Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1490/07-2
Relator: ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
Sumário: 1. Contrariamente ao que acontece com a generalidade dos administradores de bens alheios ou de interesses próprios e alheios, o cônjuge-administrador não é obrigado a prestar contas, respondendo tão-só pelos danos resultantes de actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.
2. Enquanto subsistir o vínculo conjugal, isto é, enquanto se não operar a dissolução do casamento, a administração de bens comuns por um dos cônjuges não dá o privilégio ao outro de exigir a prestação de contas; porém, produzindo-se os efeitos do divórcio a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retrotraídos indelevelmente à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, a partir desta confirmada circunstância jurídica já o outro cônjuge pode exigir a prestação de contas relativamente a todos os actos que integram e abrangem a administração.
3. Havendo duas declarações de vontade prestadas em documentos subscritos por ambos os ex-cônjuges (antes casados em regime de comunhão de adquiridos) após a declaração do seu divórcio e a contemplar o modo de partilha dos bens comuns - um "contrato promessa de partilha e divisão" e, posteriormente, uma carta dirigida ao devedor no sentido de que o crédito do ex-casal passava a ter como titular o cônjuge aí identificado - a dúvida que resulte sobre segunda declaração no sentido de saber se esta missiva teve na sua génese uma alteração do dito contrato promessa de partilha e divisão, há-de ser esclarecida através do recurso a todos os meios de prova admissíveis para o caso, designadamente à prova testemunhal, por excepção ao disposto no art.º 394.º do C.Civil.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

Mário T... veio intentar contra Ana P... a presente acção especial de prestação de contas para tanto alegando que Autor e Ré foram casados entre si até ao dia 21.06.2004, data em que foi decretado o seu divórcio, sob o regime patrimonial da comunhão de bens adquiridos.
Não tendo ainda feito a partilha dos seus bens comuns, faz parte desse acervo a titularidade da posição no contrato de distribuição n.º 8708423, celebrado entre Autor, Ré e “A... Portugal”, com sede na Praceta das Torres do R...., nº 1525, R/C/Esquerdo, na cidade de Lisboa.
Sucede que, em 10 de Abril de 2004, a Ré solicitou à “A... Portugal” a mudança da conta bancária para a qual deveriam passar a ser creditadas as referidas comissões mensais e da qual é apenas titular a ora Ré, e, a partir dessa data, passou a receber a totalidade das comissões, bónus e demais remunerações mensais resultantes da titularidade da posição do referido contrato, não dando qualquer justificação ou explicação ao Autor nem entregando a este qualquer quantia.

Citada pessoal e regularmente, a Ré contestou a acção nos termos que melhor surgem explicitados de fls. 30 a 34.
Invocou a ilegitimidade da Ré para figurar como parte na presente acção, rogou a titularidade exclusiva do contrato em causa nos presentes autos, impugnou os factos alegados pelo Autor e peticionou a condenação do Autor como litigante de má fé.

O Autor respondeu mantendo a sua tese inicial.

Nos termos e com fundamento no disposto no artigo 1014º -A, n.º s 3 e 4 do Código de Processo Civil, entendendo-se inexistir a obrigação de prestar contas, foi julgada improcedente a acção interposta por Mário T... contra Ana P....
Inconformado com esta sentença dela recorreu o autor Mário T..., que alegou e concluiu do modo seguinte:
1. Requerente e requerida divorciaram-se em 21 de Junho de 2004;
2. Celebraram contrato promessa de partilha dos bens comuns;
3. Entre esses bens faz parte a titularidade da posição no contrato de distribuição n.º 8708423, celebrado entre A., Ré e "A... Portugal", com sede na Praceta das Torres do R..., n.º 1525, R/C/Esquerdo, na cidade de Lisboa;
4. Os bens até à presente data não foram partilhados, pelo que o referido direito à titularidade no contrato é um bem comum das partes;
5. O contrato sempre teve e tem presentemente dois titulares: requerente e requerida;
6. Tal facto é ainda reforçado pelos documentos emitidos pela A...;
7. Para efeitos meramente fiscais a requerida passou a constar como primeira titular, continuando o requerente como titular, na qualidade de segundo titular;
8. Não se pode confundir tal, com a partilha do bem, como fez o M.mo Juiz a quo;
9. O M.mo Juiz a quo ignorou por completo o teor dos doc. 2 da p.i., e os emitidos pela A...;
10. O M.mo Juiz a quo ignorou por completo o requerimento datado de 15 de Setembro de 2006;
11. O M.mo Juiz a quo concluiu que a requerida exerce um direito, em lugar de o administrar, o que foi fundamento de improcedência da acção;
12. Ora, ao administrar o bem, tem de exercer o direito sobre esse mesmo bem, pelo que o conceito se confunde por idêntico, e não tem qualquer relevância no presente caso;
13. A administração desse bem implica o seu efectivo exercício; pela sua natureza, uma coisa não pode ter lugar sem a outra.
14. A requerida administra um bem, que é comum.
15. O M.mo Juiz a quo, sem se pronunciar sobre se o bem é próprio ou alheio, negou a pretensão do requerente, por, no seu entendimento, a requerida estar a exercer um direito sobre um bem, e não a administrar o mesmo;
16. Foi violado o art.° 1014° do Código de Processo Civil;
17. Uma correcta interpretação e aplicação do art.° 1014, será no sentido de que se considere que a requerida tem a obrigação de prestar contas ao requerente;
18. Foi violado o art.° 668 n.º 1 d) do Código de Processo Civil;
19. Uma correcta interpretação e aplicação do art.° 668° n.° 1 d) do CPC, será no sentido de o M.mo Juiz se pronunciar sobre os requerimentos apresentados pelas partes;
20. Foi violado o art.° 668 n.º 1, b) do Código de Processo Civil;
21. Uma correcta interpretação e aplicação do art.° 668.º n.° 1 d) do CPC, será no sentido de o M.mo Juiz fundamentar de que modo conclui que a requerida é a única titular no contrato, o que não fez;
22. Foi violado o art.º 1308° do Código Civil;
23. Uma correcta aplicação do art.º 1308°, é a que considere que o requerente é proprietário juntamente com a requerida em partes iguais, da titularidade do contrato em questão;
Termina pedindo que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que considere que a requerida está obrigada a prestar contas ao requerente, notificando-a para as apresentar.

Contra-alegou a recorrida pedindo a manutenção do julgado.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Estão assentes os factos seguintes:
1. Autor e ré foram casados entre si sob o regime de comunhão de bens adquiridos;
2. Por decisão já transitada em julgado e datada de 21.06.2004, foi declarado o divórcio entre o autor Mário T... e a ré Ana P...;
3. Autor e ré subscreveram, em 21.06.2004, o denominado contrato promessa de partilha e divisão documentado a fls. 8 a 15;
4. Acordaram também autor e ré na relação de bens comuns do casal constante de fls. 16 a 18 e, ainda, assinaram com o seu próprio punho o designado contrato promessa de compra e venda que integra os autos de fls. 19 a 21 e referente ao imóvel nele identificado;
5. Dentre outros, faz parte dos bens comuns do casal a “titularidade da posição no contrato celebrado com A... de Portugal n.º 8708423, no valor de € 20.000 (vinte mil euros)” e que está descrito na verba n.º 3 da relação de bens atrás aludida, através do qual autor e ré exercem as funções de distribuidores independentes, auferindo retribuições mensais sob a forma de comissões e bónus;
6. No chamado contrato promessa de partilha e divisão estabeleceram os seus signatários, na respectiva cláusula 4.ª, que é adjudicada à segunda outorgante as verbas n.º 3 - titularidade da posição no contrato celebrado com “A... de Portugal” n.º 8708423, no valor de € 20.000 (vinte mil euros).
7. Mais adiante - cláusula n.º 22 - pactuaram as partes que a partir do momento em que os imóveis sejam vendidos, transmite-se a propriedade dos restantes bens para os outorgantes, nos termos previstos nas cláusulas 3.ª e 4.ª, pelo que até esse momento todos os bens continuam a ser comuns; assim sendo, o disposto nas cláusulas 3.ª e 4.ª produzem efeitos apenas a partir da data de celebração de escritura pública de compra e venda dos imóveis, verbas n.º 8 e 9.
8. As partes subscreveram a carta documentada a fls. 35 que endereçaram a “A... de Portugal” e através da qual lhe solicitaram a mudança de titular do contrato a partir do próximo mês de Abril, passando o primeiro titular a ser Ana P... Terra, contribuinte n.º 181657015.
9. Desde 10.04.2004 que a ré passou a receber a totalidade das comissões, bónus e demais remunerações mensais resultantes da titularidade da posição no contrato celebrado com “A... de Portugal”
10. Ainda não foram partilhados os bens comuns do casal extinto.

Passemos agora à análise das censuras feitas à sentença recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.).

A questão essencial posta no recurso é a de saber se a ré está ou não obrigada a prestar contas.

I. Nos termos do disposto no art.º 1014º do C.P.Civil "a acção de prestação de contas... tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se".

Do cotejo deste normativo legal resulta que o fim último da acção especial de prestação de contas está directamente conexionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra empossado no que a bens que não lhe pertencem diz respeito e desta gestão negocial podendo resultar tanto receitas como despesas; é da sua confrontação, contabilisticamente objectivada, que sobressairá o atinente saldo, positivo ou negativo, objectivo final desta especificada função de cálculo. A este respeito se referiu assim o Prof. Alberto dos Reis, propondo a formulação deste princípio geral: quem administra bens alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. Processos Especiais, vol. I, pág. 302.
O objecto da acção de prestação de contas é determinar o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, com indicação do saldo, se o houver; e tanto é assim que, como resulta do disposto no art. 1016.° do C.P.C., a apresentação das contas deve ser feita sob a forma de conta-corrente, especificando-se a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo, regime que, evidentemente, não é adequado à determinação de receitas ou despesas não realizadas efectivamente. Ac. STJ de 20.01.2004; www.dgsi.pt.

O nosso ordenamento jurídico não contém um especificado espaço, genericamente apropriado e expressamente reservado, a contemplar os casos em que alguém é obrigado a prestar contas; todavia, não poderemos deixar de observar que é a própria lei que em casos pontualmente concretizados impõe expressamente tal obrigação (v.g. artigos 95º, 662º, 1161º al. d), 1944º, 2202º -A, 2093º e 2 332º do Código Civil e 843º, e 1126º do C.P.Civil).
Não poderemos desprezar, outrossim, que em múltiplas e variadas situações este dever de apresentar contas resulta de particularizados negócios jurídicos e que esta concreta responsabilização resulta ainda do conceito que define o princípio geral da boa fé - a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte; Vaz Serra, citado no acórdão do STJ de 1/7/2003, www.dgsi.pt. e na sua petição a oferecer no processo especial de prestação de contas “há-de o autor dizer a razão por que pede contas ao réu, ou por outras palavras, a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o réu impende a obrigação de prestar contas”. Prof. Alberto dos Reis; Processos Especiais, vol. I, pág. 314.
Tratando-se de um direito que se integra na obrigação de informação tipificada no artigo 573º do C.Civil, a obrigação de prestar contas há-de ter de respeitar o princípio estatuído neste preceito legal, ou seja, terá o demandante de demonstrar que, sendo titular do direito que reconhecidamente invoca, tem dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e que o demandado está em condições de prestar as necessárias informações que neste contexto se incluem - será obrigado a prestar informações sobre a existência ou o conteúdo de um direito todo aquele que se encontre em situação de o fazer, contanto que as dúvidas do respectivo titular sejam fundadas. Almeida Costa; Obrigações; pág. 262.

II. Detendo-nos agora sobre a descrição posta no art.º 1014º -A, n.º 3 do Código de Processo Civil, temos que “se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto no artigo 304º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, mandará seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa”.
Quer isto dizer que no processo especial de prestação de contas numa primeira fase apenas e só se decide da obrigação ou não de prestá-las, contestando o réu a obrigação de prestar contas, há-de o Juiz dar solução a esta questão prévia de direito substantivo provocada tendo em consideração as posições das partes; e, podendo embora ser decidida sem necessidade de maior indagação, na impossibilidade de a questão ser decidida de forma sumária terá inexoravelmente de ser apreciada e resolvida após se ter mandado tramitar a acção os termos subsequentes do processo comum tendo em conta o valor da causa.
No caso que ora estamos a abordar estamos perante uma acção para prestação forçada ou provocada de contas requerida pelo ex-marido contra a sua ex-mulher e relacionadas com os rendimentos de um bem comum do casal dissolvido por divórcio e cuja titularidade está em disputa na presente acção, avançando o autor que se trata de um bem comum administrado pela ré, circunstancialismo factual que esta rebate, defendendo que lhe pertence exclusivamente a ela, por isso ter sido acordado após a assinatura do contrato promessa de partilha dos bens comuns pactuado entre ambos logo a seguir à decisão de divórcio que determinou a extinção do casamento de ambos.

III. O princípio estatuído no art. 1681.º, n.º 1, do Cód. Civil, (Exercício da administração) - o cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 1678º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge. que estabelece o princípio geral da desvinculação do cônjuge administrador de bens comuns da obrigação de prestar contas da sua administração, responsabilizando-o, todavia, pelos actos praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, não é aplicável ao nosso caso.
Contrariamente ao que acontece com a generalidade dos administradores de bens alheios ou de interesses próprios e alheios, o cônjuge-administrador não é obrigado a prestar contas, respondendo tão-só pelos danos resultantes de actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, tudo devido às "graves perturbações que as acções de indemnização de cada um dos cônjuges contra o outro, facilitadas pela obrigação periódica da prestação de contas, podem causar nas suas relações pessoais e em prejuízo da estabilidade familiar; deve preservar-se toda a conveniência em as evitar na medida do possível, por virtude da relação bem mais ampla que une os cônjuges e por não se considerar razoável aplicar à gestão do cônjuge administrador os padrões normais de julgamento da administração isolada de bens alheios, porquanto as questiúnculas frequentes vezes nascidas da obrigação de prestar contas ou da apreciação da diligência do administrador poderiam perturbar de tal modo o bom entendimento entre os cônjuges e a paz familiar, que a lei civil prefere fazer vista grossa sobre a matéria, dispensando o cônjuge administrador daquela obrigação e só o considerando responsável pelos danos causados com dolo directo ou indirecto. A. Varela, Direito da Família, 1º; p. 382) e RLJ, 115, p. 126.
O cônjuge que administra bens comuns do casal, porque não está obrigado à prestação de contas, beneficia de um estatuto especial no confronto com os restantes administradores de bens alheios, motivado pela recíproca confiança que é pressuposto da relação matrimonial, pela conveniência da inexistência de litígios entre os cônjuges e pela especificidade da estrutura dessa gestão no confronto com a da administração de bens alheios em geral. Ac. STJ de 03-02-2005, http://www.dgsi.pt:
Enquanto subsistir o vínculo conjugal, isto é, enquanto se não operar a dissolução do casamento, a administração de bens comuns por um dos cônjuges não dá o privilégio ao outro de exigir a prestação de contas.
Porém, produzindo-se os efeitos do divórcio a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retrotraídos indelevelmente à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, a partir desta confirmada circunstância jurídica já o outro cônjuge pode exigir a prestação de contas relativamente a todos os actos que integram e abrangem a administração.

IV. A prestação de contas que o autor vem pedir à ré, casados entre si sob o regime de comunhão de adquiridos e divorciados por decisão datada de 21.06.2004 e já transitada em julgado, envolve a administração do bem comum do casal incluído na verba n.º 3 da relação de bens e nela designado por titularidade da posição no contrato celebrado com “A... de Portugal” n.º 8708423, no valor de € 20.000 (vinte mil euros), através do qual autor e ré exercem as funções de distribuidores independentes, auferindo retribuições mensais sob a forma de comissões e bónus.
Considerando que no regime de comunhão de adquiridos os rendimentos de bens próprios são comuns e que a dispensa da obrigação de prestar contas pelo cônjuge administrador só vigora durante a constância do matrimónio, não estando desta obrigação isento quando, dissolvido este pelo divórcio, o ex-cônjuge administrador detém a posse dos bens do casal e deles colhe os frutos, haveremos de reconhecer que, “prima facie”, a ré/recorrida está obrigada a prestar contas ao autor/recorrente relativamente aos proventos que daquela posição contratual advêm.

V. A solução do pleito não fica, porém, definitivamente resolvida apelando aos princípios que acabaram de se enunciar.
Esta problemática assim delineada pelas partes terá inflexivelmente de ser resolvida através da exaustiva análise e adequada interpretação das declarações prestadas no denominado contrato promessa de partilha e divisão documentado a fls. 8 a 15 e também na descrição posta na carta que as partes subscreveram a fls. 35 dirigida à “A... de Portugal” e através da qual lhe solicitaram a mudança de titular do contrato a partir do próximo mês de Abril, passando o primeiro titular a ser Ana P... Terra, contribuinte n.º 181657015.
De ambos estes dados trazidos à lide cada uma das partes retira bem elaborados argumentos que vão no sentido de que há lugar à prestação de contas e também na acepção de que a exclusão desta operação é um desígnio que sobressai da intenção das partes aí configurada.

Através do contrato-promessa, as partes que o subscrevem obrigam-se a, dentro de determinado prazo ou logo que certos pressupostos se verifiquem, celebrar determinado contrato, mais precisamente comprometem-se a emitir declaração de vontade correspondente ao contrato cuja realização projectaram ajustar (contrato prometido). Com o contrato-promessa as partes não se obrigam simplesmente a prosseguir as negociações antes encetadas e com vista a definir pontos de vistas que ainda não obtiveram consenso e sem prejuízo de se manterem definitivos os acordos já alcançados, mas obrigam-se, sem mais, a concluir um contrato com um certo conteúdo Enzo Roppo; O contrato; pág. 102. - o contrato-promessa é um acordo preliminar que gera uma obrigação de prestação de facto consistente na emissão de uma declaração negocial. Prof. Galvão Teles; Obrigações; pág. 76.
O conteúdo das declarações de vontade exaradas no contrato de fls. 8 a 15 e colocadas na missiva que integra o auto de fls. 35, terá de ser apreendido com o recurso aos critérios legais de interpretação referentes aos negócios jurídicos e adiantados pelo disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Cód. Civil, que consagra a denominada teoria da impressão do destinatário, consignando-se que, para que tal sentido possa valer é preciso que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este possa razoavelmente contar com ele (art.º 236.º, n.º 1, in fine, do Cód. Civil.).

IV. As partes subscreveram o contrato constante de fls. 8 a 15, que designaram por "contrato promessa de partilha e divisão", nele ficando consignado, no que ao nosso caso importa salientar, que fica adjudicada à segunda outorgante - Ana P... - a verba n.º 3 - titularidade da posição no contrato celebrado com “A... de Portugal” n.º 8708423, no valor de € 20.000 (vinte mil euros) - cláusula 4.ª - que faz parte dos bens comuns do casal e através do qual autor e ré exercem as funções de distribuidores independentes, auferindo retribuições mensais sob a forma de comissões e bónus.
A este propósito ficou ainda estipulado neste contrato, mais adiante - cláusula n.º 22 - que “a partir do momento em que os imóveis sejam vendidos, transmite-se a propriedade dos restantes bens para os outorgantes, nos termos previstos nas cláusulas 3.ª e 4.ª, pelo que até esse momento todos os bens continuam a ser comuns; assim sendo, o disposto nas cláusulas 3.ª e 4.ª produzem efeitos apenas a partir da data de celebração de escritura pública de compra e venda dos imóveis, verbas n.º 8 e 9.
Quer isto dizer que, da análise dos termos em que estão disciplinadas as obrigações emergentes deste acordo negocial, o que as partes realmente quiseram concretizar foi a celebração de uma disposição consensual no sentido de que, enquanto não forem vendidos os imóveis desejados alienar pelo modo como os mesmos ex-cônjuges convencionaram no contrato promessa transcrito a fls. 19 a 21, até esse momento todos os bens continuam a ser comuns, expressamente referindo que o direito inerente à titularidade da posição contratual adjudicada à Ana P... por força da cláusula 4.ª só produz efeitos a partir da data da celebração de escritura pública de compra e venda de tais imóveis.
Se tivermos de encarar apenas este convénio impõe-se a prestação de contas da ré.

Mas, assinalemos também, ambos os ex-cônjuges subscreveram a carta de que dá conta o auto de fls. 35, endereçada à “A... de Portugal” em 29.03.2005, através da qual lhe solicitaram a mudança de titular do contrato a partir do próximo mês de Abril, passando o primeiro titular a ser Ana P... Terra, contribuinte n.º 181657015 e terminando por nela se escrever que “durante o mês de Abril enviaremos todos os documentos referentes ao início de actividade nas finanças”.
Será que esta missiva teve na sua génese uma alteração daquela referida cláusula 22.ª firmada no dito contrato promessa de partilha e divisão e foi concretizada já no âmbito desta modificação de atitude em relação à titularidade do contrato de distribuição em causa, desta forma comprovando documentalmente tal transformação de vontades?
A redacção incutida nesta missiva não é concludentemente clara no sentido de que dela se possa depreender, com a necessária segurança e a firme certeza, que tal declaração apoia a invocada mudança projectada para o contrato promessa anteriormente assinado; mas a sua pontual descrição também não exclui que tenha sido esse o objectivo dos seus subscritores.
Queremos com isto dizer que, não estando perfeitamente definidos os objectivos do que se regista na carta de fls. 35 e lembrando que todo o documento é susceptível de interpretação e que é admissível prova testemunhal, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 393.º do C.Civil, com o objectivo de determinar o sentido que as partes atribuíram a determinada cláusula inserta num documento Ac. do STJ de 13.11.1986; BMJ, 361.º, pág. 496 e Prof. Mota Pinto; CJ; 1985, 3.º, pág. 9., ou seja que, por excepção ao disposto no art.º 394.º do C.Civil, é admissível prova testemunhal com vista a interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental, Prof. Mota Pinto, C.J. ; 1985, 3.º, pág. 9.
o diferendo das partes não pode ser sumariamente decidido - como o foi - prescrevendo-se que terá de se seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa com vista a ser convenientemente julgado o pleito em que estão envolvidas as partes, como denunciadamente o impõe a última parte do disposto no art.º 1014.º -A, n.º 3 do Código de Processo Civil, nesta particularidade se mostrando não despicienda, para além de todo o envolvimento factual condensado nos articulados da acção, a questão de saber se é realmente a ré a única a desenvolver a actividade de distribuição alegada em 15.º da contestação, explicitação que é categórica e prontamente desmentida pelo autor (cfr. 16.º da resposta).

Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida e, em consequência, determina-se que a tramitação processual prossiga em conformidade com o estatuído na última parte do art.º 1014.º -A, n.º 3 do Código de Processo Civil.

Custas pela parte vencida a final.

Guimarães, 12 de Julho de 2007.