Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | PAULO CORREIA SERAFIM | ||
Descritores: | MEDIDA DE COAÇÃO PRISÃO PREVENTIVA CRIME DE INCÊNDIO FLORESTAL REBUS SIC STANTIBUS | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I - Entre outros, a aplicação das medidas de coação obedece ao princípio do caso julgado rebus sic stantibus, significando, essencialmente, que inexistindo alteração dos pressupostos da medida coativa e das exigências cautelares que a determinaram, a mesma não pode ser alterada. II – Encontrando-se em investigação crimes de incêndio florestal, cuja alegada prática pelo arguido motivaram a aplicação de prisão preventiva, por o Tribunal ter entendido em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido, por decisão transitada em julgado, que ocorria perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e que essa medida se revelava adequada, suficiente e proporcional à gravidade dos ilícitos e a única capaz de afastar ou mitigar sobremaneira as exigência cautelares verificadas no caso, não pode tal medida ser oficiosamente revogada e substituída por outra menos gravosa, não privativa da liberdade, no contexto do disposto no art. 213º, nº1, al. a), do CPP, exceto se tiver ocorrido alteração relevante das circunstâncias que motivaram o seu decretamento. III – Não consubstancia fundamento atendível para efeito de alteração relevante das circunstâncias, o facto de ao tempo do reexame decorrer o período de inverno, por alegadamente, face à diminuição do fator calor, elemento determinante do risco de incêndio, as necessidades cautelares perderem atualidade. IV - Admitindo-se que o calor, nomeadamente o calor extremo, é um fator relevante que potencia sobremaneira o surgimento de incêndios, particularmente em contexto florestal, não é menos certo que mesmo no outono e inverno existem dias com temperaturas elevadas - fenómeno cada mais verificado e, não só, mas também, cientificamente associado às alterações climáticas que o nosso planeta vem sofrendo. V - Acresce que tal contribuição significativa das altas temperaturas reflete-se de modo mais significativo nos incêndios de causa natural, não tanto naqueles que têm “mão humana”, particularmente nos deflagrados dolosamente, como sucede no caso vertente. Nas situações de “fogo posto”, o agente mune-se dos meios materiais necessários à ignição do incêndio, logrando causá-lo ainda que as temperaturas não sejam elevadas, e, em regra, fá-lo em zonas que sabe possuírem matérias combustíveis bastantes para manter e disseminar o fogo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: I - Relatório: I.1 - Decisão recorrida: No âmbito do Inquérito nº 2540/24.7JABRG, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Instrução Criminal de Braga – Juiz ..., no dia 09.01.2025, pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal foi proferido despacho com o seguinte teor (referência ...38): “Ao arguido AA foi aplicada em 17/10/2024 a medida de coacção de prisão preventiva, afirmando-se então que se encontrava fortemente indiciado da prática de dois crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo artigo 274.º/1 e 2-a) do Código Penal e por ter sido considerado existirem, no momento da aplicação, os perigos de continuação da actividade criminosa e de “perturbação da paz e tranquilidade públicas”. O arguido interpôs recurso do despacho de aplicação. Entre o mais que nele suscita, pugna pela substituição por medidas de coacção não privativas (artigos 198.º e 200.º do CPP) ou pelo menos pela obrigação de permanência na habitação (artigo 201.º do CPP), com vigilância electrónica. Recurso que se mostra pendente (remetido ao TRG em 03/01/2025). Em sede de revisão trimestral o MP pugna pela manutenção do estatuto coactivo (prisão preventiva), dizendo que os pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação desta medida de coacção não se alteraram, não se tendo reduzido as exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, continuando a prisão preventiva a revelar-se como a mais adequada medida de coacção. Considerando a posição do arguido em sede de recurso, não se afigura relevante assegurar o contraditório, assumindo-se como actualizada a posição que manifesta no recurso. Decidindo. Como se sabe as medidas de coacção, designadamente a de prisão preventiva, estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, não podendo ser revogadas ou substituídas por outras, sem que tenha havido alteração dos pressupostos de facto ou de direito que determinaram a sua aplicação. Isto é, enquanto tudo se mantiver igual também a decisão tendencialmente deverá permanecer imutável (é uma posição jurisprudencial praticamente unânime, cfr. por todos, acórdão do TRE de 05/04/2022, proc. 1063/21.0PBSTB-A.E1, pese embora com dissonância na doutrina, v.g., Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2016, p. 141/143, a qual entende que a referida jurisprudência desconsidera que o sentido do reexame dos pressupostos de aplicação da prisão preventiva (e OPH) é precisamente o de reabrir, de três em três meses, uma discussão ampla sobre tais pressupostos, independentemente de haver ou não qualquer alteração das circunstância – citando como correcta a jurisprudência do TRL no acórdão de 27/09/2006, proc. 679/2006-3). Sem prejuízo, nos termos do acórdão de fixação de jurisprudência (AFJ) do STJ n.º 3/96, “A prisão preventiva deve ser revogada ou substituída por outra medida de coacção logo que se verifiquem circunstâncias que tal justifiquem, nos termos do artigo 212.º do Código de Processo Penal, independentemente do reexame trimestral dos seus pressupostos, imposto pelo artigo 213.º do mesmo Código”. E assim, presentemente, não se pode acompanhar a posição do MP (em sede de revisão). Na verdade, por referência à data de aplicação (17/10/2024), alguma coisa mudou até ao presente - Janeiro de 2025. Não apenas o tempo decorrido, mas essencialmente as condições desse tempo no presente. E, no caso concreto, as condições presentes do tempo decorrido, relativamente ao crime de incêndio (florestal), é um factor determinante que importa – salvo o devido respeito por diversa posição – a afirmação de que as circunstâncias que justificaram a sua aplicação deixaram de existir no presente (artigo 212.º/1-a) do CPP). E por via disso as necessidades cautelares perderam actualidade. Na verdade, o factor calor é um elemento determinante do risco de incêndio. Por isso mesmo, v.g. o Governo, por referência a Setembro de 2024 declarou a situação de alerta (cfr. Despacho 10836-B/2024, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 178-A, de 15 de setembro de 2024, e Despacho 10971-A/2024, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 180, de 17 de setembro de 2024) e fê-lo em período praticamente coincidente com o tempo dos factos. E assim, no tempo presente – inverno –, não pode afirmar-se já que as circunstâncias que determinaram a aplicação se mantêm. Como se sabe, as medidas de coacção são aplicadas quando – no momento da aplicação – se verificar algum dos perigos identificados no artigo 204.º do CPP. No caso a Exmª Juíza que proferiu o despacho de aplicação considerou que em 17 de Outubro de 2024 existiam os perigos que acima se identificaram. Não beliscando assim decidido, enfatiza-se que no tempo actual tal já não acontece por razões que a própria natureza o impõe – o inverno. É por isso que o legislador, sabedor que o tempo de calor é um factor determinante do risco de incêndio, no âmbito desta problemática tratou de conferir alguma especificidade de regime. É certo que o fez no quadro da condenação, mas tal não pode deixar de ter reflexos em sede de medidas de coacção (seja de aplicação; seja, ao que ora interessa, em sede de manutenção), conforme resulta do disposto no artigo 274.º-A do Código Penal e dos artigos 1.º/-f) e 28.º-A e 28.º-B da Lei 33/2010, de 02/09, considerando o legislador “os meses de maior risco de ocorrência de fogos” como relevantes para a instalação dos equipamentos de vigilância electrónica e para efeitos de suspensão de execução da pena (artigo 274.º-A/1 do CP). Do que decorre ter de se afirmar que a circunstância (Outubro de 2024) que foi ser relevante ao tempo da aplicação deixou de o ser actualmente (Janeiro de 2025), pois não pode afirmar-se que Janeiro seja um mês de risco de fogos, sequer de maior risco de fogos. E como tal o perigo de continuação da actividade criminosa está claramente esbatido no tempo actual e consequentemente também está o perigo de o arguido perturbar gravemente a ordem e tranquilidade publicas (por via do primeiro). Dito isto, por se terem alterado as circunstâncias e o princípio da proporcionalidade estar presente em todos os momentos decisórios que contendam com os direitos fundamentais (a liberdade), decido revogar a medida de coacção de prisão preventiva (artigo 212.º/1-a) do CPP). Mas considerando que tais perigos não desapareceram completamente – ademais em face das incertezas do tempo cada vez mais evidentes e que as alterações climáticas têm evidenciado – importa que o arguido sinta que, apesar de em liberdade, estará a ser monitorizado pelas autoridades, pelo que a sua presença junto destas com alguma periodicidade é uma forma de manter acutelado os perigos identificados, concretamente o perigo de continuação da actividade criminosa (e por arrastamento o de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas), apesar de se encontrarem em níveis mínimos de existência. Face ao exposto decido: 1. Revogar a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido AA e ordeno a imediata libertação do mesmo (caso não interesse a sua reclusão à ordem de outro processo). Passe e entregue, de imediato, mandado de libertação. * 2. Em substituição, aplico ao arguido AA a medida de coacção de apresentação semanal (todas as sextas-feiras – entre as 15h e as 17h) no posto policial da área de residência.Mantém-se o TIR. Notifique. Comunique ao OPC da área de residência do arguido. Fica o arguido advertido de que em caso de incumprimento ou cometimento novo facto, poderá ser-lhe alterada a medida de coacção (artigo 203.º do CPP). * Comunique imediatamente ao Tribunal da Relação de Guimarães que o arguido foi libertado no dia de hoje (09/01/2025).”I.2 - Recurso: Inconformado com a predita decisão judicial, o Ministério Público interpôs o presente recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (certidão para instrução do recurso com referência ...04) - transcrição: “a) As medidas de coacção são meios processuais que implicam a restrição de direitos fundamentais do arguido (mormente, o seu direito à liberdade), e na sua concreta aplicação, deve ser tida em conta a sua necessidade e adequação atentas as exigências cautelares que o caso requer, bem como serem proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas. b) Por exigências cautelares devem entender-se o conjunto dos requisitos gerais enunciados no art.º 204.º do Código de Processo Penal. De facto, nenhuma medida de coacção, com excepção do termo de identidade e residência, deve ser aplicada se, em concreto, não se verificar qualquer das circunstâncias referidas no sobredito art.º 204.º, como sejam: i) fuga ou perigo de fuga (al. a)); ii) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova (al. b)); iii) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (al. c)). c) Mantem-se os concretos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e da tranquilidade pública, não obstante nos encontramos no período de inverno. d) No período de Inverno também se verifica o risco de se poderem a vir atear fogos, não obstante as condições climatéricas não se mostram tão favoráveis para tal, tendo em conta, in casu, a personalidade do arguido, o qual uma grande determinação na prática dos factos e uma total indiferença às suas consequências danosas. e) Apenas a medida de coação de prisão preventiva pode, de modo adequado e proporcionado acautelar tais perigos e exigências cautelares. É por isso também a medida necessária. f) Estão verificados todos os requisitos exigidos para a manutenção da medida de coação de prisão preventiva ao arguido. g) O despacho ora recorrido violou, designadamente, os artigos 191º, 192º, 193º, 204º, n.º 1, a l c), 212º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal. Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que mantenha a medida de coação de prisão preventiva ao arguido AA assim se fazendo, como sempre, JUSTIÇA.” I.3 – Contra-alegações: Na primeira instância, o arguido/recorrido AA, notificado do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida (certidão para instrução do recurso com referência ...04). Formulou as seguintes conclusões: “A) O Ministério Público Recorre do Douto Despacho que decidiu revogar a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido; B) O arguido ficou e continua sujeito à medida de coação de apresentações semanais (todas as sextas-feiras) entre as 15 e as 17 horas) no posto policial da área de residência; C) Medida que é justa proporcional e adequada ao caso dos autos; D) Reproduz-se e adere-se na íntegra o teor do douto despacho que ordenou a libertação do arguido sujeitou o mesmo à medida de coação; E) A medida de coação não detentiva aplicada ao arguido é absolutamente adequada, ajustada, exequível e proporcional e acautela e respeita os artigos 191.º, 192.º, 193.º, 204, n.º 1 al. c) e 212.º n.º 2 todos do Código do Processo Penal. F) Tem de ser negado provimento ao Douto Recurso e manter-se a Douta decisão do despacho de que o Ministério Público Recorre.” I.4 – Posição do Ministério Público neste Tribunal ad quem e tramitação subsequente: Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que pugna pela procedência do recurso (referência ...99). Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do Código de Processo Penal, não houve resposta ao aludido parecer. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir. II – Âmbito objetivo do recurso (thema decidendum): É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, CPP, e ao qual nos referimos na ausência de diversa indicação)[1]. Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa decidir é a de saber se existe alteração das circunstâncias de facto que, mitigando as exigências cautelares verificadas aquando do 1º interrogatório judicial do arguido, justifica a decretada substituição da prisão preventiva decretada e a sua substituição por medidas não privativas da liberdade, como decidido no despacho recorrido. III – Apreciação: Dispõe o art. 213º do CPP [com a epígrafe “Reexame dos pressupostos da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação”], na parte que ora releva: “1 - O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas: a) No prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame; b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objecto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.” Entre outros, a aplicação das medidas de coação obedece ao princípio do caso julgado rebus sic stantibus. Tal princípio, como refere Paulo Pinto de Albuquerque [ob. cit., anot. 12 ao art. 193º, p. 549], «significa que a medida de coação pode e dever ser revista logo que se modifiquem as circunstâncias que a justificaram (art. 212º, nº1, al. b), e nº3) e, no caso da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, essa revisão deve ter lugar independentemente do reexame trimestral dos seus pressupostos (acórdão do pleno das secções criminais do STJ nº 3/96) (…) Deste princípio resultam duas consequências práticas. Primo: permanecendo inalterados os pressupostos da medida de coação e as exigências cautelares que as determinaram, ela não pode ser alterada (desde logo, acórdão do TRP, de 3.2.1993, in CJ, XVIII, 1, 247, e acórdão do TRP, de 15.3.2000, in CJ, XXV, 2, 235). Secondo: se aquando do reexame dos pressupostos da medida de coação e, designadamente, da prisão preventiva, não se verificarem circunstâncias supervenientes que modifiquem as exigências cautelares ou alterarem os pressupostos da medida de coação, basta a referência à persistência do condicionalismo que justificou a medida para fundamentar a decisão da sua manutenção (acórdão do TRL, de 4.11.2004, in CJ, XXIX, 5, 128).» Nas palavras do Exmo. Juiz Conselheiro Maia Costa [in “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anotação 1 ao art. 212º, p. 827], «Os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, que regem a aplicação das medidas de coação, impõem a adaptação destas medidas à evolução das exigências cautelares, devendo ser substituídas no caso de menor exigência cautelar, ou revogadas, caso não subsistam tais exigências. É a permanência e o grau destas exigências que serve permanentemente de padrão de avaliação da subsistência das medidas de coação decretadas. As medidas de coação são, pois, necessariamente precárias, na medida em que em cada momento devem ajustar-se às finalidades cautelares que visam salvaguardar, e portanto a todo o tempo podem ser alteradas ou revogadas.» Elucidativa, no sentido apontado, a seguinte jurisprudência do Tribunal da Relação de Guimarães, disponível em www.dgsi.pt: - Acórdão de 24.11.2008, proferido no processo nº 2402/08-2: «I – Sendo, em acto seguido ao primeiro interrogatório judicial, aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, sem que dessa decisão seja interposto recurso, não pode merecer deferimento um requerimento apresentado alguns dias depois, a pedir a substituição daquela medida, fundando-se a pretensão apenas na discordância com a medida de coacção de prisão preventiva, ou seja, sem que seja invocado qualquer facto novo. II – E, em recurso do despacho de indeferimento de tal requerimento, também não pode o arguido vir invocar que não se verificam os pressupostos para aplicação da prisão preventiva, nem discutir a autoria do crime que determinou tal medida, pois a decisão que tanto apreciou já está transitada em julgado. III – Estando as medidas de coacção sujeitas à condição rebus sic stantibus, a substituição de uma medida de coacção por outra menos grave apenas se justifica quando se verifique uma atenuação das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação. IV – Assim, o presente recurso funda-se num subterfúgio que infringe as normas de direito processual penal aplicáveis, pois se serve de um requerimento intercalar para, em recurso do despacho que recai sobre tal requerimento, atacar não a decisão de que se recorre, mas outra, anterior ao requerimento que determinou a prolação da decisão formalmente recorrida.» - Acórdão de 10.09.2012, proferido no processo nº 48/12.2 GAVNF-B.G1: «I) As medidas de coacção não são imutáveis, já que pelas contínuas variações do seu condicionalismo estão sujeitas à condição rebus sic stantibus. II) No caso da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, é a própria lei que, no art. 213º do CPP, determina que o juiz proceda oficiosamente, pelo menos de três em três meses, ao reexame da subsistência dos seus pressupostos. III) Mas a lei pressupõe sempre que algo mudou entre a primeira e a segunda decisão. O juiz não pode, sem alteração dos dados, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogá-lo. Também, inversamente, por maioria de razão, não pode “aperfeiçoá-lo”, acrescentando-lhe fundamentos que antes foram omitidos.» - Acórdão de 10.09.2012, proferido no processo nº 21/14.6 GBBGC-A.G1: «I) O despacho judicial que aplique a prisão preventiva não é definitivo, mas a decisão deve permanecer imutável enquanto "tudo se mantenha igual", isto é, sempre que posteriormente não se verifiquem circunstâncias, quer de facto quer de direito, que justifiquem a revogação ou a alteração da medida de coação. II) Daqui decorre que o despacho proferido nos termos do artº 213º do CPP, como é o caso da decisão recorrida, destina-se unicamente a proceder à reapreciação dos pressupostos, constantes do despacho que anteriormente determinou a aplicação da prisão preventiva e que a justificaram. III) Como tal, a sua fundamentação tem por objeto, apenas, a análise de circunstâncias supervenientes cuja ocorrência possa abalar a sustentabilidade dos pressupostos que conduziram à aplicação da medida de coação, alterando-os, e por esta via, levando à sua substituição ou revogação.» No sentido por nós defendido, ainda os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30.03.2005, processo nº 0541909, do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.02.1999, processo nº 171/99, do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.07.2007, processo nº 10919/2006-3, e do Tribunal da Relação de Évora de 30.06.2015, processo nº 267/06.0GAFZZ-G.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Posto isto, volvendo ao caso vertente, constata-se que o douto despacho proferido em 17.10.2024 [referência ...44], após primeiro interrogatório judicial, que aplicou ao arguido AA a medida de coação de prisão preventiva, transitou em julgado.[2] Ali foi considerado pela Meritíssima Juíza que se encontravam fortemente indiciados factos suscetíveis de consubstanciarem a prática pelo arguido, como autor material e em concurso efetivo, de dois crimes de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274º, nºs 1 e 2, al. a), do Código Penal (CP), cada um deles punível com pena de 3 a 12 anos de prisão. Mais se determinou que se verificavam, em concreto, os pressupostos gerais e específicos de aplicação daquela medida de coação, previstos nos arts. 191º, 192º, 193º, nºs 1 e 2, 202º e 204º, nº1, alínea c), todos do CPP, e quanto a este último conspecto, designadamente, perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Sucede que, no despacho recorrido, datado de 09.01.2025, que procedeu ao reexame trimestral dos pressupostos da prisão preventiva, o Mmo. Juiz (distinto do que havia presidido ao 1º interrogatório judicial do arguido), entendeu que tal medida coativa não se devia manter, por, entretanto, ter ocorrido alteração relevante das circunstâncias que motivaram o seu decretamento, designadamente porque decorria o período de inverno e, assim sendo, face à diminuição do fator calor, elemento determinante do risco de incêndio, as necessidades cautelares perderam atualidade. Entendeu-se assim na decisão recorrida que os perigos do artigo 204.º do CPP que a Exma. Juíza que proferiu o despacho de aplicação considerou ocorrerem à data (17 de outubro de 2024), ao tempo deste despacho já não existiam por razões impostas pela própria natureza – o inverno. Ali se expende que «É por isso que o legislador, sabedor que o tempo de calor é um factor determinante do risco de incêndio, no âmbito desta problemática tratou de conferir alguma especificidade de regime. É certo que o fez no quadro da condenação, mas tal não pode deixar de ter reflexos em sede de medidas de coacção (seja de aplicação; seja, ao que ora interessa, em sede de manutenção), conforme resulta do disposto no artigo 274.º-A do Código Penal e dos artigos 1.º/-f) e 28.º-A e 28.º-B da Lei 33/2010, de 02/09, considerando o legislador “os meses de maior risco de ocorrência de fogos” como relevantes para a instalação dos equipamentos de vigilância electrónica e para efeitos de suspensão de execução da pena (artigo 274.º-A/1 do CP).» Como o Ministério Público recorrente, salvo o devido respeito, discordamos da decisão recorrida, considerando que a argumentação aduzida não merece acolhimento. A natureza dos crimes de incêndio imputados ao arguido e a manutenção que se verifica dos perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas (que o tribunal recorrido, após os considerar atualmente inexistentes, considera em seguida, incoerentemente, “esbatidos”) não se compadece com o caráter sazonal da medida de coação de prisão preventiva que o Tribunal recorrido aparentemente lhe pretende atribuir. Em termos simplistas, parece decorrer da decisão recorrida que se o arguido indiciariamente incendiário for detido no verão ou em qualquer outro momento do ano em que se verifiquem temperaturas elevadas (mormente que justifiquem um alerta de perigo elevado de incêndio por parte das autoridades competentes), está justificada a sua prisão preventiva, mas somente enquanto tais condições climatéricas se mantiverem; diferentemente, caso a detenção ocorra em período temporal com temperaturas mais amenas ou baixas, não deve o arguido ser sujeito a medidas de coação privativas da liberdade e, nesse contexto climatérico, se já se encontrar em situação de reclusão (prisional ou domiciliária), deve a mesma cessar e ele ser imediatamente restituído à liberdade; pressupõe-se que caso regressem as condições climatéricas favoráveis à eclosão e propagação de incêndios, seria de reaplicar a prisão preventiva. Tal entendimento, sendo assaz respeitável, não pode vingar. Admitindo-se que o calor, nomeadamente o calor extremo, é um fator relevante que potencia sobremaneira o surgimento de incêndios, particularmente em contexto florestal, não é menos certo que mesmo no outono e inverno existem dias com temperaturas elevadas - fenómeno cada mais verificado e, não só, mas também, cientificamente associado às alterações climáticas que o nosso planeta vem sofrendo -, assim como tal contribuição significativa das altas temperaturas reflete-se de modo mais acentuado nos incêndios de causa natural, não tanto naqueles que têm “mão humana”, particularmente nos deflagrados dolosamente, como sucede no presente caso. Ou seja, em situações de “fogo posto”, o agente dispõe dos meios materiais necessários à ignição do incêndio, logrando causá-lo ainda que as temperaturas não sejam elevadas, e, em regra, fá-lo em zonas que sabe possuírem matérias combustíveis bastantes para manter e disseminar o fogo. Como sagazmente observa a Exma. PGA no parecer que lavrou nos autos: «(…) não só não se pode concluir que nos meses de inverno não há riscos de incêndio, face às atuais e imprevisíveis condições climáticas – há dias de inverno que parecem de verão e de verão que parecem de inverno -, como não se atinge a razão de ser de tal entendimento. Será que quando a temperatura subir o arguido deve ser submetido a prisão preventiva para ser libertado logo que a temperatura arrefeça? Ou deverá considerar-se que inexiste perigo de continuação da atividade criminosa se chover, ainda que tal suceda em pleno verão? Aliás, saliente-se que ao arguido foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva a 17-10-2024 e não no período estival.» Acresce que o facto de o legislador, a propósito do regime sancionatório do crime de incêndio florestal ter apelado ao “período coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos” (cf. art. 274º-A, nº1, do CP), somente releva a visão legislativa de nesses interlúdios temporais ser conveniente a fixação pelos tribunais de condições mais apertadas para aplicação de suspensão da execução da pena e de concessão de liberdade condicional aos agentes desse tipo de crime, não permitindo concluir que o legislador desmerece o risco de incêndio fora dos mencionados períodos de tempo, especialmente para efeitos de aplicação da medida coativa que assegure as exigências cautelares que em concreto se verifiquem, e que no ajuizado caso são relevantes e acentuadas. Destarte, mantêm-se significativos os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação séria da ordem e tranquilidade públicas. Concluindo. Face ao exposto, impõe-se a revogação do douto despacho recorrido, sendo de manter a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA, em detrimento de qualquer outra, por não ter ocorrido alteração do circunstancialismo de facto e de direito verificado à data da sua aplicação e revelando-se aquela, mesmo atualmente, a única medida adequada e suficiente para cumprir as existentes exigências cautelares, outrossim, proporcional à gravidade objetiva dos factos e à razoavelmente provável aplicação ao recorrente de uma pena de prisão efetiva, caso a prova produzida em julgamento confirme a matéria de facto fortemente indiciada até ao momento da prolação da decisão sindicada. Tanto mais que não se mostra expirado o prazo máximo de duração da medida de prisão preventiva (cf. art. 215º, nº1, al. c), e nº2, do CPP). Assim sendo, merece provimento o recurso deduzido pelo Ministério Público. IV – Dispositivo: Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao douto recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade, revogar a douta decisão recorrida, que revogou a medida de coação de prisão preventiva que havia sido aplicada ao arguido AA, substituindo-a pela medida de apresentação semanal no posto policial da área de residência, determinando-se, para efeitos do disposto no art. 213º, nº1, al. a), do CPP, que o arguido continue a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito a prisão preventiva. Sem tributação. Emitam-se os competentes mandados de detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional territorialmente competente, devendo cumprir-se ainda o disposto no nº10 do art. 194º do CPP. Notifique (art. 425º, nº6, do CPP). * Guimarães, 10 de julho de 2025, Paulo Correia Serafim (Relator) [assinatura eletrónica] Armando da Rocha Azevedo (1º Adjunto) [assinatura eletrónica] Cristina Xavier da Fonseca (2ª Adjunta) [assinatura eletrónica] (Acórdão elaborado pelo relator e por ele revisto, com recurso a meios informáticos, encontrando-se assinado eletronicamente pelos Desembargadores subscritores – cfr. art. 94º, nºs 2 e 3, do CPP) [1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade. [2] Foi admitida a desistência do recurso que o arguido havia interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães e, consequentemente, por inutilidade superveniente da lide, declarada extinta a instância recursiva (cf. despacho proferido no dia 23.01.2025 pelo Exmo. Desembargador Relator no Apenso B – ref. ...93). |