Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2459/07-1
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: SEGURO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: I – As cláusulas contratuais de um contrato de seguro multi-riscos, são cláusulas contratuais inseridas num típico contrato de adesão, submetidas ao regime do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro.
II – Tais cláusulas, que em tudo, devem subordinar-se ao princípio da boa fé devem ser interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.
III – para interpretar as declarações negociais constantes das cláusulas gerais do contrato há que fazer apelo às regras estabelecidas nos artigos 236º e segs. do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Proc. n.º 2459/07-1
Apelação.
Tribunal Judicial de Vila Nova de Cerveira.


I A... e esposa B... propuseram acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária, contra “CC... - Companhia de Seguros, S.A.” pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe, a título da danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 9.560,85€, acrescida de juros à taxa legal contados desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alegam que celebraram com a ré um contrato de seguro “riscos múltiplos-habitação” que visa garantir o ressarcimento de danos na sua habitação.
Em Fevereiro de 2004 ocorreu uma rotura na canalização da habitação que provocou infiltrações de água. Embora o perito da ré tenha dito que iriam ser indemnizados tal não sucedeu, agravando-se os danos e tendo que proceder eles à reparação. Além disso, durante a reparação estiveram impossibilitados de utilizar a casa, o que lhes causou transtornos. Pedem assim uma indemnização com os gastos sofridos com a reparação e uma compensação pelo transtorno causado.

Em contestação, a ré impugnou a matéria alegada pelo autor e defendeu que as infiltrações além de antigas eram devidas à má instalação da canalização o que as exclui do risco segurado.
O autor respondeu à contestação mantendo a sua pretensão.


Efectuado o julgamento foi proferida sentença na qual se decidiu:
Pelo exposto e, nos termos dos fundamentos de Direito invocados, julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a Ré “CC - Companhia de Seguros, S.A.” do pedido.

Inconformados os autores interpuseram recurso de apelação, cujas alegações de fls. 173 a 182, terminam com as seguintes conclusões:

Ficou provado nos autos que em data não apurada, mas após Fevereiro de 2004, ocorreu rotura nas canalizações do imóvel pertencente aos autores, provocando a infiltração de água pelas paredes.
Ou seja, de acordo com a terminologia constante da apólice , a rotura da rede interior de distribuição de água – art. 3º, n.ºs 4.1 e 4.1.1. das respectivas condições gerais.
Deste modo, não se vislumbra qualquer motivo para excluir o pagamento da indemnização, aos autores, com os trabalhos que tiveram estes de fazer a reparação de tal rotura, no montante comprovado de € 5.400,00.
Se está provado que a rotura nas canalizações da habitação dos autores provocou a infiltração de água pelas paredes, não há dúvida que as canalizações fazem parte integrante da habitação dos autores, vista necessariamente como um todo, encontrando-se no seu interior, e que não sendo feita a sua reparação ou substituição, não seria possível fazer cessar a referida infiltração de águas.
É manifesto que teriam de ser executados os trabalhos ou obras que vêm dados como provados e que, indiscutivelmente, resultaram em danos para os autores, como consequência directamente resultante da aludida rotura das canalizações.
Sendo certo que não há norma contratual, na apólice, que excluam a responsabilidade indemnizatória da ré, relativamente aos danos, resultantes da reparação e substituição das canalizações de habitação dos autores/segurados.
Cabendo à ré seguradora a prova de factos tendentes a excluir a sua responsabilidade.
Não existe condição geral ou particular excludente da responsabilidade pelos danos em causa.
A sentença violou o disposto nos artigos 236º, n.º 1 e 2 e 342º do Código Civil, bem ainda o artigo 3º, n.ºs 4.1 e 4.1.1 das Condições Gerais da Apólice de Seguro.

A ré apresentou contra-alegações, que constam dos autos a fls. 186 a 189, e nas quais pugna pela manutenção do decidido, alegando que:
Os trabalhos efectuados pelos apelantes e cujas despesas reclamam não integram nenhuma das coberturas previstas no contrato de seguro que aqueles celebraram com a ré.
De acordo com o referido contrato a ré garantia os danos provocados por água, de carácter súbito e imprevisto, causados aos bens seguros em consequência de rotura da rede interior de distribuição de água.
Os trabalhos realizados pelos apelantes não dizem respeito à reparação dos danos provocados pela rotura da canalização, mas sim à reparação da própria canalização.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 684º, n.º 3 e 690 º, n.º 1 e 4 do Código de Processo Civil -.
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Em 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1 – No exercício da sua actividade seguradora, a ré celebrou com os autores um contrato de seguro designado “riscos multi-risco habitação” titulado pela apólice nº MR42474318 que teve o seu início em 11/9/1998 e um prazo de duração de um ano renovável por iguais períodos sucessivos.
2 – O contrato visava o ressarcimento dos danos que viessem a ocorrer no imóvel, destinado a habitação, sito no lugar de Codeçal, freguesia de Campos, Vila Nova e Cerveira, pertencente aos autores.
3 - Os riscos cobertos por tal seguro incluíam, entre outros, o incêndio, acção mecânica de queda de raio e explosão, tempestades e inundações e danos por água.
4 – Os autores procederam sempre ao pagamento pontual do respectivo prémio actual.
5 - Em data não concretamente apurada, mas não após Fevereiro de 2004, ocorreu rotura nas canalizações do imóvel pertencente aos autores, provocando a infiltração de água pelas paredes.
6 - Após a comunicação efectuada pelos autores, a ré enviou ao imóvel um perito.
7 - Os autores ordenaram a reparação.
8 - Foram efectuados os seguintes trabalhos:
- abertura nos pisos e nas paredes de duas casas de banho, na cozinha e no corredor;
- execução da instalação de água quente e fria em duas casas de banho e na cozinha;
- colocação de tijoleira no piso da cozinha e nos pisos das duas casas de banho;
- colocação de azulejos nas duas casas de banho;
- colocação de betume nos pisos das duas casas de banho e da cozinha;
- colocação de betume nas paredes das duas casas de banho.
9 - O custo dos trabalhos referidos em 8, incluindo a mão de obra e pintura, importaram na quantia de 5.400€, sem IVA.
10 - A autora e a filha do casal durante a reparação, por período não concretamente apurado, mas não inferior a 15 dias, foram habitar em casa de familiares, no Porto.
11 – Em Agosto de 2004, a ré propôs o pagamento de uma indemnização de 1000€ que os autores não aceitaram por considerarem insuficiente.
12 – O limite da responsabilidade assumida pela ré foi 85.101,32€.
13 – Prevê o artigo 3º, n.ºs 4.1. e 4.1.1. das Condições Gerais da Apólice que o contrato garante a cobertura dos danos directamente causados aos bens seguros, identificados nas Condições Particulares, pela ocorrência de qualquer ou quaisquer dos seguintes riscos:
4. DANOS POR ÁGUA
4.1 garante os danos provocados por água, de carácter súbito ou imprevisto, causados aos bens seguros em consequência de:
4.1.1. Rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício (incluindo nestes os sistemas de esgoto de águas pluviais), assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos do edifício e respectivas ligações e ainda as fugas de água provenientes de instalações de aquecimento ou de refrigeração.
14 – Prevê esse artigo 3º, nos n.ºs 14.1. e 14.2.:
14. DEMOLIÇÃO E REMOÇÃO DE ESCOMBROS
14.1. Garante o pagamento das despesas em que o segurado incorreu com a demolição e/ou remoção de escombros provocados pela ocorrência de qualquer sinistro coberto por esta Apólice.
14.2.O montante a indemnizar por esta cobertura não excederá a percentagem fixada no Quadro I.
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Os autores invocando o contrato de seguro multi-riscos habitação titulado pela apólice n.º MR 42474318, que celebrou com a ré pretendem ser ressarcidos dos prejuízos que sofreram em consequência das infiltrações causadas pela rotura da canalização.

Na sentença entendeu-se que o objecto do contrato de seguro é a casa dos autores, e que os danos objecto do seguro e os trabalhos realizados não se destinaram a reparar as infiltrações nas paredes, mas sim substituir a canalização, o que não está abrangido pelo contrato de seguro.

O artigo 3º da apólice refere o seguinte:
4.1 garante os danos provocados por água, de carácter súbito ou imprevisto, causados aos bens seguros em consequência de:
4.1.1. Rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício (incluindo nestes os sistemas de esgoto de águas pluviais), assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos do edifício e respectivas ligações e ainda as fugas de água provenientes de instalações de aquecimento ou de refrigeração.

Encontramo-nos perante cláusulas contratuais inseridas em típico contrato de adesão , elaboradas sem prévia negociação individual, que os autores se limitaram a subscrever, submetidas ao regime do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.
Tais cláusulas, que em tudo e sob pena de nulidade devem subordinar-se ao princípio da boa fé (artigo 15º do citado diploma) devem ser interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam (artigo 10º).
Sendo ainda que “as cláusulas contratuais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” - artigo 11º, n.º 1- prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente.

Ora, para interpretar as declarações negociais constantes das cláusulas gerais do contrato há que fazer apelo às regras estabelecidas nos artigos 236º e segs. do Código Civil.

Na interpretação dos negócios jurídicos prevalece, em princípio, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida pelo declaratário (artigo 236º do Código Civil).
Não havendo esse conhecimento, “ a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – n.º 1 do artigo 236º.
E o sentido atendível, para um declaratário normal, é o que “ seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde podia conhecer” – Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, págs. 447 e 448.

No caso dos autos a interpretação de um declaratário medianamente sagaz e diligente posicionado no lugar do destinatário da declaração negocial e a que conduz ao maior equilíbrio das prestações, é a interpretação que fazem os recorrentes.
A interpretação feita pela recorrida limitaria o âmbito de cobertura do seguro a situações tão escassas ou que nunca se verificariam que poria em causa a boa fé negocial.

Os seguros multi-riscos têm uma componente de danos próprios e outra de responsabilidade civil .
No caso dos autos o que está em causa é a primeira.
Não sofre qualquer dúvida afirmar-se que a rotura foi um evento súbito e imprevisto .
E assim, a fuga de água provocada pela rotura da canalização provocou danos quer na cozinha, quer na casa de banho .
Para reparação desses danos foram levadas a cabo as obras que constam da matéria assente.
Sem essas obras de reparação da canalização, levantamento da tijoleira, e colocação de novo da mesma, não era possível estancar a infiltração da água.
A nosso ver, os prejuízos sofridos pelos autores tiveram como consequência a rotura súbita da canalização.
Por outro lado, o objecto seguro é a casa dos autores, sendo que a canalização, as paredes, o chão são partes integrantes da mesma.
Efectivamente de acordo com o artigo 2º das condições gerais da apólice, o objecto do seguro é o bem imóvel identificado nas Condições Particulares.
No artigo 5º, n.º 2.4 relativo às exclusões é referido que ficam excluídos da cobertura dos danos por água, os danos causados em consequência de infiltrações através de telhados, terraços, paredes e ainda os que resultem de humidade ou condensação excepto quando estes sejam resultantes das garantias contempladas nesta cobertura e ou os prejuízos resultantes de vício próprio ou falta de estanquidade do imóvel.
Ora, os danos em causa não estão excluídos do contrato, e a ré não provou que as infiltrações da água se ficaram a dever, não a rotura de um cano, mas a deficiências de instalação, como alegou.

Os prejuízos que os autores sofreram englobam os danos causados pela infiltração da água derivados do rompimento do cano, englobando as obras necessárias à detecção e reparação do mesmo.

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III – Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a sentença, nos seguintes termos :
Condenam a ré a pagar aos autores a quantia de € 5.400,00 acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.
Custas da acção por ambas as partes, na proporção do decaimento, e do recurso pela ré.
Guimarães, 10/01/08