Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6563/21.0T8GMR.G2
Relator: PAULA RIBAS
Descritores: DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
JUROS DE MORA
INTERPELAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - A presunção legal apenas pode ser ilidida por prova em contrário.
2 - A existência de uma carta de “interpelação” não permite afirmar que a mesma foi recebida pelo seu destinatário se tal facto não foi alegado (ou as razões pelas quais não foi recebida), tanto mais que se indica como data de interpelação a data que consta dessa mesma carta.
3 – Só da alegação e prova receção da carta de interpelação (ou da demonstração de determinadas circunstâncias do seu não recebimento) pode resultar a constituição em mora do devedor.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

EMP01... SA intentou contra AA ação declarativa sob a forma de processo comum, pedindo a condenação do réu no pagamento à autora da quantia de € 14.362,33, acrescida de juros moratórios contados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que descreve, se deu o embate entre o veículo de matrícula ..-QR-.. conduzido pelo réu e o veículo de matrícula ..-AB-.., propriedade de BB e conduzido por CC e onde seguia igualmente como passageira DD.
Existindo um contrato de seguro relativo àquele veículo QR, imputa ao réu condutor deste a culpa pela verificação do acidente, porquanto conduzia sob a influência de uma TAS de 0,294 g/l, que lhe diminuía a atenção e capacidade de resposta quando confrontado com a presença do outro veículo.
Alega também que, por força desse embate, indemnizou os lesados, conduzindo o réu o veículo seguro com uma taxa alcoolémia de 0,294 g/l, quando se encontrava em regime probatório, afirmando, por isso, a existência do seu direito de regresso, relativamente às quantias que foram por si despendidas.
Regularmente citado, contestou o réu, excecionando a prescrição do direito da autora e impugnando a dinâmica do sinistro, aduzindo que as condições de visibilidade da via onde o sinistro ocorreu, na hora em causa, não eram boas, sendo que ele, demandado, foi encandeado pelo sol, que lhe apareceu de frente, e o AB seguia ou a uma velocidade reduzida para a via por onde circulava ou reduziu de forma abrupta essa velocidade, o que não lhe permitiu evitar o embate, não tendo o acidente sido por si causado ou por causa do consumo do álcool.
Foi proferido despacho a que alude o art.º 590.º, nº2, alínea b), e nº4 do Código de Processo Civil (doravante C. P. Civil), convidando-se a autora a concretizar os danos e lesões enunciadas na petição inicial, o que esta fez nos termos do requerimento de 10/03/2022.
Foi realizada audiência prévia e, nesta, foi a autora novamente convidada a “descrever os concretos danos infligidos em cada uma das peças enumeradas no art.º 28.º da p.i., bem como os infligidos nas peças identificadas no art.º 42.º da p.i.”.  Tendo sido requerido prazo para o efeito, este não foi concedido e, assim, não houve resposta ao convite então efetuado.
Realizado o julgamento foi proferida sentença a julgar improcedente a exceção de prescrição e a ação, absolvendo-se o réu do pedido por inexistência do direito de regresso, considerando-se que, apesar de sobre ele recair a obrigação de indemnizar, não estava demonstrado que estivesse em regime probatório, não sendo, por isso, relevante a taxa de álcool no sangue que apresentava de 0,294 g/l.

Inconformada com a decisão, veio a autora interpor recurso de apelação, na sequência do qual foi proferido Acórdão que julgou parcialmente procedente a apelação e, em conformidade, decidiu:

a) alterar a redação da matéria de facto provada e não provada, nos seguintes termos:
1 – eliminar a alínea c) dos factos não provados;
2 – alterar a redação da alínea p) dos factos provados que passaria a constar a com a seguinte redação:
Os danos sofridos na frente, traseira direita e lateral esquerda do AB, em consequência do acidente verificado, foram avaliados em 06/09/2028, tendo a sua reparação sido orçamentada em €16.449,01”.
3 – aditar à matéria de facto provada as alíneas s) e t) com a seguinte redação:
s) Como consequência do embate verificado entre os veículos AB e QR resultaram danos na infraestrutura da autoestrada A7 concessionada à EMP02... em 16 guardas metálicas, 19 prumos, 19 amortecedores e 1 delineador.
t) Como consequência daquele embate a via ficou suja de óleo e teve de ser lavada”.
4 – a alínea s) da matéria de facto provada passaria a constar como alínea u) da matéria de facto provada;
b) anular a sentença recorrida na parte em que aplicava o direito aos factos, sem prejuízo da decisão já proferida quanto aos factos, com as alterações introduzidas no Acórdão que, assim, se mantinham, e, tendo em vista apreciar se o réu se encontrava, à data do acidente, em “regime probatório”, determinou que fosse fixado prazo pelo Tribunal de 1.ª Instância a convidar a autora a alegar factos de onde pudesse resultar tal conclusão jurídica, com indicação de meios de prova, realizando-se, após, julgamento quanto a esta questão de facto e proferindo-se, de seguida, nova decisão, com a ressalva decorrente do n.º5 do art.º 635.º do C. P. Civil, pois que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não seriam prejudicados pela decisão do recurso e anulação decretada.
Os autos baixaram à 1.ª Instância, tendo sido efetuado o convite nos termos determinados, realizando-se nova audiência de julgamento na sequência da qual foi proferida nova sentença que, mais uma vez, julgou a exceção de prescrição e a ação improcedentes.
Novamente inconformada, veio a autora apresentar recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões (eliminando-se as que reproduzem a tramitação dos autos):
3. Em virtude da prova produzida no âmbito dos presentes autos, resultou como provado que o Recorrido, que circulava com o veículo automóvel seguro na Recorrente, com a matrícula “..-QR-..”, deu causa ao acidente de viação em apreço, ao embater na parte traseira do veículo automóvel de matrícula “..-AB-..”.
4. Note-se que, independentemente do Recorrido ter ficado, ou não, encadeado pela luz solar, a verdade é que tal embate entre veículos ocorreu porquanto aquele não manteve a distância de segurança devida da viatura que o precedia, em manifesta violação do art. 18.º/1 do CE.
5. Por outro lado, resultou igualmente como provado que o Recorrido, ainda sujeito ao regime probatório, circulava sob o efeito de uma TAS de 0,294 g/l, no momento em que se deu o referido sinistro, entenda-se, que este conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida in casu, ao abrigo do disposto nos art. 81.º/3 e 122.º/1 do CE.
6. Ora, determina o art. 27.º/1 alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto que “[s]atisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: (…) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (…)” .
7. Pelo que, à luz do disposto no citado preceito legal, a Recorrente tem, sem margem para qualquer dúvida, um direito de regresso contra o Recorrido por todas as despesas que suportou em face da regularização do sinistro sub judice.
8. Não obstante, o Tribunal a quo acabou por não reconhecer tal direito de regresso da Recorrente, sendo certo que, a decisão em crise reflete um notório erro de julgamento, nomeadamente, um erro na subsunção dos factos ao direito.
9. Nestes termos, deverá a Sentença sub judice ser revogada, e consequentemente, ser o Recorrido condenado a restituir à Recorrente todas as quantias despendidas em virtude do presente acidente de viação, nos termos do art. 27.º/1 alínea c) do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
O réu não apresentou resposta.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber se, perante a matéria de facto provada, existe o direito de regresso invocado pela autora e, em caso de resposta afirmativa, em que medida pode aquele ser exercido.
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III - Fundamentação de facto:

Os factos que foram considerados como provados na decisão proferida são os seguintes:
“Com relevância para a boa decisão da causa provados estão os seguintes factos:
a) Através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...78, válido e eficaz à data de 02.09.2018, foi transferida para a Companhia de Seguros EMP03... SA a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ..-QR-..;
b) Em 30.12.2016 a Companhia de Seguros EMP03... SA incorporou, por fusão, a EMP04... SA, a EMP05... SA e a EMP06... – Companhia de Seguros SA., tendo adotado a firma EMP07... SA;
c) Em 01.10.2020 a EMP07... SA incorporou por fusão a EMP01... Vida – Companhia de Seguros e a EMP01... – Companhia de Seguros SA tendo adotado a firma EMP01... SA.;
d) No dia 02.09.2018, pelas 09H05, ao km 47,600 da A7 (União de Freguesias ... e ..., concelho ...) ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo de matrícula ..-QR-.., propriedade de “EMP08..., Lda” e nesse momento conduzido pelo R., e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca ..., modelo ..., com matrícula ..-AB-.., propriedade de BB e nesse momento conduzido por CC, onde seguia, igualmente, como passageira DD;
e) A A7, no local referido em d), é composta por duas via de trânsito no mesmo sentido, com traçado em reta e piso betuminoso que na época se encontrava em estado regular de conservação, dispondo de um separador central metálico;
f) A hemi-faixa de rodagem por onde circulavam o QR e o AB tinha uma largura de 7,80 m e o limite de velocidade no local era de 120 km/h;
g) O QR circulava pela via da direita da hemi-faixa de rodagem da A7 afeta ao sentido .../... quando embateu na traseira do AB, tendo este, em consequência, sido projetado contra as guardas metálicas do separador central, acabando por se imobilizar vários metros à frente na via da direita;
h) O sol apresentava-se de frente para os condutores do AB e do QR, tendo o R. sido encandeado pela sua luz;
i) O R., submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, acusou uma TAS de 0,294g/l;
j) Dada a força do embate ambos os veículos necessitaram de ser rebocados pelo pronto-socorro da assistência em viagem;
k) Como consequência direta do embate descrito em g) a passageira do AB DD sofreu traumatismo do ombro direito e uma fratura com desvio da clavícula direita, tendo sido transportada para o Centro Hospitalar ... e posteriormente, em 14.09.2018, submetida a cirurgia de osteossíntese com placa e parafusos;
l) Em despesas medicamentosas para tratamento das lesões mencionadas em k) a DD gastou €124,89;
m) Em consultas médicas e exames para tratamento das lesões mencionadas em k) a DD gastou €512,55;
n) A A. liquidou à DD as quantias mencionadas em l) e m);
o) Para além do mencionado em n), em 07.05.2019 a A. pagou à DD a quantia global de €1.500 a título compensação pelos danos não patrimoniais e o remanescente dos danos patrimoniais ainda pendentes emergentes do embate descrito em j);
p) Os danos sofridos na frente, traseira direita e lateral esquerda do AB, em consequência do acidente verificado, foram avaliados em 06/09/2028, tendo a sua reparação sido orçamentada em €16.449,01;
q) O AB, à data de 02.09.2018, teria um valor venal de €7.500, tendo o salvado sido avaliado em €1.811;
r) A A. pagou à proprietária do AB em data não anterior a 30.10.2018 a quantia de €5.689;
s) Como consequência do embate verificado entre os veículos AB e QR resultaram danos na infraestrutura da autoestrada A7 concessionada à EMP02... em 16 guardas metálicas, 19 prumos, 19 amortecedores e 1 delineador;
t) Como consequência daquele embate a via ficou suja de óleo e teve de ser lavada;
u) A A. pagou à EMP02... em 18.12.2018 a quantia de €4.044,20;
v) O R. nasceu no dia ../../1999;
w) A primeira licença de condução concedida ao R. foi-o no dia 07.12.2017”.
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IV - Do objeto do recurso:

Vejamos o enquadramento normativo do direito de regresso invocado pela autora.
O anterior art. 19º, alínea c), do DL nº 522/85, de 31/12, determinava que, “satisfeita a indemnização, a ré seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
Na vigência deste diploma debatia-se na doutrina e na jurisprudência, sobretudo antes da publicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 6/02, de 28/05/2002, a questão de saber se o direito de regresso estava dependente da prova da existência de nexo de causalidade entre o acidente e a condução sob a influência do álcool e quem devia suportar o ónus da demonstração desse nexo causal.
O Acórdão citado uniformizou a jurisprudência, estabelecendo que “a alínea c) do art. 19° do DL n° 522/85, de 31/12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”, mantendo este entendimento a sua força vinculativa na ordem jurisdicional, enquanto a norma interpretada não fosse alterada pelo legislador, ou a jurisprudência não fosse modificada por outro acórdão uniformizador.
Ora, o DL nº 291/2007, de 21/08, que entrou em vigor a 20/10/2007, veio revogar o DL nº 522/85, de 31/12, questionando-se se o novo diploma, tal como o anterior, exigiria, para o exercício do direito de regresso pela seguradora que pagou a indemnização, a verificação de nexo de causalidade adequada entre o facto de o condutor exercer a condução acusando consumo de estupefacientes e a eclosão do acidente em que interveio e de que resultaram os danos indemnizados por aquela, ou se, pelo contrário, se bastaria com a demonstração da culpa do segurado e de que este conduzia acusando aquele consumo, sem exigência de nexo causal entre o estado de alcoolemia e o acidente.
Não podemos deixar de entender, tal como se concluiu nas duas decisões proferidas nos autos em 1.ª Instância, que a redação da norma é agora clara, bastando que o condutor tenha dado causa ao acidente e conduza com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida para que se afirme o direito de regresso.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27/11/2014, proc. 1754/13.0TBMTS.P1, in www.dgsi.pt,o abandono da expressão “tiver agido sob a influência do álcool” contida no anterior diploma, com a inerente carga subjetiva que lhe está subjacente, e a sua substituição, no novo diploma, pela expressão “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”, de cariz claramente objetivo e passível de concreta objetivação, só poderá ser entendida no sentido da atual inexigibilidade do nexo de causalidade adequada entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente. Ou seja: contrariamente ao que se verificava no anterior diploma, em que o estado etílico tinha de se refletir no comportamento do condutor e ser causal do acidente, no novo diploma não se exige essa relação de causa/efeito, bastando a constatação, material, objetiva, de que o condutor, no momento do acidente, era portador de uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida”.
Na primeira sentença que foi proferida nestes autos, em 18/01/2023, apreciando se o réu deu ou não causa à ocorrência do acidente, a Mm.ª Juiz a quo analisou cada um dos pressupostos que permitiam convocar o instituto da responsabilidade civil, concluindo pela sua verificação, nos seguintes termos:
In casu, verificou-se, indubitavelmente, um facto voluntário do condutor do QR, aqui R., materializado no embate entre o QR e o AB.
A ilicitude do facto reside na circunstância de, com o embate, terem sido violados direitos alheios, in casu o direito à integridade física da passageira transportada no AB (repete-se aqui o que acima se referiu: não tendo a A. concretizado, nem quando convidada – por duas vezes – para o efeito os alegados danos que o AB sofreu como consequência do embate nem quais os danos suportados pela EMP02..., impossível se torna estabelecer qualquer nexo de causalidade entre o embate verificado e eventuais danos sofridos pelas mencionadas pessoas).
E poderá ser dirigido um juízo de censura (culpa) ao R.?
Provado ficou que o R., conduzindo o QR, embateu na traseira do AB.
Prescreve o art. 18.º/1 CEst que “O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis.”, sendo punível com coima entre €60 a €300 quem violar tal dispositivo (art. 18.º/4 CEst).
Se o R. embateu na traseira do AB foi por não ter guardado a distância devida, tendo, por isso, violado o disposto no art. 18.º/1 CEst., sendo irrelevante, para o efeito, a arguição de encandeamento pela luz do sol.
Provado ficou também que, como consequência do embate supra mencionado a passageira do AB sofreu traumatismo do ombro com fractura da clavícula direita.
Face ao exposto, conclui-se que recaia sobre o condutor do QR a obrigação de indemnizar (apenas) a DD, uma vez que se verificam todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual previstos no art. 483.º/1 CC”.
A referência apenas aos danos sofridos por DD prende-se com a matéria de facto que o Tribunal de 1.ª Instância havia então considerado não provada e que, em sede de recurso de apelação, foi alterada por este Tribunal da Relação, afirmando-se como provada a existência de outros danos para além daqueles que estão mencionados no segmento transcrito.
Nessa primeira decisão, de seguida, a Mm.ª Juiz a quo afirmou a inexistência do direito de regresso da autora, considerando não terem sido alegados os factos que permitiriam concluir que o réu estava em regime probatório, sendo por isso irrelevante a taxa de álcool no sangue que apresentou já que era de apenas 0,294 g/l.
Como facilmente se retira da tramitação dos autos e do Acórdão proferido por este Tribunal, a apreciação da questão da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil não foi objeto de recurso.
No Acórdão proferido este Tribunal deixou claro que a anulação determinada não prejudicava os efeitos do julgado na parte não recorrida, nos exatos termos do art.º 665.º do C. P. Civil.
Tal significa, naturalmente, que a anulação da decisão se circunscreveu à questão apreciada, ou seja, à matéria do alegado regime probatório em que se encontraria o réu, como fundamento do direito de regresso da autora, tendo o réu uma taxa de álcool no sangue de 0,294 g/l.
Agora, nesta segunda decisão, afirmando o Tribunal com clareza que a companhia de seguros que exerce o seu direito de regresso não tem de fazer prova do nexo de causalidade entre o sinistro e a condução sob o efeito do álcool (mas tão só dos factos de onde se retire que o réu é o responsável pelo acidente e que conduzia sob o efeito do álcool), acaba por concluir que o réu ilidiu a presunção legal que sobre si impendia, ao demonstrar que ficou encandeado pelo sol.
Começa por afirmar-se que, sendo este o entendimento do Tribunal, ele deveria ter sido assumido na primeira decisão proferida, pois que, independentemente da relevância do alegado regime probatório, sempre entenderia aquele que não haveria fundamento para a procedência da ação.
Não foi esse, então, o caminho seguido (e, como tal, não podia ser essa a questão suscitada por via do recurso de apelação apresentado pela autora).
O pressuposto da decisão de 1.ª Instância é o seguinte entendimento:
Tem sido entendido que o art. 27.º/1/al. c) DL 291/2007, de 21.08, veio alterar a orientação imposta pelo AUJ 6/2002, desonerando a seguradora da prova do nexo de causalidade entre o sinistro e a condução sob a influência de álcool, estabelecendo uma presunção cuja ilisão poderá ser efetuada pelo lesante.
Com Maria Amália Santos, in “O direito de regresso da seguradora nos acidentes de viação”, Revista Julgar Online, novembro de 2018, págs. 21 e 24: “Parece-nos, portanto, que, ao alterar os termos em que a situação era prevista na norma anterior, o legislador terá pretendido regular a situação em termos diversos, afastando-se da posição assumida, quer no anterior artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, quer no AUJ, dispensando a prova do nexo de causalidade entre o álcool e o acidente, exigindo apenas a prova de que o acidente foi causado pelo condutor e que ele conduzia com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida. (…)
Há de ser, assim, ao condutor envolvido em acidente de viação, que caberá alegar e provar que, não obstante ser portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, nenhuma responsabilidade lhe pode ser imputada na produção do acidente, afastando, desse modo, a ação de regresso da seguradora contra si.”
Também no Ac. STJ de 06.04.2017, relatado pelo Cons. Carlos Lopes do Rêgo e acessível em www.dgsi.pt, se defendeu que “Na verdade, afigura-se que a dita presunção legal [prevista no art. 27.º/1/al. a) DL291/07] carece de ser interpretada e aplicada em consonância com os princípios fundamentais da culpa e da proporcionalidade, em termos de não criar uma responsabilização puramente objetivada, cega e absolutamente irremediável do condutor/segurado pelas indemnizações satisfeitas ao lesado, precludindo-se a garantia emergente do contrato de seguro sempre e apenas em função da verificação totalmente objetivada de uma situação de alcoolemia: representando esta preclusão da garantia do seguro a imposição ao condutor/segurado de um ónus gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, é naturalmente indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os referidos princípios fundamentais, não traduzindo a imposição ao condutor de um ónus manifestamente excessivo e desproporcionado.
E, assim sendo, por força dos referidos princípios estruturantes da ordem jurídica, não excluímos, que o condutor/demandado possa alegar e demonstrar na ação de regresso, com vista a ilidir a referida presunção legal:
- como exigência do princípio da culpa - que a situação de alcoolemia, impeditiva do legítimo exercício da condução, lhe não é imputável, por não ter na sua base, por exemplo, um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas na altura da condução do veículo (demonstrando, por exemplo, que tal taxa de alcoolemia está ligada a fator acidental e incontrolável, como reação imprevisível a determinado medicamento);
- como decorrência do princípio da proporcionalidade - que, apesar da taxa de alcoolemia objetivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efetivo entre tal situação e o acidente – ilidindo, por esta via a presunção legal segundo a qual qualquer situação de alcoolemia objetivamente proibida funciona como causa efetiva do erro ou falta cometida no exercício da condução: não é, pois, a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente e o evento danoso, como sucedia no regime anteriormente em vigor, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal, perspetivada como presunção juris tantum, nos termos do nº2 do art. 350º do CC.
Assim, a Mm.ª Juiz acaba por concluir que, tendo o réu sido encandeado pela luz do sol, se não fora este, o acidente “muito provavelmente não teria ocorrido”, tendo, por isso, o réu ilidido a referida presunção legal.
Não lhe assiste razão, mesmo considerando a fundamentação jurídica a que recorreu para julgar improcedente a ação.
Começa por referir-se que a Mm.ª Juiz a quo se reporta a factualidade que não consta dos factos provados ou não provados e que, como tal, não pode estar subjacente àquela: a dificuldade de condução do condutor do veículo AB (veículo terceiro) associada ao posicionamento do sol a que se reportou na motivação da sua decisão.
Foi também com essas declarações do condutor do veículo AB que considerou provado que o réu foi encadeado pelo sol, mas esse facto – a alegada dificuldade do condutor AB em virtude do posicionamento do sol – não é um facto provado que possa alicerçar a fundamentação de direito da decisão.
Por outro lado, porque a presunção legal, a existir nos termos referidos, só pode ser ilidida por prova em contrário, nos termos do art.º 350.º, n.º2, do C. Civil.

Como se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado pela Mm.ª Juiz de 1.ª Instância, naquela situação em concreto, referindo-se ao réu então demandado, “embora este tenha curado de alegar factos que afastariam a concreta causalidade entre a alcoolemia e o facto culposo cometido na condução do veículo, tal matéria foi tida por não provada, ao decidirem as instâncias não se ter apurado que a taxa de alcoolemia referida em 15 e a presença da substância referida em 16 não foram causais da perda de controlo do IF e ocorrência dos demais factos”.

Tal como na situação do Acórdão citado na decisão de 1.ª Instância, também nestes autos não se apurou que a taxa de alcoolémia não foi causal do embate do veículo conduzido pelo réu na traseira do veículo terceiro (sendo que tal não é sequer afirmado na decisão de 1.ª Instância, pois que nesta, sem que exista qualquer facto provado a ele relativo, se afirma apenas que o acidente “muito provavelmente não teria ocorrido” se não fosse o encadeamento do réu pelo sol).
Assim, ainda que se entenda que o citado art.º 27.º estabelecia, apenas, uma presunção legal, a mesma não é ilidida se apenas se demonstrou que, tendo o réu habilitação legal para conduzir há menos de três anos, conduzindo com 0,294 g/l de álcool no sangue, e assim, sob a sua influência, nos termos do art.º 81.º, n.º 3, do C. da Estrada, o veículo por si conduzido embateu na traseira do veículo terceiro, apresentando-se o sol de frente e tendo o réu sido encandeado pela sua luz.
Note-se ainda que é manifestamente contraditório com todo o anterior raciocínio expendido a afirmação que consta da decisão no sentido de “acrescente-se também que ainda que não onerada com tal prova, a A. alegou que TAS com que o R. tripulava o seu veículo diminuiu as suas atenção e capacidade de resposta quando confrontado com a presença do veículo que o precedia, facto que não logrou demonstrar”.
Tal como a Mm.ª Juiz de 1.ª Instância começou por escrever na sentença proferida, a companhia de seguros não está onerada com a prova deste nexo causal e, assim, da sua não prova nenhuma consequência resulta que impeça a procedência da ação. É manifestamente uniforme a jurisprudência dos Tribunais Superiores nesta matéria, citando-se apenas, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020, proc. 3044/18.3R8PNF.P1.S1, in www.dgsi.pt.
Impõe-se, assim, revogar a decisão proferida, cumprindo apreciar a pretensão deduzida pela autora quanto aos danos por si indemnizados.
Numa situação como a dos autos em que a autora indemnizou os lesados na sequência de um acordo extrajudicial, exige-se que a autora demonstre não só o direito que cada um dos lesados teria sobre o responsável do acidente (o aqui réu) e o pagamento por si efetuado a cada um dos lesados, mas também que convença o Tribunal que a quantia que pagou era a que seria devida de acordo com as regras de fixação da indemnização previstas na lei, pois que ao lesante cumprirá indemnizar a companhia de seguros na estrita medida do que seria devido a cada um dos lesados a título de ressarcimento do dano, tendo como limite máximo o valor que foi pago (a que acrescerão, apenas, os juros de mora que resultem da constituição em mora do lesante).
Terá, pois, a autora o direito de ser ressarcida dos valores que pagou quer aos lesados quer às entidades que prestaram assistência a esse lesado, aqui exercendo os direitos resultantes do art.º 495º do C. Civil, se e na medida em que os valores pagos representem a reparação que seria devida a cada um desse lesados.

A autora peticionava:
a) a quantia de € 5.689,00 que alegava ter pago à proprietária do veículo para regularização dos danos que este sofreu e que foi considerado em situação de “perda total”;
b) a quantia de € 4.044,20 que alegava ter pago à concessionária da Autoestrada pelos danos sofridos na autoestrada e respetiva limpeza;
c) a quantia de € 1.811,77 que alegava ter pago a título de despesas de transporte, hospitalares, médicas e medicamentosas a DD;
d) a quantia de €1.500,00 que alegava ter pago a esta última a título de danos não patrimoniais decorrentes do acidente;
e) a quantia de € 117,25 que alega ter pago ao Hospital ... pela assistência que prestou a DD.
Provou-se que procedeu ao pagamento das quantias referidas em a), b) e d) (embora esta quantia se refira também a outros danos patrimoniais sofridos pela DD) e a quantia de € 637,44 relativa à alínea c), não se provando que tivesse efetuado o pagamento da restante quantia referida nesta alínea e a que consta da alínea e).
Qualquer dos valores efetivamente pagos pela autora encontra justificação como indemnização devida por cada um dos danos que resultaram do acidente causado pelo réu e, nessa medida, as quantias que foram pagas pela autora eram efetivamente devidas aos lesados, quer no que se refere aos danos sofridos no veículo ou por DD e ainda os que foram causados na autoestrada onde ocorreu o embate (aliás, nesta matéria, nenhuma concreta questão foi colocada pelo réu na sua contestação, apara além da impugnação generalizada da alegação da autora sobre os danos e a sua indemnização).
 Assiste, assim, à autora o direito de exigir do réu o seu pagamento, por via do direito de regresso (no valor global de € 11.870,64).
A autora reclamava ainda o pagamento de juros de mora contabilizados desde 30/08/2019, calculando os já vencidos à data da propositura da ação em € 1.200,11.
Alegava para o efeito que, por carta datada de 30/08/2019, havia interpelado o réu para o pagamento da quantia despendida na regularização do sinistro (art.º 54.º da petição inicial).
Tratando-se de obrigação pecuniária a lei presume, juris et de jure, que há sempre danos em consequência da mora estabelecendo-se que a indemnização corresponde aos juros legais (art.º 806º, nºs 1 e 2, do C. Civil).
A mora mais não é do que a falta de realização da prestação, no tempo devido, por causa imputável ao devedor, sendo a prestação ainda possível.
Importa, aqui chegados, averiguar a partir de que momento deve considerar-se o réu constituído em mora.
O art.º 805º, nº 1, dispõe que "o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir", prevendo-se nas alíneas a) a c) do nº 2 do mesmo artigo as situações em que há mora independentemente da interpelação.
Não existe na matéria de facto qualquer referência à carta referida (não consta nem dos factos provados, nem dos não provados).
Note-se que a interpelação pressupõe naturalmente que a carta remetida pela autora ao réu chegou ao seu conhecimento.
Ora, tal conhecimento não pode ter ocorrido no dia a que a autora se reporta e que é, precisamente, a data da carta que emitiu.
Daqui se retira que a autora se limita a considerar como interpelação a circunstância de ter emitido uma carta em que exigia do réu as quantias que havia despendido, sem nunca ter alegado que a mesma foi recebida pelo réu, quando apenas esta receção (ou determinadas circunstâncias do seu não recebimento) permitiriam considerar ter existido a interpelação de que a lei faz depender a constituição do réu em mora.
Sem essa interpelação extrajudicial, apenas há constituição do réu mora com a sua citação para esta ação.
Assim, pelo réu são devidos juros de mora, desde a sua citação, à taxa legal de 4% (cfr. arts.º 805.º, nºs 1 e 2, al. a), 806.º, 559.º e Portaria 291/2003, de 08/04), até integral pagamento, sendo de considerar qualquer alteração a esta taxa de juro enquanto aquele não se verificar.
A apelação é, assim, parcialmente procedente, devendo o réu seu condenado a pagar à autora a quantia de € 11.870,64, acrescida apenas de juros de mora vencidos desde a citação.
As custas da ação deverão ser suportadas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
Nos mesmos termos, as custas desta apelação deverão ser suportadas também por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento, porquanto a recorrente indicou como valor do recurso o valor da ação e, como vimos, a sua procedência na ação é apenas parcial.

V – Decisão:

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em conformidade, revogam a decisão proferida que absolveu o réu, condenando-o a pagar à autora a quantia de € 11.870,64 (onze mil oitocentos e setenta euros e sessenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora devidos desde a citação, à taxa de 4%, até integral pagamento, aplicando-se qualquer alteração que venha a ser introduzida a esta taxa de juro enquanto aquele não se verificar, absolvendo o réu quanto ao restante pedido formulado pela autora.
As custas da ação e deste recurso serão suportadas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento.
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Guimarães, 10/07/2025
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)
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Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Maria da Conceição Barbosa de Carvalho Sampaio
2º Adjunto: José Manuel Flores