Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
42/24.0T9VLN.G1
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
TÍTULO EMITIDO POR OUTRO ESTADO MEMBRO DA UNIÃO EUROPEIA
SUSPENSÃO E CASSAÇÃO DA CARTA DE CONDUÇÃO
CRIME/CONTRAORDENAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. A alegação da detenção pelo arguido/recorrente, aquando da prática dos factos por que responde, de um título de condução emitido pelo Reino de Espanha não cancelado é inócua para o efeito de afastar a tipicidade do artigo 3º do DL nº 2/98 de 3 de janeiro, porquanto, fruto da suspensão e cassação que havia sofrido naquele Estado, tal título não era sequer reconhecido em Portugal, ante o exposto na alínea a), do n.º2, do artigo 13.º do RLHC, e, diga-se, o próprio Estado de emissão já se pronunciou pela “perda definitiva do permisso”, o que impõe a conclusão pela inexistência de título capaz de legitimar a sua condução em Portugal e dita a integração da sua conduta no tipo criminal pelo qual veio a ser condenado e não a título meramente contraordenacional.
II. Exige o legislador, no n.º 8, do artigo 125.º do Código da Estrada, após as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 102-B/2020, de 09 de dezembro e 46/2022, de 12 de julho, como pressuposto da integração da conduta violadora do seu n.º 5 a título meramente contraordenacional, que o agente seja titular de licença válida e, na concreta situação dos presentes autos é o próprio Estado emissor do título de condução suspenso e cassado [e que, aqui se pretende ver reconhecido como válido], que nos diz que a pena de suspensão da carta de condução sofrida pelo arguido/recorrente, porque o foi por um período de duração superior a 2 anos, implica a “perda definitiva do permisso”, e que a situação dos autos contempla uma Pérdida de vigência del permisso de conduzir vehículos de motor y ciclomotores”, assim afastando, portanto, o pressuposto da existência de uma “licença válida”, suscetível de integração do tipo contraordenacional em apreço.
[sumário elaborado pela relatora]
Decisão Texto Integral:
Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 42/24.0T9VLN que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica de Valença, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em 10 de dezembro de 2024, foi proferida sentença condenatória, cujo dispositivo, no que ora releva, aqui se transcreve:
“(…)
Pelo exposto, este Tribunal decide:
- Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a multa global de 500,00€ (quinhentos euros).
(…)”.

I.2 Recurso da decisão

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“(…)
I. O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo – Sentença – que condenou o Arguido/Recorrente pela prática do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, porquanto entende o Recorrente que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova, extravasando e ultrapassando na sua apreciação as regras da experiência e livre convicção que lhe são permitidas pelo artigo 127.º CPP.
II. Terá, assim, por objecto, toda a matéria dada como provada nos pontos 3.4, 5., e 11., respeitantes à “II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO”, “A. Factos Provados”, o ponto “C. Motivação”, a respectiva matéria de direito constante da “III.FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO – A. Enquadramento Jurídico – Condução sem habilitação legal”), e ainda, “Da escolha e da medida concreta da pena”, todos constantes da Sentença proferida.
III. O Recorrente entende que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, incorreu em erro de julgamento em matéria de facto, assim como em erro notório da apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, errando igualmente, quanto ao direito aplicável ao caso em concreto.
IV. Nestes termos, e relativamente aos ponto 3., 4., 5, e 11. (dois últimos pontos: alegada condenação n.º P.PAB-...84/2018 e processo RAA-...04/2024) da fundamentação de facto, sempre se dirá que deverão, conforme se explanará, passar ao elenco da matéria de facto dada como não provada.
V. Para dar como provados os factos enumerados, o Tribunal a quo estribou a sua convicção na certidão de fls. 4 a 74 dos autos de processo físico, e também, no depoimento prestado pela testemunha BB, militar da G.N.R, não conferindo, neste segmento qualquer valoração às declarações prestadas pelo Arguido que referiu ao Tribunal ter apresentado uma carta de condução aquando a acção de fiscalização a que foi submetido naquele dia.
VI. No entanto, se revisitado o depoimento da testemunha, militar da G.N.R., BB [depoimento constante do ficheiro áudio, com início às 14:18 e fim às 14:27, no segmento de 00:09:02 a 00:08:11, e de 00:08:20 até 00:08:40, pelo mesmo foi referido não ter estado presente na acção de fiscalização, tendo sido apenas autuante na participação elaborada aquando o acidente de viação (a que corresponde o facto 2 da matéria de facto dada como provada), mais afirmando que se socorreu das informações dos colegas de trânsito que haviam feito a fiscalização ao Recorrente.
VII. Mas mais, a testemunha BB, quando questionado, afirmou não se recordar se foi apresentada alguma carta de condução ou se foi verificada a sua validade, remetendo, novamente, para os dados que tinham sido recolhidos pelos seus colegas da acção de fiscalização.
VIII. Todavia, se nos reportarmos à própria participação do acidente de viação, que consta dos autos de processo físico enquanto prova documental, alegadamente valorada pelo Tribunal a quo, (elaborado por esta testemunha, com os dados recolhidos pelos seus colegas, militares da G.N.R), verificamos que se encontra identificada uma carta de condução do Recorrente, bem como a respectiva validade.
IX. Logo, é entendimento do Recorrente que o Tribunal a quo não poderia dar como provados os factos que deu, considerando que a testemunha apresentada não esteve presente no acto da fiscalização, desconhecendo o sucedido, e porque, no próprio acto da fiscalização e subsequente participação do acidente de viação, é mencionado e transcrito pelos próprios militares da G.N.R. que o Arguido aqui Recorrente apresentou um título de condução válido, tanto que, nada consta nos autos a esse respeito.
X. Por tal motivo, entende o Recorrente que o Tribunal a quo não poderia ter efectuado o raciocínio que alcança para dar como provados os factos que deu, porque, em abono da verdade, não constam da prova produzida em sede de audiência de discussão em julgamento, nem resulta claro da documentação que se encontra junta aos autos de processo físico.
XI. Por outro lado, não consta do registo criminal do Arguido ora Recorrente o cancelamento de qualquer carta de condução, pelo que, salvo melhor opinião, tal informação seria determinante para a apreciação do ilícito em discussão nos autos.
XII. Por último, não poderá deixar de ser referido que é entendimento da jurisprudência que apenas incorrerá na prática do crime de condução sem habilitação legal que conduzir veículo com o respectivo título de condução cancelado, sendo que, tal cancelamento não é automático, carecendo de um acto e/ou decisão.
XIII. Porém, tanto assim não o foi que o Arguido possuía título, que foi apresentado no acto da fiscalização e que foi validado pelos próprios militares da G.N.R. que o aceitaram e, inclusive, colocaram a informação nos respectivos autos, não tendo sido por esse motivo que o Arguido se viu a par com a justiça.
XIV. Daqui decorre que, a matéria de facto dada como provada nos pontos 3., 4., 5., e 11, deverá passar a constar do elenco da matéria de facto dada como não provada, devendo igualmente, a respectiva matéria de direito ser adequada ao caso em concreto, considerando que, resulta demonstrado que foi apresentado às autoridades, pelo Arguido um título de condução, motivo pelo qual, deverá o Arguido ser absolvido pela prática do crime pelo qual foi condenado, sendo que, in casu, quanto muito, o Arguido aqui Recorrente deverá ser punido a título meramente contra-ordenacional.
XV. Tal é o que mui doutamente se requer a V.ª Ex.ªs, Exmo(as) Senhores(as) Juízes Desembargadores(as).

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.ªs Ex.ªs mui doutamente suprirão, desde já se requer seja concedido provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogar-se a Sentença na parte em que condenou o Arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, substituindo-a por outro que absolva o Arguido/Recorrente. (…)

Legislação violada: arts. 127.º do Código de Processo Penal (CPP); arts. 18.º, n.º 2, art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP); art. 11.º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH); art. 6.º, n.º 2 da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CUDH); artigo 3.º, n.ºs 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

(…)”.

I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, a Ex.mª Sr.ª Procuradora da República junto da 1.ª instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
1. O recurso interposto pelo recorrente, em nosso entender, não terá fundamento.
2. Com efeito, a Exma. Juiz fez uma correta e adequada apreciação e valoração da prova produzida na audiência e interpretação do direito.
3. A clareza da sentença recorrida dispensa quaisquer comentários pelo que, se dá por reproduzido o teor da mesma, com cuja argumentação jurídica se concorda.

Pelo que deverá ser mantida sentença ora recorrida, considerando-se o recurso ora interposto improcedente.
(…)”.

I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer no sentido da procedência parcial do recurso, embora se deva manter a condenação do arguido pela prática do crime porque foi condenado.

I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:

II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
® Impugnação da matéria de facto [erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento/violação do princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal].
® Erro quanto ao direito aplicável ao caso dos autos [errado enquadramento jurídico].

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“ (…)
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A. Factos Provados
1. No dia ../../2020, pelas 13h58m, o arguido conduzia o veículo automóvel, com a matrícula .... GCW, na A3, ao Km ..., neste concelho ..., quando foi intercetado por elementos da GNR que ali se encontravam em operação de fiscalização.
2. E, no mesmo dia ../../2020, pelas 14h30m, o arguido exercia a condução da referida viatura .... GCW, no IP ..., ao Km 108,800, no sentido Valença/..., neste concelho, quando embateu com a parte frontal da sua viatura na traseira do veículo automóvel, marca e modelo ..., de matrícula ..-VJ-.., à data conduzido por CC.
3. Á data, o arguido não possuía carta de condução, nem qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo.
4. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que não dispunha de título legal bastante para conduzir e que a condução de tal veículo na via pública só é permitida a quem se encontra legalmente habilitado para o efeito.
5. Sabia o arguido que tal conduta é proibida e punida por lei como crime.
6.O arguido encontra-se solteiro.
7. Encontra-se desempregado desde 2019.
8. Refere não ter atualmente rendimentos.
9. Vive só.
10. Tem ..., sendo licenciado em economia.
11. Do seu CRC constam as seguintes condenações:
- na pena de 2 anos de prisão suspensa por igual período de tempo, com regime de prova, pela prática em 16.06.2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº1 do C.P. e de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 154º, nº1, 2 e 3, do CE e art. 348º, nº2 do C.P. e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.e e p. art. 291º, nº1, nº1, al. a) do C.P., por decisão de 24.03.2023, transitada em julgado em 02.05.2022, no Pº154/20.0GBVLN, deste Tribunal;  
- no âmbito da condenação no PºPAB-...84/2018, que correu termos no Juizo Penal nº2 de Pontevedra, Espanha, o arguido foi condenado por sentença a 13.02.2019, transitada em julgado, pela prática do crime de recusa de se submeter a um controlo rodoviário, pela prática do crime de agressão ou ameaça a um representante da autoridade, pela prática do crime de condução sob o efeito do álcool ou de estupefaciente, nas penas de perda/suspensão do direito de voto ou de elegibilidade por 6 meses, na suspensão da carta de condução por 1 ano e 6 meses, na pena de 6 meses de prisão, na pena de suspensão da carta de condução por 3 anos e 6 dias, na pena de cassação da carta de condução, na pena de 70 dias de trabalho a favor da comunidade ;
- no âmbito da condenação no processo RAA-...04/2024, da seção 2ª da Audiência Provincial de Pontevedra, Espanha, o arguido foi condenado por decisão de 10.01.2024, transitada em julgado, pela prática do crime de conduzir sob o efeito do álcool ou de estupefacientes, na pena de suspensão da carta de condução, na pena de 6 meses de prisão, na pena de perda/suspensão do direito de voto ou de elegibilidade por 6 meses. 
*
B. Factos não provados
Inexistem.
*
C. Motivação
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados formou-se atendendo à prova carreada para os autos e produzida em sede de audiência de julgamento, valorada atendendo ao princípio da livre apreciação, consagrado no art. 127º do CPP.
A convicção do Tribunal fundou-se numa leitura crítica e conjugada de toda a prova produzida nestes autos, documental e testemunhal, segundo as regras da experiência e do senso comum.
O arguido prestou declarações admitido os factos constantes em 1 e 2 dos factos provados, no entanto refere que quando foi fiscalizado que tinha carta de condução, pois teve um processo em Espanha em que lhe retiraram pontos e a carta, mas que recorreu, não sabendo dizer qual o processo, nem em que data recorreu, mas apenas que foi um processo em Pontevedra.
Ora, as suas declarações no tocante à existência de título de condução aquando da data constante em 1 dos factos provados, não se afiguraram de credíveis pois não foram corroboradas por mais nenhum meio de prova, não tendo o arguido junto aos autos qualquer documento nesse sentido, ou produzido qualquer prova nesse sentido.
Acresce que ouvimos, BB, militar da GNR que prestou um depoimento coerente e consistente, sendo o participante do auto de acidente de viação junto aos autos, onde o arguido foi interveniente, pelo que o valoramos para prova dos factos constantes em 1 a 3 dos factos provados.
Atendemos ainda aos documentos juntos aos autos designadamente: na certidão de fls. 4 a 74.
Mais atendemos ao CRC que antecede.
Finalmente, no que importa ao elemento subjetivo da infração de condução sem habilitação legal, fez o Tribunal uso das regras da experiência comum. Com efeito, sendo o dolo um elemento da vida interior do agente, por isso que impossível de aprender diretamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem.
No caso, atenta a conduta do arguido, com um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjetivo há certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que evidente a vontade da prática dos factos. 
No que concerne às condições pessoais e sócio económicas do arguido atendemos às suas declarações que se nos afiguraram sinceras.
Não atendemos a factos conclusivos, de direito ou irrelevantes para estes autos.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A. Enquadramento Jurídico
Condução sem habilitação legal
O arguido vem acusado da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, nº2, do Decreto – Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, onde se determina, no seu n.º 1, que “quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias...”.
Já o seu n.º 2 determina que “se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias”.
No que respeita ao tipo objetivo, o crime em causa pressupõe que o agente se encontre a conduzir veículo a motor numa via pública, ou equiparada, sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada (cfr. artigos 121.º e segs.).
Ora, da prova apurada resulta que o arguido conduzia um veículo automóvel numa via pública e que o fazia sem ser titular de carta de condução ou documento equivalente.
Por esta razão a sua conduta integra o tipo objetivo do crime em causa.
Apurou-se ainda que o arguido agiu voluntária e conscientemente, ou seja, que sabia que só podia conduzir veículos na via pública desde que estivesse legalmente habilitado com a respetiva carta de condução e que tal conduta era punida por lei.
Encontram-se, assim, reunidos os elementos do dolo, consagrado no artigo 14.º do Código Penal: o elemento intelectual (o conhecimento das circunstâncias de facto) e o elemento volitivo (a decisão de praticar determinado facto).
Não existe qualquer causa de justificação que torne a conduta lícita.
O arguido não é inimputável e tinha plena consciência da ilicitude do facto, não orientando, culposamente, a sua conduta por aquela avaliação.
Nesta conformidade, conclui-se que o arguido cometeu o crime de que vinha acusado, verificando-se os elementos de que depende a aplicação de uma pena.
(…)”.

II.2- Apreciação do recurso

Impugnação da matéria de facto [erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento/violação do princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal].
Alega o arguido/recorrente que os factos vertidos em 3., 4., 5. e 11. [dois últimos pontos: alegada condenação n.º P.PAB-...84/2018 e processo RAA-...04/2024] da factualidade provada foram incorretamente julgados e, como tal, devem ser considerados não provados, tendo, na sua ótica, o tribunal a quo incorrido em erro notório na apreciação da prova [que, embora não o refira, trata-se do vício ínsito artigo 410.º, n.º 2, c) do Código de Processo Penal] e em erro de julgamento, violando o princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Aponta, para tanto, em suma:
® Indevida desvalorização das suas declarações prestadas em audiência de julgamento;
® Errada valoração do depoimento prestado pela testemunha BB, militar da GNR;
® Errada análise da documentação junta aos autos, designadamente do CRC.

A factualidade colocada em causa é a seguinte:
“(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A. Factos Provados
3. Á data, o arguido não possuía carta de condução, nem qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo.
4. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que não dispunha de título legal bastante para conduzir e que a condução de tal veículo na via pública só é permitida a quem se encontra legalmente habilitado para o efeito.
5. Sabia o arguido que tal conduta é proibida e punida por lei como crime.
(…)
11. Do seu CRC constam as seguintes condenações:
(…)
- no âmbito da condenação no PºPAB-...84/2018, que correu termos no Juizo Penal nº2 de Pontevedra, Espanha, o arguido foi condenado por sentença a 13.02.2019, transitada em julgado, pela prática do crime de recusa de se submeter a um controlo rodoviário, pela prática do crime de agressão ou ameaça a um representante da autoridade, pela prática do crime de condução sob o efeito do álcool ou de estupefaciente, nas penas de perda/suspensão do direito de voto ou de elegibilidade por 6 meses, na suspensão da carta de condução por 1 ano e 6 meses, na pena de 6 meses de prisão, na pena de suspensão da carta de condução por 3 anos e 6 dias, na pena de cassação da carta de condução, na pena de 70 dias de trabalho a favor da comunidade;
- no âmbito da condenação no processo RAA-...04/2024, da seção 2ª da Audiência Provincial de Pontevedra, Espanha, o arguido foi condenado por decisão de 10.01.2024, transitada em julgado, pela prática do crime de conduzir sob o efeito do álcool ou de estupefacientes, na pena de suspensão da carta de condução, na pena de 6 meses de prisão, na pena de perda/suspensão do direito de voto ou de elegibilidade por 6 meses. 
(…)”.
E, quanto à motivação da matéria de facto, pode ler-se na sentença recorrida, no que aqui releva, o seguinte [transcrição]:
“(…)
*
C. Motivação

A convicção do Tribunal quanto aos factos provados formou-se atendendo à prova carreada para os autos e produzida em sede de audiência de julgamento, valorada atendendo ao princípio da livre apreciação, consagrado no art. 127º do CPP.

A convicção do Tribunal fundou-se numa leitura crítica e conjugada de toda a prova produzida nestes autos, documental e testemunhal, segundo as regras da experiência e do senso comum.
O arguido prestou declarações admitido os factos constantes em 1 e 2 dos factos provados, no entanto refere que quando foi fiscalizado que tinha carta de condução, pois teve um processo em Espanha em que lhe retiraram pontos e a carta, mas que recorreu, não sabendo dizer qual o processo, nem em que data recorreu, mas apenas que foi um processo em Pontevedra.
Ora, as suas declarações no tocante à existência de título de condução aquando da data constante em 1 dos factos provados, não se afiguraram de credíveis pois não foram corroboradas por mais nenhum meio de prova, não tendo o arguido junto aos autos qualquer documento nesse sentido, ou produzido qualquer prova nesse sentido.
Acresce que ouvimos, BB, militar da GNR que prestou um depoimento coerente e consistente, sendo o participante do auto de acidente de viação junto aos autos, onde o arguido foi interveniente, pelo que o valoramos para prova dos factos constantes em 1 a 3 dos factos provados.
Atendemos ainda aos documentos juntos aos autos designadamente: na certidão de fls. 4 a 74.
Mais atendemos ao CRC que antecede.
Finalmente, no que importa ao elemento subjetivo da infração de condução sem habilitação legal, fez o Tribunal uso das regras da experiência comum. Com efeito, sendo o dolo um elemento da vida interior do agente, por isso que impossível de aprender diretamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem.
No caso, atenta a conduta do arguido, com um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjetivo há certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que evidente a vontade da prática dos factos. 
(…)”. [sublinhado e negrito nossos].

Ora, como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

In casu:
O arguido/recorrente vem invocar que a sentença proferida pelo tribunal a quo padece do vício do erro notório na apreciação da prova, que, embora não o refira expressamente, trata-se do vício ínsito artigo 410.º, n.º 2, c) do Código de Processo Penal.
Mas, na verdade, analisadas quer as conclusões quer a motivação do recurso, constata-se que o recorrente confunde o erro de julgamento com o apontado vício de erro notório na apreciação da prova.

Com efeito:
Impugna a mencionada factualidade provada, mas não se cinge ao texto da decisão recorrida, tendo antes chamando à colação, as suas próprias declarações, o depoimento da testemunha BB, militar da GNR, e prova documental junta aos autos e contestou a forma como o tribunal a quo apreciou a referida prova, que, na sua ótica, se afigura errada, ou seja, impugna a matéria de facto com base no erro de julgamento, a que alude o artigo 412.º do Código de Processo Penal.

Com efeito, conforme decorre do artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”:

“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mas conforme se referiu supra, tais vícios devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
E, como é sabido, o invocado vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido[4].
“Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”[5].
Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo”.[6]
E, assim sendo, só nos resta concluir pela inexistência do invocado vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, pois do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal a quo tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis.
Na verdade, estamos perante o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal, mas esta discordância não conduz ao referido vício[7].
Improcede, portanto, a pretendida alteração da matéria de facto à luz do invocado vício decisório.

Analisemos, então, agora, a impugnação da matéria de facto à luz do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
No domínio da impugnação ampla da matéria de facto visa-se uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[8]
Não se poderá, no entanto, esquecer que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Germano Marques da Silva[9] que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[10], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros[11].

Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo [cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal].
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação [não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos], pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes [n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal][12].
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal] [sublinhado nosso].
Em suma, para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas [específicas] que impõem decisão diversa da recorrida, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as [se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados] ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos [quando na ata da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens].
“Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente [sublinhado nosso]. [13]

In casu, analisadas as conclusões do recurso facilmente se constata que o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada, em obediência ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal, não satisfazendo as conclusões apresentadas a exigência da tríplice especificação legalmente imposta, nos casos de impugnação ampla.
E, por outro lado, uma leitura atenta da motivação, torna evidente que também esta não consente tal especificação.
Na verdade, o recorrente indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e transcreve/indica as passagens das declarações/testemunho em que fundamenta a sua impugnação [de forma mais completa na respetiva motivação], porém não demonstra de que forma tais declarações/depoimento impõem decisão diversa da recorrida, e não o faz, nem nas conclusões, nem na motivação do recurso.
É óbvio que o circunstancialismo que rodeia tal forma de impugnação da factualidade não provada fixada pelo tribunal a quo inviabiliza a sua reapreciação pela via da impugnação ampla que, de todo, não obedece à imposição legal expressamente prevista para o efeito.
E não cumpria convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso, pois dizendo-se que as conclusões resumem as razões do pedido, nada pode ser resumido que não se contenha no arrazoado da motivação, de que as conclusões constituem uma síntese essencial.
Neste sentido, vem sendo a tomada de posição constante do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, de que o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido. [14]
Na verdade, não podemos deixar de recordar que o texto da motivação do recurso – reservado aos respetivos fundamentos – é imodificável e, como tal, insuscetível de ser aperfeiçoado, o que bem se compreende, pois, o contrário, equivaleria, no fundo, à concessão de um novo prazo para recorrer, pelo que não cabia a este Tribunal fazer qualquer convite ao aperfeiçoamento, pois estamos perante uma deficiência da estrutura da própria motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso e esse procedimento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso[15].
Em suma, o artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, impõe o dever de convite ao aperfeiçoamento tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”. Se o recorrente não faz, como no presente caso, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, nos seus precisos termos, não há lugar ao convite à correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite.
De qualquer forma, sempre se dirá que o que resulta claramente da motivação da matéria de facto supra transcrita é que o tribunal a quo deu como provados os factos aqui controvertidos, explicando, de forma razoável, clara, lógica, racional e plausível, porque assim o fez, explicando porque considerou os factos em apreço como provados e, designadamente, porque razão, quanto aos mesmos, não deu qualquer credibilidade às declarações do arguido e a concedeu à mencionada testemunha.
A análise crítica das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento da supra indicada testemunha, efetuada pelo julgador e o respetivo grau de descrédito e de credibilidade atribuído aos mesmos mostra-se irrepreensivelmente conferido, de acordo com a perceção própria permitida pelo imediatismo que acompanhou a produção daqueles meios de prova.
Nenhum dos elementos de prova concretamente aludidos pelo recorrente revela que a decisão do Tribunal a quo se mostre desajustada ou incoerente face à prova produzida no julgamento e, neste sentido, nenhuma dessas provas impõe decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido.
Na verdade, no caso dos autos, o que o recorrente faz é discordar da avaliação probatória que o tribunal recorrido fez da apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, pretendendo substituir a convicção do tribunal pela sua.
Ou seja, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do arguido/recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal a quo firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, do qual decorre que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. Sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, o que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
A apreciação da prova não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela (deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[16]
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando reflexo, nomeadamente, no artigo 355.º do Código de Processo Penal, sendo na audiência de julgamento que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no artigo 32.º, n.º5 da Constituição da República Portuguesa.
A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.[17]
Uma vez, porém, que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efetivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, deve proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, avaliando se as provas indicadas por este impõem decisão diversa da recorrida.
Porém, se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.127.º do Código de Processo Penal, deve manter a decisão recorrida.
Ou seja, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.
Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção[18].
Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjetiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e receção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de ação/reação, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos[19], sendo as declarações indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, dos seus olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reações comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.
Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjetiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, é insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova no cumprimento do dispõe o nº 2 do artigo 374º, do Código de Processo Penal, e, no presente caso, a Mm.ª Juíza a quo fê-lo, ainda que de forma sintética.
E se os critérios subjetivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre o descrédito ou credibilidade das declarações/do depoimento apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
Não interessa, assim, neste recurso, o que os juízes desta Relação decidiriam se tivessem efetuado o julgamento em primeira instância. Também não está em causa o modo como decidiria o recorrente se fosse o Juiz a quo. Na verdade, como se referiu, o recurso em matéria de facto não tem por finalidade a realização de um segundo julgamento, mas tão só a apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame [controlo] dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitem atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos [em suporte magnético].
Por isso ao tribunal superior cumpre verificar a existência/inexistência da prova e controlar a legalidade da respetiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência/existência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório [nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica] cometida na respetiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal.
Assim, o que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso [precisamente porque o seu propósito é, essencialmente, o de remédio jurídico], é verificar, controlar, se o tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto, existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.
In casu, o recorrente não concorda com a análise que a Mm.ª Juíza a quo fez da prova produzida em audiência de julgamento, insurgindo-se contra o facto de não ter sido dado crédito às suas declarações e ter estribado essencialmente, a sua convicção, na certidão de fls. 4 a 74 e no depoimento da testemunha BB, militar da GNR, meios de prova estes dos quais, na sua ótica, não decorre a prova dos factos impugnados.
Porém, sem razão.

Expliquemos porquê:
Segundo o recorrente da factualidade provada vertida em 1. e 2. resulta que aquando da primeira fiscalização (13h58m) o Arguido/Recorrente apresentou à entidade fiscalizadora – GNR – carta de condução/documento que lhe permitia conduzir o veículo automóvel de matrícula .... GCW na via pública, pois, caso assim não fosse, a GNR, que fez a acção de fiscalização mencionado no ponto 1. dos factos provados, não teria deixado o Arguido/Recorrente prosseguir a marcha depois da redita fiscalização.
Além disso, prossegue o arguido/recorrente, a GNR aquando da fiscalização mencionada em 1. dos factos dados como provados na Sentença não detectou qualquer irregularidade, fosse no título de condução do Recorrente, fosse na documentação atinente ao veículo.
Pelo que, conclui o arguido/recorrente, não existe, deste modo, qualquer prova nos autos que nos remeta para a falta de habilitação legal do Recorrente para conduzir veículos a motor na via pública.

Porém, cumpre relembrar que a factualidade que resultou provada e que consta dos mencionados pontos 1. e 2. foi apenas a seguinte [transcrição]:
“(…)
1. No dia ../../2020, pelas 13h58m, o arguido conduzia o veículo automóvel, com a matrícula .... GCW, na A3, ao Km ..., neste concelho ..., quando foi intercetado por elementos da GNR que ali se encontravam em operação de fiscalização.
2. E, no mesmo dia ../../2020, pelas 14h30m, o arguido exercia a condução da referida viatura .... GCW, no IP ..., ao Km 108,800, no sentido Valença/..., neste concelho, quando embateu com a parte frontal da sua viatura na traseira do veículo automóvel, marca e modelo ..., de matrícula ..-VJ-.., à data conduzido por CC.
(…)”.
E desta apenas resulta que o arguido/recorrente foi intercetado por elementos da GNR que se encontravam em operação de fiscalização cerca de 38 minutos antes de ter intervindo no mencionado acidente de viação, nada mais do que isso. Desconhece-se em que circunstâncias foi mandado parar, que documentos lhe foram solicitados e que documentos apresentou, sendo uma realidade incontornável que o facto de ter sido mandado parar naquele primeiro momento e deixado prosseguir a sua marcha não é de todo capaz de sustentar a conclusão aventada pelo arguido/recorrente de que apresentou à entidade fiscalizadora – GNR – carta de condução/documento que lhe permitia conduzir o veículo automóvel de matrícula .... GCW na via pública e muito menos que na data tinha documento válido que o habilitasse a conduzir veículo automóvel na via pública, tanto mais que toda a prova documental que o próprio chama à colação, vertida na certidão de fls. 4 a 74, aponta, como explicaremos de seguida, em sentido contrário.
Diz o arguido/recorrente que isso mesmo deu a conhecer à autoridade policial naquele momento em que foi fiscalizado, tendo mostrado a carta de condução, porquanto a tinha na sua posse. Porém, o tribunal a quo não lhe concedeu, e bem, qualquer credibilidade, porquanto basta analisar a prova documental junta aos autos, constante da mencionada certidão, bem como o CRC do arguido junto aos autos, para se constatar que, na data dos factos aqui em causa - 16-06-2020 - já o arguido/recorrente havia sido condenado na pena de cassação da sua carta de condução, por sentença proferida, no âmbito do PºPAB-...84/2018, pelo Juízo Penal nº2 de Pontevedra, Espanha, a ../../2019, transitada em julgado, tendo o início de execução das penas que ali lhe foram impostas se iniciado precisamente nessa mesma data  - ../../2019 -.
Na verdade, não só a existência de título de condução válido/vigente na data dos factos aqui em causa não se comprovou, como se provou precisamente o contrário.
E tal conclusão não se mostra afastada pelo depoimento prestado pela testemunha militar da GNR BB trazido à colação pelo arguido/recorrente.
Com efeito, é verdade que este não esteve presente na ação de fiscalização no que concerne ao facto dado como provado em 1., tendo sido apenas o participante do acidente de viação correspondente ao facto provado 2. e é igualmente verdade que da transcrição do seu depoimento efetuado pelo arguido/recorrente, decorre que quanto aos dados documentais que fez verter na participação do acidente, disse não se recordar como os obteve, pensando que parte deles retirou da participação anterior, tendo, igualmente, respondido não se recordar, se foi apresentada alguma carta de condução aos seus colegas por parte do arguido, ou se foi verificada a sua validade.
Porém, o facto de não se recordar não conduz a qualquer contradição do seu depoimento com o facto provado vertido em 3. [recorde-se: “3. Á data, o arguido não possuía carta de condução, nem qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo.] e muito menos permite afastar a conclusão ali vertida, sendo certo que, como o reconhece, aliás, o arguido/recorrente, o tribunal a quo não estribou a fundamentação da prova de tal facto apenas no depoimento da mencionada testemunha, mas sim “ … numa leitura crítica e conjugada de toda a prova produzida nestes autos, documental e testemunhal, segundo as regras da experiência e do senso comum. …”  [sublinhado e negrito nossos], ponderação que novamente realçou logo após ter feito referência ao depoimento desta testemunha, fazendo-o verter na motivação da matéria de facto, nos seguintes termos: “Atendemos ainda aos documentos juntos aos autos designadamente: na certidão de fls. 4 a 74. [sublinhado e negrito nossos].
Mais atendemos ao CRC que antecede.”.
E, de facto, como passaremos a explicar de seguida de forma mais pormenorizada, da referida certidão de fls. 4 a 74. e do CRC junto aos autos a 02-12-2024, mediante a ref.ª citius n.º 53171091, resultou provado, de forma inquestionável, que na data dos factos o arguido não dispunha de carta de condução válida/vigente ou de qualquer documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo em território português.

E não descuramos que dessa certidão consta a participação de acidente de viação – concretamente a fls. 7 verso e ss. - e que da mesma consta:
“Características habilitação de condução – Com licença/carta adequada ao veículo
(…)
“Carta de Condução Número ...10... Emitido em ../../2019 Emitido por Categorias: B (desde ../../1991)
Certificado ADR - Não aplicável”.
Porém, daí se concluir que o arguido apresentou título de condução que lhe permitia conduzir o veículo naquele momento vai um passo, tanto mais que da mesma certidão também constam documentos de onde decorre que em ../../2019 havia sido determinada, na sequência de decisão judicial, a cassação da sua carta de condução, pelo que, como bem o refere a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta  no seu douto parecer, se aquando da 1.ª fiscalização policial, não foi detectada esta situação – o que pode justificar-se pelo facto de, nessa altura, a GNR ... não ter tido acesso à decisão do Tribunal de Pontevedra – a verdade é que dos documentos que compõem a certidão valorada pelo Tribunal a quo, se confirma que o arguido/recorrente, efectivamente, na data constante da factualidade provada, encontrava-se proibido de conduzir e que, ainda que se fizesse acompanhar do referido titulo de condução – o que, repita-se, não se mostra comprovado – não detinha um titulo de condução válido que o habilitasse à condução de veículos automóveis.
O arguido/recorrente, aliás, como supra sublinhado, não juntou aos autos qualquer documento comprovativo de que, mercê de recurso por si apresentado da decisão referida (como alegou nas suas declarações), nessa altura, ainda se encontrava habilitado a conduzir.”.
Veja-se que, com vista a alcançar o seu desiderato, o arguido/recorrente impugna o facto provado vertido em 11. precisamente na parte respeitante às condenações por si sofridas em Espanha. Porém, esse artigo 11. reproduz [parte, aliás, e nem sequer na sua totalidade] o teor do registo criminal do arguido/recorrente, concretamente do Registo Central de Pessoas Condenadas (Espanha), ECRIS-European Criminal Record Information System, Informação extraída do registo criminal de Estado membro da União Europeia, pelo que, como bem o assinala a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer “… encontra-se provado por documento, cuja autenticidade não foi devidamente impugnada pelo recorrente, que apenas questiona o facto com base no que o próprio afirmou e nas declarações do militar da GNR, BB…”.
Assim sendo, sem necessidade de quaisquer outras considerações, a factualidade ali vertida terá de manter-se provada.
E, a igual conclusão se chegará quanto à restante factualidade impugnada.
Com efeito, conforme já o fomos adiantando supra, a referida certidão de fls. 4 a 74. conjugada com o vertido no CRC junto aos autos a 02-12-2024, mediante a ref.ª citius n.º 53171091, permite chegar à conclusão alcançada pelo tribunal a quo ao considerar provada a factualidade vertida nos artigos 3., 4., e 5., aqui, também, impugnados.
Expliquemos, então, porque assim o é, trazendo, para tanto, à colação o seguinte excerto do douto parecer da Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta, que, de forma pormenorizada e escorreita, retrata o que, de facto, decorre da mencionada prova documental, aqui se introduzindo, em parênteses retos, as devidas retificações quando tal se justificar:
“Esta certidão, como nela se certifica, foi extraída do Processo Comum Singular n.º 154/20.0GBVLN que correu termos no Juízo de competência Genérica de [Valença, Comarca de] Viana do Castelo e no âmbito do qual o arguido/recorrente foi condenado, por sentença de 24/3/2022, pela prática dos crimes de condução de veiculo em estado de embriaguez, …, em concurso real com um crime de desobediência qualificada … e com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário … por factos ocorridos no dia ../../2020, pelas 13 58m, na A3, ao Km 111,6000 no concelho ..., [e nesse mesmo dia, pelas 14h30m, no IP ..., ao Km 108,800, no concelho ...], ou seja, por factos ocorridos nas circunstâncias do facto provado n.º 1 [e n.º2].
Nesse expediente, consta a cópia de uma Participação de Acidente de Viação, levantada pela GNR do Posto Territorial ..., em virtude do arguido/recorrente, no dia ../../2020, pelas 14:30m (isto é, no contexto dos factos que se lhe imputam nestes autos), ter sido interveniente em acidente de viação e lhe ter sido realizado o teste de alcoolemia na ... de Viana do Castelo, para onde fora transportado.
Sendo certo que, nessa participação, no lugar destinado à identificação do condutor/arguido, consta o seguinte:
- Características habilitação de condução - Com licença/carta adequada ao veículo
- Carta de Condução Número ...10... Emitìdo em ../../2019 Emitido por Categorias: B (desde ../../1991).
Mais se mostra junta à certidão um documento remetido pelo Centro de Cooperação policial e Aduaneira de TUY/Valença com a seguinte informação:
Consultando as bases.de dados policiais foi obtido o seguinte: AA, titular de documento Espanhol DNI....10..., nascido el ../../1971, na presente data não lhe consta nenhum titulo de condução … [em vigor].
Consta-lhe uma sanção por perda de pontos e uma retirada pelo Juzgado de lo Penal 2 de Pontevedra, desde el 13/02/2019 hasta el 06/02/2024” [cfr. fls. 18].
Por outro lado, ainda fazem parte da certidão os documentos relacionados com uma DEI, remetida à Fiscalía Provincial de Pontevedra …, com o que viriam a ser prestadas várias informações relativas ao recorrente, entre as quais a seguinte: atualmente não lhe consta habilitação legal de condução em vigor por lhe ter sido apreendida pelo tribunal penal de Pontevedra desde ../../2019 até ../../2024 ( cfr. fls. 41) e um documento da Direccion General de Justicia designado “ Consulta Conductor “ onde consta o supra identificado n.º de licença de condução ...10... e na rubrica Sanciones: PERDIDA VIGÊNCIA [13]/02/2019 e FECHA FIN: 06/02/2024. Autoridad: PEN,PONTEVËDRA 2” ( cfr. fls. 47 e 48).
Por fim, mais se mostra junta a cópia da sentença n.º ...50/2019 proferida pelo XDO.DO PENAL N2 PONTEVEDRA, de 13 de Fevereiro de 2019, um anexo de execução da sentença e liquidação do período de proibição de condução, através da qual se conclui que o arguido foi condenado, pelo crime de conduction sob a influência do álcohol na pena de 70 dias de trabalho a favor da comunidade, proibição de conduzir [ veículos a motor e ciclomotores] por 3 anos e 6 meses (com a indicação de que “está pena supón a perda definitiva do permiso“), por um crime de negativa à prática da proba de alcoholemia com a agravante de reincidência e atenuante da intoxicacion etílica em prisão de 6 meses suspensa por 3 anos e na privação do direito de conduzir veículos a motor e ciclomotores por 1 anos e 6 meses e pelo crime de atentado a agente de autoridade (cfr. fls. 61 a 67).
(…)
Esta condenação, como o comprova o documento junto aos autos em 2 de Dezembro de 2024, encontra-se já registada no Registo Central de Pessoas Condenadas de Espanha, ECRIS-European Criminal Record Information System ( Informação extraída do registo criminal de Estado membro da União Europeia ) junto a fls. 82 a 107, aí sendo possível confirmar as datas de inicio e fim da cassação da carta e concluir que a referida decisão transitou em julgado. …”. [alguns sublinhados e negritos nossos].
Assim sendo, partilhando da conclusão vertida no mencionado parecer, constata-se que de toda esta documentação resulta não só comprovado o teor do facto impugnado n.º 11, mas também que apesar de o arguido/recorrente ter sido titular do título de condução emitido pelo Reino de Espanha n.º ...10..., na data dos factos aqui em causa o mesmo não tinha qualquer validade, pois tinha perdido a sua vigência, em ../../2019, em consequência da sua suspensão por um período superior a 2 anos e cassação [em consonância, aliás, com o artigo 47.º do Código Penal Espanhol].
Além disso, da mesma prova documental consta ainda que o prazo respeitante à execução da referida suspensão da carta de condução/proibição de conduzir veículos a motor e ciclomotores corresponde ao período situado de ../../2019 até ../../2024, o que demonstra que a sentença em causa transitou em julgado na data da sua prolação -../../2019-, o que decorre, aliás, do ponto segundo da fundamentação de direito da dita sentença – cfr. fls. 63 verso.
Mais se especifica, na mesma sentença, que a proibição de conduzir veículos a motor e ciclomotores por 3 anos e 6 meses “supón a perda definitiva do permiso“.
Pelo que não se descortina de que forma o facto provado vertido em 3. [relembre-se: Á data, o arguido não possuía carta de condução, nem qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo.] possa ser considerado não provado, como o pretende o arguido/recorrente.
Cumpre, porém, proceder à sua modificação, com vista a concretizar a conclusão ali vertida, o que se passará a fazer de seguida, ao abrigo do artigo 431.º, alínea a), do Código de Processo Penal, perante a prova documental junta aos autos, decorrente, concretamente, da certidão já aludida:
“3. À data, o arguido não possuía carta de condução válida, nem qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo, porquanto, pese embora tenha sido titular do título de condução com o n.º ...10..., emitido pelo Reino de Espanha, mediante decisão proferida a ../../2019, transitada em julgado na mesma data, havia sido condenado, pelo Tribunal, Juizo Penal nº2 de Pontevedra, Espanha, na pena de privação do direito de conduzir veículos a motor e ciclomotores [constante no registo criminal como suspensão da carta de condução] por período superior a 2 anos, que implicava, nos termos consignados naquela decisão judicial “perda definitiva do permiso”, encontrando-se ainda registado no seu certificado de registo criminal a pena de cassação da carta de condução, com a inerente “Pérdida de vigência del permisso de conduzir vehículos de motor y ciclomotores”.

E, finalmente, no que respeita aos factos impugnados vertidos em 4. e 5. [respeitantes ao elemento subjetivo do tipo de crime em apreço] não existe, igualmente, qualquer razão para os considerar não provados, não só porque estes [a menos que haja  confissão por banda do arguido, o que não foi o caso] são, em regra, objeto de prova indireta, só sendo suscetíveis de apreensão e, consequentemente, serem dados como provados, por assim decorrerem dos factos materiais objetivos dados como assentes, analisados à luz das regras da experiência comum, como, in casu, o arguido/recorrente não apontou qualquer elemento de prova suscetível de impor decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo a esse respeito, ou seja, não demonstrou a existência de qualquer erro de julgamento na decisão do tribunal a quo ao considerar tal factualidade como provada.
Em suma, dir-se-á, portanto, que as provas apresentadas pelo arguido/recorrente não impõem decisão diversa daquela a que chegou o tribunal a quo, traduzindo apenas uma mera leitura diferente daquela, leitura essa efetuada pelos olhos do arguido/recorrente, que não demonstrou que os meios de prova de que se socorreu o tribunal a quo não apontam de forma alguma no sentido vertido na factualidade provada e, como tal, pese embora o seu esforço argumentativo, este mostra-se insuscetível de permitir a alteração da factualidade que foi considerada como provada pelo tribunal a quo, ora impugnada, que, como tal, deverá permanecer imodificável.
Assim sendo, improcede o presente recurso quanto a esta questão, permanecendo intocada a matéria de facto impugnada, ressalvada a modificação ora operada com vista ao esclarecimento do facto ali vertido em 3.

Erro quanto ao direito aplicável ao caso dos autos [errado enquadramento jurídico]:
            Invoca a este respeito o arguido/recorrente, chamando para tanto à colação o artigo 130.º do Código da Estrada, na redação vigente na data da prática dos factos [redação dada pelo Decreto-Lei n.º 40/2016, de 29 de Julho], que então regia sobre a epígrafe “caducidade e cancelamento dos títulos de condução”, ser entendimento da jurisprudência que apenas incorrerá na prática do crime de condução sem habilitação legal quem conduzir veículo com o respetivo título de condução cancelado, cancelamento este que não consta do seu registo criminal e também não é automático, porquanto carece de um acto e/ou decisão por parte do IMT nesse sentido conforme prevê o artigo 2.º, n.º 1 do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (Decreto-Lei n.º 138/2012, de 05 de Julho), ou no caso de uma carta de condução proveniente de país terceiro, por parte da entidade administrativa competente, o que não se verifica no caso dos autos.
Assim sendo, prossegue o arguido/recorrente, tendo apresentado no acto da fiscalização o seu título de condução aos militares da GNR, que o aceitaram/validaram, porquanto se referem ao mesmo na participação do acidente de viação a que se reporta a situação vertida em 2. da factualidade provada e não existindo qualquer decisão/registo do cancelamento da sua carta de condução, não praticou o crime de condução sem habilitação legal pelo qual foi condenado, integrando, quando muito, a factualidade aqui em causa apenas um ilícito contraordenacional, perante o seu título de condução apenas caducado, pelo que deverá ser absolvido.

Vejamos:

De facto, na data dos factos regia o artigo 130.º do Código da Estrada, com a epígrafe caducidade e cancelamento dos títulos de condução, nos seguintes termos:
“1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.”. [sublinhado e negrito nossos].
E é igualmente verdade que da matéria de facto provada não decorre a existência de qualquer decisão proveniente de autoridade administrativa que tenha determinado o cancelamento do título de condução do arguido/recorrente.
Não desconhecemos, também, que se encontra longe de consenso a interpretação a dar a determinados preceitos legais constantes dos diplomas legais que regem a matéria da habilitação legal para conduzir de cidadãos estrangeiros que, a residir em Portugal, não trocam nem renovam os seus títulos e/ou os deixam expirar ou caducar, sendo, igualmente, divergentes, diríamos, mesmo, extremadas, as posições que têm vindo a ser tomadas relativamente à interpretação e aplicação do mencionado artigo 130.º do Código da Estrada, trazido à colação pelo arguido/recorrente [designadamente sobre se o regime de caducidade e cancelamento ali previsto seria, ou não, aplicável exclusivamente aos títulos de condução portugueses e da divergência sobre se as condutas descritas deviam ser subsumidas a uma mera contraordenação ou ao crime de condução ilegal], embora hoje mais pacificada, face à alteração entretanto introduzida pelo DL 102-B/2020, de 09 de dezembro, que, abandonou a figura do cancelamento”, assim permitindo que a caducidade passasse a operar ope legis, referência que deixou espelhada logo na sua epígrafe a qual passou a ser de Caducidade dos títulos de condução”, ao invés de “Caducidade e cancelamento dos títulos de condução”.
Acontece, porém, que a questão subjacente aos presentes autos, atentos os contornos que decorrem da factualidade provada, não se resolve à luz do preceito legal em apreço, ora trazido à colação pelo arguido/recorrente com vista a sustentar o invocado erro de julgamento quanto à qualificação jurídica dos factos.   
Com efeito, como bem o refere a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta  no seu douto parecer, “… a situação em causa assume configuração diferente, desde logo porque o titulo de condução do arguido/recorrente, embora sendo um titulo [à partida] reconhecido e aceite em Portugal sem a necessidade de qualquer formalização legal, para o habilitar a conduzir teria que se encontrar válido e não abrangido por ordem de cassação por decisão judicial, como se constatou ter acontecido, não dependendo a alteração da condição do titulo de condução, nem da vontade do arguido nem da formalização de qualquer procedimento burocrático para a sua “ legalização “ ( em Portugal ou no País emissor)….”.
Expliquemos melhor:
Sobre a criminalização da condução de veículo sem habilitação legal rege o DL n.º 2/98, de 03 de janeiro, que no seu artigo 3.º pune pela prática de tal crime “Quem conduzir veículo a motor [designadamente motociclo ou automóvel], na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada”. [sublinhado e negrito nossos].
E dos preceitos legais ínsitos no DL n.º 114/94, de 03 de maio [Código da Estrada] respeitantes à habilitação legal para conduzir retira-se, no que ora releva, que o documento que titula a habilitação legal para conduzir automóveis é a carta de condução [artigo 121.º, n.º 4], decorrendo, ainda, do seu artigo 125.º, na redação vigente na data da prática dos factos [Redação dada pelo Decreto-Lei n.º 151/2017, de 07 de dezembro] que:
“1 - Além dos títulos referidos nos n.ºs 4 e 5 do artigo 121.º são ainda títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;
b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
c) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
d) Títulos de condução emitidas por Estado estrangeiro, desde que este reconheça idêntica validade aos títulos nacionais;
e) Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;
f) (Revogado.)
g) Licenças especiais de condução;
h) Autorizações especiais de condução;
i) Autorizações temporárias de condução.
2 - A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.
3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas c), d) e e) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor, em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação.
6 - (Revogado.)
7 - (Revogado.)
8 - Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 e 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1 500.”.   [sublinhado e negrito nossos].

Por sua vez, analisado o RHLC a que se alude no n.º 2 do mencionado artigo 125.º do Código da Estrada [ou seja, o REGULAMENTO DA HABILITAÇÃO LEGAL PARA CONDUZIR - DL n.º 138/2012, de 05 de julho], constata-se que, sob a epígrafe títulos de condução estrangeiros, rege o seu artigo 13.º nos seguintes termos:
“1 - Os títulos de condução emitidos por Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu são reconhecidos em Portugal para a condução das categorias de veículos a que habilitam, com as restrições deles constantes, desde que:
a) Se encontrem válidos;
b) Os seus titulares tenham a idade exigida em Portugal para a obtenção de carta de condução equivalente.
2 - Excetuam-se do disposto no número anterior:
a) Os títulos de condução que se encontrem apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou noutro Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu;
b) Os títulos de condução emitidos por Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu a cujo titular tenha sido aplicada, em território nacional, uma sanção de inibição de conduzir ainda não integralmente cumprida, ou cujo título tenha sido cassado em Portugal.
3 - Os títulos de condução referidos no n.º 1 que mencionem prazo de validade e cujos titulares tenham residência habitual em Portugal, após caducarem, são revalidados nos termos e com os requisitos exigidos na lei portuguesa para os títulos nacionais.
4 - É fixado o prazo de validade administrativa de dois anos, a partir da data em que o seu titular fixe residência em território nacional, aos títulos de condução emitidos por Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu que não mencionem termo de validade.
5 - Findo o prazo referido no número anterior, o título deve ser revalidado nos termos nos termos e com os requisitos exigidos na lei portuguesa para os títulos nacionais.
6 - As condições impostas no n.º 1 são também aplicáveis aos restantes títulos estrangeiros que, nos termos do artigo 125.º do Código da Estrada, habilitam a conduzir em Portugal.”. [sublinhado e negrito nossos].

Ora, in casu, decorre da factualidade provada - única a que nos teremos de ater, nos termos que acabamos de analisar - que, de facto, o arguido/recorrente, cidadão de nacionalidade Espanhola, foi titular do título de condução emitido pelo Reino de Espanha com o n.º ...10....
Sucede, porém, que da mesma factualidade provada também decorre que foi condenado - no Juízo Penal nº 2 de Pontevedra, Espanha - mediante sentença proferida a ../../2019, transitada em julgado na mesma data - pelo cometimento, entre outros, do crime de condução sob o efeito do álcool -, na pena de suspensão da carta de condução/privação do direito de conduzir veículos a motor e ciclomotores, por um período superior a dois anos, designadamente de 3 anos e 6 meses, pena essa que, nos termos da mesma decisão judicial, implica a “perda definitiva do permisso”, encontrando-se registadas no seu certificado de registo criminal, além dessa pena, a pena de cassação da carta de condução, com a inerente “Pérdida de vigência del permisso de conduzir vehículos de motor y ciclomotores”.
Assim sendo, quando o arguido/recorrente conduziu, nos termos que constam dos artigos 1. e 2. da factualidade provada, relembre-se, no dia ../../2020, nas mencionadas vias públicas do território português, não dispunha de qualquer título de condução que pudesse ser reconhecido em Portugal, para a condução do mencionado veículo automóvel, uma vez que o mencionado título de condução que havia sido emitido pelo Reino de Espanha já se encontrava suspenso desde ../../2019 e cassado na decorrência da mencionada sentença judicial proferida no Julgado Penal n.º 2 de Pontevedra, suspensão e cassação essas que, como vimos, ante o exposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 13.º do RHLC impediam que esse título de condução fosse “…reconhecido em Portugal para a condução das categorias de veículos a que habilitam…”, o que, necessariamente, dita a integração da conduta subjacente aos presentes autos na tipo criminal pelo qual veio a ser condenado e não a título meramente contraordenacional.
E não se diga que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao assim decidir porquanto o arguido/recorrente exibiu o seu título de condução à autoridade policial que o reconheceu como válido, porquanto o fez plasmar na participação do acidente de viação em apreço. Com efeito, mesmo que se admitisse que assim o foi [o que não decorre, de todo, da factualidade provada e como tal não pode ser atendido], a verdade é que, como é sabido, a validade de um documento não é aferida pela sua menção como tal numa participação de acidente de viação, já para não falar que se desconhece se aquando do acidente em apreço, ou no momento da fiscalização que o antecedeu, a autoridade policial interveniente em cada um desses momentos tinha sequer a possibilidade de se inteirar da existência da mencionada condenação de suspensão da carta de condução/cassação sofrida em Espanha que impedia, como vimos, o reconhecimento da validade do mencionado título de condução em território português.

Não desconhecemos que, entretanto, o artigo 125.º do Código da Estrada sofreu alterações, introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09 de dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 46/2022 de 12 de julho, que culminou com a seguinte redação atualmente em vigor:
Artigo 125.º
Outros títulos
“1 - Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;
b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
c) Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:
i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;
ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;
iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade;
d) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
e) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;
f) [Revogada.]
g) Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;
h) Licenças especiais de condução;
i) Autorizações especiais de condução;
j) Licença de aprendizagem.
2 - A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.
3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.
6 - [Revogado.]
7 - [Revogado.]
8 - Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.”. [sublinhado e negrito nossos].
o que poderia levar-nos a questionar a possibilidade de integração da conduta em apreço a título meramente contraordenacional, ante o exposto n.º 8 face à remissão operada para o seu n.º 5.
Porém, assim não o é.
Com efeito, exige o legislador, no mencionado n.º 8, como pressuposto da integração da conduta violadora do seu n.º 5 a título meramente contraordenacional, que o agente seja titular de licença válida e, na concreta situação dos presentes autos é o próprio Estado emissor do título de condução suspenso e cassado [e que, aqui se pretende ver reconhecido como válido], que nos diz que a pena de suspensão da carta de condução sofrida pelo arguido/recorrente, porque o foi por um período de duração superior a 2 anos, implica a “perda definitiva do permisso”, e que a situação dos autos contempla uma Pérdida de vigência del permisso de conduzir vehículos de motor y ciclomotores”, assim afastando, portanto, o pressuposto da existência de uma “licença válida”, suscetível de integração do tipo contraordenacional em apreço.
Em suma, a alegação da detenção pelo arguido/recorrente, aquando da prática dos factos por que responde, de um título de condução emitido pelo Reino de Espanha não cancelado é inócua para o efeito de afastar a tipicidade do artigo 3º do DL nº 2/98 de 3 de janeiro, porquanto, fruto da suspensão e cassação que havia sofrido naquele Estado, tal título não era sequer reconhecido em Portugal, ante o exposto na alínea a), do n.º2, do artigo 13.º do RLHC e, diga-se, o próprio Estado de emissão já se pronunciou pela “perda definitiva do permisso” o que impõe a conclusão pela inexistência de título capaz de legitimar a sua condução em Portugal e impõe a integração da sua conduta no tipo criminal pelo qual veio a ser condenado, porquanto encontra-se provado que o arguido conduziu um veículo automóvel, na via pública, sem estar habilitado por qualquer título (nacional ou estrangeiro) e que o fez de forma livre, voluntária e conscientemente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei criminal. Estão, portanto, preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime pelo qual foi condenado, previsto e punido pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro[20].
Aqui chegados, só nos resta concluir, portanto, pela inexistência de qualquer violação das normas/disposições legais/constitucionais apontadas, ou, diga-se, de quaisquer outras, improcedendo o presente recurso in totum.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:

A. Ao abrigo do artigo 431.º, alínea a) do Código de Processo Penal, com vista a concretizar a conclusão vertida no artigo 3.º dos factos provados, modificar a matéria de facto provada nos termos seguintes:
“3. À data, o arguido não possuía carta de condução válida, nem qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo, porquanto, pese embora tenha sido titular do título de condução com o n.º ...10..., emitido pelo Reino de Espanha, mediante decisão proferida a ../../2019, transitada em julgado na mesma data, havia sido condenado, pelo Tribunal, Juizo Penal nº2 de Pontevedra, Espanha, na pena de privação do direito de conduzir veículos a motor e ciclomotores [constante no registo criminal como suspensão da carta de condução] por período superior a 2 anos, que implicava, nos termos consignados naquela decisão judicial “perda definitiva do permiso”, encontrando-se ainda registado no seu certificado de registo criminal a pena de cassação da carta de condução, com a inerente “Pérdida de vigência del permisso de conduzir vehículos de motor y ciclomotores”.

Quanto ao mais:
B. Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, ressalvada a modificação da matéria de facto determinada em A., confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
Guimarães, 10 de julho de 2025
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Os Juízes Desembargadores

Isilda Pinho [Relatora]
Florbela Sebastião e Silva [1.ª Adjunta]
Júlio Pinto [2.º Adjunto]


[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..
[4] Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74.
[5] Acórdão do TRC de 24-04-2018, P. n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in www.dgsi.pt
[6] Acórdão do STJ, de 98-07-09, Proc. 1509/97, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 77.
[7] A propósito deste vício, veja-se, entre outros, os Acórdãos do TRP de 15.11.2018, do TRC de 24-04-2018 e do STJ de 18.05.2011, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt.
[9] In Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999.
[10] In “O caso Julgado Parcial”, 2002, pág. 37.
[11] Cfr, neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt
[12] Conforme acórdão do S.T.J, n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012.
[13] Acórdão do TRL, desta 5.ª Secção, datado de 16-11-2021, Processo n.º 1229/17.8PAALM.L1-5, in www.dgsi.pt
[14] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 04-10-2006, Processo n.º 812/06-3.ª; de 08-03-2006, Processo n.º 185/06-3.ª; 04-01-2007, Processo n.º 4093-3.ª e de 10-01-2007, Processo n.º 3518/06-3.ª.
[15] Neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do STJ, de 07-10-2004, Proc. nº 3286/04, 5ª Secção; Além do acórdão já citado do TRL, ainda o Acórdão do TRL, datado de 05-04-2019, Processo n.º 349/17.3JDLSB.L1-9, ambos in www.dgsi.pt e Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs 259/2002, de 18-06-2002 e 140/2004, de 10-03-2004, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[16] Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º volume, Coimbra, ed. 1974, pág. 203 a 205.
[17] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-09.2015, in www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.11.2021, Processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-02-2008, Processo nº 07P4729, acessível em www.dgsi.pt.
[20] Neste sentido, perante alguma similitude com a situação vertida nos presentes autos, veja-se, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 08-11-2022, Processo n.º 1821/20.3GBABF.E1, in www,.dgsi.pt.