Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
| ||
Relator: | CRUZ BUCHO | ||
Descritores: | INJÚRIA DIFAMAÇÃO ELEMENTO SUBJECTIVO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 12/03/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I – O recorrente sustenta que tendo o tribunal julgado provado que o arguido proferiu a palavra “canalha” e a palavra “criança” depois da assistente o ter apodado de “filho da puta” e “boi” e depois desta lhe ter atirado líquido e o ter atingido, atentas estas circunstâncias em que se produziu o comportamento subsequente do arguido, este não constituirá crime mas sim uma resposta a uma forte provocação e a uma ofensa corporal, uma vez que agiu não com animus ofendendi mas sim com animus defendendi. . II – Ora, embora seja certo que se não provou que o arguido tivesse agido com animus injuriandi é hoje pacífico na. Jurisprudência e na doutrina portuguesas que o animus injuriandi vel diffamandi não integra o tipo subjectivo dos crimes de difamação e injúrias (cfr. v.g., Augusto Silva Dias, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, Lisboa, 1989, págs. 35-36, Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Coimbra, 1996, págs. 40 e seguintes. 63, Faria Costa, Comentário Conimbricence ao Código Penal, Tomo I, cit., pág. 612, Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal, 2ª ed., Lisboa, 1996, vol. II, págs. 317-318, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 173 ed., Coimbra, 2005, págs. 622-623, estas duas últimas obras com amplas referências jurisprudenciais), sendo suficiente para a sua realização que o agente queira com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou preveja essa ofensa de modo a que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente, ou pelo menos, como sustenta o Consº Oliveira Mendes, partindo da construção dos crimes de difamação e de injúria, como crimes de perigo abstracto-concreto, bastando que o agente tenha consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da acção previstos na norma incriminadora (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, cit., pág. 59). III – Como regra geral, também vigente nos crimes de injúrias e de difamação, a lei desinteressa-se para a existência do dolo ou intenção criminosa dos motivos do agente ou dos fins que o mesmo se propõe, que apenas serão tomados em consideração em sede determinação da ‘medida da pena [cfr. arligo 72°, n.o2 alínea c); assim também no· direito espanhol (Muñoz Conde-Garcia Arán, Derecho Penal-Parte General, 6ª ed., Valência, 2004, pág. 269) italiano (Marinucci-Dolcini, Manuale di Diritto Penale, 2ª ed. Milão, 2006, págs. 253-254, Mantovani, Diritto Penale, 4ª ed., Padova, 2001, págs. 337-338]. IV – No caso em apreço provou-se que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as expressões que utilizou eram “aptas a ofender a honra e consideração (…), tal como representou e quis” e que a sua conduta era proibida por lei, o que é quanto basta para afirmar o elemento subjectivo do ilícito em questão. V – É certo que no caso “sub judice” as palavras “canalha” e “criança” foram dirigidos pelo arguido à assistente logo após esta lhe ter chamado “filho da puta” e “boi” e lhe ter atirado um líquido que o atingiu (actuação por certo motivada pelo facto de anteriormente, na mesma noite, o arguido lhe ter desferido uma cotovelada no estômago) mas, contrariamente ao que chegou a ser sustentado no domínio do anterior Código penal de 1886 (cfr. v.g. Ac, da Rel. do Porto de 18-4-1979, CoI. de Jur. Ano IV, pág. 495), o “animus retorquendi” ou seja o espírito de devolver a ofensa ou de responder à que lhe é feita com outra de idêntico grau ofensivo não exime da responsabilidade criminal, por não excluir a ilicitude ou a culpa, conforme resulta com meridiana clareza do disposto no artº 186º do C. Penal. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Guimarães: * I- RelatórioNo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, no âmbito do Processo Comum Singular nº 364/04.7TAEPS, por sentença de 4 de Janeiro de 2007, o arguido M... Lima, com os demais sinais dos autos, foi condenado, pela prática de: a) um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de cento e vinte dias (120) de multa à taxa diária de oito euros (€ 8); b) um crime de ameaça, p, e p. pelo pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de cinquenta (50) dias de multa à taxa diária de oito euros (€ 8); e c) dois crimes de injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de quarenta (40) e quinze (15) dias de multa, à taxa diária de oito euros (€ 8), para cada um deles Em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de cento e sessenta e cinco (165) dias de multa à taxa diária de oito euros (€ 8), num total de mil trezentos e vinte euros (€ 1 320). O pedido cível deduzido pela assistente Maria M... foi julgado parcialmente procedente por provado e, em consequência, o demandado/arguido M... Lima foi condenado a pagar-lhe a quantia de quinhentos euros (€ 500); * Inconformado com tal decisão, o arguido dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:«1. Ao proferir o douto despacho de tis. 239 dos autos e ao não ouvir a testemunha H... Oliveira, o Tribunal violou o art. 323ºdo CPP, aplicou indevidamente o art. 316º do mesmo diploma, violou as normas que disciplinam o direito de defesa do arguido; 2. Além disso, ao não fundamentar a sua decisão, designadamente nada dizendo relativamente ao interesse de não ouvir tal testemunha para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, quando tal testemunha presenciou os factos ocorridos no dia 5 de Setembro de 2004, o Tribunal incorreu no vicio de falta ou, pelo menos, deficiente fundamentação da decisão, previsto nos artigos 374º/2 e 379º o do CPP. 3. Ao proceder à alteração não substancial dos factos alterando a qualificação jurídica dos factos depois de ter sido produzida toda a prova, depois de produzidas as alegações orais e quando estava já designado o dia para a leitura da sentença, o Tribunal aplicou indevidamente o art. 357º do CPP e praticou um acto que a lei não admite, sendo nulo tal acto e a consequente decisão condenatória do arguido pelos factos alterados; 4. Pelas razões vertidas na motivação, não deveria o Tribunal ter julgado provado que o arguido proferiu as expressões "és uma puta de uma mentirosa" no dia 5/9/2004 e "canalha" e "criança" no dia 3/10/2004. 5. Além disso, ao aplicar ao arguido uma pena pela prática de um crime de injuria por ter proferido as expressões "canalha" e "criança" no dia 3/10/2004, e ao não isentar de pena o arguido, sempre o Tribunal violou o art. 186.ºdo Cód. Penal. 6. Pelo que, sempre as penas aplicadas ao arguido deveriam ser reduzidas.» * O recurso foi admitido, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 263.* O Ministério Público junto do tribunal recorrido, bem como a assistente Maria M... responderam ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.* Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se igualmente no sentido de o recurso não merecer provimento.* Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, foram colhidos os vistos legais.Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com o formalismo aplicável. * II- Fundamentação 1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo: A) Factos provados (transcrição) 1) No dia 7 de Outubro de 2004, deu entrada nos serviços do Ministério Público de Esposende, subscrito pela assistente Maria M..., a “denúncia penal” contra o arguido; 2) No documento descrito em 1), e além do mais que ora não importa tratar, refere-se: “1.º – No dia 5 de Setembro de 2004, cerca das 4.30 horas, no parque de estacionamento da Discoteca P..., no Lugar de Pedreiras, Ofir, da freguesia de Fão, desta comarca, quando a denunciante pretendia sair do mesmo parque, foi impedida de o fazer pelo denunciado, 2.º – O qual mantinha o seu veículo deliberadamente parado por forma a reter a denunciante naquele parque. 3.º – A denunciante conduzia então o veículo 65-27-L... e por diversas e insistentes solicitou ao denunciado que a deixasse abandonar aquele parque, sem que este acedesse a tal pedido. … 8.º – -Aliás, naquelas circunstâncias de tempo e local referidas, o denunciado ainda se abeirou do citado veiculo conduzido pela queixosa, e pertencente a sua mãe, tendo desferido um violento pontapé no guarda-lamas e pneu esquerdos traseiros do mesmo veículo. 3) No dia 5 de Setembro de 2004, pelas 4.30 horas, no parque de estacionamento da discoteca P..., no lugar de Pedreiras, Ofir, freguesia de Fão, Esposende, o arguido, na sequência de um acidente, imobilizou a sua viatura, impedindo a passagem do automóvel de matrícula 65-27-L..., conduzido pela assistente; 4) Então, a assistente dirigiu-se ao arguido para que este desviasse o seu veículo; 5) Depois de uma troca de palavras, tendo a assistente solicitado a intervenção dos seguranças da referida discoteca e, ainda, da GNR, o arguido dirigiu-se a ela e, em voz alta, tom grave e intimidativo, disse-lhe: “canalha”, “vai para casa que ainda levas dois pares de estalos”, “és uma puta de uma mentirosa”; 6) Entretanto, o arguido arrumou o seu carro e, quando a assistente se preparava para arrancar no veículo por si conduzido, desferiu um pontapé no guarda-lamas traseiro do lado direito do dito veículo; 7) Simultaneamente, o arguido dirigiu-se à assistente dizendo-lhe “o que fiz ao carro vou fazer a ti”; 8) Com o descrito em 6), o arguido amolgou o veículo na zona onde o pontapé foi desferido; 9) No dia 3 de Outubro de 2004, cerca das 2.30 horas, no interior do bar “Fiesta Cubana”, em Ofir, Esposende, o arguido, ao passar pela assistente, desferiu-lhe uma cotovelada no estômago; 10) Após, a assistente e retirou-se para uma espaço ao ar livre no referido bar para se restabelecer; 11) Com o descrito em 9), a assistente sentiu dores no tórax e no estômago, sofrendo traumatismo abdominal; 12) Tendo relatado o descrito em 9) a um segurança do estabelecimento, Diamantino Pinto, procuraram ambos o arguido no interior do mesmo; 13) Tendo-o encontrado, a assistente dirigiu-se ao arguido e disse-lhe em voz alta “filho da puta” e“boi”; 14) Acto contínuo, a assistente atirou ao arguido um líquido cuja concreta natureza ou composição não se logrou apurar, atingindo-o; 15) Face ao descrito em 13) e 14), o arguido apodou a assistente de “canalha” e “criança”; 16) Além disso, o arguido tentou aproximar-se da assistente, o que não conseguiu porque entre ambos se encontrava o referido segurança; 17) Então, o segurança do estabelecimento levou o arguido para fora do estabelecimento; 18) O arguido agiu com o propósito, conseguido, de atingir a saúde da assistente e de lhe provocar as lesões supra descritas, assim como sabia que as expressões por si utilizadas eram e são adequadas a provocar medo e inquietação na assistente, o que representou e quis, bem assim aptas a ofender a sua honra e consideração, tal como representou e quis; 19) Em todos os sobreditos actos, o arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida e punida por lei; 20) A assistente deslocou-se ao Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Esposende para receber tratamento médico cerca das 6.30 horas desse dia 3 de Outubro; 21) A assistente sentiu-se vexada, humilhada e ofendida na sua honra e consideração social pelas expressões proferidas pelo arguido descritas em 15); 22) As expressões proferidas em 5) e 15) foram proferidas em voz alta; 23) Em virtude deste processo, a assistente teve necessidade de se deslocar ao posto da G.N.R. e ao Tribunal; 24) Despendeu a quantia de € 178 em taxa de justiça para se constituir assistente; 25) O veículo automóvel de matrícula 65-27-L... é propriedade da mãe da ofendida, Maria M...; 26) O arguido é engenheiro civil, tendo feito um pós graduação; 27) Pratica culturismo há 13 anos; 28) Trabalha num gabinete de projectos de construção civil, auferindo mensalmente, pelo menos, € 600 líquidos; 29) É saudável e não tem filhos; 30) Vive com os pais, sendo a mãe doméstica e o pai emigrante; 31) Entrega € 150 mensalmente para ajudar nas despesas domésticas; 32) Tem ainda um veículo automóvel, o qual ainda não se encontra totalmente pago; 33) Não tem antecedentes criminais. *
* B) Factos não provados (transcrição) «Para além dos supra descritos, não se provaram quaisquer outros factos que estejam em contradição com os dados como provados. * C) Convicção (transcrição) «O Tribuna fundou a sua convicção atendendo ao conjunto da prova produzida, analisando-a criticamente, conjugando-a entre si e à luz das regras da experiência. Comecemos, então, pela factualidade provada. Relativamente aos factos descritos em 1) e 2), o Tribunal ponderou o teor da própria denúncia apresentada pela assistente Maria M... e constante a fls. 2 a 8. Matéria que merece uma análise mais cuidada diz respeito à factualidade descrita em 3) a 23). Esta factualidade pode distinguir-se em momentos cronologicamente diferentes e sobre os quais arguido e assistente apresentaram versões diferentes (ainda que com alguns pontos de contacto). Assim, quanto ao sucedido no parque de estacionamento da discoteca P... (factualidade descrita em 3) a 8)), o Tribunal atendeu às declarações da assistente Maria M..., em conjugação com os depoimentos de D... Neiva, Mariana M... (irmã da assistente) e C... Ribeiro. As declarações da assistente Maria M... (nesta parte) e destas testemunhas mereceram do Tribunal credibilidade, desde logo porque descreveram os factos de modo sensivelmente homogéneo e uniforme (aqui e ali uma ligeiríssima diferença que o Tribunal considerou como normal) entre si, estando em condições objectivas para prestar um bom depoimento: porque os factos se passaram a escassos metros entre si, observando-os de um lugar privilegiado (o veículo automóvel em que seguiam encimava a fila de automóveis que aguardavam que o arguido desviasse o seu carro para poderem passar). Sendo certo que, dum lado temos a protagonista (juntamente com o arguido) dos factos ― o que seguramente não deixará de influenciar o modo como são, depois, relatados ― e doutro as testemunhas que não deixaram de se afirmar como familiar e amigas da ofendida. O que, deve assinalar-se, o Tribunal não deixou de ter em consideração ao valorar tais declarações e depoimentos. Sobre tais factos, o arguido limitou-se a enquadrá-los no âmbito de uma mera discussão de trânsito, sem quaisquer ameaças ou palavras injuriosas, mas a sua versão, nesta parte, não mereceu qualquer credibilidade. Quanto aos factos (descritos em 9) a 12) dos factos provados) relativos à cotovelada sofrida pela ofendida, também aqui o arguido negou a prática dos factos. Contudo, o Tribunal considerou (ainda que apenas nos termos ali descritos) que tal cotovelada efectivamente ocorrer, alicerçando a sua convicção nas declarações da ofendida e assistente Maria M... (nesta parte igualmente credíveis, devendo aqui assinalar-se que a versão por si apresentada relativamente ao puxar dos cabelos não surge como imediatamente sequencial a cotovelada, mas apenas posterior e, nessa medida, surgiu relatada em termos diversos aos descritos na acusação ― muito embora ela afirme que o arguido, muito posteriormente à cotovelada, lhe tenha efectivamente puxado os cabelos) e ainda no depoimento de A... Silva, conjugado com o teor da informação clínica junta aos autos a fls. 106, ali se revelando a existência de traumatismo abdominal (apenas) e do conjunto de queixas que ali fez a ofendida. Na verdade, a ofendida revelou ter sido agredida à cotovelada, o que é corroborado pela testemunha Ana Cristina (em certo sentido, e pelas razões que abaixo melhor se explanará, é este depoimento que dá credibilidade às declarações da assistente) que explicou ao Tribunal todo percurso do arguido até ao momento em que deu a cotovelada e o modo como descreveu essa cotovelada, encontrando-se esta testemunha em boas condições de observação (encontrava-se junto à assistente, no cimo de umas escadas, com perfeita visibilidade, apesar de do ambiente de discoteca) e apesar de se afirma como amiga da assistente, o certo é que do seu depoimento acabou por resultar “ser mais conhecida que amiga” e, nessa medida, em melhores condições de prestar um depoimento objectivo e isento. No que respeita aos factos posteriores à cotovelada ― referidos em 13) a 17), 20) a 22) ― como ressalta da factualidade provada, o Tribunal não deu qualquer credibilidade à versão dos factos apresentada pela ofendida (e descrita nos libelos acusatórios em tempo redigidos), antes acreditou na versão apresentada pelo arguido. Aliás, sobre esta matéria e perante a factualidade provada, nenhuma dúvida restou ao Tribunal de que a assistente ― eventualmente para tentar encontrar uma justificação-negação dos factos que surgem descritos na factualidade provada e que dela dá a imagem, afinal, de uma arruaceira que, julgando-se protegida pelo segurança que a acompanhava, procura uma desforra face ao comportamento do arguido, conduta que assume uma maior gravidade quando, vendo que o segurança não estava ali para ser um instrumento dos seus desejos de vingança, procura arrojar sobre o labéu de “estar metido com o arguido”, de ser amigo dele (arguido) ― mentiu no relato que fez dos factos. Como (e porque coincidente com a versão dos factos apresentada pela ofendida) nenhuma credibilidade mereceu o depoimento da testemunha F... Silva que, por razões que o Tribunal não logrou apurar, prestou-se ao triste papel de mentir. E, na verdade, são vários os sinais reveladores de que esta versão não se mostra conforme com a realidade. Desde logo, surge como inexplicável o facto do boletim clínico não fazer qualquer referência a dores de cabeça, rectius, dores na cabeça na ofendida, quanto tal facto seguramente estaria assinalado no dito boletim ao menos como queixa (sintoma). Por outro lado, o depoimento claro, preciso, isento e objectivo de D... Machado, segurança do estabelecimento que acompanhava a ofendida naquele momento e que, ao contrário dos demais depoimentos, era o único que se apresentou como equidistante em relação ao litígio entre arguido (esta, além da testemunhas a que vimos fazendo referência, limitou-se a arrolar testemunhas) e assistente (cujas testemunhas arroladas eram ou familiares ou amigos). Aliás, foi a testemunha que mais agressivamente foi questionada, quer pela Senhora Procuradora quer pelo Ilustre Mandatário da assistente, procurando encontrar no seu depoimento e no documento por ele elaborado ao tempo dos factos contradições ou expressões que, de algum modo, pudessem corroborar a versão do libelo acusatório. Mas esta testemunha manteve-se foi sempre claro ao negar qualquer agressão do arguido à assistente neste momento, sendo peremptório ao afirmar que foi a “menina” que terá procurado alguma desforra face ao comportamento anterior do arguido, agredindo-o verbalmente com as expressões descritas na factualidade provada e atirando-lhe com um líquido. Como claro foi ao afirmar que não ocorreu qualquer contacto físico entre os oponentes (ele, como afirmou, estava a separá-los, aqui no sentido de intrometer-se entre eles, afastando-os um do outro, nomeadamente, como plasticamente se expressou em audiência, abrindo os braços). Ora, é precisamente a análise conjunta do depoimento da única testemunha isenta em relação às partes (as tentativas da assistente ― e do seu Ilustre Mandatário ― de encontrar uma ligação entre o arguido e esta testemunhas foram apenas isso: tentativas, meras alegações sem qualquer suporte probatório; que, no caso da ofendida, como já se deixou dito, se mostrou como uma tentativa ― que dela, ofendida dá uma triste imagem… ― de “denegrir o mensageiro, para ver se a mensagem também sai negra”) em conjugação com o boletim clínico (onde a ausência de qualquer referência às dores na cabeça provenientes do puxar de cabelos surge fortemente vincada, tanto mais que tal documento é feito ― e nele reveladas as queixas e dores do doente ― tendo em vista uma consulta médica e não o seu uso em Tribunal como meio de prova) que nos permite dizer que a versão dos factos apresentada pelo arguido nesta matéria é a que corresponde à verdade. Quanto ao teor do descrito em 24), o Tribunal considerou o documento junto relativamente ao pagamento de tal taxa (fls. 10). Relativamente ao descrito em 25), o Tribunal atendeu ao teor das declarações da própria ofendida que não deixou de admitir que o carro era pertença da sua mãe. No que diz respeito às condições económicas e sociais do arguido, o Tribunal atendeu às suas declarações que, nesta matéria, pareceram sérias e objectivas. Por fim, quanto aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal fez fé no certificado do registo criminal junto aos autos a fls. 182. Volvendo, agora, a nossa atenção sobre a factualidade não provada. Em termos gerais, pode dizer-se que sobre tais factos, ou mesmo se apresentam em contradição como os considerados provados, ou sobre a mesma não foi feita qualquer prova ou a que foi feita não ofereceu qualquer credibilidade. Assim, sobre o descrito em a) há que dizer que não foi junto qualquer documento que atestasse o custo da reparação, limitando-se a prova oferecida nesta sede ao depoimento da mãe da ofendida. Sendo certo, esclareça-se, que tal documento não seria difícil de obter. Relativamente ao referido em b) e c) dos factos não provados, deve salientar-se que não surgiu qualquer meio de prova (testemunhal ou sequer declaração da assistente) que revele que no momento da cotovelada o arguido tenha discutido com a assistente ou sequer dirigido a palavra. Quanto ao que se descreve em d) a o), s) a v), face a tudo quanto vai dito relativamente à factualidade provada, pouco há a acrescentar. Esclareça-se, em todo o caso, que muito desta factualidade se encontra alegada no pedido de indemnização civil, como, além disso, deve salientar-se que muitas das dores se mostram como não provadas simplesmente porque não se logrou provar a sua causa (assim as dores na cabeça da assistente). Também sobre esta matéria, como se referiu, o Tribunal deu credibilidade à versão dos factos apresentada pelo arguido, rectius, pela testemunha D... Machado. Por outro lado, sobre tais matérias também foram produzidos depoimentos, designadamente (e quanto às dores) dos familiares da assistente (mãe e avó). Mas num caso e noutro, relataram dores e consequências das agressões manifestamente exageradas. Aliás, mais faziam a ofendida parecer uma espécie de “destituída mental”, incapaz de saber reagir perante a adversidade e perante dificuldades (porque chorava muito, deixou de estudar, piorou as notas ― quando a agressão ocorreu praticamente no início do ano, sendo difícil ter termo comparativo ― passou a dormir com a mãe, não conseguia pentear o cabelo (?), que foi acompanhada por psicólogo (um tal Dr. Torres, no dizer da mãe, mas que nos autos nem sequer no pedido de indemnização civil surge,…) um sem número de coisas que fazem esquecer que a assistente era, ao tempo dos factos, não uma criança com 6 anos, mas já uma estudante universitária, com alguma estrutura e capacidade de responder perante estímulos (às vezes negativos). Depois, estranhou o Tribunal que perante um tão extenso relambório de queixas, dores e danos psicológicos não tivesse surgido nos autos qualquer relatório clínico que isso pudesse atestar. Aliás, tais e tão extensos danos psicológicos surgem plasmados no pedido de indemnização civil de modo muito mais ligeiros (no medo de sair sozinha, no receio de ir a bares e discotecas,…). Os depoimentos das testemunhas acabadas de citar (a mãe e avó da assistente) foram, assim, de pouca utilidade ao Tribunal porque retrataram uma pessoa (a ofendida) bem diferente daquela que surgiu perante o Tribunal, não merecendo, assim, credibilidade ao Tribunal. Deve ainda acrescentar-se relativamente ao descrito em f) e essencialmente em i), deve dizer-se que foi a própria arguida a dizer que, apesar de não esperar aquele comportamento do arguido, não lhe deu grande relevo, donde se justificar a ausência de medo ou inquietação pela possibilidade do arguido concretizar a ameaça. Por fim, quanto aos “falatórios”, nenhuma prova com o mínimo de consistência foi feita relativamente a se poder afirmar que o sucedido à ofendida foi objecto de conversas e, por isso ― e por ser um verdadeira flor de estufa que nunca havia sido objecto de qualquer comentário menos desagradável à sua pessoa ― se sentiu amargurada e incomodada.» * 2. Conforme é sabido, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)Nestes autos, são as seguintes as questões a apreciar: · Nulidade decorrente da falta de inquirição da testemunha · O momento da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos · Erro notório na apreciação da prova; · A violação do artigo 127º do Código de Processo Penal · Violação do princípio in dubio pro reo; · A inexistência de crime face ao circunstancialismo em que as expressões foram proferidas · A dispensa de pena · A redução das penas * 1. A questão da falta de inquirição da testemunha §1. Sustenta o recorrente que “ao proferir o douto despacho de fls. 239 dos autos e ao não ouvir a testemunha H... Oliveira, o Tribunal violou o art. 323ºdo CPP, aplicou indevidamente o art. 316º do mesmo diploma, violou as normas que disciplinam o direito de defesa do arguido. Além disso, ao não fundamentar a sua decisão, designadamente nada dizendo relativamente ao interesse de não ouvir tal testemunha para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, quando tal testemunha presenciou os factos ocorridos no dia 5 de Setembro de 2004, o Tribunal incorreu no vicio de falta ou, pelo menos, deficiente fundamentação da decisão, previsto nos artigos 374º/2 e 379º o do CPP. * §2. Vejamos antes de mais e circunstanciadamente o que se passou.Após várias sessões de julgamento, em 28-11-2006, foi designado o dia 13 de Dezembro de 2006, pelas 14 horas “para a leitura da sentença” (cfr. acta de fls. 203-204). No dia 13 de Dezembro, reaberta a audiência foi proferido o seguinte despacho: «Os factos que resultam provados da audiência de julgamento e mesmo aqueles já constantes da acusação particular deduzida pela assistente Maria M... contra o arguido consubstanciam em nosso entender, não um mas dois crimes de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.° do Código de Processo Penal. Assim sendo, estamos perante uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação - artigos 1.°, n.º1 alínea f), a contrário e 358.° do Código de Processo Penal. Alteração essa que nos termos do n.º 1 e n.º 3 do citado artigo 358.° se comunica ao Ministério Público e ao ilustre defensor do arguido, este último para, querendo, requerer prazo para preparar a defesa. Notifique.» Conforme resulta da mesma acta concedida a palavra ao defensor do arguido, por este foi dito que requeria o prazo de 10 dias para preparar a defesa do arguido, pelo que o Sr. Juiz em face do requerido, designou o dia 4 de Janeiro de 2007, às 14:00 horas para continuação da audiência de julgamento. Em 3 de Janeiro de 2007 o arguido apresentou um requerimento em que na sequência di despacho de 13 de Dezembro vem requerer a inquirição de uma testemunha residente na Rua Brito de Cabelo, em Matosinhos No dia 4 de Janeiro, conforme resulta da acta de fls. 238-240, depois de dada a palavra à Digna Procuradora Adjunta a fim de se pronunciar sobre o requerimento de fls. 208, tendo a mesma foi dito nada ter a opor à inquirição da testemunha, foi proferido o seguinte despacho: «Admite-se a inquirição da dita testemunha, H... Oliveira. Considerando que no caso dos autos se trata de uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação particular - e por isso relativamente a tais factos teve o arguido já a ampla oportunidade de defesa e de arrolar as testemunhas que bem entendesse, atendendo ainda que o rol de testemunhas deve ser apresentado no prazo de 20 dias, após a notificação do despacho que designa dia para audiência de julgamento (artigo 315.°, n.º 1 do Código Processo Penal), ponderando ainda o disposto no artigo 316.°, n.º 2 do mesmo que impõe a apresentação em audiência das testemunhas indicadas após a apresentação do rol, é para nós claro que a testemunha indicada devia ser apresentada. O que não aconteceu. Assim sendo, outra solução não resta que prosseguir os ulteriores termos do processo. Notifique. » De seguida, segundo informa a mesma acta, o Senhor Juiz procedeu à leitura da sentença, o que fez em voz alta, após o que dirigiu ao arguido uma breve alocução, exortando-o a corrigir-se. * §3. Segundo os n.º 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação - como sucedeu no presente caso – o presidente oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e “concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”. Como bem esclarece o Cons.º Maia Gonçalves, a concessão do tempo necessário para a preparação da defesa não envolve, em caso algum, o adiamento da audiência. Na verdade, no caso de alteração não substancial, está em causa a prova de factos que representam uma alteração dos da acusação ou pronúncia, mas sem qualquer relevo para a alteração do crime ou do máximo das penas. Também no que concerne à alteração da qualificação jurídica o arguido se defendeu contra todos os factos pelo que apenas basta dar-lhe a possibilidade de defesa, comunicando-se-lhe a alteração para que sobre ela se pronuncie, se assim o entender. Em caso de mera alteração da qualificação jurídica, não há, por conseguinte, lugar à produção de qualquer tipo de prova suplementar. Por isso, como dissemos citando o Cons.º Maia Gonçalves, a concessão do “tempo estritamente necessário para a preparação da defesa” não envolve, em caso algum, o adiamento da audiência. Perante o que ficou exposto é forçoso concluir pela improcedência da argumentação do recorrente. Ex abundante sempre se dirá que nem mesmo admitindo a produção de prova requerida, como acabou por ser indevidamente admitida, nem por isso a pretensão do recorrente obteria acolhimento, porquanto a continuação dos trabalhos, pese embora a omissão de notificação da testemunha, sempre constituiria mera irregularidade a arguir no próprio acto e, por isso, há muito sanada (artigo 123º do Código de Processo Penal). * 2. A questão do momento da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos Sustenta o recorrente que “ao proceder à alteração não substancial dos factos alterando a qualificação jurídica dos factos depois de ter sido produzida toda a prova, depois de produzidas as alegações orais e quando estava já designado o dia para a leitura da sentença, o Tribunal aplicou indevidamente o art. 357º do CPP e praticou um acto que a lei não admite, sendo nulo tal acto e a consequente decisão condenatória do arguido pelos factos alterados” O Ministério Público junto do tribunal recorrido suscitou a questão da extemporaneidade do recurso, nesta parte, uma vez que o ilustre mandatário do arguido havia sido notificado do despacho que procedeu à alteração da qualificação jurídica no dia 13 de Dezembro de 2006, sendo que o recurso apenas foi interposto em 19 de Janeiro de 2007, isto é, muito depois de ter decorrido o prazo legal de quinze dias. Com efeito, a alteração da qualificação jurídica foi comunicada ao arguido no dia 13 de Dezembro de 2006 (cfr. acta de fls. 205-206). Na ocasião, o ilustre mandatário do recorrente limitou-se a requerer o prazo de 10 dias para preparar a defesa do arguido, tendo sido designado o dia 4 de Janeiro de 2007 para a continuação da audiência. Nos termos do disposto no n.º1 do artigo 411º do Código de Processo Penal (CPP), o prazo para a interposição de recurso é de 15 dias contados, em princípio, desde a notificação da decisão recorrida. Tendo sido interposto em 19 de Janeiro de 2007, isto é, depois de há muito se haver esgotado o prazo legal de quinze dias, o recurso é, nesta parte, manifestamente extemporâneo e deve ser rejeitado. Aliás, sempre se questionaria se o recorrente ao requerer a concessão do prazo de 10 dias para preparar a defesa do arguido, e ao arrolar uma testemunha no dia 3 de Janeiro de 2007 (cfr. fls. 208), não se teria “prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia” (artigo 121º, n.º1alínea c)… Ex abundante sempre se dirá que nem mesmo considerando o recurso tempestivo, nem mesmo assim, a argumentação do recorrente deixaria de estar condenado ao fracasso, porquanto o citado artigo 358º impõe a comunicação da alteração “no decurso da audiência” e, ao contrário do que por vezes se pensa, a audiência apenas termina quando o juiz a declara encerrada, depois da leitura da sentença, e da exortação ao arguido e do reexame da situação do arguido se a eles houver lugar (artigos 373º, 375ºe 376º, todos do Código de Processo Penal). O citado artigo 358º alude ao decurso da audiência e não à fase da discussão, sendo certo que mesmo esta última pode ser reaberta para a produção de prova suplementar para determinação da espécie e medida da sanção a aplicar artigo 369ºn.2 e 371º, ambos do CPP e, nos termos do n.º 4 do artigo 360º do CPP até se permite que, em casos excepcionais, o tribunal possa ordenar ou autorizar a suspensão das alegações já iniciadas para produção de meios de prova supervenientes, quando tal se revelar indispensável para a boa decisão da causa. Muitas vezes, que são até a maior parte dos casos, devido ao volume de serviço existente ou à complexidade da lide, o juiz só após a produção da prova, ao analisar e reflectir sobre a prova efectuada, ao elencar os factos provados e não provados, ao fundamentar a decisão de facto e ao estudar o direito aplicável, é que se apercebe da existência de uma alteração dos factos (substancial ou não substancial) ou de uma alteração da qualificação jurídica e da necessidade de proceder às comunicações devidas. Por isso, também, que seja já depois de encerrada a fase da discussão, normalmente no dia designado para a leitura da sentença, imediatamente antes desta, que na normalidade dos casos se procede às comunicações legais prevista nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. É este o procedimento habitual dos tribunais portugueses, o qual, como vimos, é ditado pela força das coisas e nada tem de ilegal ou de irregular, por sempre serem salvaguardados os princípios do contraditório e as garantias de defesa. * 3. A questão do erro notório na apreciação da prova §1. Segundo o recorrente, o facto provado segundo o qual o arguido disse à assistente "és uma puta duma mentirosa" não faz qualquer sentido. Vejamos qual a argumentação do recorrente: Segundo ele, conforme decorre dos depoimentos de todas as testemunhas e dos depoimentos do arguido e da assistente, o arguido e a assistente, no dia 5 de Setembro de 2004, não se conheciam e nunca tinham tido qualquer contacto entre si. A assistente dirigiu-se então ao arguido para lhe pedir que retirasse o seu veículo, pois queria passar. Que o arguido tivesse dito vai para casa, canalha, até fazia sentido, atentas as circunstâncias em curso. Porém, não faz qualquer sentido dizer-se "és uma puta duma mentirosa", pois a assistente nunca ali imputou nenhum facto ao arguido senão que ele estava a impedir a sua passagem. Tal expressão cai fora do contexto em que a acção se desenrola. Assim sendo - conclui o recorrente - e considerando que o arguido negou os factos e que as testemunhas eram apenas a irmã e as amigas da assistente, considerando o que consta da fundamentação do julgamento do facto relativamente aos depoimentos da assistente e da testemunha Filipa Silva, o Tribunal deveria ter apreciado os factos com uma abordagem diversa, com outra sensibilidade, julgando não provada a expressão "és uma puta de uma mentirosa". Ao julgar como julgou, o tribunal incorreu em erro na apreciação da prova. * §2. Conforme é sabido, o conceito de “erro notório na apreciação da prova” constante da alínea e c) do n.º 2 do citado artigo 410º, foi já suficientemente trabalhado pela doutrina e pela jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal. À luz de tais ensinamentos é hoje pacífico que o “erro notório na apreciação da prova” é a desconformidade com a prova produzida em audiência, ou com as regras da experiência por se ter decido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 65 a 69, estes últimos com amplas referências jurisprudenciais). A título meramente exemplificativo citam-se os seguintes arestos: - O erro notório previsto no art.º 410º, n.º 2, al. c), do CPP, é um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio. As provas revelam claramente um sentido e a decisão extraiu ilacção contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial. (Ac. do STJ de 3-06-1998, proc.º n.º 272/98). - o erro notório na apreciação da prova – art.º 410º, n.º 2, al. c), do CPP - não tem nada a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio recorrente. (Ac. do STJ de 1-07-1998, proc.º n.º 548/98). - o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro dado facto positivo ou negativo. (Ac. do STJ de 9-07-1998, Proc.° n.° 1509/97). Por outro lado, conforme resulta do n.º2 daquele artigo 410º e está bem expresso nos arestos acabados de citar, os vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal têm, de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, por conseguinte, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, nem podem basear-se em documentos juntos ao processo (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 71 os quais salientam “que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; no mesmo sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 324 e a jurisprudência do STJ citada naquela primeira obra). * §3. À luz dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais que acima ficaram sumariamente enunciados é evidente que no caso em apreço não ocorre qualquer erro na apreciação da prova e muito menos notório.Sustenta o recorrente que a expressão em causa cai fora do contexto em que a acção se desenrola. Esquece que na generalidade das situações o crime cai fora do contexto da normalidade das coisas, pelo que, em última análise se nos limitássemos a analisar contextos, só muito dificilmente se provaria a prática de crimes. Acresce que no contexto de discussões de trânsito, que segundo consta da motivação da decisão de facto, o próprio arguido em audiência reconheceu ter ocorrido, é até infelizmente muito frequente a prática de crimes de injúrias e até de crimes mais graves. Por outro lado, como o próprio recorrente acaba por reconhecer, a assistente imputou um facto ao arguido precisamente o de que este lhe estava a impedir a sua passagem. Recorda-se que segundo ficou provado, na madrugada do dia 5 de Setembro de 2004, pelas 4.30 horas, no parque de estacionamento da discoteca P..., o arguido, na sequência de um acidente, imobilizou a sua viatura, impedindo a passagem do automóvel de matrícula 65-27-L..., conduzido pela assistente; Então, a assistente dirigiu-se ao arguido para que este desviasse o seu veículo; E as palavras em questão “canalha”, “vai para casa que ainda levas dois pares de estalos”, “és uma puta de uma mentirosa” de acordo com o sentenciado foram proferidas após uma troca de palavras, e depois de a assistente ter solicitado a intervenção dos seguranças da referida discoteca e, ainda, da GNR. É assim perfeitamente plausível que naquele circunstancialismo o arguido, que não estaria com a melhor das disposições porque tinha sofrido um acidente, tenha proferido a expressão “és uma puta de uma mentirosa”. Aliás, não deixa de ser sintomático que o recorrente se não insurja relativamente às demais expressões provadas (“canalha”, “vai para casa que ainda levas dois pares de estalos”), nem quanto ao facto também provado de depois de ter arrumado o carro o arguido ter desferido um pontapé no guarda-lamas traseiro do lado direito do dito veículo. Este último pontapé, na lógica do recorrente, também deveria cair fora do contexto. Conclui-se, deste modo, que a sentença recorrida não enferma do apontado vício antes possui conteúdo harmonioso e racional, fora de qualquer erro notório. * 4. A questão da violação do artigo 127º do Código de Processo Penal§1. O recorrente sustenta ter existido erro na apreciação dos factos ocorridos no dia 3 de Outubro de 2004, na Fiesta Cubana uma vez que o tribunal não podia perante a prova produzida ter considerado provado que o arguido tivesse proferido as expressões "canalha" e "criança". Segundo o recorrente o alegado erro fundar-se-ia em duas ordens de razões: a) em primeiro lugar, segundo a fundamentação da decisão de facto a assistente e a testemunha Filipa mentiram quanto a factos mais graves imputados ao arguido, como sejam a agressão alegadamente ocorrida na pista da "Fiesta Cubana". Se mentiram quanto a tais factos mais gravosos então, como decorre da experiência comum, terão mentido também quanto aos factos de gravidade menor, designadamente quanto ás expressões de "canalha" e de "criança" atribuídas ao arguido. Se servem para o mais, também servem para o menos. b) em segundo lugar “os factos decorreram numa discoteca, onde se passava música, produzida em alto som, no meio ou junto a uma pista de dança, com a incidência de raios de luz forte no espaço e local da acção. Tal ambiente não permitia que a assistente ou aquela testemunha ouvisse as palavras saídas da boca do arguido.” * § 2. O princípio fundamental sobre a apreciação da prova acha-se consignada no artigo 127º do Código de Processo Penal: a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal principio conhece excepções designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169º), ao caso julgado (art. 69º), à confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344º) e à prova pericial (art. 163º). No que se refere à prova por declarações e à prova testemunhal, vigora, pois, na sua plenitude, o princípio da livre apreciação da prova. Ora, a experiência comum não ensina que quem mente relativamente a determinados factos, mente necessariamente em relação a todos os factos a que depõe. As omissões ou mentiras do depoente relativamente a determinados factos não se propagam necessariamente a todo o seu depoimento. Essa regra da indivisibilidade do depoimento - mendax in uno, mendax un toto - não vigora no processo penal, embora se exija neste domínio uma especial prudência. Como refere Paolozzi a mendacidade do testemunho não impede que o órgão judicial valore outros elementos que há-de justificar e motivar (apud, Jaime Alemañ Cano La Prueba en el Proceso penal, Universidad de Alicante, 2002, pág. 256, nota 1231). Simplesmente, a invocação desta pretensa regra de experiência é fruto de um equívoco. Em lado nenhum da motivação se refere que relativamente ao episódio em apreço o tribunal fundou a sua convicção nas declarações da assistente e da testemunha Filipa. Esse equívoco é certamente fruto de uma leitura apressada da motivação, sendo que nesta parte (fls. 217-218) o M.º juiz se preocupou sobretudo em demonstrar as razões por que se não provaram os factos enunciados sob as alíneas c) a e). Mas lendo e relendo aquela parte da motivação é seguro que o M.º juiz não firmou a sua convicção nas declarações da assistente e da testemunha Filipa. Muito pelo contrário, nos três primeiros parágrafo de fls. 217 teve o cuidado de referir que: «No que respeita aos factos posteriores à cotovelada ― referidos em 13) a 17), 20) a 22) ― como ressalta da factualidade provada, o Tribunal não deu qualquer credibilidade à versão dos factos apresentada pela ofendida (e descrita nos libelos acusatórios em tempo redigidos), antes acreditou na versão apresentada pelo arguido. Aliás, sobre esta matéria e perante a factualidade provada, nenhuma dúvida restou ao Tribunal de que a assistente ― eventualmente para tentar encontrar uma justificação-negação dos factos que surgem descritos na factualidade provada e que dela dá a imagem, afinal, de uma arruaceira que, julgando-se protegida pelo segurança que a acompanhava, procura uma desforra face ao comportamento do arguido, conduta que assume uma maior gravidade quando, vendo que o segurança não estava ali para ser um instrumento dos seus desejos de vingança, procura arrojar sobre o labéu de “estar metido com o arguido”, de ser amigo dele (arguido) ― mentiu no relato que fez dos factos. Como (e porque coincidente com a versão dos factos apresentada pela ofendida) nenhuma credibilidade mereceu o depoimento da testemunha F... Silva que, por razões que o Tribunal não logrou apurar, prestou-se ao triste papel de mentir.» Como ali se consignou o tribunal “acreditou na versão do arguido” que foi corroborada pelo depoimento da testemunha “D... Machado, segurança do estabelecimento que acompanhava a ofendida naquele momento” Finalmente, a circunstância de os factos terem decorrido numa discoteca não torna impossível que a assistente ouvisse “as palavras saídas da boca do arguido”. Não custa admitir que na ocasião em que os factos ocorreram passasse música, mas não se provou que os mesmos tivessem lugar “no meio ou junto a uma pista de dança”, nem que houvesse “incidência de raios de luz forte no espaço e local da acção”, nem que o “ambiente” fosse tal que as palavras ali proferidas não pudessem ser ouvidas. * 5. A questão da violação do principio in dubio pro reo. §1. O recorrente sustenta ainda ter havido violação do principio in dubio pro reo, porquanto para além das razões atrás invocadas as únicas pessoas da acusação ouvidas sobre tais factos foram precisamente a assistente e testemunha Filipa Silva, o arguido negou os factos e todas as testemunhas apresentadas pelo arguido e ouvidas sobre tais factos, negaram-nos. “No mínimo - afirma o recorrente - face ao depoimento censurável da assistente e da testemunha Filipa, o Tribunal não poderia sustentar a prova daquelas expressões nos seus depoimentos. Na pior das hipóteses, o Tribunal deveria ter dúvidas se tais expressões foram ou não proferidas pelo arguido. Dúvidas sérias. E consequentemente, com fundamento no princípio do in dubio pro reo, o Tribunal deveria julgar não provado que o arguido tivesse proferido as referidas expressões. * §2. Segundo o princípio in dubio pro reo «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág 215). Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo -, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena. O recorrente pretende ter sido violada a presunção de inocência o princípio in dubio pro reo, como resultado de todas as deficiências que apontou à decisão. Porém, todos estes elementos foram já analisado nos números precedentes, tendo-se concluído pela improcedência da argumentação da recorrente. Acresce que o princípio “in dubio pro reo” só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”(Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615) . Por isso a sua violação exige a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido (cfr. v.g., o Ac. do STJ de 29-4-2003, proc.º n.º 3566/03-5ª, rel. Simas Santos, in www.pgdlisboa.pt/). Ora, em momento algum resulta da sentença que o tribunal tivesse tido qualquer dúvida sobre factos relevantes e tenha decidido contra o arguido. Deste modo, conclui-se que a decisão recorrida não patenteia a violação do princípio da presunção de inocência nem do princípio “in dubio pro reo”. * 6. A questão da inexistência de crime face ao circunstancialismo em que as expressões foram proferidas Subsidiariamente, o recorrente sustenta que tendo o Tribunal julgado provado que o arguido proferiu tais expressões, então deveria julgar que as mesmas, atento o facto das circunstâncias em que se produziram não constituem crime. Na verdade o arguido proferiu tais expressões depois da assistente o ter apodado de "filho da puta" e "boi" e depois ainda da assistente lhe ter atirado líquido e o ter atingido. Ora, sustenta o recorrente que proferir a palavra "canalha" e a palavra "criança" depois daquele comportamento grave e altamente censurável da assistente, não nos parece constituir crime de injúria. O comportamento subsequente do arguido constituiria uma resposta a uma forte provocação e a uma ofensa corporal (atirar liquido para a cara do arguido). O arguido não agiu com o propósito de ofender a assistente, mas sim com o propósito de se defender da agressão, não agiu com animus ofendendi mas sim com animus defendendi. Não pode aceitar-se a argumentação do recorrente. É certo que se não provou que o arguido tivesse agido com animus injuriandi Mas é hoje pacífico na jurisprudência e na doutrina portuguesas que o animus injuriandi vel diffamandi não integra o tipo subjectivo dos crimes de difamação e injúrias (cfr. v.g., Augusto Silva Dias, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, Lisboa, 1989, págs. 35-36, Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Coimbra, 1996, págs. 40 e seguintes. 63, Faria Costa, Comentário Conimbricence ao Código Penal, Tomo I, cit., pág. 612, Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal, 2ª ed., Lisboa, 1996, vol. II, págs. 317-318, Maia Gonçalves Código Penal Anotado, 17ª ed., Coimbra, 2005, págs. 622-623, estas duas últimas obras com amplas referências jurisprudenciais), sendo suficiente para a sua realização que o agente queira com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou preveja essa ofensa de modo a que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente, ou pelo menos, como sustenta o Consº. Oliveira Mendes, partindo da construção dos crimes de difamação e de injúria, como crimes de perigo abstracto-concreto, bastando que o agente tenha consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da acção previstos na norma incriminadora (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, cit., pág. 59). Como regra geral, também vigente nos crimes de injúrias e de difamação, a lei desinteressa-se para a existência do dolo ou intenção criminosa dos motivos do agente ou dos fins que o mesmo se propõe que apenas serão tomados em consideração em sede determinação da medida da pena [cfr. artigo 72º, n.º2 alínea c); assim também no direito espanhol (Muñoz Conde-Garcia Arán, Derecho Penal- Parte General, 6ªed., Valência, 2004, pág. 269) italiano (Marinucci-Dolcini, Manuale di Diritto Penale, 2ªed., Milão, 2006, págs. 253-254, Mantovani, Diritto Penale, 4ªed., Padova, 2001, págs. 337-338]. No caso em apreço, provou-se que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente. Sabia que as expressões que utilizou eram “aptas a ofender a honra e consideração (…), tal como representou e quis” e que a sua conduta era proibida por lei. É quanto basta para afirmar o elemento subjectivo do ilícito em questão. É certo que no caso sub judice as palavras “canalha” e “criança” foram dirigidos pelo arguido à assistente logo após esta lhe ter chamado “filho da puta” e “boi” e lhe ter atirado um líquido que o atingiu (actuação por certo motivada pelo facto de anteriormente, na mesma noite, o arguido lhe ter desferido uma cotovelada no estômago) mas, contrariamente ao que chegou a ser sustentado no domínio do anterior Código penal de 1886 (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 18-4-1979, Col. de Jur. ano IV, pág. 495), o animus retorquendi ou seja o espírito de devolver a ofensa ou de responder à que lhe é feita com outra de idêntico grau ofensivo não exime da responsabilidade criminal, por não excluir a ilicitude ou a culpa, conforme resulta com meridiana clareza do disposto no artigo 186º do Código Penal. * 7. A questão da dispensa de pena §1. Segundo o recorrente “ao aplicar ao arguido uma pena pela prática de um crime de injuria por ter proferido as expressões "canalha" e "criança" no dia 3/10/2004, e ao não isentar de pena o arguido, sempre o Tribunal violou o art. 186.ºdo Cód. Penal.” Como refere o Exm. PGA no seu douto parecer não existe unanimidade quanto à questão de saber se o artigo 186º, nºs 2 (provocação) e 3 (retorsão), aplicável aos crimes contra a honra, constitui regime autónomo e específico, que dispensa para a concessão da dispensa da pena, a verificação dos requisitos das alíneas a), b) e c) do n.º1 do artigo 74º do Código Penal Estamos, porém, em crer que a divergência assinalada é mais aparente do que real. * §2. Em anotação ao artigo 186º o Prof. Faria Costa, depois de sublinhar que “Parece (…) em uma primeira leitura, que a ‘dispensa de pena’ prevista na presente norma se deveria cingir (…) à regulamentação consagrada na norma do art. 74º. Vale por afirmar: a definição normativa aqui prevista teria uma autonomia tão só relativa. Relatividade condicionada aos pressupostos, é evidente, que para esta específica região normativa a lei achou por bem consagrar” (Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 667, §1), conclui estarmos “perante uma particular e autónoma disciplina da dispensa de pena”(op. cit. págs.668-669) Em consonância com tal construção, o mesmo Professor ao abordar o carácter facultativo da dispensa de pena conclui que a dispensa de pena “só poderá ser fundamentada em uma das finalidades da pena: se a tal se não opuserem razões de prevenção”(op. cit., pág. 674, §19). Contudo, ao abordar o carácter impositivo da dispensa de pena prevista no n.º1 do citado artigo 186º, Faria e Costa pronuncia-se, agora de forma um pouco mais explícita, pela aplicação dos requisitos consagrados no n.º1 do artigo 74º aos casos de dispensa de pena previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 186 (op. cit., pág. 670, §9). Na mesma linha de orientação, mas sem qualquer justificação, também o Ac. da Rel. do Porto de 24-1-2007, proc.º n.º 0644795, rel. Custódio Silva, in www.dgsi.pt dá por assente “que se está, no caso do art. 186º do C.Penal, face a uma particular e autónoma disciplina da dispensa da pena que, por isso, não convoca o regime geral constante do art. 74º, n.1 do C.Penal”, embora logo após dê “por adquirido que à dispensa de pena prevista no art. 186º, n.º2 do C.Penal, porque facultativa, já são de aplicar as als. a), b) e c) do n.º1, por imposição do n.º3, tudo do C.Penal”, citando em abono desta posição a lição de Faria e Costa. Fica-se, assim, sem se perceber a razão da sublinhada “particular e autónoma disciplina da dispensa de pena”. Já o Conselheiro Maia Gonçalves, com a clareza que o caracteriza e distingue, limita-se a anotar que “os casos regulados nos n.ºs 2 e 3 são de dispensa facultativa de pena, a aplicar ou não pelo juiz no uso do seu poder-dever e do regime geral do art. 74º” (Código Penal Anotado, 17ª ed., pág. 635). E efectivamente, salvo o devido respeito, trata-se de uma querela absolutamente inútil, pois leges habemus. * §3. Com efeito, segundo o n.º3 do artigo 74º quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas contidas nas alíneas do número 1”O legislador foi absolutamente claro, não se justificando confusões onde elas se não justificam. O pressuposto geral do instituto reside na circunstância prevista no n.º1 “Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses ou com multa não superior a 120 dias (…)” Os requisitos (cumulativos) vêm indicados nas três alíneas daquele n.º1: a) a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas; b) o dano tiver sido reparado; e c) à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção. O legislador previu, contudo, que em outras normas, da Parte Especial ou de legislação extravagante, a dispensa de pena seja imposta, com carácter obrigatório. É o caso, por exemplo do n.º1 do artigo 186º: os esclarecimentos e as explicações, quando aceites como satisfatórias pelo ofendido ou por quem integre a sua vontade como titular do direito de queixa ou de acusação particular, dão sempre lugar, por imposição legal, a dispensa de pena, mesmo que esta não fosse admissível nos termos do artigo 74º, ou por se não verificar o pressuposto [seja por força da agravação constante do artigo 184º, seja pela moldura do tipo legal (artigo 183º, n.º1) seja devido à qualificação (artigo 183º, n.º2)] ou por não se verificarem os requisitos enumerados nas alíneas a) a c) do mesmo n.º1. Outros casos existem, quer na Parte Especial quer na legislação extravagante, em que se prevê que o juiz possa dispensar de pena. É o caso, manifestamente, dos n.ºs 2 e 3 do artigo 186º do Código Penal, em que o legislador refere que o “tribunal pode dispensar de pena”, uma vez verificado o circunstancialismo ali descrito (provocação e retorsão, respectivamente). Nestes casos, não é necessária a verificação do pressuposto geral do n.º1 do artigo 74º. O intérprete não tem sequer de se preocupar com a moldura penal. Nestes casos, porém, para além dos requisitos especiais, eventualmente previstos na norma especial que faculta ao juiz a dispensa de pena, têm de se verificar os três requisitos gerais previstos nas alíneas a) a c) do n.º1 do artigo 74º. Porquê? Tão simplesmente porque assim o impõe o n.º 3 do artigo 74º acima transcrito. Neste sentido, de resto, se pronunciara em geral, o Prof. Figueiredo Dias, perante o projecto de 1991, (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pá pág. 323, nota 181), Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, 1ºvol., Lisboa, 1995, pág. 595, Noções Elementares de Direito Penal, 2ªed, Lisboa, 2003, pág. 247, e no que respeita ao artigo 186º, n.ºs 2 e 3, para além do Cons.º Maia Gonçalves, o recente Ac, da Rel do Porto de 14-3-2007, proc.º n.º 0616784, rel. Maria Leonor Esteves, in www.dgsi.pt e, para caso paralelo (artigo 143º, n.º3 do Código Penal) os Acs da Rel. do Porto de 29-2-2000, proc.º n.º 0040689, rel. Neves Magalhães, 19-3-2003, proc.º n.º 0210884, rel. Jorge Arcanjo, 25-3-2003, proc.º 0210057, rel. Marques Salgueiro, Acs da Rel. de Lisboa de 22-9-2004, proc.º n.º 4622/2004-3, rel. António Simões, todos in www.dgsi.pt de 2-5-2007, proc.º n.º 1064/07, rel. Telo Lucas, e de 25-3-2003, proc.º n.º 6938/02, rel. Vasques Diniz, ambos in www.pgdlisboa.pt. * §4. No caso em apreço, pese embora os epípetos “canalha” e “criança” tivessem sido dirigidos pelo arguido à assistente logo após esta lhe ter chamado “filho da puta” e “boi” e lhe ter atirado um líquido que o atingiu (actuação por certo motivada pelo facto de anteriormente, na mesma noite, o arguido lhe ter desferido uma cotovelada no estômago), é evidente que pelo menos o requisito geral constantes da alínea c) do n.º1 do artigo 74º, a reparação do dano, se não mostra preenchido.Por isso que improceda a pretensão do recorrente * 8. A questão da redução das penasSem qualquer menção na motivação do recurso, o recorrente conclui que “Pelo que sempre as penas aplicadas ao arguido deveriam ser reduzidas” (conclusão 6ª). Pela forma como a dita conclusão se encontra redigida, pareceria que se reportava necessariamente à pena única a qual sempre deveria ser reduzida uma vez que a condenação em multa pela prática de um crime de injúria deveria ser substituída por dispensa de pena, uma vez que “um dos crimes concorrentes não tem pena e não entra, por isso, para a formação da moldura penal do concurso” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 318, §476) Improcedendo aquela pretensão (dispensa de pena) fica necessariamente prejudicada a peticionada redução da pena única. Simplesmente, o recorrente não se refere à redução da pena única, antes alude à redução das “penas aplicadas” Por isso que se deva entender que pretende que o tribunal superior se pronuncie concretamente sobre cada uma das penas parcelares e bem assim sobre a pena única que lhe foram aplicadas e que pretende ver reduzidas, implicitamente por as considerar exageradas ou incorrectamente determinadas. O recorrente não esclarece por que motivo devem tais penas ser reduzidas, nem em que medida. O pedido de redução não foi, por conseguinte, minimamente fundamentado. Mas, também aqui lhe falece razão, sendo de salientar que à nula fundamentação do recorrente se contrapõem, na sentença recorrida, longas e bem fundamentadas considerações sobre a escolha e medida das penas. A este respeito apenas se dirá que se concorda inteiramente com aquelas considerações, que as penas parcelares e única impostas ao arguido se revelam perfeitamente equilibradas, por terem sido criteriosamente definidas em função das disposições conjugadas dos artigos 40º, 47º, 70º e 71º, todos do Código Penal. Uma última nota para salientar que que o novo regime jurídico resultante da revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/97, de 4 de Setembro, em vigor desde o dia 15 de Setembro, não se revela mais favorável uma vez que nos termos do n.º2 do artigo 47º, a cada dia de multa corresponde agora “a uma quantia entre €5 e € 500 que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais” e todo o demais regime aplicável ao caso dos autos permaneceu inalterado. Por isso que se deva aplicar o regime vigente à data da pratica do facto punível (artigo 2º, nº 1 e 4) do Código Penal. * III- DecisãoEm face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a douta decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UC * Guimarães, 3 de Dezembro de 2007 |