Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
444/21.4T9CHV.G1
Relator: PAULO CORREIA SERAFIM
Descritores: CRIME DE DANO
TIPICIDADE OBJECTIVA
LESÃO RELEVANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A execução de actos de destruição, de desfiguração ou de inutilização de coisa alheia representa, no crime de dano, por via de regra, um prejuízo patrimonial, uma diminuição do valor ou da utilidade económica da coisa, tanto para o proprietário como para todos aqueles que sobre ela têm a disponibilidade de fruição das suas utilidades.
II – A tipicidade objetiva desse ilícito criminal e a subjacente ilicitude não pressupõem, contudo, a causação de efetivo prejuízo patrimonial ou que este assuma um determinado valor pecuniário.
III – Não obstante, para que o facto atinja o limiar da dignidade penal, é imprescindível que a conduta lesiva assuma algum relevo, o que implica que provoque um resultado danoso minimamente significativo, suscetível de afetar, em qualquer grau, o bem jurídico protegido pela norma, e que a coisa objeto da ação apresente algum valor patrimonial, ainda que mínimo, e um valor de uso, ainda que pouco expressivo, para o respetivo proprietário ou outra pessoa juridicamente autorizada a fruir as utilidades da coisa.
IV - No caso vertente, a matéria de facto provada contém a factualidade necessária ao preenchimento dos elementos objetivos do tipo legal de crime de dano, porquanto provou-se que a conduta dos arguidos determinou a destruição de um muro pertencente ao assistente, mediante o derrube e movimentação das pedras que o compunham, assim afetando a integridade da coisa, não ocorrendo qualquer causa de exclusão de ilicitude do facto. Ademais, tendo o comportamento dos arguidos atingido de modo assaz acentuado a integridade do muro alheio em apreço e a sua funcionalidade, a circunstância de não se ter conseguido apurar o concreto valor patrimonial do muro, que, porém, existe, é irrelevante para a decisão de integrar ou não a conduta no tipo legal de crime de dano.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:
           
I.1 Decisão recorrida
No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 444/21.4T9CHV, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo Local Criminal de Chaves, por sentença proferida e depositada em 19.12.2024 (referências ...29 e ...93, respetivamente), foi decidido:

“a) Condenar os arguidos AA e BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, na pena, de 130 dias de multa, cada um, à taxa diária de € 6,50;
b) Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido cível formulado e, em consequência, condenar os arguidos a, solidariamente, pagarem ao ofendido a quantia de € 400,00 a titulo de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora à taxa legal, atualmente de 4% (artigo 806.º/2 do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril de 2003), vincendos desde a data da presente decisão, até integral pagamento (de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 804.º/1, 805.º/1/3, e 806.º/1/2, todos do Código Civil).
c) Julgar procedente o pedido cível formulado pelo demandante e, em consequência, condenar os arguidos a, solidariamente, pagar ao ofendido, a título de danos patrimoniais, na quantia que se vier a apurar em sede de liquidação em execução de sentença, nos termos do artigo 609.º, n. º2, do Código de Processo Civil e 82.º, n. º1, do C.P.P.
d) Condenar os arguidos no pagamento das custas criminais, nomeadamente em taxa de justiça que se fixa em 2 UC´s. - artigos 513º, nº 1 do Código de Processo Penal e artigo 8º do Regulamento das custas Processuais.
e) Custas cíveis, se as houver, por demandantes e demandados na proporção do respetivo decaimento.”

I.2 Recurso

Não se conformando com a sobredita decisão, dela vieram os arguidos AA e BB interpor o presente recurso, que, na motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório [referência ...35] – transcrição:

“-a actuação dos arguidos não assume natureza criminal, nem é criminalizável; no caso, nem sequer se apurou o valor concreto da coisa objecto da acção “como momento não escrito do tempo do tipo que dá expressão aos princípios da proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo o qual o direito penal apenas deve intervir contra facto de inequívoca danosidade social”.
-Ocorreu indevida interpretação do artigo 212º, nº 2 do Código Penal e violação do artigo 19º, nº 2 do Código de Processo Penal.
-De qualquer modo não foram provados os diversos elementos objectivos do crime de dano, não constando na sentença, como já sucedia na acusação particular, a imputação aos arguidos de qualquer acto substantivo e material, que densifique os conceitos de destruição, danificação ou inutilização e que que configure a comissão do crime de dano pelo qual vinham acusados.
-Certo é que na decisão condenatória não figuram que factos os arguidos praticaram dos quais se possa extrair por uma actuação ilícita ou por quaisquer consequências lesivas no património do assistente ou seja na integridade física ou na substância do “muro”.
-Resulta, ainda, do texto da decisão recorrida e da matéria dada como provada que esta se mostra insuficiente para a decisão, inexistindo matéria fáctica que sustente fundadamente a sentença que condenou os arguidos pelo crime de dano simples, p.e p. pelo nº 2 do artigo 212º do CP.
-Teve lugar o erro decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no nº 2 do artigo 410º do CPP, na medida em que a factualidade provada não permite justificada e objectivamente a sentença adoptada pelo tribunal a quo.
-Por último, refere-se que não tem suporte jurídico a condenação dos arguidos a título de danos patrimoniais na quantia que se vier a apurar em sede de liquidação, porque não ficou demonstrada a existência de qualquer dano/prejuízo dessa natureza.

Na decorrência da motivação e das conclusões aduzidas, deve o recurso proceder, e a douta sentença, pelos indicados motivos, ser revogada e ser substituída por Acórdão que a substitua e absolva os arguidos.
Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ªas aliás, como sempre JUSTIÇA!!”

I.3 Contra-alegações

I.3.1 O Assistente, CC, notificado do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua douta resposta defendendo que deve ser julgado improcedente o recurso [referência ...07].

1.3.2 A Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua douta resposta defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida [referência ...74].

I.4 Pronúncia do Ministério Público e dos recorrentes neste tribunal ad quem e posterior tramitação processual: 
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto deduziu douto parecer, nos termos do art. 416º, nº1, do CPP, pugnando pela improcedência do recurso [referência ...12].
 
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, os recorrentes deduziram resposta ao sobredito parecer, reiterando a posição já assumida na motivação do recurso, que entendem não ser contrariada pela argumentação aduzida nesse parecer.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

II – Âmbito objetivo do recurso:

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)[1].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dirimir reportam-se a:

A) Existência ou não de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [art. 410º, nº2, al. a), do CPP].
B) Saber se a conduta adotada pelos arguidos preenche os elementos do tipo objetivo do crime de dano e apresenta dignidade penal.
C) Inexistência de dano/prejuízo patrimonial para o ofendido decorrente da conduta dos demandados civis, conducente, nessa parte, à improcedência do pedido de indemnização civil.

III – Apreciação:       

III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelo ajuizado recurso, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada (transcrição, na parte ora relevante) e que não foi especificamente impugnada pelos recorrentes:

1) O assistente é dono e legítimo proprietário do prédio urbano sito em ... composto de casa de habitação 97m2, corte 44m2 e eira 173m2, aquisição registada na CRP ... sob o n. º ...16 e inscrito na matriz sob o número ...31.
2) O prédio do assistente confronta de poente com o prédio dos arguidos e mandou construir, em data não concretamente apurada, mas anterior a 26 de maio de 2021, um muro de pedra em perpianho, de características e valor não concretamente apuradas, localizado na Rua ..., ....
3) Na manhã do dia 26 de maio de 2021 o empreiteiro DD, a mando dos arguidos, procedeu ao derrube do referido muro.
4) O assistente é irmão da arguida e cunhado do arguido, pois que, os arguidos são casados entre si.
5) Os arguidos agiram de forma livre, deliberada, consciente e intencional, com o propósito de destruírem e danificarem o muro do assistente, o que fizeram e conseguiram, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com o que se conformaram, não se coibindo de assim atuar.
(…)

Do Pedido Civil
18) Com a conduta descrita em 4), os arguidos danificaram um número não concretamente apurado de pedras que compunham o muro.
19) Os demandados ofenderam a propriedade do demandante, danificando e destruindo o seu muro por derrube e movimentação de pedras.
20) A atuação dos demandados originou no demandante, ansiedade, desgaste nervoso e desassossego.

E considerou como não provados os seguintes factos (transcrição, na parte aqui pertinente):
a) Que o muro descrito em 2) delimita a propriedade do assistente da propriedade dos arguidos.
b) Que é facetado e alinhado, com cerca de 6 metros de comprimento e 1,60 metros de altura e tem o valor de €3.000,00.
c) Que o muro ficou concluído em finais de 2011, inicio de 2012.
d) As pedras que compunham o muro mostram-se agora irregulares e danificadas, não estando perfeitamente facetadas.

III.2 – Análise e decisão das concretas questões suscitadas pelo recurso dos arguidos:

III.2.1 – Alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [art. 410º, nº2, alínea a), do CPP]:

Neste conspecto, os arguidos/recorrentes, AA e BB alegam, resumidamente [conclusões 5ª e 6ª], que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, dado que esta não permite o preenchimento do elemento objetivo do tipo legal do crime de dano consistente na destruição, danificação ou inutilização da coisa e, por isso, a condenação dos arguidos.

Vejamos.

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte aqui pertinente]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
[…]”

O predito vício decisório há de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, isto é, sem apelo a outros elementos externos à decisão, designadamente prova gravada ou documentada.
A existência do vício previsto na alínea a) do nº2 do citado normativo implica que a matéria de facto provada, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal. Verifica-se quando o Tribunal deixe de indagar e de conhecer sobre facto que se revele necessário para a decisão do objeto do processo.
Assim entendido o vício em questão, é óbvio que a sentença recorrida não padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Os arguidos/recorrentes não especificam qualquer questão fática relevante para a decisão final que não tenha sido averiguada pelo Tribunal a quo, designadamente no que concerne ao seu modo de atuação e consequências materiais dos seus actos, factualidade que, inquestionavelmente, integra o elenco dos factos provados ou não provados, de forma harmónica, coerente, não contraditória.
Por outro lado, não exsuda manifesto, perentório dos próprios factos provados e não provados referentes a tal questão que os arguidos não cometeram o crime de dano que lhe foi imputado na acusação particular e por cuja prática, em autoria material, foram condenados.         
O que o arrazoado recursório realmente transmite é que, perante o entendimento da norma incriminadora sufragado pelos recorrentes, não decorre da factualidade dada como provada que eles “danificaram”, por qualquer modo típico, o muro do assistente, dessa forma lhe causando prejuízo patrimonial, elemento objetivo do tipo cuja falta determina necessariamente a sua absolvição.
Todavia, a legítima discordância manifestada pelos arguidos/recorrentes face ao decidido pela Mma. Juíza, consubstancia um fundamento recursório distinto, respeitante a eventual erro de julgamento quanto ao Direito, por errada subsunção jurídica dos factos provados, não integrando o vício da decisão consagrado na alínea a) do nº2 do art. 410º do CPP.
A esta questão voltaremos infra, ainda que no predito distinto (e correto) enquadramento.      
Por conseguinte, não se verifica o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pelo que improcede, nesta parte, o recurso dos arguidos.

III.2.2 – Do alegado não preenchimento integral da tipicidade do crime de dano:
 
Neste ponto, os arguidos/recorrentes invocam, em súmula [conclusões 1ª a 4ª], que a sua actuação dos arguidos não assume natureza criminal, porquanto nem sequer se apurou o valor concreto da coisa objecto da acção, sendo que o direito penal apenas deve intervir contra facto de inequívoca danosidade social. Referem que não foram provados os diversos elementos objectivos do crime de dano, não constando na sentença, como já sucedia na acusação particular, a imputação aos arguidos de qualquer acto substantivo e material que densifique os conceitos de destruição, danificação ou inutilização e que configure a comissão do crime de dano pelo qual vinham acusados. Acrescentam que na decisão condenatória não figuram que factos os arguidos praticaram dos quais se possa extrair por uma actuação ilícita ou por quaisquer consequências lesivas no património do assistente ou seja na integridade física ou na substância do muro.
Conhecendo.

Dispõe o art. 212º do Código Penal (CP), relativo ao crime de dano:

“1- Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2- A tentativa é punível.
3- O procedimento criminal depende de queixa.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206º e 207º”.

São elementos objetivos do tipo: a) a ocorrência de destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa corpórea; b) que a conduta incida sobre coisa pertencente a outrem.
No que tange às modalidades de ação "destruir, danificar, desfigurar, tornar não utilizável", menciona-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.03.2003, Processo nº 616/2003, Barreto do Carmo, acessível em www.dgsi.pt:

«1. A destruição (grau máximo de dano) significa a perda total da utilidade da coisa, implicando, normalmente, o sacrifício da sua substância (o processo causal não está tipificado - execução não vinculada).
2. A danificação abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente.
3. Por desfigurar compreende-se, os atentados à integridade física que alteram a imagem exterior da coisa, querida pelo respectivo proprietário.
4. "Tornar não utilizável", abrange acções que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função.»

Nas palavras do acórdão de uniformização da jurisprudência do Supremo Tribunal da Justiça nº 7/2011, publicado no DR 105/2011, Série I, de 31.05.2011, pp. 3006-3015:
 
«Destruir» significa a perda da individualidade da coisa mesmo que não desapareça a matéria de que esta é composta, o que pode implicar o sacrifício da sua substância, na forma mais drástica do cometimento deste crime; «danificar» constitui um estrago substancial da coisa, sem perda total da sua integridade, mas com diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica; abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição; «desfigurar» traduz uma ofensa irremediável da estética da coisa, mesmo ainda que a sua estrutura não seja afectada, e a alteração da imagem exterior da coisa, relativamente àquela que possuía originariamente; e «tornar não utilizável» será tornar a coisa, mesmo que temporariamente, inadequada ao fim a que estava destinada, mantendo esta contudo a sua individualidade, reduzindo a utilidade da coisa relativamente à sua função.

No crime de dano, o bem jurídico protegido é a propriedade, visando a incriminação proteger a propriedade alheia contra investidas que atingem directamente a existência ou integridade do estado da coisa.
No tipo legal de dano, o legislador quis proteger a coisa corpórea em toda a sua integralidade, procurando salvaguardar quer o seu estado, quer a sua substância ou ainda a sua funcionalidade. Com a incriminação do dano, a lei penal procura assegurar a plena disponibilidade da coisa contra interferências de sujeitos em relação aos quais seja «alheia», pretendendo que a coisa mantenha a sua integridade, o seu valor económico, o seu aspecto estético, a sua funcionalidade.
Se é certo que a execução de actos de destruição, de desfiguração ou de inutilização de coisa alheia representa, por via de regra, um prejuízo patrimonial, uma diminuição do valor ou da utilidade económica da coisa, tanto para o proprietário como para todos aqueles que sobre ela têm a disponibilidade de fruição das suas utilidades, cumpre concluir que a tipicidade objetiva do crime de dano e a respetiva ilicitude associada não pressupõe, não exige a causação de efetivo prejuízo patrimonial ou que este assuma determinado valor.
Na verdade, o dano não configura, pelo menos diretamente, um crime contra o património, pelo que embora o prejuízo patrimonial se apresente habitualmente como uma consequência ou efeito da lesão ou afetação da coisa, tal não é necessário nem imperioso.
Assim também Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, anotação §12 ao art. 212º, pág. 207: «A incriminação não protege directa e tipicamente o património, podendo, por isso, sustentar-se que o Dano não configura um crime contra o património. Embora o prejuízo patrimonial configure uma consequência ou efeito normal do Dano, tal não é inevitável nem necessário. Pode consumar-se o crime de Dano sem que tenha como reflexo um prejuízo patrimonial».
Por outro lado, como sagazmente se observa no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.09.2014, Processo nº 261/13.5GAMMV.C1, Olga Maurício, acessível em www.dgsi.pt, «(…) a inexistência de quantificação do prejuízo causado com uma conduta não significa, ipso factu, que esta seja insignificante e, consequentemente, indigna para justificar a atuação do direito penal.»
Para que o facto atinja o limiar da dignidade penal, é imprescindível que a conduta lesiva assuma algum relevo, o que implica que gere resultados danosos minimamente significativos, suscetíveis de afetar, em qualquer grau, o bem jurídico protegido pela norma, e que a coisa objeto da ação apresente algum valor patrimonial, ainda que mínimo, e um valor de uso, ainda que pouco significativo, para o respetivo proprietário ou outra pessoa juridicamente autorizada a fruir as utilidades da coisa.
O diminuto valor da coisa “danificada” só releva para efeitos do disposto no art. 207, nº1, al. b), ex vi do art. 212º, nº4, ambos do Código Penal, ou seja, o procedimento criminal depende de acusação particular se a coisa assumir aquele valor reduzido e se destinar à utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a) daquele primeiro preceito legal.
Dito de outra forma: em qualquer das modalidades, a acção típica tem de atingir um limiar mínimo de intensidade (danosidade social), que significa também a exigência de um valor mínimo da coisa.
           
O elemento subjetivo do tipo preenche-se com o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14º do CP.
O denominado elemento emocional do dolo ou consciência da ilicitude pressupõe o conhecimento e entendimento pelo agente do cariz ilícito e penalmente punível da sua conduta, de modo a que sobre ele seja viável formular um juízo de censurabilidade ético-jurídica pela sua atitude pessoal de contradição ou indiferença ao direito.    

O crime de dano é um crime material, pressupondo a sua consumação a efectiva destruição (total ou parcial), danificação, desfiguração ou inutilização da coisa. A consumação inicia-se com a produção da lesão ou defeito da coisa.

No caso vertente, a matéria de facto provada [cfr. factos 1 a 3, 18 e 19] contém a factualidade necessária ao preenchimento dos sobreditos elementos objetivos do tipo legal de crime de danos, porquanto a conduta dos arguidos, em comparticipação e por intermédio de outrem (empreiteiro) – art. 26º do CP –, determinou a destruição de um muro pertencente ao assistente, mediante o derrube e movimentação das pedras que o compunham, assim afetando indubitavelmente a integridade da coisa, sem que ocorra qualquer causa de justificação, de exclusão de ilicitude do facto.    

Acresce que, como decorre do predito, tendo o comportamento dos arguidos atingido de modo assaz acentuado a integridade do muro alheio em apreço e a sua funcionalidade, a circunstância de não se ter conseguido quantificar a lesão causada não releva para a decisão de integrar ou não a conduta no tipo legal de crime de dano por cuja prática os arguidos foram condenados.
O Tribunal a quo não se sentiu habilitado, perante a prova nesse conspecto produzida, a indicar o concreto valor patrimonial do muro derrubado pelos arguidos/demandados civis, considerando-o como não apurado [facto provado nº2].
Tal não significa, contudo, que se tenha provado que o muro em questão é destituído de valor, patrimonial e de uso, e, assim sendo, que o assistente/demandante civil não sofreu qualquer prejuízo patrimonial como consequência direta e necessária da ação lesiva dos arguidos, a qual, dessarte, não assume o relevo mínimo para justificar a intervenção do direito penal. Pelo contrário, frisa-se, provou-se que o muro tinha valor, ainda que não concretamente apurado.    

Por outro lado, dúvidas não sobejam de que se mostram verificados os elementos subjetivos do tipo e a consciência da ilicitude, sem que ocorra qualquer causa de exculpação – cfr. factualidade provada no ponto nº5.  

Consequentemente, soçobra o recurso nesta parte.
     
III.2.3 – Existência ou não de dano patrimonial justificativo da remessa da liquidação para execução de sentença:  

Estatui o nº1 do art. 82º, do CPP, «Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.»
No presente caso, a propósito dos reclamados danos patrimoniais decidiu-se:
«Volvendo ao caso dos autos, e quanto aos peticionados danos patrimoniais, analisada a factualidade alegada e provada, temos que se provaram os pressupostos da responsabilidade civil, e concretamente a existência de danos – designadamente que as pedras que compunham o muro foram derrubadas pela ação dos arguidos, nada mais se apurando a respeito que permitisse ao Tribunal fixar o seu quantitativo exato.

Com efeito, não se apurou o número de pedras danificadas, em consequência direta e necessário da conduta dos arguidos, ou o seu valor unitário e, bem assim, qual o custo efetivo da recolocação, seja o custo da mão-de-obra utilizada e o tempo gasto, seja o custo dos materiais a utilizar.
Ora, num caso como o presente, em que se provaram todos os pressupostos da responsabilidade civil, incluindo a existência de prejuízos reparáveis, mas não se conseguiu apurar o seu montante, nem os elementos necessários para a formulação de um juízo de equidade, impõe-se condenar o demandado no que se vier a liquidar ulteriormente – artigo 82.º CPP e 609.º CPC.»
           
A decisão recorrida não merece censura.
O normativo do art. 82º, nº1 do CPP corresponde ao art. 609º, nº2, do Código de Processo Civil, sendo o seu âmbito de aplicação os casos em que havendo prova da autoria, do facto ilícito culposo e do nexo de causalidade entre este e o prejuízo sofrido pelo lesado, não estão suficientemente determinados os elementos para “fixar a indemnização”, ou seja, para estabelecer a natureza e o montante da indemnização. Então, nesta situação, o Tribunal estabelece a responsabilidade dos demandados, mas remete as partes para o procedimento de execução de sentença, a instaurar no tribunal cível.
Foi o que sucedeu in casu, em que se provou que a conduta dos demandados civis foi causa, direta e necessária, da danificação do muro propriedade do demandante civil, provocando um prejuízo monetário decorrente da necessidade de substituição/recolocação de um indeterminado número de pedras que compunham a coisa, em montante não concretamente apurado e, portanto, legitima-se a condenação dos demandados no que neste aspecto se liquidar em execução de sentença, no tribunal civil.
         
Logo, a douta sentença recorrida não violou qualquer disposição legal ou constitucional, nomeadamente as invocadas pelo recorrente.
Em suma, improcede in totum o recurso formulado pelos arguidos AA e BB.

IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelos arguidos AA e BB e, em consequência, manter integralmente a sentença recorrida.
 
Custas por cada um dos arguidos/recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, nº1 e 514º, ambos do CPP, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, todos do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo), sem prejuízo da proteção jurídica (apoio judiciário) nessa modalidade de que eventualmente beneficiem.
*
Notifique (art. 425º, nº6, do CPP).
*
Guimarães, 25 de junho de 2025,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]
Fernando Chaves (1º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Pedro Cunha Lopes (2º Adjunto)
[assinatura eletrónica]

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator, com recurso a meios informáticos, e assinado eletronicamente pelos Desembargadores subscritores – cfr. art. 94º, nºs 2 e 3, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade.