Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
485/17.6T8EVR-C.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS DA SEGURANÇA SOCIAL
CREDOR PIGNORATÍCIO
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Numa hipótese de concurso que coenvolve créditos pignoratícios, créditos dos trabalhadores, créditos do Estado e das autarquias locais e créditos da Segurança Social, o legislador deixa a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando desse modo obviar à preterição desproporcionada, em benefício injusto da Segurança Social, dos interesses de um conjunto mais alargado de outros credores, nomeadamente dos trabalhadores.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 485/17.6T8EVR-C.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

Nos presentes autos de graduação de créditos, foi proferida a seguinte decisão (na parte que diz respeito a este recurso):
«Quanto à verba 59 do auto de apreensão (ações).
«1.º Créditos privilegiados do credor Instituto da Segurança Social, conforme indicada lista de créditos de 21-06-2017;
«2.º Créditos da credora (…) – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., garantido pelo penhor incidente sobre a verba 59;
«3.º Créditos dos trabalhadores, credores n.ºs 100 a 123, tudo conforme a lista de créditos apresentada pela administradora da insolvência em 21-06-2017;
«4.º Créditos privilegiados de IRS, IRC e IVA, conforme indicada lista de créditos de 21-06-2017;
«5.º Crédito do credor (…), requerente da insolvência, que beneficia do privilégio creditório geral, incidente sobre os bens móveis integrantes da massa insolvente, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo correspondente a 500 UC;
«6.º Créditos comuns;
«7.º Créditos subordinados».
A graduação foi feita nestes termos com o seguinte fundamento: «No concurso entre o privilégio mobiliário da segurança social e do IEFP e o crédito garantido por penhor, prevalecem os primeiros, ainda que o penhor tenha sido constituído anteriormente» (página 13).
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Desta sentença recorre a credora (…) – Sociedade de Garantia Mútua, S.A. defendendo que o seu crédito, garantido por penhor, deve ser graduado em primeiro lugar.
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Os factos com interesse para a decisão são os seguintes:
A Recorrente reclamou créditos garantidos por penhor de acções no montante de € 287.427,68.
A Recorrente celebrou com a Insolvente (…), Lda. um contrato a regular os termos e condições em que a Reclamante prestou, em nome e a pedido daquela, uma garantia autónoma a favor do Beneficiário devidamente identificado.
O contrato supra mencionado e as obrigações a si inerentes encontram-se garantidas por penhor sobre acções representativas do capital da (…) – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., aqui Recorrente, no valor nominal de € 1,00 cada.
Acções que foram apreendidas para a massa insolvente e garantem, como tal, os créditos da (…).
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A questão que se coloca é esta: deve o crédito garantido por privilégio mobiliário geral prevalecer sobre o crédito garantido por penhor?
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As regras legais a ter presente no recurso são as seguintes:
- o artigo 666.º, n.º 1, do Código Civil:
“O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros (…), com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel (…)”;
- o artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro:
“1 - Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.
2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
Por último, o artigo 747.º, n.º 1, do Código Civil:
“Os créditos com privilégio mobiliário graduam-se pela ordem seguinte:
a) Os créditos por impostos, pagando-se em primeiro lugar o Estado e só depois as autarquias locais”.
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A recorrente cita diversa jurisprudência sobre esta matéria, toda ela no sentido de a resposta àquela pergunte ser negativa; ou seja, o crédito garantido por penhor prevalece sobre o outro e, por isso, deve ser graduado antes deste último. Da referida jurisprudência destacamos o ac. do STJ, de 22 de Setembro de 2021, proferido em recurso de revista excepcional.
Neste, depois de se ter exposto as correntes doutrinais sobre o assunto, escreve-se o seguinte:
«Supomos que a resolução da (aparente) contradição normativa em causa só pode ser encontrada numa interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e numa ponderação de interesses segundo as regras que embasam a normalidade do sistema de preferências creditórias. Não se antolha qualquer outra solução satisfatória. De resto, com maior ou menor detalhe, é nesse sentido que se direciona a (vasta) jurisprudência que sustenta que numa situação como a que aqui temos pela frente deverá ser reconhecida prioridade ao crédito pignoratício sobre o crédito da Segurança Social (e preferindo a este o crédito dos trabalhadores).
«Deste modo, quando a graduação implique unicamente uma díade formada pelo crédito pignoratício e pelo crédito da Segurança Social a solução não poderá desconsiderar o estabelecido no n.º 2 do citado artigo 204.º: o crédito da Segurança Social prefere ao crédito pignoratício. Neste sentido vai Salvador da Costa (O Concurso de Credores, 2ª ed., pág. 252) quando (com referência ao n.º 2 do artigo 10.º do então vigente D.L. n.º 103/80 escreve: “no concurso entre o direito de crédito das instituições de segurança social garantido pelo referido privilégio mobiliário geral e o direito de crédito garantido por um direito de penhor, prevalece o primeiro.”
«Não pode haver dúvidas de que no confronto desses dois tipos de créditos a lei pretendeu dar prioridade ao crédito destinado a cumprir um desígnio social sobre um crédito destinado a cumprir um desígnio puramente (pelo menos na esmagadora maioria dos casos) particular e quase sempre brotado do espaço empresarial. Na ponderação dos dois interesses em jogo, o legislador entendeu definir desse modo as coisas, privilegiar o público (social) sobre o particular, e não cabe ao intérprete discutir essa opção. Trata-se aqui, todavia, de um singular desvio à regra que vale para a normalidade, pois que essa regra (tal como fixada no Código Civil) estabelece o princípio da prioridade do penhor sobre todo e qualquer privilégio creditório mobiliário geral.
«Mas quando de permeio se encontram créditos de trabalhadores, do Estado e das autarquias locais por imposto já aquela opção não terá sido mantida pelo legislador.
«E isso, bem vistas as coisas, nada tem de estranho ou contraditório.
«Pois que não são apenas os créditos da Segurança Social que são de interesse público e social. Também os interesses creditórios do Estado e das autarquias locais por impostos são, por definição, interesses públicos e sociais, da mesma forma que os interesses creditórios laborais não deixam de se resolver em interesses públicos e sociais indiretos ou reflexos, na medida em que são relacionáveis com prestações que o setor público pode ser chamado a suportar para com os trabalhadores e suas famílias em situação de carência económica.
«E daqui que se possa intuir que em caso de concurso desses outros créditos com os da Segurança Social o legislador tenha optado por uma solução que não inverta o paradigma que ele próprio estabeleceu como regra em atenção aos diversos interesses em jogo.
«Sendo tudo isto assim, como nos parece que é, cremos ser razoável supor que nesta última hipótese (concurso que coenvolve créditos pignoratícios, créditos dos trabalhadores, créditos do Estado e das autarquias locais e créditos da Segurança Social) o legislador se limitou a deixar a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando desse modo obviar à preterição desproporcionada (em benefício injusto da Segurança Social) dos interesses de um conjunto mais alargado de outros credores, nomeadamente dos trabalhadores» (negritos nossos).
Cremos que a posição definida neste acórdão, dado o seu carácter tão recente, bem como a natureza do recurso em questão e respectivos pressupostos, é de seguir, não se afastando, antes a consolidando, a jurisprudência dominante. Citamos, entre muitos outros, os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 25 de Maio de 2017 e de 8 de Julho de 2020 (onde se contém ampla exposição sobre a matéria), da Relação de Évora, de 26 de Junho de 2008.
No nosso caso temos diversos créditos garantidos por privilégio mobiliário e um garantido por penhor, sendo certo que a regra do artigo 666.º, n.º 1, do Código Civil tem aqui todo o cabimento. Mas o que interessa destacar é que não estamos só perante dois créditos igualmente garantidos; apenas neste caso a regra do artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social se aplicará de pleno.
Assim, deve a graduação ser alterada de forma a que o crédito da recorrente seja colocado em primeiro lugar.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso em função do que se revoga parcialmente a sentença recorrida e apenas no seguinte ponto:
Quanto à verba 59 do auto de apreensão (ações), graduam-se os créditos da seguinte forma:
1.º Créditos da credora (…) – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., garantido pelo penhor incidente sobre a verba 59;
2.º Créditos privilegiados do credor Instituto da Segurança Social, conforme indicada lista de créditos de 21-06-2017;
3.º Créditos dos trabalhadores, credores n.ºs 100 a 123, tudo conforme a lista de créditos apresentada pela administradora da insolvência em 21-06-2017;
4.º Créditos privilegiados de IRS, IRC e IVA, conforme indicada lista de créditos de 21-06-2017;
5.º Crédito do credor (…), requerente da insolvência, que beneficia do privilégio creditório geral, incidente sobre os bens móveis integrantes da massa insolvente, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo correspondente a 500 UC;
6.º Créditos comuns;
7.º Créditos subordinados.
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No mais, mantém-se o decidido.
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Custas pela massa insolvente.
Évora, 24 de Março de 2022
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Manuel Tomé de Carvalho