Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
767/23.8PBVCT.G1
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
NEXO DE CAUSALIDADE
RELATÓRIO MÉDICO DE AVALIAÇÃO DE DANO CORPORAL NO ÂMBITO DO DIREITO CIVIL
VALOR PROBATÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito civil, avaliação essa não efetuada por uma entidade independente, como o é o Gabinete Médico Legal, não constitui prova pericial, com o valor reforçado que lhe é próprio. Ainda que subscrito por profissional de saúde - médico -, pese embora não constitua meio de prova proibido, não tem o valor de uma perícia, encontrando-se sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º do Código de Processo Penal.
II. Com efeito, a especial relevância do juízo científico que se vê refletida no artigo 163.º do Código de Processo Penal está necessariamente relacionada com a especial credibilidade da perícia decorrente da sua natureza oficial [Artigo 152.º do Código de Processo Penal: 1 - A perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, ou, na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa.], possuindo a prova pericial no âmbito do processo penal de regulamentação própria [artigos 151.º a 163.º do Código de Processo Penal], e o relatório em causa, elaborado fora do GML e no âmbito do direito civil, transcende essa regulamentação.
[sumário elaborado pela relatora]
Decisão Texto Integral:
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 767/23.8PBVCT que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Viana do Castelo - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em 13 de dezembro de 2024, foi proferida sentença, no que ora releva, com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“(…)
Pelo exposto e sem mais considerações, decide-se julgar improcedente a acusação e, em consequência:
- absolve-se o arguido AA da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.148º, nº.1 do C.P. pelo qual vinha acusado.
(…)”. [sublinhado e negrito nossos].

I.2 Recurso da decisão

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a assistente para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
I – Introito:
1. Vai o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, datada de 13-12-2024, que absolveu o Recorrido da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.º 1 do Cód. Penal perpetrado na pessoa da Recorrente, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.
2. Grosso modo, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de absolvição do Recorrido da prática do crime de que vinha acusado no facto de não existir, no seu entendimento, um nexo causal entre o acontecimento que deu origem aos presentes autos e as consequências que do mesmo resultaram a Recorrente.
3. Salvo o devido respeito, a decisão proferida pelo Tribunal a quo é contrária ao entendimento de profissionais da área da saúde, todos eles médicos de profissão, que estão plenamente convictos de que as lesões sofridas pela Recorrente são consequência direta e necessária do acidente de viação que deu origem aos presentes autos e carrearam para os autos informação científica que permite sustentar tal tese.
4. Na sequência do acidente de viação que deu origem aos presentes autos, a Recorrente foi assistida no serviço de urgência da Unidade Local de Saúde ..., EPE, (ULS...) de ..., no dia 17-07-2023, pelo Sr. Dr. BB, Médico, com o n.º de episódio de urgência ...74, já junto aos autos, constante de fls. 248.v a 266 dos mesmos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
5. Foi assistida no Hospital ..., e na Clínica ..., pela Sra. Dra. CC e pelo Sr. Dr. DD, ambos médicos a prestar serviços à Companhia de Seguros EMP01..., PLC – EMP02..., S.A, uma vez que o acidente que deu origem aos presentes autos foi considerado também ele um acidente de trabalho, que corre termos, na presente data, na Procuradoria do Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, ainda na fase conciliatória, com o n.º de processo 3310/23.5T8VCT, sendo certo que tal documentação clínica já se encontra junta aos mesmos, constante de fls. 206v. a 218, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.
6. Foi examinada pelo Sr. Dr. EE, Perito Médico, que avaliou o seu dano corporal no âmbito do direito civil, e dessa avaliação foi exarado o respetivo relatório, datado de 08-02-2024, já junto aos autos no dia 14-02-2024, constante de fls. __ dos mesmos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
7. E foi submetida a exame médico de avaliação de dano corporal do dano corporal em direito penal, no dia 22-08-2023, com relatório elaborado no dia 15-10-2023, constante de fls.__ dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, exarado pela Sra. Perita Médica Dra. FF.
8. Todos os médicos acima mencionados configuram como tese possível e válida que as dores sofridas pela Recorrente tenham origem e consequência direta e necessária no acidente de viação que deu origem aos presentes autos e admitem a existência de nexo de causalidade entre o evento ocorrido e o dano sofrido por aquela, tendo conferido à mesma dias de cura, com afetação parcial da capacidade de trabalho, e ainda afetação da capacidade de trabalho profissional.
9. E tanto assim o é que no âmbito da avaliação da Sra. Dra. CC e do Sr. Dr. DD, os mesmos declararam a Recorrente incapacitada temporariamente o trabalho durante o período de 17-07-2023 a 07-08-2023, em virtude das lesões sofridas pela mesma, como consequência direta e necessária do acidente de viação no qual foi interveniente, nomeadamente, cervicalgia, e a dita companhia de seguros liquidou junto daquela a quantia de € 545,82 (quinhentos e quarenta e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), a título de incapacidade temporária e absoluta, durante o período de tempo compreendido entre 17-07-2023 e 07-08-2023.
10. Portanto, não pode o Tribunal a quo descartar a informação médica constante dos presentes autos e decidir ao arrepio da mesma, apenas e só porque no seu entendimento a conduta do Recorrido não poderia dar causa às dores/cervicalgias manifestadas pela Recorrente e porque não era previsível que a essa mesma conduta se sucedessem tais lesões, quando o oposto é referido pelos Srs. Médicos acima identificados.
11. Dúvidas inexistem, pois, que as lesões sofridas pela Recorrente são consequência direta e necessária da força do embate, até porque, quem o diz são quatro pessoas profissionais da área da saúde, médicos de profissão e dotados conhecimentos técnico-científicos que lhes permitem esclarecer sem sombra de dúvidas se as lesões sofridas por aquela são ou não consequência direta e necessária da força do embate, e são competentes para indicar se tais lesões determinam, em condições normais, dias de cura, com ou sem afetação parcial da capacidade de trabalho, e ainda afetação da capacidade de trabalho profissional.
12. É, pois, nesse ponto que assenta essencialmente o recurso ora interposto pela Recorrente, ou seja, na desconsideração completa da prova constante nos autos pelo Tribunal a quo, no que concerne à informação médica que admite existir nexo de causalidade entre as lesões sofridas por aquela e o acidente viação de que foi vítima.
13. Assim, feito este pequeno introito, cumpre agora à Recorrente fundamentar e especificar as suas razões de discórdia com a decisão recorrida.
II – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto – erro notório na apreciação da prova: art.ºs 410.º, n.º 2, al. c) e 412.º, n.º 3, ambos do Cód. Proc. Penal
a) Identificação dos concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados (art.º 412.º, n.º 3, al. a) do Cód. Proc. Penal):
14. Resultam não provados na Douta sentença recorrida, entre outros, os seguintes factos:
- Não provado que, como consequência directa e necessária da força do embate, a assistente tenha sofrido dores, designadamente, à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes;
- Não provado que a condutora e ocupante do veículo ... ..-..-SE tenha sofrido lesões corporais e que estas tenham ficado a dever-se à colisão dos veículos, à ligeireza e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir;
- Não provado que o arguido soubesse ser possível que a sua conducta causasse, como causou, lesões físicas a condutora que ali também conduzia o veículo.
15. A Recorrente discorda por completo do entendimento do Tribunal a quo quando este dá como não provados os factos que ora supra se transcreveram, sendo estes aqueles cuja impugnação versará.
b) Identificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412.º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal):
16. A Recorrente entende que as provas constantes dos autos que impõem decisão diversa da recorrida e, consequentemente, que deveriam ter sido tidas em conta para se dar como provados factos supra identificados, são as seguintes:
i. episódio de urgência n.º ...74 - constante de fls. 248.v a 266 dos autos;
ii. registos clínicos da Recorrente existentes no Hospital ..., na Clínica ... e na Companhia de Seguros EMP01..., PLC – EMP02..., S.A – constantes de fls. 206v. a 218 dos autos;
iii. relatório de exame médico de avaliação de dano corporal elaborado pelo Sr. Dr. EE, Perito Médico, datado de 08-02-2024 - constante de fls. 139. a 146. Dos autos;
iv. relatório de exame médico de avaliação de dano corporal elaborado pelo Sra. Dra. FF, Perita Médica, datado de 15-10-2023 - constante de fls. 35. a 37. dos autos;
v. depoimento prestado pela Sra. Dra. FF, Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024 - constante do ficheiro de gravação de prova denominado “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, nos períodos compreendidos entre os minutos [05:35 e 06:03], [08:06 e 10:00], [13:04 e 13:28], [22:59 e 23:08] e [27:52 e 29:40].
c) Da fundamentação da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto quanto aos factos dados como não provados supra identificados:
1.º - Do facto não provado com a seguinte redação: “Não provado que, como consequência directa e necessária da força do embate, a assistente tenha sofrido dores, designadamente, à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes”:
17. A Recorrente foi assistida no serviço de urgência da Unidade Local de Saúde ..., EPE, (ULS...) de ..., no dia 17-07-2023, pelo Sr. Dr. BB, Médico, na sequência do acidente de viação de que origem aos presentes autos, com o n.º de episódio de urgência ...74, já junto aos autos, constante de fls. 248.v a 266 dos mesmos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, e aí, ao nível do exame objetivo realizado àquela, constatou-se que a mesma apresentava uma “cervicalgia irradiada para o trapézio direito e dor a palpação das apófises espinhosas da coluna cervical e dorso lombar” (negrito e sublinhado nossos): cfr. episódio de urgência n.º ...74, já junto aos autos, constante de fls. 248.v a 266 dos mesmos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
18. A Recorrente foi também assistida no Hospital ..., e na Clínica ..., pela Sra. Dra. CC e pelo Sr. Dr. DD, ambos médicos a prestar serviços à Companhia de Seguros EMP01..., PLC – EMP02..., S.A, uma vez que o acidente que deu origem aos presentes autos foi considerado também ele um acidente de trabalho, que corre termos, na presente data, na Procuradoria do Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, ainda na fase conciliatória, com o n.º de processo 3310/23.5T8VCT, sendo certo que tal documentação clínica já se encontra junta aos mesmos, constante de fls. 206v. a 218, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.
19. No âmbito desse acidente de trabalho a Recorrente foi examinada por aqueles Médicos, que declararam aquela incapacitada temporariamente o trabalho durante o período de 17-07-2023 a 07-08-2023, em virtude das lesões sofridas pela mesma, como consequência direta e necessária do acidente de viação no qual foi interveniente, nomeadamente, cervicalgia, tendo ainda recebido da dita companhia de seguros a quantia de € 545,82 (quinhentos e quarenta e cinco euros e oitenta e dois cêntimos), a título de incapacidade temporária e absoluta, durante o período de tempo compreendido entre 17-07-2023 e 07-08-2023.
20. A Recorrente foi também examinada pelo Sr. Dr. EE, Perito Médico, que avaliou o seu dano corporal no âmbito do direito civil, e dessa avaliação foi exarado o respetivo relatório, datado de 08-02-2024, já junto aos autos no dia 14-02-2024, constante de fls. __ dos mesmos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, tendo aquele identificado as lesões sofridas por aquela na sequência do referido acidente de viação, e na rúbrica “Discussão” do seu relatório, referiu que existe “nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões e não excluí a pré-existência do dano corporal ou de uma causa estranha relativamente ao traumatismo, sendo admissível agravamento de doença prévia” (negrito e sublinhado nossos), tendo conferido àquela um período de repercussão temporária na atividade profissional total, fixável num período de 24 (vinte e quatro) dias.
21. Por fim, a Recorrente foi submetida a exame médico de avaliação de dano corporal do dano corporal em direito penal, no dia 22-08-2023, com relatório elaborado no dia 15-10-2023, constante de fls.__ dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, exarado pela Sra. Perita Médica Dra. FF, e nesse relatório, a Sra. Perita Médica identificou as lesões sofridas por aquela na sequência do acidente de viação que deu origem aos presentes autos, e na rúbrica “Discussão” do seu relatório, referiu que “Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano” (negrito e sublinhado nossos), tendo concluído no dito relatório que as lesões sofridas pela Recorrente terão resultado de traumatismo de natureza contundente com o que é compatível com o acidente de viação que deu origem aos presentes autos, e que as mesmas determinaram em condições normais, 40 dias para a cura, com afetação parcial da capacidade de trabalho geral (40 dias) e com a afetação da capacidade de trabalho profissional (40 dias).
22. Para além disso, a Sra. Perita Médica prestou esclarecimentos em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024, sendo certo que no que concerne às queixas apresentadas pela Recorrente, referiu que as mesmas decorrem única e exclusivamente da dor que a mesma sente, e são compatíveis com o evento ocorrido, ou seja, com o acidente de viação de que foi interveniente e vítima: cfr. depoimento prestado pela Sra. Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024, constante do ficheiro “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024- 12-04_10-51-50.mp3”, no período compreendido entre o minuto [05:35 e 06:03].
23. E mais referiu a Sra. Perita Médica, nesse mesmo depoimento, e ainda no que concerne às lesões e sequelas sofridas pela Recorrente que, não se pode concluir que as lesões corporais sofridas por aquela não são consequência direta e necessária do acidente de viação que deu origem aos presentes autos apenas pelo simples facto da dor não ser objetivável: cfr. depoimento prestado pela Sra. Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024, constante do ficheiro “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, no período compreendido entre o minuto [08:06 e 10:00].
24. E ainda no que concerne à dinâmica do acidente e às lesões que podem advir do mesmo para a Recorrente após o embate, a Sra. Perita Médica esclareceu de forma categórica que, no momento em que se dá o acidente ocorre o movimento de chicote, provocado pelo embate do veículo conduzido pelo Recorrido naquele que era conduzido por aquela: cfr. depoimento prestado pela Sra. Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024, constante do ficheiro “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, no período compreendido entre o minuto [13:04 e 13:28].
25. Sendo elevada a probabilidade de desse embate resultar para a Recorrente uma cervicalgia: cfr. depoimento prestado pela Sra. Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024, constante do ficheiro “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, no período compreendido entre o minuto [13:04 e 13:28].
26. Esse movimento de chicote ocorre e está associado tanto a um movimento de alta como baixa cinética, ou seja, a um embate de alta ou baixa velocidade: cfr. depoimento prestado pela Sra. Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024, constante do ficheiro “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, no período compreendido entre o minuto [22:59 e 23:08].
27. Por fim, concluiu a Sra. Perita Médica o seu depoimento, já no que concerne ao facto da Recorrente ter antecedentes de patologia degenerativa da coluna lombar, que estes antecedentes não afetam as conclusões a que chegou no relatório supra mencionado: cfr. depoimento prestado pela Sra. Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024, constante do ficheiro “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, no período compreendido entre o minuto [27:52 e 29:40].
28. Dúvidas inexistem, pois, que as lesões sofridas pela Recorrente são consequência direta e necessária da força do embate, até porque, quem o diz são quatro pessoas profissionais da área da saúde, médicos de profissão e dotados conhecimentos técnico-científicos que lhes permitem esclarecer sem sombra de dúvidas se as lesões sofridas por aquela são ou não consequência direta e necessária da força do embate, e são competentes para indicar se tais lesões determinam, em condições normais, dias de cura, com ou sem afetação parcial da capacidade de trabalho, e ainda afetação da capacidade de trabalho profissional.
29. Nunca poderia, assim, o Tribunal a quo dar como não provado que “como consequência directa e necessária da força do embate, a assistente tenha sofrido dores, designadamente, à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes”.
30. Nessa medida, mal andou o Tribunal a quo em dar como não provado o facto acima transcrito, e violou, assim, o disposto no art.º 374.º, n.º 2, in fine do Cód. Proc. Penal, por não analisar criticamente a prova existente nos autos seja ela documental e/ou testemunhal, devendo por isso, ser revogada a Douta sentença e, consequentemente, ser proferida uma nova que elimine da matéria de facto dada como não provada o facto ora supra identificado, e adite à matéria de facto dada como provada, o seguinte:
23.º - Como consequência directa e necessária da força do embate, a assistente sofreu dores, designadamente, à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes;
2.º - Do facto não provado com a seguinte redação: “Não provado que a condutora e ocupante do veículo ... ..-..-SE tenha sofrido lesões corporais e que estas tenham ficado a dever-se à colisão dos veículos, à ligeireza e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir”:
31. Conforme se referiu supra, os Srs. Médicos acima identificados são claros e precisos na informação que trazem para os autos, tanto nos seus relatórios, como diários clínicos, como depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, que por mera economia processual não se transcrevem novamente, a fim de evitar o avolumar desnecessário destas alegações de recurso.
32. Concretamente, todos eles defendem a tese de que as lesões corporais de que ficou a padecer a Recorrente resultam do embate do veículo automóvel ligeiro de passageiros conduzido pelo Recorrido naquele que era por si conduzido, nomeadamente, pela ocorrência do movimento de chicote que existiu.
33. Desta forma, no entendimento da Recorrente não resulta qualquer dúvida de que as lesões sofridas por aquela ficaram a dever-se à colisão dos veículos, à ligeireza e imprudência postas pelo Recorrido no acto de conduzir.
34. Nunca poderia, assim, o Tribunal a quo dar como não provado que “a condutora e ocupante do veículo ... ..-..-SE tenha sofrido lesões corporais e que estas tenham ficado a deverse à colisão dos veículos, à ligeireza e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir”.
35. Nessa medida, mal andou o Tribunal a quo em dar como não provado o facto acima transcrito, e violou, assim, o disposto no art.º 374.º, n.º 2, in fine do Cód. Proc. Penal, por não analisar criticamente a prova existente nos autos seja ela documental e/ou testemunhal, devendo por isso, ser revogada a Douta sentença e, consequentemente, ser proferida uma nova que elimine da matéria de facto dada como não provada o facto ora supra identificado, e adite à matéria de facto dada como provada, o seguinte:
24.º - A condutora e ocupante do veículo ... ..-..-SE sofreu lesões corporais que se ficaram a dever à colisão dos veículos, à ligeireza e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir, nomeadamente, dores à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes.
3.º - Do facto não provado com a seguinte redação: “Não provado que o arguido soubesse ser possível que a sua conducta causasse, como causou, lesões físicas a condutora que ali também conduzia o veículo”:
36. Resultam provados na matéria de facto dada como provada na Douta Sentença recorrida, os seguintes factos:
“(...)
8 – O arguido sabia que, ao exercer condução de um veículo, deve adequar a velocidade de modo a permitir-lhe fazer parar o veículo sem colidir, designadamente, com o que circule à sua frente;
9 – O arguido tinha conhecimento e consciência dos deveres e normas de circulação rodoviária e, ao agir da forma descrita, fê-lo sem o cuidado que lhe era exigível, circulando de forma desatenta;
10 – Actuou de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
(...)
37. Ora, se o Recorrido sabia que ao exercer condução de um veículo, devia adequar a velocidade de modo a permitir-lhe fazer parar o veículo sem colidir, designadamente, com o que circule à sua frente, e tinha conhecimento e consciência dos deveres e normas de circulação rodoviária, bem como, que ao agir da forma descrita, fê-lo sem o cuidado que lhe era exigível, e circulou de forma desatenta, então também sabia que a sua conduta poderia provocar lesões na Recorrente.
38. É do conhecimento comum, e de qualquer condutor, seja ele de veículos automóveis ligeiros de passageiros, pesados, ligeiros de mercadorias e até mesmo de motociclos, que um acidente de viação com grande probabilidade provocará danos e lesões corporais aos seus intervenientes.
39. Não era novidade nenhuma para o Recorrido que com a sua conduta poderia provocar na Recorrente as lesões de que a mesma ficou a padecer, e tanto mais não o era que, na motivação da Douta sentença recorrida, o Tribunal a quo explica que em sede de declarações daquele, o mesmo referiu que “(...) descloram-se para outro local, onde pararam para falar, a assistente disse que o carro estava riscado, ele lhe disse para o mandar pintar, assumindo que pagaria, sendo que a assistente não se queixou então – nem nos posteriores contactos – de nada, de nenhuma dor, tendo trocado contactos; (...)”: cfr. Douta sentença recorrida, datada de 13-12-2024, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.
40. O Recorrido tinha plena consciência de que a Recorrente poderia vir a queixar-se de dores, mesmo que não fosse no momento do embate, ainda que posteriormente.
41. Se o Tribunal a quo deu como provado que o Recorrido sabia que ao exercer a condução de um veículo devia adequar a velocidade de modo a permitir-lhe fazer parar o mesmo sem colidir, designadamente, com o que circulasse à sua frente, então é porque ficou com a certeza de que aquele sabia que se circulasse, como circulou, de forma desatenta e sem respeitar a distância de segurança devida, podia provocar um acidente de viação e, consequentemente, correr o risco de lesionar o condutor do outro veículo.
42. Nunca poderia, assim, o Tribunal a quo dar como não provado que “o arguido soubesse ser possível que a sua conducta causasse, como causou, lesões físicas a condutora que ali também conduzia o veículo.”.
43. Nessa medida, mal andou o Tribunal a quo em dar como não provado o facto acima transcrito, e violou, assim, o disposto no art.º 374.º, n.º 2, in fine do Cód. Proc. Penal, por não analisar criticamente a prova existente nos autos seja ela documental e/ou testemunhal, devendo por isso, ser revogada a Douta sentença e, consequentemente, ser proferida uma nova que elimine da matéria de facto dada como não provada o facto ora supra identificado, e adite à matéria de facto dada como provada, o seguinte:
25.º - O arguido sabia ser possível que a sua conducta causasse, como causou, lesões físicas a condutora que ali também conduzia o veículo.
Posto isto,
III – Da existência de nexo de causalidade entre as lesões sofridas pela Recorrente e a conduta do Recorrido:
44. Tal como é referido pelo Tribunal a quo, na Douta sentença recorrida, dúvidas inexistem que o Recorrido, com a sua conduta, violou as normas estradais constantes dos art.ºs 18.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1 do Cód. da Estrada.
45. O Recorrido não soube, assim, manter a distância necessária do veículo que seguia à sua frente (o da Recorrente), de forma a conseguir parar a marcha do por si conduzido, sem embater, como embateu, naquele que era conduzido por aquela.
46. A conduta do Recorrido violou o dever objetivo de cuidado imposto pelas normas legais acima mencionadas, porquanto, era previsível que naquelas circunstâncias de tempo e lugar aquele conseguisse parar o veículo automóvel ligeiro de passageiros por si conduzido, de forma a não embater, como embateu, no veículo conduzido pela Recorrente.
47. E, efetivamente, também como é referido na Douta sentença recorrida, a verificação do resultado, in casu, a lesão do bem jurídico “integridade física”, só poderá ser imputado ao Recorrido se entre a atuação deste e aquele resultado se verificar um nexo causal, aferido nos termos do art.º 10.º, n.º 1 do Cód. Penal.
48. Ora, conforme se alegou supra, face à prova documental existente nos presentes autos, e bem assim, da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, dúvidas inexistem que as lesões de que a Recorrente padeceu após o acidente que deu origem a este diferendo resultaram de forma clara do evento ocorrido, ou seja, do embate do veículo automóvel ligeiro de passageiros conduzido pelo Recorrido naquele que era conduzido pela Recorrente.
49. Ao contrário do entendimento do Tribunal a quo é sim possível concluir que a conduta do Recorrido deu causa às dores/cervicalgias manifestadas pela Recorrente, tanto no dia 17-07-2023, como no dia 22-08-2023, e, era sim previsível, também ao contrário do entendimento daquele Tribunal, que àquela conduta se sucedessem as queixas da Recorrente, nomeadamente, pelo “efeito chicote” referido pela Sra. Perita Médica, Dra. FF, no seu depoimento prestado em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024.
50. Sendo por isso a conduta do Recorrido que determinou de forma direta, necessária e adequada a ocorrência daquelas queixas e lesões mencionadas pela Recorrente.
51. O resultado da violação da conduta de cuidado que era imposta ao Recorrido na condução do seu veículo ligeiro de passageiros foi a lesão (dano/violação) da integridade física da Recorrente, e as lesões contraídas por esta, têm, assim, causa na conduta daquele e, portanto, existe, desde logo, no caso subjudice, um nexo de causalidade natural.
52. O resultado da conduta do Recorrido era, assim, previsível, existindo, assim, desta forma também um nexo de causalidade adequada, e mesmo que assim não se entendesse, e se considerasse, como considerou o Tribunal a quo, que não era previsível que conduta do Recorrido causasse à Recorrente as lesões de que a mesma padeceu, como consequência direta e necessária do acidente, sempre se diga que existe ainda assim um nexo de causalidade entre aquela conduta e aquelas lesões, só que, na sua modalidade negativa, pois, não resultou provado, nem poderia, aliás, na medida em que não foi feita prova nesse sentido, que a conduta daquele apenas se deveu a uma circunstância anómala ou excecional, como por exemplo, perda de travões ou encandeamento solar que o impedissem de guardar a distância de segurança devida para o carro que seguia à sua frente, e embater com o veículo por si conduzido no daquela.
53. Assim, atenta a matéria de facto dada como provada na Douta sentença recorrida, e a que ora se requereu que fosse nela incluída, não se chega a outra conclusão se não a de que, o Recorrido ofendeu a integridade física da Recorrente, por negligência, e essa ofensa apenas ocorreu porque violou as normas estradais supra identificadas, existindo um nexo de causalidade entre as lesões corporais apresentadas por aquela e o evento que as provocou, ou seja, o embate no veículo ligeiro de passageiros conduzido por aquela por aquele que era por si conduzido.
54. Nesta conformidade, ao não condenar o Recorrido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 148.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pessoa da Recorrente, mal andou o Tribunal a quo e, consequentemente, violou (ou fez uma errónea interpretação) do disposto nos art.ºs 374.º, n.º 2, in fine do Cód. Proc. Penal, e art.ºs 148.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal.
55. E, por isso, deve ser revogada a Douta Sentença recorrida e, consequentemente, ser proferido Douto acórdão que condene o Recorrido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 148.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pessoa da Recorrente.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso
revogando-se a Douta sentença recorrida e proferindo-se, em sua
substituição, Douto acórdão em conformidade com as conclusões
supra formuladas, fazendo-se assim a costumada e sã, Justiça!”.

I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, responderam ao recurso interposto pela assistente quer a Ex.mª Sr.ª Procuradora da República junto da 1.ª instância quer o arguido, pugnando ambos pela sua improcedência, tendo apenas o arguido apresentado conclusões que são do seguinte teor [transcrição]:

“(…)
1. Encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito a sentença recorrida não merecendo qualquer reparo.
2. Tribunal da Relação da Guimarães de 02-11-2017 (in www.dgsi.pt) “O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).
3. Ora, a discordância com a convicção do julgador, não é nem pode ser critério suficiente para a alteração da matéria de facto.
4. O Tribunal a quo esteve atendo à prova analisada como um todo.
5. Em primeiro plano cumpre analisar a fotografia junta com a contestação, verificada a referida fotografia, tirada imediatamente após o acidente, verificamos não haver dano visível no veículo, menos ainda dano compatível com um período de 40 dias de incapacidade.
6. Do episódio de urgência, retiramos que a assistente foi ao Hospital no dia em que coincidentemente participou o sinistro ao seguro. Dias após o acidente…
7. Do episódio de urgência retiramos não haver lesões traumáticas visíveis no TAC: “TC sem lesões traumáticas”.
8. A cervicalgia, conforme foi explicado pela Senhora Perita e bem ainda pela testemunha GG [Gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 12:20 horas e o seu termo pelas 12:36 horas – artigos 363.º e 364.º n.º 1, 2 e 3 do C. P. P – Dia 16- 10-2024], não é uma doença mas um sintoma.
9. E embora consta do relatório do IML serem as lesões compatíveis com o evento, esquece-se a assistente de referir ter a senhora perita ficado surpreendida quando confrontada com a análise e relatório do TAC da coluna cervical de 28-10-2024 (o qual não teve acesso), e onde se refere uma volumosa hérnia discal na cervical, compatível com as dores (vide email da ULS... redª ...18, serviço de imagiologia).
10. Confirmando que a cervicalgia (a existir) pode ser proveniente da hérnia na cervical.
11. Esqueceu-se igualmente a assistente, aquando as várias consultas médicas sequentes do acidente (as de médicos particulares por si contratados, e do IML) de referir as persistentes dores de cervical e omoplata que tem desde 2020 (Vide informações juntas aos autos por email recebidas a 25-10- 2024 05-04..., 10-02-2021, 22-01-202, 02-11-2020).
12. Esta sequência de eventos foi valorada pelo Tribunal.
13. Perante a documentação junta aos autos (extensa) e perante as testemunhas, salvo o devido e merecido respeito, não poderíamos chegar a outra conclusão que não a da Mma. Juiz a quo.
14. Refere ainda a recorrente que deveria ser dado por provado que “- Como consequência directa e necessária da força do embate, a assistente tenha sofrido dores, designadamente, à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes;”
15. A senhora perita justificou o tempo de afetação indicado: o tempo habitual. Mas o tempo habitual aceitando na íntegra as queixas e versão dos factos fornecidos pela recorrente.
16. Ora, são requisitos do tipo complexo do crime de ofensa à integridade física negligente: a violação do dever objectivo de cuidado; um resultado lesivo típico; a imputação objectiva desse resultado à conduta descuidada do agente; e o juízo de censurabilidade dessa conduta.
17. Não há prova de resultado lesivo.

Motivos pelos quais, sendo irrepreensível a sentença recorrida deverá ser a
mantida na íntegra, assim se fazendo a já acostumada JUSTIÇA!!!!”.
 
I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer no sentido da improcedência do recurso.

I.5. Resposta

Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio a assistente/recorrente apresentar resposta ao sobredito parecer, reiterando a posição vertida no recurso.

I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:

II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].

Assim, face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir reportam-se à:

® Impugnação da matéria de facto [erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento/violação do disposto no artigo 374.º, n.º 2, in fine do Código de Processo Penal].

E, na eventualidade da sua procedência:
® Saber se importa na condenação do arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual se encontra acusado.

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“ (…)
Instruída e discutida a causa resultaram apurados os seguintes factos.
Factos Provados:
1- No dia 14 de Julho de 2023, pelas 16.20h, na Avenida ..., sita em ..., no sentido de progressão poente (...) - nascente (...), o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca “...”, de matrícula ..-AF-..;
2- Em tais circunstâncias de tempo e lugar, a assistente, HH, exercia a condução de veículo ligeiro de passageiros, de marca ...”, com matrícula ..-..-SE, no mesmo sentido de progressão, poente (...) - nascente (...) em posição dianteira à do arguido que circulava imediatamente atrás da primeira, seguindo ambos numa fila de trânsito, em circulação lenta - em “pára-arranca” -, devido ao trânsito intenso que se verificava;
3- A via em questão é uma estrada, em recta, com dois sentidos de trânsito distintos, separados por linha longitudinal contínua, com pavimento de asfalto betuminoso, em bom estado de conservação;
4- A velocidade permitida no local era de 50 Km/hora;
5- Na ocasião, chuviscava e o piso estava molhado;
6- Sucede que o arguido, que circulava a velocidade concreta não apurada, ao aproximar-se da viatura de HH, que entretanto parou, não conseguiu evitar a colisão do veículo que conduzia contra a traseira do veículo de matrícula ..-..-SE;
7- Com o impacto provocado pelo veículo conduzido pelo arguido, o veículo ...” sofreu alguns estragos e foi projectado para a frente, percorrendo distância não concretamente apurada, mas não superior a 2/3 metros, imobilizando-se de seguida, sem chegar a embater no veículo parado à sua frente, na referida fila de trânsito;
8- O arguido sabia que, ao exercer a condução de um veículo, deve adequar a velocidade de modo a permitir-lhe fazer parar o veículo sem colidir, designadamente, com o que circule à sua frente;
9- O arguido tinha conhecimento e consciência dos deveres e normas de circulação rodoviária e, ao agir da forma descrita, fê-lo sem o cuidado que lhe era exigível, circulando de forma desatenta;
10- Actuou de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
11- A via no local do embate, atento o sentido de marcha seguido pelos veículos conduzidos pelo arguido e pela assistente, tem inclinação descendente, correspondendo à aproximação do viaduto ali existente;
12- A fila de trânsito referida em 2. estendia-se para a frente e para trás dos veículos conduzidos pelo arguido e pela assistente;
13- Em 17 de Julho de 2023, pelas 10.08h, a assistente recorreu ao serviço de urgência da ULS..., onde foi assistida, apresentando cervicalgia irradiada para o trapézio direito e dor à palpação das apófises espinhosas da coluna cervical e dorso lombar;
14- Em 22 de Agosto de 2023 foi examinada no GML, apresentando dor à palpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, ali se fixando um período de 40 (quarenta) dias para cura (até 23-8-23), com afectação parcial da capacidade de trabalho geral e com afectação da capacidade de trabalho profissional, por igual período, sem consequências permanentes;
15- A assistente, à data referida em 13., tinha antecedentes de patologia degenerativa da coluna lombar;
16- Efectuada TAC da coluna cervical, na data referida em 13., foram relatadas ligeiras procidências osteodiscais de base posterior larga em C3-C4 e níveis seguintes e, em C5-C6 volumosa hérnia discal mole centrolateral à direita;
17- O arguido não tem antecedentes criminais;
18- É casado e tem dois filhos maiores;
19- Vive em casa própria;
20- Está reformado, recebendo de reforma, de Portugal, cerca de 300 euros mensais, e, do país onde esteve emigrado durante 23 anos, cerca de 800 euros mensais;
21- Tem como habilitações literárias o equivalente ao actual 9º ano de escolaridade;
22- É considerado pelas pessoas das suas relações como responsável, prudente, trabalhador, respeitado e respeitador.
*
*
Factos Não Provados:

- Não provado que a projecção referida em 7. tenha sido com força e que esta tenha afectado, necessariamente, a condutora do veículo ...”;
- Não provado que, como consequência directa e necessária da força do embate, a assistente tenha sofrido dores, designadamente, à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes;
- Não provado que a condutora e ocupante do veículo ... ..-..-SE tenha sofrido lesões corporais e que estas tenham ficado a dever-se à colisão dos veículos, à ligeireza e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir;
- Não provado que o arguido soubesse ser possível que a sua conduta causasse, como causou, lesões físicas a condutora que ali também conduzia o veículo;
- Não provada a restante matéria factual alegada na acusação e na contestação, a qual, por brevidade, aqui se dá por reproduzida.
*
*
Motivação:
Para formar a sua convicção, relativamente aos factos provados e não provados, quer no que concerne ao circunstancialismo relativo à dinâmica do acidente e suas consequências, bem como quanto aos demais factos alegados, baseou-se o tribunal, para além do corelacionamento de toda a prova produzida:
- no teor das declarações do arguido, que, de forma que o tribunal teve, no essencial, como sincera, deu conta da sua versão e percepção dos factos, aludindo a que, na ocasião, vinham em pára-arranca, estava a chover, a estrada tinha água, iam debaixo da rotunda, a descer, quando houve o “encosto” do carro dele no carro da assistente; disse que foi só um toque, que saíram dos veículos – para ver os estragos -, passou um carro da GNR, lhes perguntaram se precisavam de algo e a própria assistente disse que não valia a pena, que “isto não é nada”; deslocaram-se para outro local, onde pararam para falar, a assistente disse que o carro estava riscado, ele lhe disse para o mandar pintar, assumindo que pagaria, sendo que a assistente não se queixou então – nem nos posteriores contactos - de nada, de nenhuma dor, tendo trocado contactos; depois a assistente contactou-o, disse-lhe que queria 200 euros e ele achou demasiado, tendo-lhe a assistente respondido que tinha direito a escolher a garagem que quisesse, sendo que depois a mesma lhe pediu a apólice, para meter no seguro; referiu que os danos no seu veículo se resumiram a um “furinho”, causado pelo gancho do reboque do veículo da assistente; mencionou que iam em fila, fila esta que já vinha de trás, que a distância entre os veículos era pouca (disse para aí 1 metro) e que o veículo que seguia na frente não avançou com o embate; confrontado com a foto junta com a contestação (depois junta a cores), referiu que a tirou no dia do embate; esclareceu sobre alguns aspectos da sua actual situação pessoal e económica;
- no teor das declarações da assistente, a qual, por seu turno, relatou também a sua versão do sucedido, referindo que o trânsito estava lento, iam em fila, ela foi travando e imobilizou o veículo, estando parada quando o arguido lhe bateu na retaguarda; disse que foi projectada para a frente, ela e o carro, que entre ela e o carro à sua frente - em termos de distância - ainda cabia outro veículo e que, após o embate, ainda ficou alguma distância entre o seu e o da frente, onde não embateu; disse que no embate foi para a frente e para trás e bateu atrás, no assento, com a cabeça (dinâmica estudada, que de todo não logrou convencer o tribunal); confirmou que os air-bags não abriram, que saíram dos veículos, que passou a GNR e recusaram a ajuda que lhes foi oferecida; tiraram os veículos dali e pararam mais à frente; referiu que no seu veículo partiu o farolim traseiro, os encaixes do para-choques e este ficou torcido, tendo o veículo do arguido ficado com um buraco no para-choques do gancho do reboque dela; no Sábado (dia seguinte) falou com o mecânico, depois telefonou, nesse dia à tarde, ao arguido, disse-lhe que o arranjo seria de 150/200 euros e ele lhe respondeu que era muito, que se estava a aproveitar da situação, chamando-lhe oportunista; referiu também ter dito então ao arguido que lhe estava a doer a cervical e, na segunda-feira seguinte (por ter piorado no Domingo) foi ao hospital; referiu que ela na cervical não tinha nenhum problema antes; fez participação ao seguro, ficou parada 3 semanas ou 1 mês e o seguro de trabalho pagou-lhe;
- no teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas, sendo que:
- II, vizinho da assistente, contou que circulava em sentido contrário ao de arguido e assistente, constatou que, naquele sentido, seguido por estes, o trânsito seguia em “pára-arranca”, devagarinho, o ... embateu no carro da assistente e este avançou 2 ou 3 metros; estava a chuviscar, a via deles era a descer, não estando ainda os veículos no interior do viaduto; referiu ainda que os veículos não vinham com velocidade, vinham a circular devagarinho também já atrás do ... e apontou como motivo do embate “uma distracção”;
- JJ, também vizinha da assistente, não tendo presenciado o embate, referiu que ao passar viu os dois condutores (arguido e assistente) fora dos veículos, não parou, supondo que tivessem batido; chovia e o piso estava molhado; localizou o embate no viaduto e confirmou que o trânsito estava congestionado, quer para trás, quer para a frente do local do embate;
- KK, agente da PSP responsável pela investigação, nada presenciou ou sabia de relevo;
- GG, filha do arguido, atestou o seu habitual bom comportamento; sendo médica, elucidou sobre alguns aspectos relacionados com tal actividade, com a dor e parestesias, com os exames e o que neles é visível, bem como com a convicção – não técnica - que se forma das queixas do doente; aludiu ao “golpe do chicote” e às patologias pré-existentes da assistente;
- LL, agente de seguros do arguido, aludiu à ausência de sinistros do mesmo e ao que sabia a propósito deste acidente, que não presenciou; e,
- no teor dos documentos, incluindo exames, registos clínicos e fotografias, juntos aos autos, designadamente, de fls.35 a 37 (exame pericial do GML, efectuado em 22-8-23), 55 e s. (participação amigável de acidente, elaborada pela segurada, MM, e assinada também pela arguida – cfr.também fls.89), 73 a 89 (rics e docs. relativos aos veículos), 130 a 133, 139 a 146 (= 200v. a 203 - relatório de avaliação do dano corporal no âmbito do direito civil, datado de 8-2-24), 176 (= 184 – foto da traseira do veículo embatido), 177 (183 - crc), 185 a 192 (fotos do estado da frente do veículo que embateu e do veículo embatido), 204 a 206 (registo do episódio de urgência de 17-7-23), 206 v. a 218 (registos do hospital particular, da “...”, da seguradora e certificado de incapacidade), 218 v. a 242 (IRS e recibos), 242 v a 246 (relatório de peritagem), 248 v. a 266 (registos da ULS...), 268 a 279 (IRS e recibos), 285 a 339 (registos da USF) e 341 e s. (registo do episódio de urgência de 17-7-23 e dos relatórios das TAC então efectuadas);
- ao teor dos documentos indicados acresce ainda, de forma significativa, o teor dos esclarecimentos prestados pela Srª. Perita Médica, Drª. FF, que examinou a assistente e elaborou o relatório de exame do GML de fls.35 a 37, a qual esclareceu sobre o exame efectuado, concluindo que a cervicalgia que indicou no relatório, correspondendo a um sintoma subjectivo (sintoma referido pela examinada), era compatível com a dinâmica do evento que lhe foi relatado, sendo os tempos médios indicados os compatíveis com o dito evento e o relato feito; confirmou que, dos registos clínicos que visualizou resultou que não era objectivável nenhuma lesão e, do exame físico, a palpação, só havia a referir a dita dor/cervicalgia manifestada (mencionando que a pessoa é livre de indicar as queixas que sente); referiu que a cervicalgia (dor na região cervical) pode não se sentir de imediato, pode demorar horas, mas também referiu não ser normal que surja 3 dias depois; aludiu ao “movimento de chicote cervical”, relacionado com embates ou acidentes, que depende da maior ou menor velocidade do embate, da alta ou baixa cinética, sendo que, no caso, seria de baixa cinética; referiu que, aquando do exame que efectuou só sabia do que lhe relatou a sinistrada e da antecedente patologia lombar; mas, posta perante, designadamente, a pré-existência de hérnia discal em C5-C6, referida no relatório da TAC efectuada (cfr. fls.255 v. e 342), afirmou que não atendeu a tal hérnia, por não estar referida no registo a que teve acesso – cfr. fls.204 -, afirmando que a cervicalgia que mencionou, sendo compatível com o acidente, também pode ser derivada da hérnia discal (antecedente que desconhecia à data do exame efectuado).
Tais declarações de arguido e assistente, aliadas ao teor dos depoimentos indicados, conjugados todos com o que de objectivo se extrai e visualiza dos documentos e fotografias juntos, bem como com os esclarecimentos prestados pela Srª. Perita Médica, todos analisados e valorados em termos de normalidade e segundo as regras de experiência comum, considerando o sentido descendente da via, a circunstância de seguirem em fila (desde local anterior ao do embate, em “pára-arranca”, circulando assim a baixa velocidade, como mesmo as testemunhas II e JJ afirmaram), estando o piso molhado e chuviscando, tudo ainda aliado aos pequenos estragos verificados nos veículos (visualizados nas fotos juntas – sendo certo que o único estrago do veículo do arguido decorre da circunstância do gancho de reboque do veículo conduzido pela assistente se encontrar saliente, o que também não deveria suceder), e ao facto de a assistente apenas ter ido à urgência 3 dias depois do acidente (e, diga-se, depois de ter contactado com o arguido no sábado anterior, referindo-lhe o valor que pretendia para reparação dos danos e que o mesmo não aceitou, apelidando-a de oportunista, o que, como decorre das suas declarações e postura em audiência, também a terá então melindrado), levaram o tribunal a convencer-se positivamente quanto à forma como ocorreu o acidente, à sua dinâmica e aos demais factos que, assim, se tiveram como apurados.
No que concerne aos factos não provados, para além do que já decorre do que supra se disse, teve o tribunal em consideração a ausência de prova produzida em audiência capaz de, de forma segura e sem subsistência de dúvidas, os puder sustentar.
É que, para além do embate ter sido de muito baixa intensidade, como decorre da sua dinâmica e dos danos apresentados pelos veículos, mormente quanto às alegadas dores/cervicalgias referidas pela assistente, atendeu o tribunal, para as desconsiderar como decorrentes do embate, o que consta da conjugação de toda a documentação clínica e exames juntos, bem como dos esclarecimentos prestados pela perita médica. De facto, como a mesma referiu, as dores, no caso, cervicalgias, configurando um sintoma subjectivo, não pode ter-se, dizemos nós, como um juízo técnico objectivável e subtraído à livre apreciação do julgador. Aliás, que assim é decorre da própria circunstância da perita referir que a dor verbalizada se teve, apenas (voltamos a dizer nós), como compatível com a dinâmica do evento que lhe foi relatado e não com qualquer dado objectivável resultante de exames efectuados, tanto mais, que, posta perante o conhecimento da pré-existência de hérnia cervical – objectivada no relatório da TAC -, conclui que, afinal, a cervicalgia correspondente à queixa da assistente é, também, compatível com tal hérnia.
E a isto acresce ainda que, analisada a documentação junta, para além dos relatórios das TAC efectuadas, também se constata que a assistente não referiu, aquando dos exames a que foi submetida (cfr. fls.35 a 37 e 139 a 146), qualquer antecedente patológico ou traumático relevante (que omitiu ou desconhecia), o que não deixou - também o Sr.Perito que elaborou o relatório de avaliação de fls.139 a 146 -, mesmo assim, de levar a que consignasse, que “não se exclui a pré-existência do dano corporal ou de uma causa estranha relativamente ao traumatismo, sendo admissível agravamento de doença prévia” (cfr.fls.143), referindo-se ainda, no cálculo de fls.145, “Cervical: agravamento de artrose prévia”, ou seja, face a este quadro, séria fica a dúvida sobre se, derivado do embate, a assistente sentiu alguma dor, alguma cervicalgia (ou, antes, se a mesma era já existente, ou ainda se manifestou, de forma mais acentuada, por qualquer motivo – queremos crer de saúde -, que se desconhece, nos dias seguintes que, após o embate, antecederam a sua ida à urgência).
O tribunal desconsiderou ainda as alegações constantes da acusação e da contestação conclusivas ou que encerram conceitos jurídicos.
*
*
Fundamentação de Direito:

Vem o arguido acusado por factos susceptíveis de o constituírem na prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts.148º, nº.1 e 69º, nº.1, al.a) do C.P. (em concurso aparente com as contra-ordenações, p. e p. pelos arts.3º, nº.2, 18º, nºs.1 e 4, 25º, nºs.1, al.j) e m) e 2, todos do C.E.).
É, pois, em face do circunstancialismo fáctico apurado e descrito supra que se deverá proceder à subsunção jurídico-penal da conduta do arguido, para se aquilatar e concluir pela imputação ou não ao mesmo do crime aludido.
Cumprirá analisar se a conduta do arguido se integra na previsão legal do crime p. e p. pelo art.148º, nº.1 do C.P., segundo o qual “Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Atendendo à tipicidade do crime de ofensa à integridade física por negligência, prevista no supra cit. art.148º, nº.1, e à estrutura própria que se vem desenhando para os crimes negligentes em geral, haverá que averiguar, para além do mais, se a conduta descrita do arguido integra a violação de um dever objectivo de cuidado, imposto, nomeadamente, pelas normas estradais do C.E..
(…)
Ora, tendo em conta a supra descrita factualidade, podemos concluir, desde logo e em primeira linha, que a conduta do arguido viola as normas estradais constantes dos arts.18º, nº.1 e 24º, nº.1 do C.E., pois que o arguido não cuidou de manter a distância necessária do veículo que o precedia e fazer parar a marcha do que conduzia no espaço que dispunha à sua frente, sem embater, como embateu, no “SE”, conduzido pela assistente.
Assim, a conduta do arguido, violou o dever objectivo de cuidado imposto nomeadamente pelos referidos preceitos legais, os quais existiam por ser previsível que, naquelas circunstâncias, pudesse resultar perigo para a segurança dos demais utentes da via.
Por outro lado, a verificação do resultado, no caso presente, a lesão do bem jurídico “integridade física”, só poderá ser imputado ao arguido se entre a actuação deste e aquele resultado se verificar um nexo causal, aferido nos termos do art.10º, nº.1 do C.P..
Ora, quanto a este aspecto essencial, sendo certo que foi a conduta violadora do arguido que deu causa ao embate no veículo “SE”, não podemos de igual forma concluir quanto a ter sido a sua conduta que, adequada e necessariamente, deu causa às dores/cervicalgias manifestadas pela assistente em 17-7-23 e 22-8-23 (3 e 39 dias após o embate, respectivamente – cfr. supra 13. e 14.).
Na verdade, analisada a dinâmica do acidente, as circunstâncias do embate entre o veículo do arguido e aquele “SE”, não podemos concluir que fosse previsível para o arguido que, na sequência da sua conduta, se fosse verificar (ou sequer se tenha verificado), aquele resultado (as dores que a assistente, dias depois, veio a manifestar).
Como se refere no Ac.RE, de 29-4-14 (in www.dgsi.pt): “A existência de nexo causal entre a acção ou omissão do agente e o resultado produzido, se é condição necessária da imputação objectiva, não o é suficientemente; é ainda necessário que o evento seja objectivamente previsível como consequência da violação do dever objectivo de cuidado, ou seja, da diligência objectiva, diligência que toma, em relação a cada espécie de crime, o sentido do cuidado exigido para evitar o mal desse crime.
E escreve-se no Ac.RC, de 10-2-10 (no mesmo sítio): “Nos crimes de resultado, entre a acção e o resultado deve mediar uma relação de causalidade, ou seja, uma relação que permita, no âmbito objectivo, a imputação do resultado produzido ao autor da conduta que o causou.
(…) A conduta do agente, ainda que violadora de normas de cuidado, pode não ser causal relativamente ao resultado, se se interpuser uma outra conduta ou um outro facto, esses sim causadores directos daquele”.
A propósito dos crimes negligentes sumariasse ainda no Ac.RP de 22-3-17 (também no sítio dos demais www.dgsi.pt): “I – Para que ocorra crime em sede de tipo de ilícito negligente é necessário:
- a violação de um dever objectivo de cuidado (de origem legal autónoma, ou derivar de certos usos e costumes ou da experiencia comum);
- a produção de um resultado típico
- a imputação objectiva do resultado à acção (a violação do dever de cuidado tem de ser causa adequada do resultado, sendo-o quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, segundo a experiência normal, for idóneo a produzir aquele resultado que é uma consequência normal e típica daquela acção)
- a imputação subjectiva ou previsibilidade e evitabilidade do resultado, tendo em conta o homem médio colocado naquelas circunstâncias concretas e segundo a experiencia normal.
II – Para o preenchimento do tipo de ilícito negligente não basta que se verifique o resultado e que se verifique a violação do dever de cuidado, por ser imprescindível a imputação objectiva do resultado, sendo que entre a conduta lesiva (acção ou omissão) e o resultado tem de existir um nexo causal concreto.
III – Mesmo que exista violação do dever objectivo de cuidado, não se pode imputar a responsabilidade ao agente se a norma de onde esse dever de cuidado emanava não tinha por finalidade evitar resultados como o produzido”.
Vejam-se ainda, entre outros, os Acs. RE, de 5-6-18 e da RP, de 22-4-15 e de 4-10-06 (consultados também in www.dgsi.pt).
Assim, tomando em consideração o exarado, face às circunstâncias apuradas, não era previsível que à conduta do arguido se sucedessem as queixas da assistente supra descritas (relacionáveis, compatíveis, também com outra causalidade – cfr. supra 15. e 16.), pelo que não se pode dizer que foi a conduta do arguido que determinou, de forma directa, necessária e adequada a ocorrência daquelas queixas.
Em face do que fica exposto, obvia flui a conclusão de que a conduta do arguido não integra a tipicidade objectiva do crime de ofensa à integridade física por negligência de que vinha acusado, pelo que, sem mais, se impõe a sua absolvição.
Um pequeno parêntesis para acrescentar ainda que, mesmo que dos factos apurados pudesse resultar que foi a conduta do arguido, a sua falta de cuidado na produção do embate, a causar as dores/cervicalgias apresentadas pela assistente (dias depois) – o que não se apurou -, tal resultado, por insignificante, não poderia, em nosso entender e salvo o sempre devido respeito por opinião diversa, levar a concluir pela imputação ao arguido do crime de que vinha acusado.
É que, como se refere no Ac.R.P. de 19-10-22, in www.dgsi.pt – ainda que a propósito do tipo de crime doloso, do art.143º do C.P. - citando Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2ª Ed., pág. 299, (…) “A ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não podem ser insignificantes. A exclusão das lesões bagatelares do âmbito deste tipo legal de crime é imposta por critérios de natureza constitucional, como o princípio da dignidade do bem jurídico protegido e da necessidade da intervenção do direito penal e pelo próprio teor literal do tipo, uma vez que não se poderá considerar existente uma ofensa ao corpo ou à saúde, onde a lesão seja insignificante ou irrelevante. A relevância da lesão é avaliada por critérios objetivos, de acordo com um padrão objetivo médio” (cfr. também, a propósito, entre outros, Acs. R.E. de 28-6-23, R.C. de 20-3-24, e R.L., de 15-2-17, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
E, se assim é nos casos do art.143º, doloso, dizemos nós, não deve, pelo menos na mesma medida (sendo certo que o crime negligente é, por natureza, sempre menos grave do que o doloso), atribuir-se dignidade penal a condutas negligentes que, por hipótese (in casu), gerem lesões bagatelares, insignificantes ou irrelevantes.
(…)”.

II.2- Apreciação do recurso

Insurge-se a assistente/recorrente contra a sentença recorrida, que procedeu à absolvição do arguido do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, de que vinha acusado de ter cometido na sua pessoa.
Alega, em síntese, que os factos vertidos na factualidade não provada e que ora impugna foram incorretamente julgados e, como tal, devem ser considerados provados, tendo, na sua ótica, o tribunal a quo incorrido em erro notório na apreciação da prova.
 E, para tanto, chama à colação prova documental e pericial junta aos autos e os esclarecimentos prestados pela perita médica em audiência de julgamento.
Invoca ter o tribunal a quo violado, ou feito incorreta interpretação, do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, in fine do Cód. Proc. Penal, e art.ºs 148.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal.
Termina propugnando pela condenação do arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples [cremos que quererá dizer ofensa à integridade física por negligência], p. e p. pelo art.º 148.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pessoa da Recorrente.

Vejamos:
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

In casu:
A assistente/recorrente vem invocar que a sentença proferida pelo tribunal a quo padece do vício do erro notório na apreciação da prova, ínsito no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal. 
Mas, na verdade, analisadas quer as conclusões quer a motivação do recurso, constata-se que a mesma confunde o erro de julgamento com o apontado vício de erro notório na apreciação da prova.
Com efeito:
A recorrente impugna factualidade não provada, mas não se cinge ao texto da decisão recorrida, tendo antes chamando à colação, os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pela Sr.ª Dr.ª perita médica e prova documental e pericial junta aos autos e contestou a forma como o tribunal a quo apreciou a referida prova, que, na sua ótica, se afigura errada, ou seja, impugna a matéria de facto com base no erro de julgamento, a que alude o artigo 412.º do Código de Processo Penal, preceito legal este também por si invocado.

Na verdade, conforme decorre do artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”:
“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”

Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mas conforme se referiu supra, tais vícios devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
E, como é sabido, o invocado vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido[4].
“Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”[5].
Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo”.[6]
Assim sendo, só nos resta concluir pela inexistência do invocado vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, pois do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal a quo tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis, sendo aqui de realçar, que o próprio relatório pericial não conduz à conclusão retirada pela assistente/recorrente, como melhor se explicará infra, aquando da análise da questão dos autos à luz da impugnação ampla da matéria de facto, também efetuada no presente recurso.
Improcede, portanto, a pretendida alteração da matéria de facto à luz do invocado vício decisório que aqui não se verifica, nem, diga-se, se verifica a existência de qualquer um dos outros vícios ínsitos no artigo 410.º do Código de Processo Penal que, por serem de conhecimento oficioso, aqui importasse declarar. 

Analisemos, então, a impugnação da matéria de facto à luz do invocado artigo 412.º do Código de Processo Penal, ante a impugnação efetuada pela assistente/recorrente com recurso aos esclarecimentos da Sr.ª Dr.ª perita médica e da prova documental e pericial junta aos autos que aqui traz à colação.
Como é sabido, no domínio da impugnação ampla da matéria de facto visa-se uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[7]
Não se poderá, no entanto, esquecer que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Germano Marques da Silva[8] que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[9], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros[10].
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo [cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal].
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação [não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos], pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes [n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal][11].
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] que impõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens].
“Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso]. [12]

In casu, analisadas as conclusões do recurso constata-se que a assistente/recorrente indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as passagens/segmentos dos esclarecimentos prestados pela Sr.ª Dr.ª perita médica em audiência de julgamento, bem como os documentos/perícia em que fundamenta a sua impugnação, e que, na sua ótica, impõe decisão diversa da recorrida quanto à factualidade questionda.
Porém, o tribunal ouviu a gravação dos esclarecimentos prestados pela Sr.ª Dr.ª perita médica e analisou a prova documental/pericial trazida à colação pela assistente/recorrente e, de forma alguma se extrai que tais meios de prova imponham uma decisão diversa daquela que foi proferida pelo tribunal a quo.
Analisada a fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, constata-se que a Mm.ª Juíza a quo explicou através de um processo lógico, racional e razoável da formação da sua convicção (no caso de falta dela) porque considerou não ter sido efetuada prova segura quanto aos factos que ora se pretendem ver dados como provados, nos quais se inclui a alegada existência do nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano.
E, diga-se, fê-lo com acerto, embora, como passaremos a expor, entendamos que a assertividade da sua decisão se deva a razões não totalmente coincidentes com as constantes da motivação da decisão recorrida.
Expliquemos porquê.

A recorrente insurge-se contra o facto de o tribunal a quo ter considerado:
“- Não provado que, como consequência directa e necessária da força do embate, a assistente tenha sofrido dores, designadamente, à apalpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita, e que tais lesões lhe tenham determinado um período de 40 (quarenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, por igual período, sem consequências permanentes;
- Não provado que a condutora e ocupante do veículo ... ..-..-SE tenha sofrido lesões corporais e que estas tenham ficado a dever-se à colisão dos veículos, à ligeireza e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir;
- Não provado que o arguido soubesse ser possível que a sua conducta causasse, como causou, lesões físicas a condutora que ali também conduzia o veículo.” [sublinhado e negrito nossos].
Grosso modo, por ter absolvido o arguido/recorrido baseado no seu entendimento de não existir um nexo causal entre o acontecimento que deu origem aos presentes autos e as consequências que alegadamente do mesmo resultaram para a recorrente, contrariando [na ótica da recorrente] o entendimento de profissionais da área da saúde, todos eles médicos de profissão, que estão plenamente convictos de que as lesões sofridas pela Recorrente são consequência direta e necessária do acidente de viação que deu origem aos presentes autos e carrearam para os autos informação científica que permite sustentar tal tese.
E, para sustentar o alegado erro de julgamento em que incorreu o tribunal a quo nesta matéria, a assistente/recorrente indica os seguintes meios de prova:
i. episódio de urgência n.º ...74 - constante de fls. 248.v a 266 dos autos;
ii. registos clínicos da Recorrente existentes no Hospital ..., na Clínica ... e na Companhia de Seguros EMP01..., PLC – EMP02..., S.A – constantes de fls. 206v. a 218 dos autos;
iii. relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito civil elaborado pelo Sr. Dr. EE, Perito Médico, datado de 08-02-2024 - constante de fls. 139. a 146. dos autos;
iv. relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito penal elaborado pelo Sra. Dra. FF, Perita Médica, datado de 15-10-2023 - constante de fls. 35. a 37. dos autos; e
v. depoimento prestado pela Sra. Dra. FF, Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024 - constante do ficheiro de gravação de prova denominado “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, nos períodos compreendidos entre os minutos [05:35 e 06:03], [08:06 e 10:00], [13:04 e 13:28], [22:59 e 23:08] e [27:52 e 29:40].
Porém, não lhe assiste qualquer razão.
Cumpre, antes de mais, salientar que não se esquece que do n.º 1, do normativo do artigo 163.º do Código de Processo Penal decorre que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à apreciação do julgador [pese embora, ante o exposto no seu n.º 2, tal presunção seja elidível na medida em que pode ser afastada quando a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, desde que seja (devidamente) fundamentada essa divergência], porém, é preciso também ter presente que dos elementos de prova trazidos à colação pela assistente/recorrente em sustento da sua pretensão apenas o relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito penal elaborado pelo Sra. Dra. FF, Perita Médica, datado de 15-10-2023 - constante de fls. 35. a 37. dos autos – constitui prova pericial, contemplada no invocado preceito legal, não constituindo prova pericial, com o valor reforçado que lhe é próprio, as demais provas documentais trazidas à colação pela assistente/recorrente, ainda que subscritas por profissionais de saúde - médicos -, que pese embora não constituam meios de prova proibido, não têm o valor da referida perícia e encontram-se sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127º do Código de Processo Penal[13].
E estamos a falar, inclusive, do relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito civil elaborado pelo Sr. Dr. EE, porquanto a especial relevância do juízo científico que se vê refletida no artigo 163.º do Código de Processo Penal está necessariamente relacionada com a especial credibilidade da perícia decorrente da sua natureza oficial [Artigo 152.º do Código de Processo Penal: 1 - A perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, ou, na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa.], possuindo a prova pericial no âmbito do processo penal de regulamentação própria [artigos 151.º a 163.º do Código de Processo Penal], e o relatório em causa, elaborado fora do GML e no âmbito do direito civil, transcende essa regulamentação.
Traçadas estas breves notas, ainda que tais preceitos legais nem sequer tenham sido abordados na peça recursiva, expliquemos, então, porque razão entendemos que os elementos de prova trazidos à colação pela assistente/recorrente não são suscetíveis de impor decisão diversa daquela que foi tomada pelo tribunal a quo no que se reporta à factualidade impugnada.
Do referido episódio de urgência n.º ...74 - constante de fls. 253 verso [e não de fls. 248.v a 266 dos autos, como o refere a assistente/recorrente, porquanto ali se encontra documentação respeitante, designadamente, a diversos documentos clínicos, diários clínicos de consulta externa e diversos episódios de urgência, partes deles, aliás, anteriores à data dos factos sem qualquer relação com a situação vertida nos presentes autos], apenas se extrai que a 17-07-2023 [ou seja, 3 dias depois do acidente a que se reportam os presentes autos] a assistente/recorrente foi assistida nos serviços de urgência da ULS..., onde lhe foi diagnosticada cervicalgia irradiada para o trapézio direito e dor à palpação das apófises espinhosas da coluna cervical e dorso lombar, nada mais do que isso, factualidade essa, aliás, considerada provada no ponto 13. da sentença recorrida [“13- Em 17 de Julho de 2023, pelas 10.08h, a assistente recorreu ao serviço de urgência da ULS..., onde foi assistida, apresentando cervicalgia irradiada para o trapézio direito e dor à palpação das apófises espinhosas da coluna cervical e dorso lombar” – sublinhado e negrito nosso], sendo certo que em momento algum o referido médico Dr. BB, que assistiu a assistente/recorrente, refere que tal sintomatologia seja decorrente do acidente de viação a que se reportam os presentes autos, ocorrido três dias antes [concretamente a 14-07-2023], como o parece defender a assistente/recorrente.
 
Dos registos clínicos da Recorrente existentes no Hospital ..., na Clínica ... e na Companhia de Seguros EMP01..., PLC – EMP02..., S.A – constantes de fls. 206v. a 218 dos autos, apenas decorre que os referidos médicos Dr.ª CC e Dr. DD consultaram a assistente/recorrente nos referidos Hospital/Clínica, no âmbito de um processo de  natureza não penal, em que o acidente aqui em causa foi considerado acidente de trabalho; que lhe foi diagnosticada cervicalgia; que lhe foi prescrita medicação e que lhe foi concedida incapacidade temporária absoluta até ao dia 07-08-2023, data em que lhe foi dada alta sem incapacidade. Nada mais do que isso.
Na verdade, o facto de o acidente ter sido considerado também um acidente de trabalho e até já lhe ter sido paga uma indemnização pela seguradora relativamente à sua ITA [no âmbito de um processo em que, segundo a assistente/recorrente se encontrará, ainda, em curso] transcende o objeto dos presentes autos e, como é sabido, as regras do ónus da prova naquele processo e no presente são bem diferentes, parecendo a assistente/recorrente esquecer que nos presentes autos vigora o princípio in dubio pro reo, que, como melhor se explicará infra, impedia o tribunal a quo de considerar a factualidade ora impugnada como provada.

Do relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito civil elaborado pelo Sr. Dr. EE, Perito Médico, datado de 08-02-2024 - constante de fls. 139. a 146. dos autos, de facto decorre que “os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões e não se excluí a pré-existência do dano corporal ou de uma causa estranha relativamente ao traumatismo, sendo admissível agravamento de doença prévia”, tendo conferido àquela um período de repercussão temporária na atividade profissional total, fixável num período de 24 (vinte e quatro) dias e até considerou a existência de um dano permanente, respeitante a sequela  na cervical: agravamento de artrose prévia, tendo arbitrado tal desvalorização em 3 pontos.
Porém, como facilmente se compreenderá, tal relatório médico não é suscetível de impor decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo, não só porque se reporta a uma avaliação de dano corporal no âmbito do direito civil [e não do direito penal, cujos parâmetros divergem, como bem o reconhece a assistente/recorrente no requerimento junto a fls. 138 em que junta o relatório médico em questão], avaliação essa não efetuada por uma entidade independente, como o é o Gabinete Médico Legal; como é frontalmente contrariado pelo relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal junto aos presentes autos a fls. 35 a 37, designadamente no que se refere à existência de consequências permanentes, que neste último não são reconhecidas.
Aliás, o seu teor só reforça a necessidade de recurso ao princípio do in dubio pro reo, porquanto o dano permanente a que ali se alude - sequela na cervical – [não reconhecido, relembre-se no relatório pericial] decorre de agravamento de artrose prévia, ou seja, de uma patologia de natureza degenerativa, pré-existente, portanto, ao acidente.  

E, finalmente, do invocado relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito penal elaborado pelo Sra. Dra. FF, Perita Médica, datado de 15-10-2023 - constante de fls. 35. a 37. dos autos e do depoimento prestado pela Sra. Dra. FF, Perita Médica, em sede de audiência de discussão e julgamento, no dia 04-12-2024 - constante do ficheiro de gravação de prova denominado “Diligencia_767-23.8PBVCT_2024-12-04_10-51-50.mp3”, nos períodos compreendidos entre os minutos [05:35 e 06:03], [08:06 e 10:00], [13:04 e 13:28], [22:59 e 23:08] e [27:52 e 29:40], também não se retira, de todo, a conclusão propugnada pela assistente/recorrente.
Com efeito, decorre, de facto, do referido relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito penal elaborado pelo Sra. Dra. FF, Perita Médica, datado de 15-10-2023 - constante de fls. 35. a 37. dos autos -, que Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano”, que “As lesões atrás referidas [relembre-se: dor à palpação da região cervical com extensão à região da omoplata direita] terão resultado de traumatismo de natureza contundente com o que é compatível com a informação [leia-se com a colisão entre dois veículos de quatro rodas] e que “Tais lesões determinarão em condições normais, 40 dias para a cura: com afetação parcial da capacidade de trabalho geral (40 dias) e com a afetação da capacidade de trabalho profissional (40 dias).” [sublinhados e negritos nossos]. Porém, não é menos verdade que do mesmo relatório pericial decorre que essa conclusão é alcançada com base nos elementos disponíveis e, como esclareceu, em audiência de julgamento, a perita médica Dr.ª FF, subscritora do relatório pericial em apreço [prestou esclarecimentos na sessão de 04-12-2024], a mesma não teve acesso ao relatório da TAC da coluna cervical que foi efetuado à assistente/recorrente [min. 17.22].
E, confrontada com o teor do mesmo [ou seja, com o teor do relatório da referida TAC da coluna cervical] - de onde decorre a existência de “… volumosa hérnia discal mole centrolateral à direita.”, - esclareceu que o médico de urgência não considerou que essa hérnia fosse do acidente [min. 30.29]; esclareceu que uma hérnia provoca dor na cervical [min. 30.41] e admitiu que a cervicalgia em questão tanto podia ser decorrente da referida hérnia como do acidente [min. 30.54 e ss.].
Ou seja, além do relatório pericial em questão apenas permitir admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, quando foi dado a conhecer à Sr.ª Perita Médica Dr.ª FF a existência da mencionada hérnia na cervical, ao contrário do defendido pela assistente/recorrente, esta não consolidou a conclusão por si vertida no relatório de exame médico de avaliação de dano corporal no âmbito do direito penal, mas sim admitiu uma outra hipótese a par daquela, ou seja, de a cervicalgia também poder ser decorrente da mencionada hérnia diagnosticada à assistente/recorrente na sua coluna cervical.
Na verdade, não está em causa o facto de a cervicalgia não ser objetivável, não constituir uma doença, mas sim um sintoma, uma queixa do paciente [como explicou a Sr.ª Dr.ª perita médica nos esclarecimentos que prestou em audiência de julgamento]; e também não está em causa que esta tenha determinado os 40 dias de incapacidade aludidos.
Também não está em causa que essa queixa - cervicalgia – seja compatível com o evento ocorrido, ou seja, com o acidente de viação de que foi interveniente a vítima, ou mesmo com o movimento de chicote cervical que alegadamente possa ter ocorrido, como decorre das declarações da mencionada Sr.ª Dr.ª perita médica nos esclarecimentos que prestou ao min 13.12.
Acontece, porém, que essa cervicalgia também é compatível com a hérnia cervical diagnosticada, como o admitiu a Sr.ª Dr.ª Perita Médica em audiência de julgamento, após lhe ter sido dado a conhecer o relatório da TAC efetuada à coluna cervical, hérnia essa que, segundo o próprio documento respeitante ao episódio de urgência trazido à colação pela assistente/recorrente, não constitui lesão traumática aguda decorrente do acidente.
Note-se, aliás, que nem sequer a assistente/recorrente deu a conhecer as suas patologias à Sr.ª Dr.ª perita médica e, tal como bem o alerta o arguido/recorrido na resposta ao recurso, se poderíamos ser levados a pensar que a assistente/recorrente desconhecia a existência da sua hérnia cervical, o mesmo já não ocorre relativamente às persistentes dores nas costas e no ombro direito que tem vindo a sofrer desde longa data, de que são exemplo os seguintes episódios constantes dos registos clínicos de consulta juntos aos autos respetivamente a fls. 312 verso, 314 verso, 316 verso, 327 e 327 verso:
® 05-04-2021: “SINTOMA/QUEIXA DO OMBRO
“Mantém omalgia direita … ” ;
® 10-02-2021: “SINTOMA/QUEIXA DO OMBRO + SINTOMA/QUEIXA DO BRAÇO”.
® 02-11-2020: “Pede contacto por dor nas costas e braço – não atende 18.25”.
® 24-10-2017: “ECOGRAFIA PARTES MOLES (Direito): ANORMAL – Múltiplas imagens de densidade cálcia em relação com alterações de tendinose no supra espinhoso”.
® 30-08-2017: “Dor no antebraço e ombro direito.
…Dor a palpação do ombro direito …”. [sublinhado e negrito nossos].
Assim sendo, concatenados todos os elementos de prova ante analisados, em conjugação com o passado clínico da assistente/recorrente, designadamente decorrente dos registos clínicos ora indicados, omitido, aliás, por esta aquando da perícia a que foi sujeita nos presentes autos [cfr. decorre do respetivo relatório pericial na parte respeitante aos antecedentes pessoais: “Não refere antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço.”], não vemos qualquer razão para censurar a decisão proferida pelo tribunal a quo que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, só poderia ter considerado a factualidade ora impugnada como não provada.
E não se defenda que a Sra. Perita Médica no seu depoimento, já no que concerne ao facto da Recorrente ter antecedentes de patologia degenerativa da coluna lombar, que estes antecedentes não afetam as conclusões a que chegou no relatório supra mencionado, porquanto o que aqui está em causa não são os antecedentes de que padecia na região lombar, mas sim na cervical e esta é uma evidência detetada na TAC à cervical que não foi considerada sequer pelo médico ortopedista do serviço de urgência do dia 17-07-2023 como sendo uma lesão traumática aguda decorrente do acidente [min 30.31].
Diga-se, aliás, que nem a própria assistente/recorrente é capaz de categoricamente afirmar que a cervicalgia que lhe foi diagnosticada seja consequência direta e necessária do acidente em questão, de que é exemplo o por si vertido em 8.º das suas conclusões que aqui se relembra: “Todos os médicos acima mencionados configuram como tese possível e válida que as dores sofridas pela Recorrente tenham origem e consequência direta e necessária no acidente de viação que deu origem aos presentes autos e admitem a existência de nexo de causalidade entre o evento ocorrido e o dano sofrido por aquela, tendo conferido à mesma dias de cura, com afetação parcial da capacidade de trabalho, e ainda afetação da capacidade de trabalho profissional.”.

Note-se, que segundo as próprias palavras da assistente/recorrente “todos os médicos acima mencionados configuram como tese possível e válida que as dores sofridas pela Recorrente tenham origem e consequência direta e necessária no acidente de viação que deu origem aos presentes autos”. Todavia, como é consabido, um registo de possibilidades não se enquadra no rigor que é demandado em processo penal, pelo que o nexo de causalidade adequada entre os comportamentos violadores do dever de cuidado e a ofensa à integridade física  aqui em causa - cervicalgia - em termos de mera possibilidade, com recurso aos vocábulos “é compatível” e “permitem admitir”, a par de esclarecimentos prestados pela Sr.ª Dr.ª Perita Médica que, perante um fator que para si é novo, porque lhe é dado a conhecer apenas na audiência de julgamento - teor do relatório da referida TAC da coluna cervical, de onde decorre a existência de “… volumosa hérnia discal mole centrolateral à direita.”, admite a possibilidade dessa cervicalgia decorrer da referida hérnia ou do acidente,  sempre se revelaria insuficiente para permitir a imputação ao arguido do crime de ofensa à integridade física por negligência, como o pretende a assistente/recorrente.
Em suma, o que está em causa não é o facto de a assistente/recorrente padecer da apontada cervicalgia, nem que esta lhe tenha causado os mencionados dias de doença/incapacidade para o trabalho, mas sim se as apontadas lesões e respetivas consequências são ou não decorrentes do acidente de viação em apreço.
E, relativamente a esta concreta questão, ao contrário do defendido pela assistente/recorrente, o tribunal a quo não descartou a informação médica constante dos presentes autos, nem decidiu ao arrepio da mesma, pelo simples facto de que a prova documental e pericial em causa, analisada de forma concatenada com os próprios esclarecimentos da Sr.ª Dr.ª perita médica que elaborou o relatório pericial, não permite, de forma alguma, concluir, com a segurança que a lei exige no processo penal, que a lesão diagnosticada à assistente/recorrente - cervicalgia com extensão à região da omoplata direita - seja consequência direta e necessária do acidente a que se refere na factualidade provada.
Não existe, portanto, qualquer violação do disposto no apontado artigo 374.º, n.º 2, in fine do Código de Processo Penal, pois, ao contrário do argumentado pela assistente/recorrente, o tribunal a quo analisou criticamente a mencionada prova, ainda que essa análise não seja do agrado da assistente/recorrente.
E não se defenda que perante a factualidade assente vertida em 8., 9. e 10., relembre-se:
“8- O arguido sabia que, ao exercer a condução de um veículo, deve adequar a velocidade de modo a permitir-lhe fazer parar o veículo sem colidir, designadamente, com o que circule à sua frente;
9- O arguido tinha conhecimento e consciência dos deveres e normas de circulação rodoviária e, ao agir da forma descrita, fê-lo sem o cuidado que lhe era exigível, circulando de forma desatenta;
10- Actuou de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
deveria o tribunal a quo ter dado como provado que “O arguido sabia ser possível que a sua conducta causasse, como causou, lesões físicas a condutora que ali também conduzia o veículo.” porquanto o cerne da questão não se prende com o facto de o arguido saber ser possível que a sua conduta pudesse causar lesões físicas à condutora ora assistente/recorrente, mas sim que, de facto, as tenha causado.
A assistente/recorrente não concorda com a análise que a Mm.ª Juíza a quo fez da prova que aqui traz à colação em sustento da impugnação da matéria de facto. Porém, o Tribunal a quo explicitou, de forma lógica e ponderada, as razões da sua convicção ou falta dela, e explicou a análise que fez da prova pericial e documental junta aos autos e das declarações de esclarecimentos prestadas pela Sr.ª Dr.ª perita médica, bem como as razões de ter ficado com dúvidas [diga-se razoáveis, perante a análise que fizemos supra], o que impunha o recurso ao princípio in dubio pro reo e, consequentemente, dar-se os referidos factos como não provados. Com efeito, como corolário do princípio da presunção de inocência do arguido que decorre do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, tal princípio obriga a que, instalando-se e permanecendo a dúvida acerca de factos referentes ao objeto do processo, essa dúvida seja sempre desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à absolvição[14].
Na prática, traduz-se numa imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Não existe, portanto, qualquer razão para se proceder à alteração da matéria de facto impugnada que, como tal, se manterá intocada.
Inexiste, igualmente, a apontada violação dos artigos 148.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1 ambos do Código Penal, capaz de importar na propugnada condenação do arguido/recorrido pelo crime de ofensa à integridade física por negligência, porquanto a verificação de tal crime pressupunha que na sequência do embate descrito na factualidade provada, decorrente da também ali descrita conduta do arguido/recorrido, este tivesse ofendido o corpo ou a saúde da assistente/recorrente, o que, de todo, não decorre da factualidade provada, porquanto não resultou provado que a lesão ali descrita em 13. e 14. [dos factos provados] tenha sido decorrente do acidente de viação em apreço.
Aqui chegados, só nos resta concluir, portanto, pela improcedência do presente recurso, mantendo-se a decisão absolutória recorrida.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela assistente/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III anexa ao mesmo].
Notifique.
Guimarães, 10 de julho de 2025
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Os Juízes Desembargadores

Isilda Pinho [Relatora]
Bráulio Martins [1.º Adjunto]
Anabela Rocha [2.ª Adjunta]


[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..
[4] Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74.
[5] Acórdão do TRC de 24-04-2018, P. n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in www.dgsi.pt
[6] Acórdão do STJ, de 98-07-09, Proc. 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77.
[7] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt.
[8] In Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999.
[9] In “O caso Julgado Parcial”, 2002, pág. 37.
[10] Cfr, neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt
[11] Conforme acórdão do S.T.J, n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012.
[12] Acórdão do TRL, desta 5.ª Secção, datado de 16-11-2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5, in www.dgsi.pt
[13] Neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 03-04-2019, Processo n.º 38/17.9JAFAR.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, págs. 50 e 51.