Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3015/17.6T9FAR-B.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
PRESSUPOSTOS
MOTIVO SÉRIO E GRAVE
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A seriedade e a gravidade do motivo gerador da desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do Juiz só conduzirão à sua recusa, ou à sua escusa, quando objetivamente diagnosticadas num caso concreto.
II - A impressão ou convencimento subjetivo, por parte de um sujeito processual, não vale, com suficiência, para fundamentar a desconfiança ou a suspeição sobre a imparcialidade do Juiz.
III - Os motivos que podem gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz podem ser da mais diversa natureza. Têm é que ser sérios e graves, irrefutavelmente denunciadores de que o Juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, para perseverar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.
IV - In casu, a postura da Exª Juíza, ao longo do julgamento dos autos, é de molde a que se esteja na presença de uma situação singular que justifica a pretendida recusa, desde logo (e esta circunstância, se mais não houvesse, é suficiente para o deferimento da pretensão do requerente) o facto de não se ter coibido de, a pretexto de uma alegada honestidade intelectual, ter afirmado, por mais de uma vez, de modo claro e sem deixar dúvidas sobre o seu entendimento, que a acusação e a pronúncia não eram válidas, que deveriam ter sido recusadas, porquanto, na sua visão, de tais peças processuais não constavam, entre outros factos, os elementos subjetivos do tipo de crime em questão.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO

O assistente J suscita o presente incidente de recusa da Mmª Juiz de Direito G, a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Tavira, no âmbito do Proc. nº 3015/17.6T9FAR, que aí corre termos, ao abrigo do disposto nos Artsº 43 nsº1, 3 e 5, 44 e 45 nº1 al.), todos do CPP.
Para tanto, alega, em síntese, que a Meritíssima Juiz tem revelado, no âmbito da direcção do aludido processo, que já se encontra em fase de julgamento, uma manifesta falta de imparcialidade, porquanto, tal Mmª Juiz (transcrição):
i) Pronunciou-se, aberta e declaradamente, quanto à invalidade da acusação e pronúncia, dizendo que se deveria ter decidido pela “rejeição pura e dura do acusatório”, em sede de saneamento do processo (fase em que ainda não era a Juiz titular);
ii) Nessa sequência, afirmou que, apesar dessa manifesta invalidade, ter-se-ia de levar o julgamento até ao fim, por imperativo legal, pedindo, porém, objectividade nas perguntas feitas pelos Mandatários, em face da posição manifestada quanto à acusação e pronúncia em nome da “honestidade intelectual” (o que, naturalmente, apenas pode ser entendido como uma clara antecipação do sentido da decisão e consequente condicionamento do andamento da produção de prova, ainda em curso);
iii) Reagiu aos recursos interpostos pelo Assistente, tecendo comentários laterais e em jeito jocoso, no decurso da audiência, sobre o que neles se invocou, revelando uma atitude de pessoalização em face das questões processuais legítima e legalmente suscitadas;
iv) Demonstrou – através das intervenções supra relatadas – uma análise parcial dos factos e da prova que ainda estava a ser produzida em audiência;
v) Insinuou mesmo a responsabilização (criminal ou de outro tipo) do Assistente, a propósito das vedações que este colocou nos terrenos adjacentes ao F (quando essa matéria já foi inclusivamente apreciada e julgada em sede de processo civil, com decisão transitada em julgado);
vi) Restringiu a intervenção processual do Assistente (recusando liminarmente os requerimentos probatórios apresentados);
vii) E, inclusivamente, recusou a sua assistência pessoal à audiência e à inspeção ao local;
viii) Descredibilizou (e desrespeitou), aberta e declaradamente, a testemunha de acusação, funcionária do Estado (na reforma).
Entendendo que estas particulares e especiais circunstâncias são geradoras de suspeita da intervenção da Mm Juiz nestes autos, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conclui nos seguintes termos (transcrição):
i) Ser imediatamente suspensa – enquanto não se encontrar decidido superiormente o presente requerimento de recusa – a intervenção da Meritíssima Juiz nos presentes autos, assim se abstendo da prática de atos posteriores e devendo dar-se sem efeito a continuação da audiência agendada para o dia 4 de Setembro de 2025, nos termos do artigo 43.º, n,º 5, do CPP (segunda parte);
ii) Ser dado provimento ao presente incidente de recusa, sendo assim decretada a cessação definitiva da intervenção da Meritíssima Juíza, nos autos supra identificados, com base na presente recusa, e, determinando, consequentemente, a remessa do processo “ao juízo que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substitui-lo”, nos termos do artigo 46.º do CPP;
iii) Serem anulados os atos processuais que já foram praticados pela referida Juíza, e melhor identificados supra, porquanto deles “resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo” nos termos do artigo 43,º, n.º 5, do CPP (primeira parte).

A Mmª Juiz visada pronunciou-se nos autos, nos seguintes termos (transcrição):
Requerimento datado de 01.09.2025 (ref.ª citius 14007221)
Veio o Assistente deduzir incidente de recusa nos termos do disposto no artigo 43.º, n.ºs 1, 3 e 5, artigo 44.º, e artigo 45.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, invocando entender que a Mma Juiz tem um preconceito e um pré-juízo face ao mérito dos presentes autos, que obsta a que se considere que a mesma tenha agido com uma postura de imparcialidade, neutralidade e objectividade, com fundamento, em suma, no que se segue:
- uma posição de questionamento quanto à legitimidade da intervenção do Assistente no processo;
- uma atitude de restrição da intervenção processual do Assistente na posição que tem, legalmente, de auxiliar o MP no presente processo;
- uma recusa da presença pessoal do Assistente na sala de audiência e na inspeção ao local;
- uma posição de crítica face aos termos da acusação deduzida pelo MP, no termo do inquérito, e face aos termos da pronúncia elaborada pelo juiz de instrução criminal, questionando — aberta e declaradamente, no decurso da audiência e durante a produção de prova — a sua validade;
- e uma atitude de descredibilização e desrespeito da testemunha da acusação (N).
Cumpre pronunciar-me quanto ao requerido.
Resulta do art. 43.º, n.º 1 e 3 do C.P.P. que o assistente pode requerer a recusa de intervenção de um juiz no processo quando tal intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Tal preceito legal é uma decorrência do princípio fundamental plasmado no artigo 20.º n.º 4 da C.R.P., o qual impõe que todos tenham direito que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. Entende-se por processo equitativo o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibições de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, IN Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª edição, 2007, Coimbra, p. 415).
Germano Marques da Silva ensina que “(…) constituem, nomeadamente, causa de suspeição as atitudes dos magistrados reveladoras de prejuízo sobre a culpabilidade do arguido, quer sejam manifestadas nos actos do procedimento, quer à sua margem, e bem assim as manifestações de inimizade ou desconsideração por parte do juiz relativamente a qualquer dos sujeitos processuais ou seus advogados (…)”, apresentando como exemplo das aludidas atitudes “(…) quando o juiz diz ao arguido ou a alguma testemunha que estão a mentir ou manifesta impaciência perante os actos da defesa ou da acusação, quando estas se contenham dentro dos limites da lei (…)” ou ainda “(…) quando o juiz faz declarações à comunicação social sobre a eventual culpabilidade do arguido ou se comporta em termos que revelam influências exteriores (…)” (cfr. Curso de Processo Penal, I, 5.ª ed., pág. 219 e 220).
Paulo Pinto de Albuquerque afirma que a imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo, sustentando que o teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa e que ao aplicar o teste subjectivo, a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção, como, por exemplo, se o arguido tem uma acção interposta contra o juiz para fazer valer os seus direitos de personalidade, se for ou tiver sido parte em qualquer acção em que tenha intervindo o arguido, se o juiz tem grave inimizade com o mandatário forense do arguido (cfr. Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 127 e 128).
Citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31/05/2006, proc. n.º 0642816, dir-se-á que “(…) é atribuída ao julgador - pelo seu estatuto, e pela natureza das suas funções – uma presunção de imparcialidade. Assim, a recusa deve perfilar-se como uma excepção e ela não pode ser admitida, a não ser por motivos sérios e graves. É, assim, necessário que em razão das circunstâncias examinadas objectivamente, seja criada uma aparência de parcialidade, pois o sentimento subjectivo de desconfiança não é suficiente para obter a recusa de um Juiz; é necessário que o sentimento de desconfiança repouse em factos concretos, adequados a por eles mesmos terem uma influência direta no desenvolvimento do procedimento (…)”.
E como se decidiu no mui douto Acórdão do S.T.J. de 16.05.2002, “(…) a simples discordância jurídica em relação aos actos processuais praticados por um juiz, podendo e devendo conduzir aos adequados mecanismos de impugnação processual, não pode fundar a petição de recusa (…)” (neste sentido ver ainda acórdão do STJ de 09/12/2004 proc. n.º 04P4308).
In casu, e analisadas as afirmações feitas pelo Assistente, resulta claro e evidente que o mesmo não descreve acto donde, objectiva ou subjectivamente, se extraia sequer um motivo – e muito menos sério e grave – adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz ou que seja susceptível de denunciar a inexistência de um processo equitativo ou discriminação.
Quanto ao primeiro argumento de que o Assistente lança mão, a saber, questionamento da posição do assistente com tal no âmbito dos presentes autos, sempre se dirá que foi aceite a constituição de J como assistente através de despacho proferido e já transitado em julgado, tendo desde então o mesmo tido intervenção em tal qualidade, pelo que nenhuma consideração temos, nesta sede, a fazer.
No que concerne à alegada restrição da intervenção processual do Assistente bem como à ausência do Assistente na primeira sessão de julgamento (de 12 de junho) e na inspeção ao local realizada, como melhor resultará dos autos, sempre tiveram os Mandatários do Assistente palavra para requererem o que tivessem por conveniente em toda e qualquer fase do processo, tendo os respectivos requerimentos sido apresentados nos tempos que os Mandatários assim entenderam, e após facultado o contraditório, sido deferidos ou indeferidos fundamentadamente. No que à ausência do Assistente na primeira sessão de julgamento bem como na inspecção ao local, sempre se reiterará o plasmado no termo lavrado e melhor constante dos autos (ref.ª citius 137210909), tendo a Mma Juiz, perante a comunicação de que iriam ser requeridas as declarações ao Assistente, comunicado que o mesmo não deveria estar presente na produção de prova, de modo a evitar o inquinamento da produção da prova e, acima de tudo para garantir que, em caso de deferimento de tomada de declarações ao mesmo, a própria apreciação de tais declarações pudessem ser valoradas na sua plenitude.
Quanto ao indeferimento de requerimentos de produção de prova apresentados pelo Assistente, a jurisprudência já se tem pronunciado no sentido que de que não constitui fundamento de recusa o indeferimento de diligências requeridas, citando-se a título meramente exemplificativo o acórdão do T.R.P. de 16/12/2015, proc. n.º 2402/11.8TAGDM-A.P2, disponível em www.dgsi.pt.
Por sua vez, e quanto à questão suscitada relativamente ao elemento subjectivo e correspectivos factos, ou ausência dos mesmos, invocados no despacho de pronúncia e despacho de acusação, sempre se dirá que tendo a tramitação processual de ser pautada em observância ao melhor estipulado no C.P.P., e acima de tudo numa postura de transparência e lealdade processual com os diversos sujeitos processuais que pautou e sempre pautará a direcção da audiência de julgamento pela Signatária. Nesta senda, deve o tribunal comunicar às partes todas e quaisquer questões jurídicas, para apreciação conjunta das mesmas, de forma a que tais questões sejam configuradas pelas partes, evitando-se assim as decisões surpresa. Nunca, e em qualquer momento, a apreciação de tal questão condicionou ou acelerou a produção de prova, como até se pode constatar das sessões de julgamento e na duração dos tempos da inquirição das testemunhas e exaustiva inquirição das mesmas, bem como da inspecção ao local realizada.
No mais, e quanto à inquirição da testemunha N, em nenhum momento se faltou ao respeito à mesma, conforme se poderá constatar na gravação da correspectiva sessão de julgamento. Relembremos que cabe à Mma Juiz dirigir a audiência de julgamento, e nesse modo, de proceder a inquirições sempre que o entenda necessário para a descoberta da verdade e o cabal esclarecimento de todas e quaisquer contradições que as testemunhas incorram.
Em suma, a signatária, visada no incidente suscitado, não antevê quaisquer razões, motivos ou fundamentos para o incidente levantado pelo Assistente.
Na verdade, para além de não conhecer qualquer das partes em litígio e nada a mover contra qualquer uma delas, o incidente de recusa aqui levantada é totalmente infundado e carecido de qualquer base de sustentação.
No mais, sempre se dirá, que o incidente de recusa, atenta a gravidade que lhe subjaz, não se pode tornar um expediente vulgar de sindicância de simples divergências processuais, sob pena de grave e clamorosamente violação dos princípios constitucionais do juiz natural e da independência do juiz.
Não obstante, oferecemos o merecimento dos autos, na certeza, porém, que as decisões proferidas o foram em respeito da sua consciência e na obediência única, exclusiva e inegociável devidas à lei e ao comando constitucional de administrar a justiça em nome do povo.

Neste tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de, em síntese “somos agora a concluir que, não desconsiderando que alguns dos comportamentos descritos ofereçam razões para avaliação sobre a sua adequação, o que se assume seja sempre feito em sede inspetiva da atividade de cada magistrado, outros justificaram até o exercício da faculdade de interposição de recurso, por via dos quais será tomada posição sobre a regularidade das decisões tomadas, consideramos que os receios invocados não se apresentam, com a seriedade e gravidade adequada a gerar, de forma clara e fundada, a invocada desconfiança exterior sobre a imparcialidade da Senhora Juiz, à luz da delimitação que vimos fazer dos critérios em referência.
(…)
Assim, manifesta o ministério Público o entendimento de que o requerido pedido de recusa deverá ser indeferido”.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o presente incidente fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o Artº 43 nsº1 e 4 do Código de Processo Penal:
1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis
3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.”.
No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos, quer dos arguidos, quer das vítimas, consagrou, como princípio inalienável, constitucionalmente consagrado - Cfr. Artº 32 nº9 da Constituição da República Portuguesa - o do juiz natural, pressupondo tal princípio, que intervém no processo o juiz que o deva, segundo as regras de competência estabelecidas legalmente para o efeito.
Contudo, perante a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, estabeleceu o sistema o seu afastamento em casos limite, ou seja, unicamente quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu munus.
Subjacente ao instituto da recusa, encontra-se, assim, a premente necessidade de preservar, até ao possível, a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num Estado de Direito Democrático, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa.
Fundamento para a recusa de um juiz é o facto de a sua intervenção no processo se poder considerar suspeita, por ocorrer motivo sério e grave, susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Tribunal.
Tudo se reconduz, portanto, à cláusula geral ínsita no citado comando legal, o motivo grave e sério, apto a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador.
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 26/01/22, proferido no processo n.º 324/14.0TELSB-FK.L1-A.S1, acessível in www.dgsi.pt.:
“Não definindo a lei o que se considera gravidade e seriedade dos motivos, que geram a desconfiança sobre a sua imparcialidade, será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas. Entre o «motivo» e a «desconfiança» terá de existir uma situação relacional lógica que justifique o juízo de imparcialidade, de forma clara e nítida, baseado na seriedade e gravidade do motivo subjacente”.
Através dos mecanismos da recusa e da escusa, pretende-se assegurar a confiança dos sujeitos processuais e do público em geral, na imparcialidade e isenção do juiz, como decorrência lógica do princípio da independência dos tribunais consagrado no Artº 203 da CRP.
A propósito do conceito de imparcialidade, escreve-se no Acórdão do STJ de 13/02/13, proferido no proc. 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, também disponível in www.dgsi.pt:
“”A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afetadas pela decisão”.
Como ensinam Figueiredo Dias e Nuno Brandão in Sujeitos Processuais Penais, 2015, pág. 12,:
“O princípio da imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada, neutral e isenta”.
Por outro lado, O TEDH, tendo em conta o conceito de «tribunal imparcial» empregue no Artº6 nº1, da CEDH e no Artº10 da DUDH, tem vindo a entender que a imparcialidade do tribunal deve ser avaliada sob uma dupla perspectiva, subjectiva e objectiva.
Na verdade, analisada a imparcialidade do juiz nas diferentes perspectivas observadas do mundo exterior, surpreendem-se, complementarmente, dois modos distintos de a abordar e compreender.
No plano subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, o que ele pensa, no seu foro íntimo, perante um determinado acontecimento da vida real e se internamente tem algum motivo para o favorecimento de um sujeito processual em detrimento de outro.
Do ponto de vista subjectivo, impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a sua imparcialidade até prova em contrário.
Porém, para se afirmar a ausência de qualquer preconceito em relação ao thema decidendum ou às pessoas afectadas pela decisão, não basta a visão subjectiva, sendo também imprescindível uma apreciação objectiva, alicerçada em garantias bastantes de a intervenção do juiz não gerar qualquer dúvida legítima, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida pelo Artº 6 § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na perspectiva objectiva, são relevantes as aparências que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça, o mesmo é dizer, não basta que a Justiça seja séria, mas que, à semelhança da Mulher de César, o pareça, também.
A construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz.
Daí que, o motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, terá de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do bom senso e da experiência comuns do homem médio pressuposto pelo direito.
A jurisprudência tem vindo a considerar, de forma consensual, que a seriedade e a gravidade do motivo gerador da desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz só conduzirão à sua recusa, ou à sua escusa, quando objectivamente diagnosticado num caso concreto.
Nessa medida, a impressão ou convencimento subjectivo por parte de um sujeito processual não vale, com suficiência, para fundamentar a suspeição.
Como se disse no Acórdão desta Relação, de 20/12/11, Proc. 159/10.9TACCH-A.E1, relatado pelo Desembargador Martinho Cardoso:
«Os motivos que podem gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz podem ser da mais diversa natureza. Têm é que ser sérios e graves, irrefutavelmente denunciadores de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, para perseverar a confiança que numa sociedade democrática os tribunais devem oferecer aos cidadãos.
A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Edição Verbo, 1996, pág. 199)
A lei, visando essa independência, acolheu mecanismos capazes de preservar uma atmosfera de pura objectividade e de juridicidade.
Citando o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, in DPP, I, 320, pertence a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar essa atmosfera, não enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu.
… para efeito de deferimento do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixa de ser imparcial e injustamente o prejudique.
A seriedade e gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser apreciadas num plano objectivo, de acordo com o senso e experiência comuns.

…O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão.»
Também o supra referenciado Acórdão do STJ, discorre, com propriedade, sobre esta matéria, ensinando que:
«A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão».
Será, pois, sempre uma objectiva justificação que poderá fundamentar a recusa do juiz, avaliada segundo a posição do cidadão de formação média.
«Quando a imparcialidade da jurisdição possa ser posta em causa, em razão da ligação do juiz com o processo…porque tem qualquer relação com os intervenientes, que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo» diz Germano Marques da Silva, ob. cit, a pág. 157.
Tendo presente os critérios legais para a aferição do presente incidente de recusa, entende-se, salvaguardando sempre o respeito por opinião contrária, que o circunstancialismo dos autos reveste a gravidade necessária para, colocando-se em causa, objectiva e subjectivamente, a imparcialidade da Mmª Juiz para o julgamento dos autos, se deferir a pretendida recusa.
Reforça-se o que já anteriormente se plasmou: o incidente de recusa é um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo, devendo ser usado, por isso, com bom senso, cautela, ponderação e parcimónia, sob pena de redundar numa violação grosseira dos princípios do Juiz natural e da sua independência, constitucionalmente consagrados.
Todavia, in casu, acredita-se que a postura da Mmª Juiz ao longo do julgamento dos autos é de molde a que se esteja na presença de uma situação singular que justifica a pretendida recusa.
Desde logo - e esta circunstância, se mais não houvesse, é suficiente para o deferimento da pretensão do requerente – o facto de não se ter coibido de, a pretexto de uma alegada honestidade intelectual, ter afirmado, por mais de uma vez, de modo claro e sem deixar dúvidas sobre o seu entendimento, que a acusação e a pronúncia não eram válidas, que deveriam ter sido recusadas, porquanto, na sua visão, de tais peças processuais não constavam, entre outros factos, os elementos subjectivos do tipo de crime em questão.
Das transcrições da audiência constantes do presente requerimento de recusa, torna-se evidente a forma como a Mmª Juiz não se coibiu de afirmar a invalidade da acusação e da pronúncia pela ausência de factos necessários a uma eventual condenação, dando claramente a entender que o julgamento seria uma inútil perda de tempo, que tinha de levar até ao fim por a lei não lhe permitir outra coisa.
Atente-se nas seguintes passagens, reproduzindo o que Mmª Juiz disse em pela Audiência de Julgamento:
“O Tribunal não se pode substituir à acusação, nem ao despacho de pronúncia.
A colocar factos no decisório do elemento subjectivo. E os factos estão aqui. E eu não posso fugir aos factos.
(…)
É só engraçado. É engraçado, não tem piada nenhuma. Mas vamos estar aqui a fazer sessões…
(…)
É o que é.
(…)
Mas é o que eu digo. Vamos fazer a prova toda.
(…)
O elemento subjectivo não está. É omisso. É parcialmente omisso.
(…)
Mas isto é assim independentemente de se produzir prova.
(…)
O Tribunal está a constatar um facto. È um facto. É um facto.
(…)
E eu vou ser sincera. Só estou a dizer isto por uma questão de honestidade intelectual. Porque há coisas que a decisão, a sentença, ainda irá se proferida. Mas, salvo melhor opinião, olhando para a acusação e para o despacho de pronúncia é muito claro. Mas pronto, vamos continuar a ouvir o Srº Arguido e vamos continuar a produzir a prova
(…)
Isto aqui, isto aqui, salvo melhor opinião, isto era uma rejeição pura e dura do acusatório.
(…)
Por isso, Srs. Drs., por isso é que estou sendo muito clara e pragmática, porque eu sei que temos muitas testemunhas, temos a prova a produzir, vamos produzi-la todinha, mas isto é muito claro. E eu, a jurisprudência diz, a juiz titular do julgamento tem que fazer o julgamento até ao final, porque o saneamento do processo já passou. Por isso, vamos ter que continuar a produzir prova”.
Como se vê, a Mmª Juiz, em plena Audiência de Julgamento e logo no seu inicio (aquando das declarações do arguido), não só formou a sua convicção quanto à sentença a proferir, como não se coibiu de, subtil, mas claramente, a transmitir aos Ilustres Mandatários, na medida em que, de modo bem evidente, deu a perceber que por falta de elemento subjectivo do crime no despacho de acusação (que a pronúncia reproduziu), sempre o arguido seria, naturalmente, absolvido, desde logo porquanto, no seu entendimento, mesmo dando por provada toda a factualidade que lhe era assacada, a mesma não constituía qualquer ilícito criminal por carência desse mesmo elemento subjectivo.
Não se discute, aqui e agora, a justeza ou o desacerto de tal opinião jurídica, mas apenas a insensatez de a ter revelado publicamente, em plena Audiência de Julgamento, colocando-se assim numa posição em que, pelas suas próprias palavras, se derrogam as exigências de isenção, imparcialidade e objectividade, devidas a qualquer Magistrado Judicial.
Como bem diz o requerente “Ainda que pudesse pensar como se manifestou, jamais, em caso algum, poderia tê-lo feitos nos moldes em que o fez, em plena produção de prova no decurso da audiência, condicionando claramente os ulteriores termos da audiência”.
Na verdade, pelas afirmações em causa, torna-se evidente que a Mmª Juiz iria fazer um julgamento em que, ab initio, logo entendeu que os factos em causa não traduziam responsabilidade criminal, por considerar que a acusação em causa não continha os requisitos mínimos para que, da mesma, pudesse ser aplicada ao arguido uma pena.
Desta postura processual, resulta, quer um condicionamento dos Ilustres Mandatários das partes (como se viu pela forma como a Ilustre Mandatária do arguido, ao colocar-lhe de imediato uma pergunta, afirmou “peço-lhe o espírito de síntese…com a formação jurídica que tem, apreendeu com certeza aquilo que se passou agora”), quer um condicionamento de si mesma, enquanto julgador, o que afecta, de modo grave e irreversível, a sua isenção e imparcialidade no julgamento dos presentes autos.
Ao assumir, verbalmente, a posição descrita, a Mmª Juiz está a revelar que, interiormente, já tomou a sua decisão sobre o mérito da causa e que apenas prossegue com o julgamento porque a isso está legalmente obrigada.
Como se vê, não se trata de qualquer circunstância pessoal que afecte a Mmª Juiz na sua imparcialidade (no sentido de preferir uma das partes em detrimento de outra) mas apenas, de uma decorrência processual, que, de todo o modo, é susceptível de gerar uma desconfiança séria e grave sobre a sua imparcialidade no julgamento em causa, na medida em que se torna óbvio, pelas suas próprias palavras, que a decisão será sempre de absolvição, desde logo, por entender que a acusação deveria ter sido rejeitada por estar destituída de factos que pudesse gerar responsabilidade criminal ao arguido.
Ora, do que acima se falou sobre a imparcialidade do julgador e colocando-nos na posição do requerente, assistente nos autos, é legítima e evidente a impressão que o julgamento, pela posição tecnicamente assumida pela Mm Juiz, já está definido, ainda que mal tenha começado.
E essa é, também, seguramente, a impressão que qualquer cidadão, homem médio, colocado naquela sala de audiências, interpretaria, ouvindo o que atrás se transcreveu.
Acrescem ainda - talvez como consequência dessa decisão interior já assumida sobre o estado dos autos - comentários laterais efectuados aos recursos interpostos pelo assistente sobre os despachos em que indeferiu os seus requerimentos de prova, insinuar que o mesmo nem deveria sequer ter sido admitido como tal no processo, e recusar a presença do mesmo, quer em audiência, quer na inspecção ao local, em decisões algo incompreensíveis, tendo em conta, por um lado, o inusitado e original Termo de Esclarecimento constante de Fls. 16, e por outro, a circunstância de o assistente, na disciplina do processo penal português, não ser um mero interveniente ou participante, mas antes, um sujeito processual, cuja presença, nos termos do Artº 354 do CPP, não pode ser recusada naquela diligência.
In casu, do exposto, fica demonstrada, com suficiência bastante, que a Mmª Juiz manifesta um preconceito sobre o mérito da causa, releva uma impressão, quer subjectiva, quer no plano objectivo, de poder ser posta em causa, de forma grave e séria, a sua isenção e imparcialidade no julgamento dos autos, assim se justificando a derrogação do princípio do juiz natural, com o consequente deferimento da recusa solicitada, por estarem preenchidos os pressupostos do nº1 do Artº 43 do CPP.


3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se julgar procedente o pedido formulado, deferindo-se a recusa da Mmª Juiz G de intervir no julgamento do Proc. 3015/17.6T9FAR, com as consequências expostas no Artº 43, nº5, e 46, ambos do CPP.
Sem custas.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº 2 do CPP, que a presente decisão foi elaborada pelo relator e integralmente revista pelos signatários.

Évora, 30 de setembro de 2025

Renato Barroso
Henrique Pavão
Renata Terra