Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
52/08-2
Relator: AUGUSTO CARVALHO
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: PELOS FUNDAMENTOS EXPOSTOS, OS JUÍZES DESTA SECÇÃO CÍVEL ACORDAM EM JULGAR COMPETENTE PARA CONHECER DA ACÇÃO DECLARATIVA, COM PROCESSO ORDINÁRIO, Nº 1016/06.9TBVVD, DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA VERDE, O JUIZ DA VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE BRAGA.
Sumário: 1.A declaração de que o facto biológico da maternidade não pode ocorrer, por impossibilidade fisiológica da mulher, nomeadamente, em virtude da sua idade, não pode ficar à mercê da livre autonomia da vontade daquela ou de qualquer outra pessoa; a acção, cujo pedido é a declaração de que a ré «não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos», respeita a relações jurídicas indisponíveis; o Juiz da Vara de Competência Mista, é o competente para o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final, numa acção declarativa, com processo ordinário, não contestada, na qual se pede que seja declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


Rosa R... veio requerer a resolução do Conflito Negativo de Competência suscitado entre os Ex.mos Juízes do Tribunal Judicial de Vila Verde e das Varas de Competência Mistas de Braga, com os seguintes fundamentos:
Intentou uma acção declarativa, com processo ordinário, contra sua mãe, Marcolina P..., pedindo que seja «declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos».
Citada, a ré não contestou.
Notificada, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 512º, do C. P. Civil, a autora arrolou testemunhas e requereu prova pericial no Instituto de Medicina Legal.
Após a realização e notificação da prova pericial, o Tribunal Judicial de Vila Verde declarou-se incompetente para realizar o julgamento e elaborar a sentença, considerando que cabe ao Juiz de Circulo fazê-lo, pois, trata-se de uma acção de estado em que estão em causa direitos indisponíveis da ré – o direito à maternidade – e, por conseguinte, a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter.
Por outro lado, o Juiz da Vara Mista de Braga defende que, estando-se perante acção não contestada que prosseguiu por causa diversa das previstas no artigo 485º, alíneas a), b) e c), do C. P. Civil, o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final não cabem a si – artigo 646º, nº 2, alínea a) e nº 5, do C. P. Civil.
E, atendendo ao pedido formulado pela autora, não pode considerar-se que a causa respeite a direitos indisponíveis – artigo 354º, alínea b), do C. Civil.

Notificados os Magistrados em conflito, o Exmº Juiz do Tribunal Judicial de Vila Verde respondeu, mantendo a posição anteriormente assumida.

O Magistrado do Ministério Público junto desta Relação pronunciou-se, no sentido de que o presente conflito deve ser resolvido, atribuindo-se a competência à Vara de Competência Mista de Braga.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Os factos com interesse para a decisão do conflito são os seguintes:
1.A ora requerente Rosa R... intentou no 2º juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde a acção ordinária nº 1016/06.9TBVVD contra sua mãe Marcolina P..., pedindo que seja «declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos».
2.Citada, a ré não contestou.
3.Notificada, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 512º, do C. P. Civil, a autora arrolou testemunhas e requereu prova pericial no Instituto de Medicina Legal.

4.Após a realização e notificação da prova pericial, o Tribunal Judicial de Vila Verde declarou-se incompetente para realizar o julgamento e elaborar a sentença, considerando que cabe ao Juiz de Circulo fazê-lo, pois, trata-se de uma acção de estado em que estão em causa direitos indisponíveis da ré – o direito à maternidade – e, por conseguinte, a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter.
5.Por outro lado, o Juiz da Vara Mista de Braga defende que, estando-se perante acção não contestada que prosseguiu por causa diversa das previstas no artigo 485º, alíneas a), b) e c), do C. P. Civil, o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final não cabem a si – artigo 646º, nº 2, alínea a) e nº 5, do C. P. Civil. E, atendendo ao pedido formulado pela autora, não pode considerar-se que a causa respeite a direitos indisponíveis – artigo 354º, alínea b), do C. Civil.
6.Ambos os despachos transitaram em julgado.

A questão a decidir consiste em saber qual dos tribunais em conflito – 2º juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde e Vara de Competência Mista de Braga – é o competente para o julgamento da acção declarativa, com processo ordinário, não contestada, na qual se pede que seja declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos.
Ambos os Magistrados em conflito, embora discordando, situaram a questão no âmbito da eficácia ou não da vontade das partes para produzir o efeito jurídico pretendido pela acção.
Com efeito, enquanto o Juiz do 2º juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde entende que se está perante uma acção de estado, em que se discutem direitos indisponíveis da ré – o direito à maternidade – e que a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter, pelo contrário, o Juiz da Vara de Competência Mista de Braga considera que a acção não está abrangida pela alínea c), do artigo 485º, do C. P. Civil, por, face ao pedido, não se poder considerar que a causa respeita a direitos indisponíveis (artigo 354º, alínea b), do C. Civil), não sendo uma acção de estado, relativa ao estado civil das pessoas ou ao estabelecimento das relações de filiação.
As acções sobre o estado das pessoas pressupõem «um facto registado, que tem subjacente uma declaração de vontade capaz de ter eficácia modificativa, extintiva ou constitutiva de estado civil». Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais 2ª edição, 1994, pág. 205.
Ora, como refere o Exmº Magistrado do Ministério Público, a procedência ou improcedência desta acção não vai levar qualquer facto ao registo, seja modificativo, extintivo ou constitutivo de estado civil e, por conseguinte, não configura uma acção de estado.
Mas, embora inexistindo disposição expressa da lei, no caso sub judice, estamos no âmbito das chamadas relações jurídicas indisponíveis, ou seja, relações sobre as quais o princípio da autonomia da vontade não exerce qualquer influência.
Os direitos podem estar subtraídos ao domínio da vontade das partes ou pela sua própria natureza ou por disposição expressa da lei. Estão neste último caso, as acções de estado, de que são exemplo as acções de divórcio, de separação de pessoas e bens ou de anulação de casamento e as de impugnação ou de investigação de paternidade ou maternidade.
Também não pode ser objecto de renúncia o direito a alimentos, não podem ser objecto de compra e venda o direito a herança de pessoa viva, nem os alimentos devidos por direito de família, nem renunciar à sucessão de pessoa viva ou alienar ou obrigar direitos que, eventualmente, possa ter à sua herança.

Existem, ainda, os casos dos artigos 2132º, 1699º e 1712º, do C. Civil, por força dos quais, a ordem da sucessão dos herdeiros legítimos e os direitos e obrigações paternais e conjugais não podem ser alterados por convenções antenupciais, nem alterar, em tais convenções, as regras sobre administração dos bens do casal, nem as mesmas convenções podem ser alteradas ou revogadas depois do casamento. E o artigo 877º, do C.C., que não permite a venda de bens por pais ou avós a filhos ou netos, sem o consentimento dos outros filhos ou netos.
Nestes casos, em que a indisponibilidade dos direitos resulta directamente da lei, não haverá dúvidas ou dificuldades, surgindo elas, no entanto, sempre que se trata de identificar aqueles que acima designamos como direitos indisponíveis pela sua natureza.
O pedido formulado é o de que seja «declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos».
A maternidade é um facto biológico a que a lei dá relevância jurídica.
Dispõe o artigo 1796º, nº 1, do C. Civil, que, «relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento e estabelece-se nos termos dos artigos 1803º a 1825º».
Este preceito legal «tem uma intenção determinada: vincar a total sujeição da lei ao facto biológico da maternidade, que é reconhecido pura e simplesmente, e retirar à mãe qualquer possibilidade de impedir a constituição do estado. Com efeito, a mãe não «perfilha», não manifesta qualquer vontade de admitir o filho, nem pode rejeitar o facto da maternidade; o seu eventual interesse em ocultar a filiação não é tutelado pelo sistema jurídico». Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, 1979, pág. 8.
Mas, se a mãe não pode rejeitar o facto biológico da maternidade, a declaração de que este, nem sequer pode ocorrer, por impossibilidade fisiológica da mulher, nomeadamente, em virtude da sua idade, também não pode ficar à mercê da livre autonomia da vontade daquela ou de qualquer outra pessoa.
Daí que, em nosso entender, o reconhecimento de que determinada mulher não apresenta condições fisiológicas para procriar ou ter mais filhos se insere, no âmbito das chamadas relações jurídicas indisponíveis pela sua própria natureza.
A acção em causa respeita, então, a relações jurídicas indisponíveis.
Estabelece o artigo 484º, nº 1, do C. P. Civil, que se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.
Esta cominação não se aplica, sendo a revelia inoperante, nomeadamente, como acontece no caso concreto, quando a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter – alínea c), do artigo 485º.
Apesar da não contestação da ré, em obediência ao disposto neste último preceito legal, sempre a acção deveria prosseguir para produção da prova apresentada.
Vejamos, então, de quem é a competência para o julgamento da matéria de facto e a prolação da sentença final.
Nos termos do artigo 104º, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, compete ao tribunal singular julgar os processos que não devam ser julgados pelo tribunal colectivo ou do júri.
Por sua vez, o artigo 646º, do C. P. Civil, na redacção introduzida pelo DL nº 183/2000, de 10 de Agosto, estabelece as situações de intervenção e competência do tribunal colectivo, prevendo que a discussão e julgamento das acções ordinárias só será feita com intervenção do tribunal colectivo se ambas as partes assim o tiverem requerido e se não se verificar nenhuma das situações previstas no nº 2, do mesmo preceito.

Estabeleceu-se a inadmissibilidade da intervenção do colectivo nas acções, com processo ordinário, não contestadas, que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas a), b) e c), do artigo 485º.
Ora, em situações como a que, agora, se nos depara, aplica-se o nº 5, do citado artigo 646º, ou seja, não tendo lugar a intervenção do colectivo, o julgamento da matéria de facto e a prolação da sentença final incumbem ao juiz que a ele deveria presidir, se a sua intervenção tivesse tido lugar e que, no caso, é o Juiz da Vara de Competência Mista de Braga, porquanto, o presidente do Tribunal Colectivo sempre seria aquele.
Em conclusão: a declaração de que o facto biológico da maternidade não pode ocorrer, por impossibilidade fisiológica da mulher, nomeadamente, em virtude da sua idade, não pode ficar à mercê da livre autonomia da vontade daquela ou de qualquer outra pessoa; a acção, cujo pedido é a declaração de que a ré «não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos», respeita a relações jurídicas indisponíveis; o Juiz da Vara de Competência Mista, é o competente para o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final, numa acção declarativa, com processo ordinário, não contestada, na qual se pede que seja declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos.

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível acordam em julgar competente para conhecer da acção declarativa, com processo ordinário, nº 1016/06.9TBVVD, do Tribunal Judicial de Vila Verde, o Juiz da Vara de Competência Mista de Braga.

Sem custas.

Guimarães, 10.4.2008