Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4942/24.0T8VNF-B.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRAZO DE REQUERIMENTO
TEMPESTIVIDADE
REGIME DE CONTAGEM DOS PRAZOS DO CIRE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Não tendo o juiz, na sentença que declarou a insolvência, declarado aberto o incidente de qualificação respectiva e tendo dispensado a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório previsto no art.º 155.º do CIRE, o incidente de qualificação da insolvência deverá ser deduzido no prazo peremptório de quinze dias.

II. Não tendo o juiz fixado o prazo de apresentação do relatório previsto no art.º 155.º do CIRE (na sentença falimentar ou em despacho posterior), o termo inicial da contagem do prazo de 15 dias para dedução do incidente de qualificação da insolvência deverá coincidir, não com a mera apresentação posterior do dito relatório, mas com a sua notificação aos interessados.

III. Iniciando-se a contagem de um prazo com uma notificação, o seu termo inicial exclui o dia em que aquela tenha sido (efectivamente ou por presunção) realizada; e estando em causa uma notificação eletrónica, por meio do sistema de informação de suporte à actividade dos tribunais, presume-se a mesma feita no terceiro dia posterior ao seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.

IV. Os prazos consagrados no CIRE são contínuos e não se suspendem durante as férias judiciais, atenta a natureza urgente dos processos nele consagrados; e, terminando em dia não útil, o seu termo transfere-se para o primeiro dia útil imediato.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo
Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.ª Adjunta - Maria Gorete Morais;
2.º Adjunto - João Peres Coelho.
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ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. Em 09 de Setembro de 2024, nos autos principais de insolvência relativos a AA e mulher, BB, residentes na Travessa ..., freguesia ..., concelho ... (que com o n.º 4942/24.0T8VNF-B.G1 correm termos pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, Juiz 1), foi proferida sentença (que aqui se dá por integralmente reproduzida), declarando a insolvência dos mesmos, por apresentação respectiva em 27 de Julho de 2024; e na mesma não foi declarado, «por ora, aberto o incidente de qualificação da insolvência», foi dispensada «a realização a Assembleia de Apresentação do Relatório a que alude o art. 156º do CIRE» e não foi fixado qualquer prazo à Administradora da Insolvência para junção aos autos do dito relatório. 

1.1.2. Em 14 de Novembro de 2024 a Administradora da Insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art.º 156.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [1] (que aqui se dá por integralmente reproduzido), exarando a «opinião [de] que o presente processo deverá encerrar por insuficiência da massa nos termos do disposto no Art.º 232 do CIRE, uma vez que a Massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da Massa insolvente».

1.1.3. Em 14 de Novembro de 2024 a Secretaria certificou no citius a notificação electrónica aos credores do relatório apresentado pela Administradora da Insolvência, naqueles se contando a Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC.

1.1.4. Em 03 de Dezembro de 2024 a credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência, pedindo que a mesma fosse considerada culposa e afectados por essa qualificação os Insolventes (conforme articulado respectivo, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

1.1.5. Em 10 de Dezembro de 2024 foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido), declarando aberto o incidente de qualificação da insolvência, lendo-se no mesmo:
«Declaro aberto o incidente de qualificação de insolvência.
Cumpra-se o disposto no art.º 188,6 CIRE».

1.1.6. Em 23 de Dezembro de 2024 a Administradora da Insolvência veio pedir a prorrogação, por trinta dias, do prazo para apresentação do seu parecer sobre a qualificação da insolvência, «tendo em conta [que] os factos relatados no requerimento do credor requerente da qualificação (…) ainda não se encontram completamente levantados e esclarecidos, faltando ainda analisar e recolher vária documentação».

1.1.7. Em 14 de Janeiro de 2025 foi proferido despacho, deferindo a prorrogação requerida.

1.1.8. Em 07 de Fevereiro de 2025 a Administradora da Insolvência apresentou o seu parecer sobre a qualificação da insolvência (que aqui se dá por integralmente reproduzido), considerando que a insolvência deveria ser qualificada como culposa e afectados por essa qualificação os Insolventes, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
IV - PARECER
Nesta conformidade e por todo o exposto o parecer da Administradora da Insolvência vai no sentido de qualificar a insolvência de AA e BB, como CULPOSA, devendo ser afectada por tal qualificação o casal insolvente;

AA e
BB
(…)»

1.1.9. Em 12 de Fevereiro de 2025 o Ministério Público apresentou o seu parecer sobre a qualificação da insolvência (que aqui se dá por integralmente reproduzido), aderindo ao prévio da Administradora da Insolvência, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Assim sendo, concordando com o parecer emitido pela Sr.ª administradora a insolvência, entendemos que a insolvência de AA e BB, deve ser qualificada como culposa, devendo ser os mesmos afetados por tal qualificação.
(…)»

1.1.10. Em 12 de Março de 2025 vieram os Insolventes (AA e mulher, BB) deduzir oposição à qualificação da insolvência como culposa, pedindo nomeadamente que se julgasse o incidente extemporâneo, por incumprimento do prazo peremptório previsto no art.º 188.º, n.º 1, do CIRE para a sua dedução (conforme articulado respectivo, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
Alegaram para o efeito, em síntese, que, sendo o prazo de quinze dias previsto no art.º 188.º, n.º 1, do CIRE, de carácter peremptório, o mesmo já se encontrava decorrido quando foi instaurado o incidente de qualificação da insolvência.

1.1.11. Em 27 de Março de 2025 a credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC veio responder à oposição deduzida pelos Insolventes (AA e mulher, BB), pedindo que a mesma fosse julgada improcedente (conforme articulado respectivo, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
Alegou, no que à excepção de extemporaneidade do incidente de qualificação de insolvência diz respeito, que, tendo sido notificada do relatório apresentado pela Administradora da Insolvência no dia 18 de Novembro de 2024, e tendo requerido a abertura do incidente de qualificação da insolvência no dia 03 de Dezembro de 2024, fê-lo no décimo quinto dia de que dispunha para o efeito.
Mais alegou ter sido o dito incidente já declarado aberto por despacho de 10 de Dezembro de 2024, despacho esse irrecorrível.

1.1.12. Em 02 de Abril de 2025 foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido), julgando procedente a excepção de extemporaneidade do incidente de qualificação de insolvência, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«Dispõe o artigo 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, na redação introduzida pela Lei 9/2022, de 11 de janeiro que
“1 - O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
2 - O prazo de 15 dias previsto no número anterior pode ser prorrogado, quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não suspende o prazo em curso.
3 - A prorrogação prevista no número anterior não pode, em caso algum, exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º ”
Tal norma é vinculativa e se aplica aos processos pendentes. (cfr. artigos 10º. nº 1 da Lei nº 9/2022, de 11/1 e 13º, nº do Código Civil.
Cumpre, no entanto, expender o seguinte raciocínio – qual a natureza jurídica deste prazo.
Tal questão dividiu a jurisprudência. No entanto, e em virtude da alteração legal supra referida, a questão parece definitivamente ultrapassada.
Nas palavras de M.ª Rosário Epifânio, “A natureza perentória era justificada por razões de segurança jurídica e de proteção dos potenciais afetados; já a natureza meramente ordenadora encontrava respaldo na finalidade do incidente qualificador da insolvência – o reforço da tutela dos credores concursais, que não se basta com a mera responsabilização patrimonial do insolvente e a privação do seu poder de disposição.
Na minha opinião, o legislador consagrou uma solução que permite conciliar estes interesses antagónicos. Isto porque, a rigidez do prazo de 15 dias (imposta pela tutela dos potenciais afetados), expressamente qualificado como prazo perentório, é temperada pela possibilidade de prorrogação do mesmo, com o fundamento previsto no n.º 2 do artigo 188.º (agora em nome dos interesses sancionatórios e indemnizatórios dos credores concursais).”
 
Assim, convém ter presente a seguinte factualidade:
1. A sentença de declaração de insolvência foi proferida em 09-09-24, tendo sido dispensada a realização de Assembleia de Credores.
2. O relatório a que alude o art.º 155 foi junto aos Autos a 14-11-24.
3. O requerimento de abertura do incidente de qualificação de insolvência foi apresentado aos autos, pela credora Herança Aberta e Ilíquida e Indivisa por Óbito de CC, em 4-12-24.
4. O Parecer da Sra. Administradora de Insolvência foi junto aos Autos em 07-02-25.
 
Ora, considerando que o prazo de 15 dias após a apresentação do relatório terminou a 29-112024, e o parecer de qualificação da insolvência foi apresentado em juízo, pela Sr.ª administradora de insolvência em 7-02-2025, verifica-se que o prazo legal foi ultrapassado.
 
Impõe-se, portanto, determinar a extemporaneidade da abertura do presente incidente.
Notifique».
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1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada com o último despacho referido, a credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e se julgasse tempestivo o incidente de qualificação da insolvência.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

1. Na sentença que declara a insolvência foi dispensada a realização da Assembleia de Credores, mas não foi fixado um prazo à Senhora Administradora da Insolvência para apresentar o relatório a elaborar nos termos do artigo 155.º do CIRE.
 
2. A notificação eletrónica da junção do relatório da Administradora de Insolvência na plataforma Citius ocorreu no dia 14.11.2024 e, nos termos do artigo 248.º do CPC, essa notificação considera-se efetuada no terceiro dia útil subsequente, ou seja, no dia 18.11.2024.
 
3. Por força do artigo 138.º do mesmo diploma, a contagem do prazo processual iniciou-se no primeiro dia útil seguinte ao da notificação, o que significa que o prazo de 15 dias para requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência decorreu entre 19.11.2024 e 03.12.2024, inclusive.
 
4. A Recorrente submeteu o requerimento eletronicamente via Citius exatamente no dia 03.12.2024, conforme documento comprovativo constante dos autos, não havendo qualquer dúvida quanto à tempestividade do ato.
 
5. A decisão recorrida, ao considerar o requerimento extemporâneo com base numa suposta apresentação a 04.12.2024, incorre num erro que compromete a validade da sua fundamentação e conclusão.
 
6. Mais ainda, ao ignorar as normas aplicáveis à contagem de prazos em contexto de notificações eletrónicas, a decisão viola o disposto nos artigos 248.º, 138.º e 144.º do CPC, aplicáveis por remissão expressa do artigo 17.º do CIRE.
 
7. Esta interpretação desatenta e formalista das regras processuais impediu a recorrente de ver apreciada a sua pretensão, numa matéria de manifesta relevância substantiva e processual, nomeadamente quanto à responsabilidade dos insolventes e outros por atos prejudiciais à massa insolvente.
 
8. Mesmo que, por mera hipótese, se considerasse que o prazo de 15 dias para requerer a abertura do incidente de qualificação começa a contar desde o dia da apresentação do relatório elaborado nos termos do artigo 155.º, sempre se aplicaria o disposto no artigo 139.º, n.º 5 do CPC, que permite a prática do ato nos três dias úteis subsequentes, mediante pagamento de multa. Assim sendo, o requerimento manter-se-ia tempestivo até 06.12.2024.
 
9. A decisão recorrida, ao recusar conhecer o pedido com base em pressupostos errados de facto e de direito, consubstancia nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC, por ter sido praticado um ato em violação de norma legal imperativa e com manifesta influência na decisão da causa.
 
10. Ao impedir o acesso ao incidente de qualificação da insolvência, a decisão violou também o direito fundamental de acesso à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
 
11. Acresce que a decisão proferida viola o despacho que já tinha declarado a abertura do incidente e que já tinha transitado em julgado, sendo, por isso, ineficaz nos termos do artigo 625.º do CPC.
 
12. Deve, por conseguinte, ser revogado o despacho recorrido e ordenada a admissão do requerimento para abertura do incidente de qualificação da insolvência, assegurando-se o pleno contraditório e a apuração do mérito.
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1.2.2. Contra-alegações
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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1.2.3. Processamento ulterior do recurso
Tendo sido proferido despacho pelo Tribunal a quo a admitir o recurso da credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC - como «de apelação, subida imediata, nos próprios autos (apenso) e com efeito meramente devolutivo» -, e fixando o valor da causa «para efeito de recurso» «em 5.000,01», foi o mesmo recebido por este Tribunal ad quem, sem alteração.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [2].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [3], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pela credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC, uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão Única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei, ao julgar que o incidente de qualificação de insolvência foi deduzido de forma extemporânea (isto é, uma vez ultrapassado o prazo de 15 dias de que a Credora dispunha para o efeito), tendo ainda desse modo violado decisão anterior sua transitada em julgado (isto é, prévio despacho que declarara aberto o dito incidente), devendo ser alterada a decisão de mérito (isto é, considerando o incidente deduzido oportunamente e/ou o despacho recorrido violador de caso julgado) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade de facto relevante para a decisão do recurso de apelação interposto coincide com a descrição feita no «I - RELATÓRIO» da mesma, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Incidente de qualificação da insolvência - Prazo de requerimento
4.1.1. Propósito (do incidente)
Lê-se no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março (que aprovou o CIRE), que um «objectivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresas e dos administradores de pessoas colectivas. É essa a finalidade do novo “incidente de qualificação da insolvência”».
Reconhece-se, a propósito, que as «finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações», já que a «coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados actos prejudiciais para os credores».
O incidente destina-se, assim, «a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajoso para a empresa» (com bold apócrifo).
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4.1.2. Legitimidade - Prazo
4.1.2.1. Na sentença falimentar
Lê-se no art.º 36.º, n.º 1, do CIRE que, na «sentença que declarar a insolvência, o juiz», caso «disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com caráter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º» (al. i)); e designa «dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes, para a realização da reunião da assembleia de credores aludida no artigo 156.º, designada por assembleia de apreciação do relatório, ou declara, fundamentadamente, prescindir da realização da mencionada assembleia» (al. n)).
Com efeito, e após as alterações introduzidas ao CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, o incidente de qualificação de insolvência deixou de ser obrigatório e oficioso, como sucedia anteriormente (era então, um imperativo universal para todos os processos, ainda que pudesse revestir apenas a modalidade de incidente limitado): cabe agora ao juiz, na sentença em que declara a insolvência, ajuizar se já dispõe, ou ainda não, de elementos suficientes para declarar aberto o dito incidente.
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4.1.2.2. Após a sentença falimentar
Mais se lê, no art.º 188.º, n.º 1, do CIRE (com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro [4]), que o «administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes».
Logo, não tendo o juiz, na sentença que declarou a insolvência, declarado aberto o incidente de qualificação respectiva, a partir de então a legitimidade para o requerer passou a pertencer exclusivamente ao administrador da insolvência e aos interessados [5] (destes se excluindo o juiz [6]); e ambos disporão de um prazo de quinze dias para o efeito, contando-se o mesmo da data de realização da assembleia de credores, ou, se esta tiver sido dispensada, da data de apresentação, pelo administrador da insolvência, do relatório previsto no art.º 155.º do CIRE.

Compreende-se, por isso, que se afirme que hoje «a abertura do incidente passou a estar limitada a dois momentos/duas fases: a fase da declaração de insolvência, com o que se visa abranger os casos em que a conveniência da abertura é visível logo de início, e a fase posterior à junção (e à eventual apreciação) do relatório a que se refere o art. 155º, com o que se visa abranger os casos em que a conveniência da abertura apenas se torna visível mais tarde».
É, ainda, «razoável entender que a letra da lei, colocando a abertura do incidente nesta segunda fase na dependência da iniciativa dos interessados, reflecte a intenção do legislador de limitar, em geral, a abertura do incidente na estrita medida em que os interessados se movessem. Corresponde isto a uma clara privatização do incidente de qualificação de insolvência» (Catarina Serra, «O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022», Julgar, n.º 48, pág. 15).
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Discutiu-se, antes de alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, ao art.º 188.º, do CIRE, se este prazo de quinze dias era meramente ordenador do processo [7], ou revestia carácter peremptório (isto é, o seu decurso extinguiria o direito de praticar o acto, conforme art.º 139.º, n.º 3, do CPC) [8]. A questão está neste momento definitivamente ultrapassada, pela expressa letra da lei (que sufragou aquele segundo entendimento).
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4.1.2.3. Prorrogação do prazo
Lê-se ainda, no mesmo art.º 188.º, do CIRE, que: o «prazo de 15 dias previsto no número anterior pode ser prorrogado, quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não suspende o prazo em curso» (n.º 2); esta prorrogação «não pode, em caso algum, exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º» (n.º 3); e o «juiz decide sobre o requerimento de prorrogação, sem possibilidade de recurso, no prazo de 24 horas, e a secretaria notifica imediatamente ao requerente o despacho proferido, nos termos da segunda parte do n.º 5 e do n.º 6 do artigo 172.º do Código de Processo Civil, e publicita a decisão através de publicação na Área de Serviços Digitais dos Tribunais» (n.º 4).
De forma conforme com a natureza já assumida (pela lei) do carácter peremptório do prazo para se requerer (administrador da insolvência e interessados) o incidente de qualificação da insolvência, veio agora o art.º 188.º, do CIRE, permitir expressamente a sua prorrogação [9], atendendo às vozes daqueles que reputavam de insuficiente o dito prazo de quinze dias [10]
Compreende-se que assim seja, já que, em momento anterior à insolvência, nem o administrador da insolvência, nem os credores do insolvente, tiveram possibilidade de escrutinar a sua actuação e/ou os documentos de suporte à mesma; e, posteriormente, após aquele efectivo acesso, não raro será necessário um prazo mais longo para reunião e comprovação de indícios de uma actuação culposa.

Contudo, e à semelhança de outras disposições processuais [11], impôs o preceito que: o requerimento seja apresentado antes do decurso integral do prazo legal; a respectiva apresentação não suspende o seu decurso; o mesmo deve ser apreciado em 24 horas; e o despacho que defira a dita prorrogação é irrecorrível.
Compreende-se que assim seja, já que: a prorrogação de prazo destina-se a permitir o alongamento de um que ainda esteja em curso (e, por isso, autoriza que o acto que dele depende ainda seja passível de ser praticado), e não a obstar ao seu já verificado termo (obviando ao efeito preclusivo do seu decurso) [12]; a dita prorrogação não deve ser instrumentalizada para fins meramente dilatórios (nomeadamente, quando seja absolutamente destituída de fundamento) [13]; não suspendendo o prazo em curso, a decisão em vinte e quatro horas pretende assegurar (para além da possibilidade de prorrogação de um  prazo ainda em curso) que, rapidamente, o requerente saiba se dispõe, ou não, de prazo mais alargado para o impulso processual que lhe está cometido; e, tendo em conta os efeitos nefastos que a decisão contrária comportaria para o processamento dos autos (em que a posterior revogação do despacho que tivesse indeferido o pedido de prorrogação implicaria que o incidente de qualificação regressasse à sua fase inicial, quiçá sem grande utilidade, face ao entretanto adquirido nos autos, e em que a revogação do despacho que tivesse deferido aquele pedido de prorrogação tornaria definitivamente inexistente o referido incidente, onde indiscutivelmente se acautelam relevantes interesses gerais e públicos), não se justifica que seja recorrível [14].

Dir-se-á, porém, ser discutível se a irrecorribilidade do despacho que prorrogue o prazo de dedução do incidente de qualificação da insolvência reporta-se tão somente ao juízo acerca das razões («quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período») que o alicerçam, ou também ao juízo acerca da legalidade processual do requerimento (v.g. dedução por quem tem legitimidade para o efeito, e dentro do prazo autorizado) [15].
Dir-se-á mesmo que, de forma geral, a irrecorribilidade prevista na lei poderá deixar de se verificar se a decisão em causa (dita por aquela como irrecorrível) não for proferida em harmonia com os requisitos processuais que a lei prescreve para a sua emissão (uma vez que o que normalmente se assegura, com o não recurso, é a insindicabilidade da apreciação de mérito dos fundamentos substantivos da estatuição legal em causa). Nesta hipótese, e havendo um efectivo prejuízo para as partes, poder-se-á defender que estarão as mesmas legitimadas para impugnar a dita decisão por via do recurso ordinário, quando este, nos termos gerais, for admissível [16].

Por fim, dir-se-á que a prorrogação judicial (legalmente prevista) de um prazo estabelecido para a prática de um acto, implica que se some ao integral prazo legal inicial o integral prazo resultante da prorrogação deferida [17]; e ainda (crendo-se que quase desnecessariamente) que o termo inicial da contagem do prazo resultante da prorrogação coincide com o termo final do prazo legal inicial, e não com qualquer decisão de deferimento ou notificação desta [18].
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4.1.2.4. Contagem do prazo
4.1.2.4.1. Termo inicial
Relativamente ao termo inicial do prazo de 15 dias para se requerer o incidente de qualificação de insolvência, discute-se se o mesmo deverá coincidir com a mera apresentação do relatório pelo administrador da insolvência, ou antes com a sua notificação aos interessados (nestes se incluindo, naturalmente, os credores).

Ora, tem-se entendido que, atenta a natureza urgente do «processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos», conforme art.º 9.º, n.º 1, do CIRE [19], o dito termo inicial deverá coincidir com a mera apresentação do relatório sempre que se possa previamente conhecer a data em que ocorrerá.
Precisando, sendo dispensada na sentença falimentar a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório previsto no art.º 155.º do CIRE, desde que o juiz fixe o prazo para a respectiva apresentação (naquela ou em despacho posterior) e o mesmo venha a ser cumprido pelo administrador da insolvência, os interessados estarão em condições de conhecer a data da sua efectiva junção aos autos, pela consulta que façam dos mesmos.
Já se a realização da dita assembleia de credores não for dispensada, saberão igualmente os interessados em que prazo concreto deverá ser o dito relatório apresentado (repete-se, desde que cumprido pelo administrador da insolvência); e, por isso, apenas são notificados da data para a realização dessa diligência e não também do relatório.

De outro modo, porém, se terá de decidir quando não seja possível aos interessados conhecer antecipadamente o período dentro do qual o administrador da insolvência irá juntar o dito relatório, ou porque não foi previamente fixado pelo juiz (na sentença falimentar em que dispensou a realização da assembleia de credores ou em despacho posterior), ou porque, tendo sido fixado ou decorrendo desde logo da lei (no caso de se ter realizado a assembleia inicial de credores), veio a ser incumprido pelo administrador da insolvência, sem que o mesmo haja, simultaneamente, indicado outro.
Nestas situações, o termo inicial da contagem do prazo de 15 dias em causa deverá coincidir com a notificação do relatório aos interessados, por só esta solução ser conforme com o art.º 20.º da CRP, nomeadamente com o seu n.º 1 (direito de acesso aos tribunais), com o seu n.º 4 (direito a um processo equitativo) e com o seu n.º 5 (direito a um processos célere) [20].

A jurisprudência parece vir sufragando o entendimento exposto [21].
*
4.1.2.4.2. Critérios de contagem
Relativamente ao regime de contagem dos prazos, lê-se no art.º 279.º do CC, relativo à «fixação do termo», na sua al. b), que, na «contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr»; e, nos termos do art.º 296.º do mesmo diploma, as «regras constantes do artigo 279º são aplicáveis, na falta de disposição especial em contrário, aos prazos e termos fixados por lei, pelos tribunais ou por qualquer outra entidade».
Logo, iniciando-se a contagem de um prazo com a notificação de uma decisão, o dito termo inicial exclui o dia em que a mesma tenha sido (efectivamente ou por presunção) realizada.

Mais se lê, no art.º 138.º, do CPC, que o «prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração foi igual ou superior a seis meses e se tratar de atos a praticar em processos que a lei considere urgentes» (n.º 1); e quando «o prazo para a prática de ato processual terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o 1º dia útil seguinte» (n.º 2).
Logo, aplicando-se subsidiariamente aos «processos regulados» no CIRE o CPC, conforme art.º 17.º, n.º 1, do CIRE, e tenta a natureza urgente do rocesso de insolvência, os prazos consagrados no mesmo são contínuos e não se suspendem durante as férias judiciais; e, terminando em dia não útil, o seu termo transfere-se para o primeiro dia útil imediato.

Lê-se ainda, no art.º 247.º, n.º 1, do CPC, que as «notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários»; e lê-se no art.º 248.º, n.º 1, do CPC, que os «mandatários são notificados por via eletrónica nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, devendo o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no terceiro dia posterior ao seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja» [22].
Logo, podendo «as notificações de atos processuais praticados no processo de insolvência, seus incidentes e apensos, com exceção de atos das partes, (…) ser efetuadas por qualquer das formas previstas no n.º 5 do artigo 172.º do Código de Processo Civil», conforme n.º 2 do art.º 9.º do CIRE, estando em causa uma notificação eletrónica, por meio do sistema de informação de suporte à actividade dos tribunais, presume-se a mesma feita no terceiro dia posterior ao seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.

Por fim, lê-se no art.º 139.º do CPC, no seu: n.º 5, que, independentemente «de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa», de valor crescente consoante seja praticado no 1.º, no 2.º ou no 3.º dia, correspondendo neste último caso a «40% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC»; e no seu n.º 6, que, praticado «o ato em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25% do valor da multa, desde que se trate de ato praticado por mandatário»..
 Logo, e não obstante tenha decorrido o prazo peremptório de que a parte dispunha para praticar o acto, não se extingue o direito de o praticar desde que essa prática ocorra num dos três dias úteis seguintes ao do seu termo, ficando, porém, a sua validade dependente do cumprimento das sanções pecuniárias que a lei estabelece.

Esta faculdade foi consagrada pela primeira vez pelo Decreto-Lei n.º 323/70, de 11 de Julho, mantendo-se desde aí nos seus traços fundamentais, variando, porém, o montante das multas [23].
Precisa-se que no caso previsto no n.º 5 do art.º 139.º citado o pagamento imediato da multa não depende de qualquer despacho judicial, nem da secretaria, sendo um encargo que impende sobre a parte que pretende ver praticado e validado o acto processual apresentado fora do prazo legal para o efeito. O montante da multa deverá, por isso, ser autoliquidado através do DUC [24].
Já no caso previsto no n.º 6 do mesmo preceito o regime é diferente. Com efeito, enquanto «que a primeira das referidas penalizações (a da multa propriamente dita) se prende com a circunstância do acto ser praticado por mandatário fora de prazo mas ainda dentro dos três dias subsequentes ao termo desse prazo (cujo montante varia em função do dia daqueles três subsequentes a que disser respeito), já a o acréscimo de 25% do valor dessa multa encontra a sua razão de ser no facto dessa multa devida não ser paga imediatamente como se exige em tal preceito legal, sendo este apenas exigível se o acto for praticado por mandatário em qualquer um dos três dias subsequentes sem que a multa correspondente seja paga de imediato» (Ac. da RC, de 22.01.2013, Maria José Guerra, Processo n.º 958/12.7TBCBR-B.C1, com bold apócrifo).
É nesta fase (quando a multa não foi paga de imediato), e só nela, que a secretaria intervém (notificando o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25 % do valor desta); e apenas quando se trate de acto praticado por mandatário (pois se o ato for praticado directamente pela parte, em acção que não importe a constituição de mandatário, o pagamento da multa só é devido após notificação efetuada pela secretaria, na qual se prevê um prazo de 10 dias para o referido pagamento, conforme n.º 7, do art.º 139.º, citado) [25].
«A diferença de tratamento resulta do facto de o mandatário ser um profissional do foro, licenciado em direito, que percebe de leis, sabe qual a quantia a pagar e, como tal, reúne qualidade e condições que em princípio a parte não reúne, nem possui» (Ac. da RP, de 07.04.2016, António José Ramos, Processo n.º 3616/15.7T8VNG-A.P1).
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4.1.3. Irrecorribilidade (do despacho de abertura do incidente)
Por fim, lê-se no art.º 188.º do CIRE, no seu n.º 5, que o «despacho que declara aberto o incidente de qualificação da insolvência é irrecorrível, sendo de imediato publicado no portal Citius».
Compreende-se que assim seja, já que (como decisão meramente interlocutória) não afectando a abertura do incidente, nesse momento e por si só, a esfera jurídica de quem quer seja, partes ou terceiros  (reservada para o requerimento de qualificação da insolvência que venha a ser apresentado, consoante o seu posterior processamento), não se justifica que seja recorrível (reservando-se essa possibilidade para a decisão final) [26].

Crê-se, porém, que fora desse momento poderão vir a ser objecto de impugnação, não só os fundamentos da qualificação da insolvência como culposa aduzidos, como os demais requisitos que a dedução do incidente pressupõe (v.g. legitimidade do requerente e tempestividade do seu requerimento), nomeadamente quando antes tenham sido (em tal despacho inicial) apreciados de forma implícita ou meramente tabelar [27]. Com efeito, nesta hipótese inexiste um juízo final de mérito sobre questão previamente controvertida e/ou de apreciação oficiosa, sobre o qual se pudesse ter formado caso julgado (conforme art.ºs 619.º e 620.º, ambos do CPC).
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.2.1. Juízo inicial (liminar) do Tribunal a quo
Concretizando, verifica-se que, não tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência na sentença que, em 09 de Setembro de 2024, a declarou quanto a AA e mulher, BB, na mesma dispensou-se ainda a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório a apresentar pela Administradora da Insolvência; e não se lhe fixou qualquer prazo para o efeito.
Mais se verifica que em 14 de Novembro de 2024, quinta-feira, a Administradora da Insolvência juntou aos autos o dito relatório (a que alude o art.º 155.º do CIRE).
Verifica-se ainda que nesse mesmo dia a Secretaria certificou no citius a notificação electrónica aos credores do referido relatório, neles se incluindo a Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC; e assim os mesmos consideram-se notificados no dia 18 de Novembro de 2024, segunda-feira.
Por fim, verifica-se que, dispondo então qualquer deles do prazo peremptório de 15 dias para requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência, a credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC o fez no dia 03 de Dezembro de 2024, último dia de que dispunha para o efeito.

Logo, quando em 10 de Dezembro de 2024 foi proferido despacho, declarando aberto o incidente de qualificação da insolvência, reconheceu desse modo, e correctamente, a dedução oportuna do mesmo.
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4.2.2. Juízo recorrido do Tribunal a quo
Concretizando novamente, tendo sido deferida à Administradora da Insolvência a prorrogação, por trinta dias, do prazo para apresentação do seu parecer sobre a qualificação da insolvência, veio a mesma juntá-lo aos autos em 07 de Fevereiro de 2025, defendendo dever a mesma ser qualificada como culposa e afectada por ela os Insolventes (AA e mulher, BB); e em 12 de Fevereiro de 2025 o Ministério Público aderiu ao seu parecer.
Mais se verifica que em 12 de Março de 2025 os Insolventes (AA e mulher, BB) apresentaram oposição ao incidente deduzido, defendendo pela primeira vez nos autos a respectiva extemporaneidade (por incumprimento do prazo peremptório previsto no art.º 188.º, n.º 1, do CIRE para o efeito); e em 27 de Março de 2025 a credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC respondeu, defendendo tê-lo deduzido oportunamente.
Por fim, verifica que em 02 de Abril de 2025 foi proferido o despacho (depois recorrido), julgando procedente a excepção de extemporaneidade do incidente de qualificação de insolvência, nomeadamente por ter considerado, de forma errada, que o mesmo fora apresentado em 4 de Dezembro de 2024 (um dia depois do prazo de 15 dias previsto para o efeito), e não, como efectivamente o foi, no dia 03 de Dezembro de 2024.

Logo, e ao contrário do então ajuizado pelo Tribunal a quo, foi-o dentro do prazo que a lei prevê para o efeito.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela procedência do recurso de apelação interposto pela credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela credora Herança Aberta Ilíquida e Indivisa por óbito de CC e, em consequência, em

· Revogar o despacho recorrido (que julgou extemporânea a dedução, pela Recorrente, do incidente de qualificação da insolvência de AA e mulher, BB).
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Custas da apelação pela Recorrente, de acordo com o critério do proveito (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
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Guimarães, 10 de Julho de 2025.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.ª Adjunta - Maria Gorete Morais;
2.º Adjunto - João Peres Coelho.


[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - doravante CIRE -, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março.
[2] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[3] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[4] A Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, entrou em vigor 90 dias após a sua publicação (art.º 12.º, respectivo), sendo «imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor» (art.º 10.º, n.º 1, respectivo).
[5]  «Interessados» são, para este efeito, os credores, as demais pessoas que têm legitimidade para apresentar o pedido de declaração de insolvência e o administrador da insolvência.
Neste sentido: Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 687; Maria do Rosário Epifânio Manual de Direito da Insolvência, 2016 - 6.ª edição, Almedina, Março de 2016, pág. 149; ou Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016 - 2.ª edição, Almedina, Janeiro de 2016, pág. 406.
[6] Defendendo que o juiz, ultrapassado aquele momento inicial, não dispunha do poder de, oficiosamente, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência:
. na doutrina - Adelaide Menezes Leitão, «Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril», I Congresso do Direito da Insolvência, Almedina, 2013, pág. 272; Maria do Rosário Epifânio Manual de Direito da Insolvência, 2016 - 6.ª edição, Almedina, Março de 2016, pág. 149; ou Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 304.
. na jurisprudência - Ac. da RC, de 10.03.2015, Catarina Gonçalves, Processo n.º 631/13.9-L.C1; Ac. da RG, de 30.05.2018, José Amaral, Processo n.º 1193/13.2TBBGC-A.G1; ou Ac. da RC, de 15.01.2022, Arlindo Oliveira, Processo n.º 632/21.3T8LRA-C.C1.
Contudo, em sentido contrário, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 687, enfatizando que esse poder assiste ao juiz, numa fase precoce dos autos, quando dispõe de menos elementos, e que, sendo o mesmo livre de decidir pela não abertura e pela não qualificação, quando uma ou outra lhe foram requeridas, também deverá sê-lo para as hipóteses inversas.
Ainda Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016 - 2.ª edição, Almedina, Janeiro de 2016, pág. 407. 
[7] Defendendo que o prazo em causa era meramente ordenador: Ac. da RP, de 14.03.2017, José Carvalho, Processo n.º 2037/14.3T8VNG-E.P1;  Ac. do STJ, de 13.07.2017, João Camilo, Processo n.º 2037/14.3T8VNG-E.P1.S2; Ac. da RP, de 07.05.2019, Rodrigues Pires, Processo n.º 521/18.9T8AMT-C.P1; ou Ac. da RP, de 10.07.2019, Fernanda Almeida, Processo n.º 4680/18.2T8OAZ-B.P1.
[8] Defendendo que o prazo em causa possuía carácter peremptório: Ac. da RC, de 10.03.2015, Catarina Gonçalves, Processo n.º 631/13.9-L.C1; Ac. da RG, de 25.02.2016, Cristina Cerdeira, Processo n.º 1857/14.3TBGMR-DG1; Ac. da RG, de 20.04.2017, Elisabete Valente, Processo nº 510/16.8T8VRL-D.G1; Ac. da RG, de 30.05.2018, José Amaral, Processo n.º 1193/13.2TBBGC-A.G1; Ac. da RP, de 09.01.2020, João Venade, Processo n.º 991/12.9TYVNG-D.P1; Ac. da RL, de 13.04.2021, Amélia Rebelo, Processo n.º 17920/19.1T8LSB-D.L1-1; ou Ac. da RC, de 15.01.2022, Arlindo Oliveira, Processo n.º 632/21.3T8LRA-C.C1.
[9] Recorda-se que se lê no art.º 141.º, n.º 1, do CPC, que o «prazo processual marcado pela lei é prorrogável nos casos nela previstos».
[10] Nesse sentido, e a propósito da Proposta de Lei nº 39/XII, que esteve na base da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril:
. Parecer apresentado pela Ordem dos Advogados - onde se refere que o prazo de 15 dias era insuficiente porque «muitas vezes, nem os credores nem o administrador de insolvência dispõem de informações relevantes para efeitos de qualificação da insolvência dentro do prazo actualmente previsto.
Sugere-se por isso que se preveja a possibilidade de (re)abrir o referido incidente durante todo o processo, desde que o interessado prove que apenas teve conhecimento do(s) facto(s) após decorrido o prazo previsto artigo 188.º, n.º 1, do CIRE. Note-se que, por exemplo, os actos resolúveis, nos termos do artigo 120.º e seguintes do CIRE por vezes chegam ao conhecimento do administrador de insolvência e/ou credores depois de decorrido o referido prazo, podendo tais actos justificar a eventual qualificação da insolvência como culposa».
. Parecer apresentado pela CIP-Confederação Empresarial de Portugal - onde se chamou a atenção para que «em processos de maior dimensão, já foi necessário recorrer a consultoras especializadas, para apurar e auditar contas e procedimentos, e que esses trabalhos demoram meses, resulta impossível conciliar e realizar tais actividades com o prazo legal estabelecido»; e ser «de relevar a dificuldade que qualquer credor tem em aceder aos documentos ou à “vida” da empresa, em momento anterior à insolvência, pelo que, também por esta situação, não se vê como é que o prazo legal cumpre a sua função».
[11] Lê-se no art.º 569.º, do CPC: quando «o juiz considere que ocorre motivo ponderoso que impeça ou dificulte anormalmente ao réu ou ao seu mandatário judicial a organização da defesa, pode, a requerimento deste e sem prévia audição da parte contrária, prorrogar o prazo da contestação, até ao limite máximo de 30 dias» (n.º 5); e a «apresentação do requerimento de prorrogação não suspende o prazo em curso», sendo que «o juiz decide, sem possibilidade de recurso, no prazo de vinte e quatro horas e a secretaria notifica imediatamente ao requerente o despacho proferido, nos termos da segunda parte do n.º 5 e do n.º 6 do artigo 172.º», isto é, nos termos aplicáveis aos actos urgentes (n.º  6).
[12] Neste sentido, mas reportado ao art.º 569.º, n.º 6, do CPC: António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Setembro de 2018, pág. 638, onde se lê que, como «é evidente, o pedido de prorrogação deverá ser formulado antes de terminar o prazo inicialmente fixado»; ou Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, Junho de 2014, pág. 197, onde se lê que o «requerimento tendente à prorrogação tem de ser apresentado em tempo, isto é, antes de terminar o prazo inicialmente fixado na lei para a contestação».
[13] Neste sentido, mas reportado ao art.º 569.º, n.º 6, do CPC, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, pág. 553, onde se lê que a «não suspensão do prazo em curso com a apresentação do requerimento de prorrogação compreende-se: se assim não fosse, bastaria ao réu requerer a prorrogação no último dia do prazo para que o indeferimento do pedido não pudesse já evitar um resultado, equivalente à prorrogação, pelo tempo que decorresse entre o pedido e a decisão».
[14] Neste sentido, mas reportado ao art.º 569.º, n.º 6, do CPC, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, págs. 552 e 553, onde se lê que a «inadmissibilidade de recurso compreende-se, não obstante poderem estar em causa interesses relevantes da parte, dado que uma posterior decisão de revogação do despacho do juiz que tivesse indeferido o pedido de prorrogação seria muito perturbadora do processo, que teria de regressar à fase inicial da contestação, e uma decisão de revogação do despacho que a tivesse deferido, tornando ineficaz a contestação apresentada dentro do período de prorrogação, violaria o direito de defesa, dado este ter sido exercido com base na decisão judicial de prorrogação do prazo».
[15] Neste sentido:
. Ac. da RG, de 20.03.2014, José Raínho, Processo n.º 310/13.7TCGMR-A.G1 (mas reportado ao art.º 569.º, n.º 6, do CPC) - onde se lê que «parece ser de entender, e isto decorre da conjugação de tal norma com a do antecedente nº 5, que tal inadmissibilidade de recurso se reporta tão-somente ao juízo acerca das razões (pressupostos de fato, ou seja, o motivo ponderoso que impede ou dificulta anormalmente a organização da defesa) que alicerçam o pedido de prorrogação, e não já ao juízo acerca da legalidade processual do requerimento. Pois que se quanto àquele se antolha alguma lógica na limitação ao direito de recurso (está em causa apenas a aferição de uma mera questão circunstancial de fato), já quanto a este assim não acontece, estando-se aqui antes perante uma decisão cuja conformidade jurídica não tem por que não puder ser escrutinada nos termos gerais».
. Ac. da RG, de 18.01.2024, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 1731/23.2T8GMR-J.G1 - onde se lê que a «norma do n.º 4 do art. 188 do CIRE apenas prevê a irrecorribilidade da decisão que prorrogue o prazo perentório de 15 dias previsto no n.º 1 quando esteja em causa o juízo acerca das razões (“quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período”) que a alicerçam e não também quando se questione a sua legalidade processual».
[16] Neste sentido, Ac. da RL, de 02.07.1992, Joaquim Matos, Processo n.º 0044386.
[17] Neste sentido: Ac. da RE, de 05.11.2020, Vítor Sequinho, Processo n.º 1884/19.4T8EVR-A.E1; Ac. da RG, de 07.02.2019, José Manuel Flores, Processo n.º 7153/15.1T8GMR-C.G1; Ac. da RC, de 15.02.2022, Falcão de Magalhães, Processo n.º 627/20.4T8PBL-A.C1; ou Ac. da RE, de 10.03.2022, José Manuel Barata, Processo n.º 1951/16.6T8ENT-A.E3.
[18] Neste sentido: Ac. da RP, de 15.03.2010, Caimoto Jácome, Processo n.º 1368/08.6TBMCN-A.P1; Ac. da RG, de 20.03.1014, José Raínho, Processo n.º 310/13.7TCGMR-A.G1; Ac. do STJ, de 28.11.2017, João Camilo, Processo n.º 1050/09.7TBBGC.G1.S1; ou Ac. da RG, de 07.02.2019, José Manuel Flores, Processo n.º 7153/15.1T8GMR-C.G1.
[19] Pronunciando-se sobre a natureza urgente do processo de insolvência, incluindo o incidente de qualificação da mesma, nomeadamente razões que o justificam, Ac. do TC n.º 609/2013, de 24.09.2013, Maria de Fátima Mata-Mouros, onde se lê:
«(…)
A celeridade processual constitui uma dimensão do direito de acesso aos tribunais (cfr. artigo 20.º, n.º 5, da Constituição República Portuguesa) e, nessa medida, deve estar presente na configuração de todo e qualquer processo judicial. Da própria previsão constitucional decorre que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos deve ser efetuada “mediante um processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma decisão em prazo razoável e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. Também o direito de acesso aos tribunais se encontra, pois, sujeito a regras ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de ação ou de recurso.
Indispensável é que esses condicionamentos, designadamente ao nível dos prazos, não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo daquele direito fundamental.
Relativamente ao regime normativo em presença cumpre notar, antes do mais, que a atribuição da natureza urgente atinge todo o incidente de qualificação da insolvência, e não apenas a fase de recurso. Além disso, o reconhecimento da natureza urgente do processo implica, não apenas o encurtamento dos respetivos prazos, como também o seu processamento em período de férias e com prioridade sobre outros processos.
Tendo em conta os interesses em presença, deve concluir-se que existem motivos atendíveis que justificam a urgência do processo. Como decorre do acima já consignado, todo este regime implementador da celeridade no procedimento de qualificação da insolvência encontra justificação bastante na finalidade visada pelo incidente em presença. Não faria sentido que o processado destinado a classificar a natureza da insolvência, como culposa ou meramente fortuita, pudesse arrastar-se no tempo, em prejuízo, desde logo, dos credores e do devedor, dada a implicação que a classificação da insolvência como culposa tem na própria estabilização do colégio de credores e delimitação dos créditos a solver. Mas, o arrastar do procedimento implicaria também prejuízos para as próprias pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, as quais têm, naturalmente, interesse em ver a sua situação definida, dadas as consequências que podem sofrer ao nível da sua situação profissional.
Acresce que o decurso do tempo corre contra a recolha e genuinidade da prova indispensável à qualificação da insolvência, para além de potenciar a dissipação do património garante do pagamento das dívidas.
Ora, no processo de insolvência a necessidade de celeridade assume especial intensidade por se repercutir na esfera jurídico-económica de um universo de sujeitos tendencialmente elevado (os credores da insolvência) o que torna ainda mais premente a tomada de medidas urgentes.
É o próprio regime especial do processo de insolvência que salvaguarda o interesse constitucionalmente tutelado consistente no direito à tutela jurisdicional efetiva dos vários sujeitos do processo, impondo ao legislador a adoção de procedimentos que, caracterizando-se pela celeridade e prioridade, possibilitem uma decisão em prazo razoável de modo a obter tutela efetiva, e em tempo útil, desses direitos.
(…)»
[20] Lê-se, a propósito, no Ac. do TC n.º 251/2017, de 24.05.2017, Maria de Fátima Mata-Mouros, que o «direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas» (cfr. Acórdão n.º 839/2013)».
[21] Neste sentido: Ac. da RL, de 13.07.2023, Manuel Ribeiro Marques, Processo n.º 8602/22.8T8LSB-B.L1-1; Ac. da RL, de 23.04.2024, Manuel Ribeiro Marques, Processo n.º 3903/17.0T8VFX-A.L1-1; Ac. do STJ, de 09.04.2025, Luís Correia de Mendonça, Processo n.º 1313/24.1T8ACB-B.C1.S1.
[22] O mesmo é reafirmado pela Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto (tramitação electrónica dos despachos judiciais), nomeadamente nos seus art.ºs 25.º e 26.º.
[23] A consagração deste regime «teve por base o reconhecimento de uma velha pecha da nossa maneira colectiva de agir, a que não se mostram imunes os procuradores mais qualificados de negócios alheios, que são os mandatários judiciais»: o «inveterado defeito em que a permissão directamente se funda é o hábito condenável de guardar para a última hora todo o acto que tem um prazo para ser validamente praticado». Atendeu-se, então, ao «propósito louvável, que remonta já aos primórdios da chamada reforma do processo, com o primado da justiça material sobre a pura legalidade formal», que «é o de evitar que a omissão de uma simples formalidade processual possa acarretar a perda definitiva dum direito material» (Antunes Varela, RLJ, Ano 116.º, págs. 31 e 32, com bold apócrifo).
Dir-se-á ainda que, «ao permitir a prática de actos sujeitos a prazos peremptórios depois de estes terem terminado, fora dos casos de justo impedimento, a lei veio, na prática, alongar os prazos, sem impor a apresentação em juízo de qualquer justificação»: «a multa exprime a preferência legal pelo cumprimento do prazo peremptório», «mas não é possível associá-la a uma sanção por menor diligência processual».
«Este regime possibilita ainda às partes e aos seus mandatários a gestão do tempo disponível, de acordo com as respectivas conveniências, ponderando se compensa ou não dilatar o prazo mediante o pagamento da multa; mas não legitima qualquer juízo de censura em relação à parte (ou ao seu mandatário) que dele decide beneficiar» (Ac. do STJ, de 25.10.2012, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo n.º 1627/04.7TBFIG-A.C1.S1, com bold apócrifo).
[24] Neste sentido, Ac. da RG, de 28.09.2017, Purificação Carvalho, Processo n.º 1278/09.0 TBEPS-B.G1.
[25] De forma conforme, lê-se na Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de Abril (que regula o modo de elaboração, contabilização, liquidação, pagamento, processamento e destino das custas processuais, multas e outras penalidades), no seu art.º 25.º, que «[n]os casos legalmente previstos de pagamento imediato de multa consentâneo com a prática de ato processual, o montante devido deve ser autoliquidado juntamente com a taxa de justiça devida, utilizando para cada um dos pagamentos o correspondente DUC» (n.º 1), incumbindo «ao apresentante, quando representado por mandatário, o pagamento por autoliquidação, de modo autónomo, das multas previstas nos artigos 139.º do CPC e 107.º-A do CPP» (n.º 2); e só «[n]os restantes casos de aplicação de multas e penalidades, são emitidas guias pelo tribunal e remetidas à parte ou partes responsáveis» (n.º 3).
[26] Contudo, o despacho que rejeite uma requerida abertura do dito incidente já será recorrível (uma vez que, não estando esta hipótese contemplada no art.º 188.º, n.º 5, citado, as nomas limitativas do recurso têm carácter excepcional).
Compreende-se facilmente esta «diversidade quanto à recorribilidade do despacho em função do seu diferente sentido»: «a abertura do incidente comporta, simplesmente, a possibilidade da qualificação da insolvência como culposa, mas não a determina», já que só «a final do processamento o juiz estará em condições de decidir»; mas, «ao contrário, se a decisão denegar a abertura do incidente, e não for posta em causa, então isso impede definitivamente a atribuição do carácter culposo à insolvência a qual, em consequência, não pode deixar de ser havida como fortuita» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 687).
[27] É este, aliás, o regime aplicável a outras decisões de admissão liminar de autos (como os embargos de executado, conforme art. 732.º, do CPC), em que, na ausência de prévia sindicância da parte contrária ao requerimento inicial respectivo (reservada para o posterior momento de apresentação da devida oposição/contestação), o Tribunal profere um juízo meramente perfunctório dos requisitos processuais exigidos para o efeito..
Logo, o «despacho que (…) determina a notificação do exequente para contestar a oposição à execução, não faz caso julgado formal quanto à não verificação dos motivos que poderiam ter conduzido ao indeferimento liminar» (Ac. do STJ, de 10.07.2008, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo n.º 08B794, entre muitos e uniformes).
O mesmo regime se defendeu desde sempre ser igualmente aplicável ao despacho saneador tabelar
Logo, se «for proferido despacho saneador tabelar, do estilo “Não existem outras excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.”, não se constitui qualquer caso julgado formal, pois isso só poderá acontecer se o julgador apreciar em concreto as questões referidas no art. 595º, nº 1, a) do NCPC, como decorre do nº 3 de tal artigo» (Ac. da RC, de 2.11.2016, Moreira do Carmo, Processo n.º 3582/13.3TJCBR-C.C1, entre muitos e uniforme).