprietária não ter reclamado o imóvel, após ter tido conhecimento da morte da primitiva comodatária, continuando os RR. a explorar o estabelecimento, sem que a proprietária lhes tenha exigido ou à herdeira da comodatária a sua entrega, é de interpretar a vontade das partes como tendo querido a transmissão da posição da comodatária.
Decisão Texto Integral:

Tribunal da Relação de Guimarães
1ª Secção Cível
Largo João Franco - 4810-269 Guimarães
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Processo 1520/15.8T8VRL.G1

Acordam em conferência no Tribunal de Relação de Guimarães:
I – Relatório
AAinstaurou contra BB e mulher CC, ação declarativa de condenação, com processo comum, formulando a seguinte pretensão:
Que os réus sejam condenados:
A) a reconhecer que a autora é a única titular, dona e legítima possuidora do estabelecimento comercial denominado “DD”, destinado a restaurante, casa de pasto e salão de jogos, e que funciona, assim se devendo manter, no prédio urbano sito no Lugar LL, freguesia de Peso da Régua, inscrito na matriz respetiva sob o artigo xxx;
B) a reconhecer que para a autora se transferiu a posição de locadora no contrato de “locação temporária de estabelecimento” celebrado com o réu em 23.05.2013;
C) a reconhecer que para a autora se transferiu o direito de continuar a usar, fruir e deter o prédio urbano referido em a) para continuação da exploração do estabelecimento comercial identificado em a);
D) a pagar à autora todas as prestações mensais vencidas desde Fevereiro de 2015 até ao presente, que contabiliza em € 6.400,00, e ainda as vincendas até efetivo e integral pagamento, e a pagar ainda a indemnização referida no artigo 107º, que contabiliza em € 3.200,00, sem prejuízo dos valores que se forem vencendo sucessivamente a esse respeito, tudo acrescido dos respetivos juros de mora à taxa legal desde o momento de vencimento de cada prestação mensal e respetiva indemnização, que ascendem, na data, ao valor de € 80,05, sem prejuízo dos juros de mora legais vincendos até efetivo e integral pagamento.
Alegaram, em síntese:
- que é dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial que veio ao seu domínio através de herança de sua tia que, por sua vez, o possuía há mais de vinte anos, com todas as características de uma posse pública, pacífica e de boa fé, na convicção de ser a sua exclusiva dona;
- que entre a tia da autora e o réu foi celebrado um contrato de locação temporária de estabelecimento em relação ao estabelecimento comercial referido, mediante a contrapartida pela cessão do pagamento de € 800,00 mensais por parte do réu;
- que o réu tem vindo a explorar esse estabelecimento, recebendo os proventos e lucros da atividade e pagando as prestações mensais devidas, mesmo após o óbito da tia da autora;
- que, contudo, desde fevereiro de 2015, o réu não paga à autora as prestações convencionadas pela cessão de exploração do estabelecimento comercial, apesar de continuar a explorá-lo.
Regularmente citados, os réus contestaram, negando ser a autora titular do estabelecimento comercial em causa, por o imóvel onde o estabelecimento funcionar, ser propriedade do EE e ter sido cedido gratuitamente à tia da autora, tendo cessado o direito de uso e fruição do imóvel com a sua morte.
Invocaram, ainda, que o contrato celebrado com a tia da autora tem subjacente um contrato de trespasse, pelo que ocorreu também a transmissão da posição do arrendatário.
Concluiram pela improcedência da ação.
Procedeu-se à realização de audiência prévia.
Por se entender que os autos forneciam todos os elementos para ser proferida decisão sem prévia realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferido sanador/sentença com o seguinte segmento decisório:
“Por tudo o exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, consequentemente, condeno os réus:
“a) a reconhecerem que a autora é a única titular, dona e legítima possuidora do estabelecimento comercial denominado “DD”, destinado a restaurante, casa de pasto e salão de jogos, e que funciona, assim se devendo manter, no prédio urbano sito no Lugar LL, freguesia de Peso da Régua, inscrito na matriz respetiva sob o artigo xxx;
b) a reconhecerem que para a autora se transferiu a posição de locadora no contrato de “locação temporária de estabelecimento” celebrado com o réu em 23.05.2013;
c) a pagarem à autora todas as prestações mensais vencidas desde Fevereiro de 2015 até ao presente, no valor mensal de € 800,00 (oitocentos euros), e ainda as vincendas até efetivo e integral pagamento, e a pagar ainda a indemnização prevista na cláusula 8ª do contrato, sobre cada uma das prestações vencidas e vincendas até efetivo pagamento, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal desde o momento de vencimento de cada prestação mensal e respetiva indemnização, até integral pagamento.
d) Absolvo os réus do demais peticionado.
e) Custas a cargo de autora e réus na proporção de 1/5 e 4/5 respetivamente.
f) Registe e notifique.”
Os RR. não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, concluindo nos seguintes termos:
1.º O presente recurso visa não só a alteração da matéria de facto como também a reapreciação da matéria de direito.
2.º O Tribunal julgou incorretamente os factos dados como assentes sob os pontos 2.º e 7.º omitindo a apreciação de outros factos que em nossa humilde opinião deveriam dar-se como provados, os constantes sob os nºs 9.º e 10.º da Contestação.
3.º Estamos perante uma autorização precária concedida em acta da EE quepermitiu A FF explorar gratuitamente um estabelecimento comercial instalado num imóvel propriedade da mesma autarquia até que a EE precisasse daquelas Instalações e que assumia essa responsabilidade, mas só relativamente à Senhora FF e não para herdeiros ou em situação de trespasse.”
4.º Da referida ata a EE pretendeu conceder o benefício douso e fruição do imóvel e estabelecimento comercial nessa data aí instalado à referida FF, benefício concedido a esta a título pessoal, intransmissível, quer por via da sucessão quer por via contratual e gratuito.
5.º Este estabelecimento comercial não foi transferido por via da sucessão para os Herdeirosda FF, pois se assim não fosse estaria perante uma fraude ao acordo.
6.º Porquanto à data do acordo firmado com a EE estava instalado um estabelecimento comercial, que a FF pretendeu acautelar e mantendo a sua exploração até que a EE dele precisasse limitando logo esse fruição ao período de vida da mesma e impossibilitando a sua transmissão.
7.º . Daí a proibição de trespasse, direito inalienável de qualquer titular de um estabelecimento.
8.º Permitir e considerar que o estabelecimento comercial transmitiu-se para a os AA, pela via sucessória assim como se transmitiu a posição de locadora, constitui uma violação do acordo firmado com a EE.
9.º Não há consentimento para a transmissão da fruição por parte da EE porquanto este era um direito pessoal que se extinguiu com a morte da sua titular.
10.º E a ausência de reacção da EE não é qualquer violação do acordo, uma vez que apenas ocorre um incumprimento do dever de entrega que se impõe à herdeira.!!!
11.º Há assim erro de apreciação do direito quando a sentença considera que ocorreutransmissão.
12.º Com o falecimento da Sr.ª D. FF, ocorrido em 17 de Setembro de 2013, cessou dessa forma o uso e fruição do imóvel onde se mostra instalado o estabelecimento comercial assim como deste mesmo estabelecimento uma vez que estamos perante comodato gratuito cujo prazo ou duração foi expressamente prevista, cessando com o falecimento da tia daA.- a comodatária.
13.º Ocorre ainda uma contradição entre a Absolvição dos RR. do pedido formulado sob a alínea C) e a condenação do pedido formulado na al, B) do mesmo porque o estabelecimento é indissociável com a fruição do imóvel onde se encontra instalado, não estando a A. legitimada pela EE para poder continuar a usufruir e a deter o imóvel não podendo, por isso, suceder na posição de locadora do mesmo estabelecimento.
14.º Podendo adquirir tão só pela via sucessória os equipamentos do estabelecimento comercial.
15.º Diríamos que além de ilegal, é imoral a herdeira da Sr.ª FF, bem sabendo do teor da ata de 02 de Agosto de 1991 e por conseguinte da cessação do uso e fruição do imóvel, virexigir do A. as prestações que diz se encontrarem em falta, quando o que deveria fazer era suscitar a questão ao EE, dando-lhe a conhecer o falecimento da sua Tia e informando quem está na posse do imóvel e a que título.
Termos em que o presente recurso deve merecerprovimento por existir erro na apreciação da prova e bem assim erro na aplicação do direito, por errada interpretação do disposto no art.º 1022.º,1031.º, 1038.º do Código Civil, devendo revogar-se a sentença recorrida e, em sua substituição, ser proferida outra que julgue a ação totalmente procedente por provada, ou se assim não se entender que se ordene o chamamento do EE, com o prosseguimento dos ulteriores termos do processo, assim fazendo-se JUSTIÇA.
A parte contrária contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Os recorrentes, tanto na respetiva alegação como nas conclusões, não cumpriram oónus imposto pela norma do artigo 640º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil,já que não indicam os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, pelo que, deve ser rejeitado o recurso respeitante à reapreciação da matéria de facto, em virtude da alegada circunstância obstar ao conhecimento do recurso.
II. Caso assim se não entenda, cumpre dizer que os concretos pontos da matéria de facto, provada e não provada, impugnados pelos recorrentes, não merecem qualquer censura, designadamente a que lhe é apontada no recurso interposto.
III. O juízo formulado pelo Tribunal a quo relativamente a tal matéria resulta da correta valoração de todos os meios de prova produzidos nos autos, desde logo, da conjugaçãodos diversos documentos juntos à petição inicial dos mesmos (documento 1 a 13) e da confissão escrita dos réus, em sede de respetivo articulado de contestação.
IV. Todos esses documentos comprovam, sem margem para qualquer dúvida e quando conjugados entre si, a existência do estabelecimento comercial “DD” na esféria jurídica da falecida Sra. FF, que a recorrente é a única e universal herdeira testamentária da dita Senhora, e que recebeu o domínio e posse daquele estabelecimento por essa via (conforme documentos 1, 4, 5, 6, 9 e 12 juntos à petição inicial), bem como que tais factos são do conhecimento do EE, desde o óbito da dita Senhora, tendo-lhe a recorrente igualmente comunicado tal factualidade (conforme documento 7 junto à petição inicial).
V. Os recorrentes não invocaram a falsidade dos documentos juntos pela autora à petição inicial, que fazem prova, alguns plena uma vez que autênticos (documentos 1 e 4), dos factos aí declarados, designadamente os ora impugnados pelos recorrentes (pontos 2º e 7º dos factos assentes).
VI. À data do óbito da Sra. FF o estabelecimento comercial “DD” aqui em causa existia e fazia parte do seu património hereditário, e sendo a recorrida a única e universal herdeira da mesma, recebeu por via sucessória - testamentária, o domínio e a posse do mesmo, assumindo também a posição contratual na relação jurídica estabelecida com o recorrido, na qualidade de locadora do aludido estabelecimento comercial.
VII. A referida factualidade é do conhecimento do EE, desde o óbito da tia da recorrida, e que lhe foi comunicada pela própria autora, conforme resulta do documento 7 junto à petição inicial dos autos, cujo teor não foi contrariado por qualquer outro meio probatório produzido nos autos.
VIII. Os próprios recorrentes admitem, em sede de contestação, os factos dados como assentes pelo Tribunal a quo, não merecendo os mesmos qualquer censura. Sendo que, o documento que referem – ata de 02-08-1991 – não é suscetível de fundar a alteração da matéria de facto nos moldes por si ora requeridos.
IX. O EE não é parte da relação material controvertida aqui em discussão. Não tinha que ser demandado, nem tinha que ter qualquer intervenção nos autos, sendo totalmente desprovido de fundamento a alegação dos recorrentes nesse sentido. Neste momento, a presente instância está totalmente estabilizada (artigo 260º do Código do Processo Civil).
X. O alegado acordo estabelecido entre o EE e a Sra. FF, plasmado na referida ata de 02-08-1991, não obstou, nem obsta, à transmissão, por via sucessória - testamentária, do estabelecimento comercial aqui em causa para a recorrente, nem impede o seu uso e fruição pela mesma, mesmo sendo explorado temporariamente por terceiros, pois, o estabelecimento comercial não deixa de existir, não se desintegra em pedaços de objetos, equipamentos singulares e individualizados como alegam os recorrentes, antes continua a existir como realidade material e jurídica única e unitária.
XI. Os recorrentes conhecem o alegado acordo a que chegaram o EE e a Sra. FF desde a outorga do primeiro contrato que com ela fizeram (conforme documentos 9 e 12 juntos à petição inicial), e tal circunstância não obstou a que os recorrentes mantivessem o seu interesse emcontinuar a explorar o estabelecimento comercial dos autos até ao presente, precisamente porque tal acordo não obsta à ocupação do imóvel, ao uso e fruição do estabelecimento comercial “DD”, nem colide com a posição contratual dos recorrentes relativamente à recorrida, enquanto atual dona e locadora daquele.
XII. Os recorrentes pretendem mesmo que seja operada como que uma verdadeira “expropriação” privada do estabelecimento comercial dos autos, pois, propugnam que cessou o direito de uso e fruição do estabelecimento comercial atenta a morte da tia da recorrida, que, por isso, não podia ter sido adquirido por parte da recorrida.
XIII. O estabelecimento comercial é um instituto jurídico ímpar a merecer um tratamento singular, nos exatos termos contantes do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14-02-2012, proferido nos autos do processo 221/09.0TBCDN.C1, disponível para consulta in www.dgsi.pt, realidade que a sentença recorrida apreendeu, subsumindo corretamente a factualidade material dos autos ao Direito aplicável.
XIV. Do contrato de locação ou de cessão de estabelecimento aqui em discussão, emerge para o locatário, o recorrido, o direito fundamental de usar e fruir plenamente o estabelecimento locado, explorando-o e fazendo seus os eventuais lucros resultantes dessa exploração. Mas dele emerge também, para essa mesma parte, o fundamental dever de pagar, pontualmente, a remuneração convencionada, como bem reconheceu e condenou a sentença proferida nos autos.
XV. A recorrida, sendo a atual e única dona do estabelecimento comercial aqui em causa, assumiu igualmente a posição contratual que a Sra. FF tinha na relação jurídica estabelecida com o recorrente, vertida no documento12 junto à petição inicial, que não caducou por força do óbito daquela.
XVI. Os recorrentes limitam-se a apelar ao documento 1 junto à petição inicial dos autos para fundar a alteração da matéria de facto requerida, que não constitui a alegada atada reunião de 02 de Agosto de 1991, mas o testamento feito pela Sra. FF, documento que não contraria os factos postos em crise pelos recorrentes, antes os confirma! Por sua vez, a aludida ata não tem força probatória que permita alcançar o efeito visado pelos recorrentes.
XVII. Por outro lado e salvo melhor opinião, os alegados factos constantes dos artigos 9º e 10º da contestação dos recorrentes e que estes pretendem ver dados como provados não configuram factos materiais da vida, ocorrências da vida real e concreta, mas meras conclusões e considerações de Direito, não sendo passíveis de qualquer prova, nem de ingressarem na lista de factos assentes.
XVIII. Contudo, os recorrentes admitem expressamente na sua contestação que, após o óbito da Sra. FF, continuaram a explorar o estabelecimento comercial dos autos, situação que se mantém até ao presente, sem oposição do EE (conforme pontos 8º a 10º dos factos assentes), mantendo-se o estabelecimento comercial localizado no imóvel do dito EE até ao presente (conforme pontos 1º e 4º dos factos assentes), factos que não foram impugnados pelos recorrentes, incluindo nesta sede, e que comprovam o contrário do que os recorrentes ora pretendem seja dado como provado (artigo 9º da contestação).
XIX. O Tribunal a quo cindiu as relações contratuais que ligam a recorrida e os recorrentes da relação entre aquela e o EE, entendendo que aqui está em discussão apenas a primeira, sendo os recorrentes alheios a esta última, não existindo qualquer contradição entre a decisão condenatória respeitante ao pedido formuladopela recorrida sob a alínea “B)” e decisão absolutória respeitante ao pedido formulado pela recorrida sob a alínea “C)”.
XX. O Tribunal a quo fez a correta subsunção dos factos aqui em discussão ao Direitoaplicável, designadamente às normas que se acham invocadas na sentença recorrida, e não incorreu no imputado vício de aplicação e interpretação dos artigos 1022º, 1031º e1038º, todos do Código Civil.
XXI. Em face do exposto, na improcedência do recurso interposto, deve, a final, manter-se acondenação dos recorrentes nos pedidos, nos moldes doutamente decididos nasentença da 1ª instância, com as legais consequências.

II – Objecto do recurso
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questões a decidir são as seguintes:
. se a matéria de facto deve ser alterada;
. se o contrato estabelecido entre a tia da A. e o proprietário do prédio onde se encontra instalado o estabelecimento explorado pelos apelantes, se pode considerar caducado pela morte daquela e consequentemente, se caducou o contrato celebrado entre a falecida e os apelantes.

III – Fundamentação
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1º- Existe um estabelecimento comercial, destinado a restaurante, casa de pasto e salão de jogos, denominado “DD”, instalado e a funcionar no prédio urbano sito no Lugar LL, freguesia de Peso da Régua, inscrito na matriz respetiva sob o artigo xxxº.
2º- Este estabelecimento comercial veio ao domínio e posse da autora através de herança, deixada em testamento, por morte de sua tia, FF.
3º- Faleceu aquela sua tia em 17/09/2013.
4º- Aquele prédio urbano, onde se acha instalado o referido estabelecimento comercial, é propriedade da EE.
5º- Este prédio urbano foi adquirido por aquela edilidade no ano de 1979.
6º- O referido estabelecimento comercial foi adquirido pela tia da autora por trespasse no ano de 1970.
7º- A aquisição do estabelecimento comercial, por via testamentária, pela aqui autora é do conhecimento do EE, desde o óbito da tia da autora, tendo a autora enviado à EE comunicação formal de tal factualidade.
8º- Naquele ano de 1979, por força da aquisição, a EE convencionou e acordou com a tia da autora que esta continuaria com o direito de usar, fruir e deter o dito prédio urbano, ali podendo continuar a exploração do seu estabelecimento comercial.
9º- Mais foi acordado entre ambas, que a tia da autora ali permaneceria por tempo indeterminado, até ao momento em que eventualmente aquela edilidade viesse a precisar do prédio urbano para qualquer outro fim ou para demolição.
10º- O que nunca aconteceu até ao presente.
11º- Mais foi acordado entre aquela edilidade e a tia da autora, que esta, nada pagaria a título de retribuição pelo uso, fruição e detenção do dito prédio urbano.
12º- No ano de 2006, a tia da autora celebrou com o réu um contrato de “locação temporária de estabelecimento”, com início em 01/04/2006 e termo em 31/03/2016.
13º- Através do qual a tia da autora (e o seu então marido GG) cedia ao réu a exploração temporária do estabelecimento comercial aqui em causa.
14º- Aquela cessão temporária de exploração do estabelecimento comercial englobava todo o recheio existente no mesmo e pertencente à tia da autora, como equipamentos, eletrodomésticos, móveis e utensílios e ainda licenças e alvarás (também titulados pela tia da autora).
15º- Como contrapartida daquela cessão, a tia da autora receberia do réu o pagamento de uma prestação mensal no montante de € 600,00, a pagar até ao dia 08 do mês anterior a que respeitasse.
16º- Este contrato de cessão temporária de exploração durou até 07/05/2013, altura em que foi resolvido com justa causa pela tia da autora.
17º- Entretanto, em 23/05/2013, a tia da autora e o réu celebram um novo contrato de “locação temporária de estabelecimento”, com início em 29/05/2013 e termo em 30/05/2023.
18º- Através do qual a tia da autora cedeu novamente ao réu a exploração temporária do estabelecimento comercial referido.
19º- Aquela cessão temporária de exploração do estabelecimento comercial engloba novamente todo o recheio existente no mesmo e pertencente à tia da autora, como equipamentos, eletrodomésticos, móveis e utensílios e ainda licenças e alvarás (também titulados pela tia da autora) e de um barraco em madeira para arrumos.
20º- Como contrapartida desta cessão, a tia da autora receberia do réu o pagamento de uma prestação mensal no montante de € 800,00, a pagar até ao dia 08 do mês anterior a que respeitasse.
21º- Valor entre ambos, acordado.
22º- O réu iniciou assim a exploração daquele estabelecimento comercial, primeiro com aquele contrato e agora com este último, aí exercendo a atividade de restauração, casa de pasto, o que vem fazendo até à atualidade, comercializando produtos alimentares, bebidas e outros, recebendo clientes, contratando com fornecedores, fazendo encomendas de produtos alimentares, recebendo encomendas dos mesmos produtos, limpando o espaço onde funciona o estabelecimento comercial, consertando e fazendo reparações, usando os equipamentos, eletrodomésticos, móveis e utensílios existentes no estabelecimento, pagando as despesas referentes ao estabelecimento comercial (água, luz, telefone, taxas, etc.), recebendo os proventos e lucros da atividade explorada naquele estabelecimento comercial em benefício comum do casal.
23º- À data dos factos e até ao presente, os réus são casados, vivendo o casal na mesma habitação, partilhando a mesma mesa e cama, realizando em conjunto as compras dos bens indispensáveis para o dia-a-dia do agregado familiar, pagando com os proveitos que ambos obtinham as suas dívidas, tudo em total comunhão de vida, comunhão essa que ainda hoje perdura.
24º- À data dos factos e até ao presente, é da atividade comercial do réu que o casal retira também proveitos para custear os encargos e despesas normais e comuns do agregado familiar, nomeadamente para aquisição de alimentos, roupas, medicamentos.
25º- O réu foi sempre pagando as prestações mensais devidas por conta daquela cessão temporária de exploração do estabelecimento comercial, tanto na vigência daquele primeiro contrato como neste segundo.
26º- Incluindo após o óbito da tia da autora.
27º- Desde Fevereiro de 2015, inclusive, que o réu não paga à autora as prestações mensais convencionadas pela cessão de exploração do estabelecimento comercial, apesar do réu continuar a explorar o estabelecimento, nos termos referidos, e a usufruir do mesmo, dele obtendo proventos e lucros, em proveito comum do casal.
28º- Através da carta que enviou em Fevereiro de 2015, a autora instou os réus a pagarem as prestações em dívida.

Da alteração da decisão de facto
Pretendem os apelantes a alteração da matéria de facto constante dos pontos 2 e 7 da sentença e que sejadada como provada a matéria alegada nos artigos 9º e 10º da sua contestação.
Aapelada pugna pela rejeição da matéria de facto porque, em seu entender, os apelantes nem na alegação nem nas conclusões, não indicaram os concretos meios de prova em que se fundamentam para requerer a alteração.
O recorrente que pretende impugnar a matéria de facto tem que cumprir diversos ónus impostos pelo artº 640º do CPC. Com o actual preceito o legislador teve em vista dois objectivos: eliminar dúvidas que o anterior preceito legal suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente que deverá indicar qual a decisão que o Tribunal deveria ter tido.
O sistema que passou a vigorar impõe o seguinte:
.a) o recorrente deve indicar os concretos pontos da matéria de facto que considere encontrarem-se incorrectamente julgados, tanto na motivação do recurso como nas conclusões, ainda que nestas de modo mais sintético;
.b) quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve indicar aqueles que em seu entender conduzem a uma decisão diversa relativamente a cada um dos factos;
.c) no que concerne aos pontos da matéria de facto cuja impugnação se apoie em prova gravada (no todo ou em parte), para além da especificação dos meios de prova em que se fundamenta, tem que indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes, transcrevendo, se assim o entender, os excertos que considere oportunos;
.d) o recorrente deverá mencionar expressamente qual a decisão que deve ser proferida sobre os pontos concretos da matéria de facto impugnada (cfr. ensinamentos de António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código do Processo Civil, Coimbra: Almedina, 2013, p. 126 e 127).

Todos estes pontos têm de ser observados com rigor (cfr. se defende, entre outros, no Ac.do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11-07-2012, proferido no proc. 781/09 que embora proferido no domínio do CPC anterior à Lei 43/2013, mantém actualidade, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte).
O não cumprimento destes mencionadosónus, conduz à rejeição imediata do recurso na parte afectada, não havendo sequer lugar a qualquer convite aoaperfeiçoamento, porquanto esse convite se encontra apenas consagrado no n.º 3 do artigo 639º do Código de Processo Civil para as conclusões relativas às alegações sobre matéria de direito (em sentido contrário, mas em clara minoria, o , o Acórdão do STJ, de 26-05-2015, processo 1426/08.7TCSNT.L1.S1,que admite também o convite ao aperfeiçoamento das conclusões relativas ao recurso de impugnação da matéria de facto).
A alegação e, em particular, as conclusões devem identificar e localizar com clareza mas de forma sintética, o erro de julgamento em que o tribunal incorreu e que deu causa à impugnação e explicar os concretos motivos da discordância, de modo que a Relação possa reapreciar o percurso decisório levado a cabo pelo tribunal a quo, e decidir a impugnação, pronunciando-se sobre o seu mérito.
Não é pacífico na jurisprudência a questão de saber se os ónus do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto devem constar formalmente das conclusões e se, devendo constar, deverão ser todos ou apenas alguns e quais.
Com base no artº 640º CPC, no sentido de que nada refere, há quem entenda (minoritariamente ao que pensamos) que os requisitos aí referidos não têm de ser incluídos nas conclusões, uma vez que, quanto a estas especificamente, consideram nada se exigir, pois que os nºs 1 e 2, do artº 639º CPC apenas se reportam ao recurso da matéria de direito.
Por outro lado, há quem entenda que todos os requisitos deverão constar das conclusões (v.g. Acórdão da Relação de Coimbra, de 02-03-2011, processo 579/04.8GAALB.C1 ), sob pena de rejeição.
O nº 2 do artº 639º do CPC dirige-se especificamente ao recurso sobre matéria de direito, mencionando quais as especificações que devem conter as conclusões, pelo que, se entende que o subsequente artº 640º, ao impor específicas obrigações, sob pena de rejeição, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto”, embora o não diga expressamente, parece ter querido mencionar quais as indicações que as conclusões, no caso de recurso da matéria de facto, devem conter (as acima enumeradas e decorrentes das alíneas a), b) e c), do nº 1, e da alínea a) do nº 2) (cfr. se defende no Ac. do STJ, de 04-03-2015, processo 2180/09.0TTLSB.L1.S2 que, embora proferido na vigência do CPC, anterior ao aprovado pelo L 41/2013, também mantém total actualidade).
O Acórdão do STJ, de 19-02-2015 (proferido no processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1) considerou suficiente que nas conclusões se especifiquem os concretos pontos de facto impugnados e a decisão a proferir nesse domínio, enquanto delimitativas do objecto do recurso. A falta destas menções nas conclusões, implicará a rejeição do recurso (cfr. Abrantes Geraldes, , ob. citada, páginas 126 e 127.)
Na conclusão 2ª alegam os apelantes que “O tribunal julgou incorrectamente os factos dados como assentes sob os pontos 2º e 7º omitindo a apreciação de outros factos que em nossa humilde opinião deveriam ter sido dados como provados, os constantes sob os nºs 9º e 10º da contestação”.
Os apelantes indicam os pontos da matéria de facto que em seu entender foram mal julgados, mas não indicam claramente qual a resposta que deveria ter sido dada relativamente aos factos constantes dos nºs 2 e 7 da matéria de facto. Os apelantes dizem que o Tribunal julgou incorrectamente, mas deveriam dizer de modo claro o que é que o Tribunal deveria ter julgado, ou seja, se deveria ter julgado tais factos não provados ou apenas parcialmente provados. Dizer apenas que foram julgados incorrectamente não é dar cumprimento às imposições legais.
No que concerne aos artigos da contestação que os apelantes pretendem que se adite, os apelantes nem nas conclusões nem nas alegações indicam quais os meios de prova em que se fundamentam.
No entanto, a questão da admissão/rejeição da impugnação não chega a colocar-se pela seguinte razão:
Os pontos 2 e 7 da matéria de facto têm a seguinte redacção:
2. Este estabelecimento comercial veio ao domínio e posse da autora através de herança, deixada em testamento, por morte de sua tia, FF.
7. A aquisição do estabelecimento comercial, por via testamentária, pela aqui autora é do conhecimento do EE, desde o óbito da tia da autora, tendo a autora enviado à EE comunicação formal de tal factualidade.
E os artigos 9º e 10º da contestação têm a seguinte redacção:
.9. Como resulta dos autos, a Srª D. FF, faleceu em 17.09.2013, cessando dessa forma o uso e fruição do imóvel onde se mostra instalado o estabelecimento comercial.
10. Tratou-se de um comodato gratuito cujo prazo ou duração foi expressamente prevista, cessando com o falecimento da tia da A. a comodatária.
Relativamente aos pontos 2 e 7 dos factos provados, os apelantes não põe em causa o testamento nem a comunicação do falecimento da tia da A. à EE, pois que da interpretação da impugnação que apresentaram, resulta que os apelantes não concordam apenas com o segmento em que é referida a transmissão do estabelecimento para a A. por via testamentária, pois que em seu entender o contrato celebrado com a falecida caducou com a sua morte.
Ora, o que se pretende que seja eliminado dos pontos 2 e 7 constitui matéria de direito, assim como parte do alegado nos artigos 9º e 10º da contestação que os apelantes pretendem ver aditados. No alegado nos artigos 9 e 10 da contestação, apenas a alegação da morte da FF e da data em que esta ocorreu constitui matéria de facto, tudo o mais constitui matéria de direito. No entanto, já constando do elenco dos factos provados a morte da FF e respectivadata, a pretensão dos apelantes tem que improceder por não ter por objecto quaisquer factos que ainda não constem dos factos provados, mas apenas matéria de direito, ficando prejudicada a questão da admissão/rejeição da impugnação.
Conforme se defende no STJ de 9 de Junho de 2009, «(…)a matéria de direito respeita à aplicação das normas jurídicas aos factos, à valoração feita pelo Tribunal, de acordo com a interpretação ou aplicação da lei, e a qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica, ou seja, sempre que, para se chegar a uma solução, haja necessidade de recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate da interpretação de uma simples palavra da lei.(…)». E à matéria de direito e conclusões de direito, de acordo com os ensinamentos de José Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, vol.3, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p.605) “… são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência. Mas nem sempre são nítidos os critérios utilizados e as fronteiras estabelecidas”. Concordamos plenamente com o referido. A fronteira entre o que é facto e conclusão de facto e conclusão de direito, nem sempre é clara.
E conforme se refere no Ac. do TRL de 2.11.2009 (Proferido no processo 373/1998), os factos no domínio processual abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação das pessoas e das coisas, («(…) Dir-se-á ser matéria de facto a que envolve os acontecimentos ou circunstâncias do mundo exterior, os fenómenos da natureza, as manifestações concretas dos seres vivos, incluindo as actuações dos seres humanos, sem excluir as do foro interno. Neste quadro, pode, grosso modo, considerar-se questão de facto a que visa determinar o que aconteceu, designadamente as ocorrências da vida real, ou seja, os eventos materiais e concretos, as mudanças operadas no mundo exterior.(…)»(apud Ac STJ de 23 de Abril de 2009, relatado por Salvador da Costa).
A consideração do que constitui matéria de direito em cada processo depende do seu objecto.
Está precisamente em causa nesta acção saber se a A, sucedeu ou não na titularidade do estabelecimento comercial que antes era detido pela falecida FF, tia da A. e na titularidade da relação jurídica estabelecida entre a falecida e a proprietária do imóvel. E tendo em conta o objecto do processo, não podia ter sido dado como provado que o estabelecimento comercial veio ao domínio e posse da A. através de herança e que a aquisição do estabelecimento por via testamentária é do conhecimento do EE, mas apenas que a falecida tia da A. efectuou testamento no qual a instituiu a A. sua herdeira e que a A. comunicou por carta ao EE a morte da sua tia.
A eliminação da matéria de direito dos pontos 2 e 7 da matéria de direito, que se impõe a este Tribunal, importa a seguinte alteração:
. 2. FF, no estado civil de viúva, efectuou testamento no dia 5 de Março de 2012, no Cartório Notarial de Vila Real, onde declarou:
“Que não tem descendentes nem ascendentes vivos, pelo que faz este seu testamento e disposição de última vontade nos termos seguintes:
“Institui sua única e universal herdeira sua sobrinha AA, casada, natural de Vila Real, residente com a testadora, mas com a obrigação de lhe dar alojamento e de cuidar e tratar da testadora com carácter de habitualidade na saúde e na doença até à data do seu falecimento.”
.7. A A. enviou a carta junta aos autos a fls 40 e 41, datada de 27-02-2015, dirigida ao Presidente da EE, com o seguinte teor:
“Relativamente ao estabelecimento comercial acima indicado, sito no rés-do do chão do prédio urbano, sito no Lugar LL, em Peso da Régua, inscrito na respectiva matriz sob o artigo xxx, propriedade deste EE, e para os efeitos tidos por convenientes, venho, por este meio, expor a V.Exa. o seguinte:
Como é do vosso conhecimento, o mencionado estabelecimento comercial pertencia à Sra. FF, que era a sua dona e legítima proprietária, e com a qual o vosso EE fez um acordo ocupacional do referido local, nos termos constantes da acta da reunião dessa entidade, de 02 de Agosto de 1991, cuja cópia se junta e cujo teor se reproduz.
Sucede que fui instituída única e universal herdeira pela minha falecida tia, a referida Sra. FF (conforme respectivo testamento, cuja cópia se junta), sendo, por isso, a actual dona do referido estabelecimento comercial, composto por todas as suas componentes, desde bens, serviços, clientela, aviamento, firma, etc.
O estabelecimento comercial aqui em causa foi objecto de um contrato de locação temporária celebrado pela minha falecida tia, que se mantém em vigor no presente, e no qual, por força da dita sucessão testamentária, assumi a posição de locadora.”
E adita-seaos factos provados, porquanto se encontram provados por documento (fls 38 a 39) e as partes estão de acordo, um novo ponto - 29 - com a seguinte redacção (artº 607º, nº 4 e 663º, nº 2 do CPC):
Na acta da reunião da EE de 02 de Agosto de 1991 foi exarado, designadamente, o seguinte:
“A Senhora FF, esteve presente para informar que em mil novecentos e setenta nove, quando a Câmara de então adquiriu os terrenos e habitações do Juncal de Baixo à Dona HH, ela vivia no prédio urbano com o artigo XXX da matriz do Peso da Régua, e lá também exercia a actividade comercial de casa de Pasto, que na altura a maior parte dos residentes noutras barracas seriam para habitações novas do Fundo Fomento Habitação e que ela permaneceu no local com o acordo do então Presidente II de quando a Câmara precisasse daquelas instalações demolidas ou no estado em que se encontravam, seriam mudadas para outras definitivas com habitação e área para comércio, ficando sujeitas às rendas que se viessem a praticar no acto da mudança.
Que estas condições foram exaradas num documento azul assinado por ambas as partes e com assinatura reconhecida no Notário Público.
O Senhor Presidente disse que não punha em dívida o declarado, mas que o tal papel ainda não tinha aparecido, mas que se o senhor Vereador II confirmar as declarações citadas que não irá haver problema sobre o que foi acordado.
Posteriormente o Senhor Vereador II confirmou que efectivamente foi assinado o referido documento e que a Munícipe em caso de mudança obrigatória das instalações teria direito a indemnização ou a habitação e área para comércio e que a Câmara deveria assumir essa responsabilidade, mas só relativamente à Sra. FF e não para herdeiros ou em situação de trespasse.
Disse ainda: que nunca lhe foi cobrada renda por se tratar de uma barraca sem condições e na altura ser uma quantia insignificante a que pagava à então Dona dos terrenos e habitações.
(…)
A Câmara ficou ciente desta situação e deliberou por unanimidade aceitar as declarações”.

Do Direito
Antes de entrarmos na apreciação do direito aplicado ao caso, importa que se precise o seguinte:
Vieram os apelantes invocar a existência de uma contradição na decisão, porquanto, tendo sido absolvidos do pedido formulado na alínea C) na petição inicial, também deveriam ter sido absolvidos do pedido formulado na alínea B), por se encontrarem intrinsecamente ligados e não o foram.
Nas alíneas B) e C) a A.formulou os seguintes pedidos:
b) serem os RR. condenados a reconhecer que para a A. se transferiu a posição de locadora no contrato de locação temporária de estabelecimento celebrado com os RR.;
c) serem os RR. condenados a reconhecer que para a A. se transferiu o direito de continuar a usar, fruir e deter o prédio urbano referido em a) para continuação da exploração do estabelecimento comercial identificado em a).
Afigura-se-nos que a questão colocada se reconduz à invocação de erro de julgamento que se irá de seguida apreciar, erro este que, no entender dos apelantes, resulta de não se ter atentado na interligação entre os dois contratos: o contrato de cessão de exploração e o contrato celebrado entre a falecida e a proprietária do imóvel.
Defendem os apelantes que não se transmitiu a posição contratual da FF no contrato celebrado com BB, em 23 de Maio de 2013 e no contrato celebrado com a proprietária do imóvel.
Na sua contestação os RR. pugnaram pela qualificação do contrato celebrado com o R. marido como contrato de trespasse, mas na sentença recorrida a Mma. Juíza afastou tal qualificação, considerando que o contrato em causa assumia a natureza de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, qualificação que os apelantes aceitaram pois não a põem agora em causa.
Assim, considerando que entreFFe o apelante marido foi celebrado um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, apreciemos se o mesmo se transmitiu ou não à A.
Os apelantes consideram que não se transmitiu porque cessou com a morte da locadora o contrato gratuito – comodato – que a FF tinha celebrado com a dona do imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento explorado pelos apelantes, repercutindo-se a caducidade deste contrato no contrato de cessão de exploração.
Importa fazer aqui uma breve alusão breve às características do contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial e o que o distingue do contrato de trespasse, para que melhor se entenda aquele tipo contratual.

O contrato de cessão de exploração de estabelecimento é o contrato mediante o qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado.

A cessão de exploração ou concessão de exploração de estabelecimento comercial quando instalado num imóvel arrendado, não é senão um contrato de locação do estabelecimento como unidade jurídica, isto é, um negócio jurídico pelo qual o titular do estabelecimento proporciona a outrem, temporariamente e mediante retribuição, o gozo e fruição do estabelecimento, ou seja, a sua exploração mercantil.

O objecto da cessão de exploração não é o imóvel em si, mas sim o estabelecimento como um bem unitário, compreendendo a globalidade dos elementos que o integram e a sua destinação ao prosseguimento de uma dada actividade mercantil.

À cessão de exploração aplicam-se as regras do artº 1108º e ss do CC com as necessárias adaptações (artº 1109º, nº 1 do CC).A cessão de exploração do estabelecimento comercial não carece de autorização do senhorio, mas deve ser-lhe comunicada no prazo de um mês (artº 1109º, nº 2 do CC).

Na cessação de exploração não se transmite o gozo de um prédio, o detentor do estabelecimento transfere para o cessionário o gozo e fruição de uma unidade comercial, com todas as marcas e feições distintivas que acompanham esta figura de direito comercial (como se defende no Ac. do STJ de 11.04.2012, proferido no proc. 5527/04, que embora proferido no âmbito do regime anterior ao NRAU, mantém actualidade).

O trespasse habitualmente define-se como o contrato que consiste na transmissão a outrem da titularidade de um estabelecimento comercial ou industrial enquanto unidade global ou universalidade, de forma definitiva, gratuita ou onerosa. (cfr Pinto Furtado, “Manual do Arrendamento Urbano”, 1996, pág. 510). Ou seja, o trespasse traduz-se numa cedência definitiva do estabelecimento e não temporária como acontece na cessão de exploração, podendo o trespasse assumir natureza onerosa (v.g.venda) mas também gratuita (v.g.doação).

O trespasse implica uma transmissão do domínio do estabelecimento, enquanto a cessão de exploração envolve apenas a transmissão da fruição da sua exploração, ou seja, diferentemente do trespassário, que é investido num direito real de propriedade sobre o estabelecimento, o locatário é titular de um mero direito obrigacional de gozo, que lhe permite explorar em seu nome e por sua conta o estabelecimento, permanecendo o cedente como proprietário desse mesmo estabelecimento(cfr. se defende no Ac. do TRC, de 17.04.2012, proferido no proc. 221/09).
E por estabelecimento deve entender-se “o conjunto ou complexo de coisas corpóreas e incorpóreas organizado para o exercício do comércio por determinada pessoa, singular ou colectiva”[(é o conceito técnico-jurídico formulado por Barbosa de Magalhães, “Do estabelecimento comercial (estudo de direito privado)”, 2ª edição, página 13].Constitui um acervo de elementos ordenados e vocacionados para uma certa aptidão funcional de conjunto (a que habitualmente se chama de aviamento). O estabelecimento constitui um bem jurídico próprio e autónomo.Como se refere no Ac. do TRG de 06.11.2014(proferido no proc. 3474/11) “ o estabelecimento é um bem (é uma coisa) mais valioso do que o local em que esteja instalado; não podendo haver identificação exacta de posições jurídicas e de consequente tutela. O local de funcionamento constituirá, as mais das vezes, elemento essencial do estabelecimento; mas este não se esgota naquele, comportando uma mais vasta abrangência e amplitude.”

Em regra, por detrás de um contrato de cessão de exploração, quando o imóvel não é pertença do cedente está um contrato de arrendamento entre o cedente e quem tem legitimidade substantiva para o dar de arrendamento, só se operando a transmissão da posição do locatário com a celebração do contrato de trespasse,(artº 1112º, nº 1 do CC), não se transmitindo na cessão de exploração. Mas não é o que se verifica nestes autos.
Face aos termos em que foi acordada o uso e a fruição pela tia da A. do prédio (pontos 8, 9 e 11 dos factos provados e acta de 8 de Agosto de 1991), o contrato celebrado entre a FF e a proprietária do prédio não configura um contrato de locação, mas de comodato, pois que não foi estabelecida qualquer contrapartida pela utilização e fruição do prédio (artº 1129º do CC). O comodato é um contrato gratuito onde não há a cargo do comodatário prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante.
Nos termos do artº 1141º do CC o contrato caduca pela morte do comodatário, sem prejuízo de se as partes assim o entenderem convencionarem de modo diferente. Defendem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Coimbra Editora, anotação ao artº 1141º), que “em princípio, deve entender-se que o comodante quer beneficiar apenas o comodatário e não os seus herdeiros. Ora, como se trata de uma presunção de vontade e não de uma disposição imposta por razões de ordem pública, é de admitir que os contraentes convencionem a continuação do comodato por morte deste [ cfr. quanto à locação, artº 1051º. Alínea e) (actual alínea d)]. Esta convenção pode resultar não só de uma declaração expressa, como de factos que com toda a probabilidade a revelem (artº 217º) Mas ao contrário do que acontece com a locação não carece de ser reduzida a escrito (artº 219º do CC)”, entendimento com o qual concordamos.
O contrato de exploração de estabelecimento comercial sofre as vicissitudes do contrato estabelecido entre a cedente e a proprietária, uma vez que a exploração do estabelecimento está ligada à utilização de um determinado espaço.
Assim, cessando o contrato que permitia à cedente o uso e fruição do espaço onde funciona o estabelecimento, necessariamente terá que cessar o contrato de cessão de exploração. É o que resulta da própria natureza do contrato: o direito do locatário do estabelecimento segue as vicissitudes do contrato que tem por objecto o local onde está instalado o estabelecimento e no caso, essa ligaçãoresulta ainda do teor dos considerandos b) e c) do contrato celebrado entre a falecida e o apelante marido em 2013 (cfr. se defende no Ac. do TRL de 12.03.2009, proferido no proc. 8145/2008).
Os considerandos b) e c) do contrato têm a seguinte redacção:
“.b). O prédio onde se encontra instalado o referido estabelecimento foi adquirido pela EEaos seus proprietários.
c) Após a sua aquisição a EE celebrou um contrato com a arrendatária, a aqui primeira outorgante, segundo o qual poderia continuar a exercer no locado até que a Câmara necessitasse do prédio para outro fim ou para proceder à sua demolição, altura em que mediante indemnização ou cedência de outro local a arrendatária teria de fazer a entrega do prédio, assumindo a EE este compromisso apenas perante a aqui primeira outorgante, mas não já em caso de trespasse ou perante herdeiros, renunciando, por via disso ao recebimento de qualquer renda pela ocupação do prédio, conforme acta da reunião de Câmara de 02.09.91 onde todas estas cláusulas ficaram devidamente registadas e que se junta.
Nos termos do artº 2024º do CC diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam. Não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei (artº 2015º, nº 1 do CC).
Transmitiu-se à A. a posição contratual de comodatária detida pela falecida?
A Mma. Juiza a quo não tomou posição sobre a questão, condenando os apelantes no pagamento das rendas por entender que se mantinha o contrato de cessão de exploração.
O que foi acordado efectivamente entre a falecida e a proprietária do imóvel não é isento de dúvidas.
Nos termos do artº 236º, nº1 do CC a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. O declaratário a considerar, à luz do paradigma da teoria da impressão do destinatário, é o declaratário quecorresponde à figura do homem médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, tendo em consideração, em matéria de interpretação do contrato, o sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto, adoptando o sentido comum ou ordinário dos termos utilizados.
Da acta de 2 de Agosto de 1991 o que um declaratário normal colocado no lugar do real declaratário retiraria é que o direito a indemnização ou a habitação e área para comércio seria apenas concedido à FF Ferreira e não aos seus herdeiros nem ao trespassário. Foi este direito de crédito ou direito à concessão de uma habitação ou área para comércio que se quis que não fosse transmissível e não o comodato em si. A referência ao não pagamento de qualquer renda só é referido na acta a seguir à referência à não transmissibilidade do direito à indemnização e à habitação e comércio e explica-se na mesma que não é devida renda por se tratar de uma barraca sem condições e por na altura ser uma quantia insignificante.
Os considerandos que a falecida fez inserir nos contratos que celebrou com os apelados não põem em causa esta interpretação. A impossibilidade de transmissão afigura-se ser relativa ao direito a indemnização ou em alternativa a exigir a cedência de outro lugar. Como se referiu supra, a convenção relativa à transmissão não tem que resultar de convenção expressa nem tem que ser escrita, podendo resultar de factos que com toda a probabilidade a revelem (artº 217º), como se verifica no caso em que a referência à intransmissibilidade está ligada ao pagamento de uma indemnização e ao direito à atribuição de outro local e é corroborado pela circunstância da proprietária não ter reclamado o imóvel, após ter tido conhecimento da morte da primitiva comodatária. A A. comunicou a morte da tia e que o estabelecimento que se encontra a funcionar no prédio se encontra a ser explorado por terceiro, e até ao presente a edilidade não invocou precisar do prédio urbano para qualquer outro fim ou para demolição (ponto 10 dos factos provados) e os RR. continuam a explorar o estabelecimento, sem que a proprietária lhes tenha exigido ou à A. a entrega do estabelecimento. O que os apelantes referem é ter receio que tal venha a acontecer ou que lhes venha a ser exigido o pagamento de uma determinada quantia pelo uso do imóvel (artº 23º da contestação).
Não podendo concluir-se que o contrato celebrado entre a tia da A. e a proprietária do prédio caducou pela morte da FF, sucedeu a A. nas posições contratuais antes detida pela falecida e, consequentemente, assiste-lhe o direito ao recebimento das rendas, assim se mantendo o decidido (note-se que este Tribunal não poderia condenar os apelantes nos termos constantes da alínea b) do pedido, desde logo porque a sentença da 1ª instância transitou nessa parte).

A final, já depois das conclusões, pedem os apelantes que se se entender que não lhes assiste razão, se chame o EE. Além de esta questão estar fora das conclusões e como tal não pode ser considerada como integrando o objecto de recurso, os apelantes também não fundamentam nem concretizam o incidente pretendido, pelo que sempre esta pretensão teria que improceder.

IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.
Guimarães, 19 de janeiro de 2017


(Helena Gomes de Melo)


(Higina Orvalho Castelo)


(João Peres Coelho)