Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA MARGARIDA LEITE | ||
Descritores: | DIVISÃO DE COISA COMUM ESCRITURA PÚBLICA FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA UNIDADE DE CULTURA | ||
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Data do Acordão: | 05/16/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – A escritura de divisão de coisa comum, através da qual foi operada a divisão de um prédio em três parcelas de terreno e a adjudicação de cada uma a diferentes proprietários, constitui um ato de fracionamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil. II – Estando em causa a apreciação da anulabilidade de escritura de divisão de coisa comum e não de uma escritura de justificação, a eventual aquisição anterior por usucapião das parcelas de terreno resultantes da divisão não releva para efeitos do objeto da ação, encontrando-se mesmo em contradição com a declaração constante da escritura, na qual invocam os outorgantes a sua qualidade de comproprietários do prédio, a indivisão deste e a circunstância de não pretenderem manter essa indivisão, procedendo à divisão do prédio em três parcelas e à adjudicação destas a diferentes outorgantes; III - Pretendendo o autor obter a anulação de escritura de divisão de coisa comum e invocando os réus a exceção prevista no artigo 1377.º, al. a), do Código Civil, incumbe ao primeiro provar que se trata de um terreno apto para cultura e de que as parcelas resultantes da divisão têm área inferior à da unidade de cultura, factos constitutivos do direito de anulação decorrente da violação da proibição estatuída pelo n.º 1 do artigo 1376.º; daquele Código, e compete aos segundos demonstrar que o terreno não é apto para cultura e que se trata de parte componente de prédio urbano ou se destina a um fim que não seja a cultura, factos impeditivos da anulação integradores da exceção arguida; IV - Para efeitos da possibilidade de fracionamento dos prédios, há que atender à realidade existente aquando da divisão; V - A apreciação tem de ser efetuada através da análise da matéria de facto provada, no que respeita às características do prédio e das construções nele existentes, bem como à utilização dada ao solo e a tais construções, não se mostrando vinculativa a qualificação do prédio e a respetiva descrição constantes do registo predial ou da inscrição matricial; VI – Não decorrendo da factualidade provada qualquer elemento que permita caracterizar o terreno como unidade produtiva, indicando se é cultivado, quais as culturas predominantes e se são praticadas em regime de regadio ou de sequeiro, mostra-se inviável a determinação da unidade de cultura aplicável, considerando que as áreas fixadas pela Portaria n.º 202/70, de 21-04, pressupõem a prévia classificação do tipo de cultura praticado, face à concreta utilização dada ao terreno; VII – Encontrando-se implantadas no terreno três casas de habitação e constituindo os terrenos circundantes os respetivos quintais, deverão tais edifícios ser considerados prédios urbanos e os terrenos circundantes partes componentes desses prédios urbanos, o que preenche a previsão da 1.ª parte da alínea a) do artigo 1377.º e afasta a aplicação da proibição do fracionamento estatuída no n.º 1 do artigo 1367.º. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório O Ministério Público intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BB, que também usa o nome de BB, solteiro, CC e mulher, DD, EE e mulher, FF, melhor identificados nos autos, pedindo seja anulada a escritura de divisão de coisa comum outorgada pelos réus a 13-11-2013, através da qual declararam dividir em três parcelas um prédio rústico com a área de 10 920 m2 e adjudicar ao 1.º réu uma parcela com a área de 5460 m2, aos 2.º e 3.º réus uma parcela com a área de 2730 m2 e aos 4.º e 5.º réus uma parcela com a área de 2730 m2, e determinado o cancelamento do registo efetuado; a fundamentar o pedido sustenta que, aquando da celebração da escritura, os outorgantes não apresentaram parecer favorável da Direção Regional da Agricultura, que o prédio se destinava a cultura arvense de regadio e que passou a estar dividido em três parcelas de terreno com uma área inferior a 20 000 m2 cada, assim se mostrando o fracionamento contrário à lei. Os réus contestaram, alegando que o prédio em causa foi objeto de divisão e doação há mais de 20 anos e que, desde então, exerceram a posse sobre a respetiva parcela, que invocam ter adquirido por usucapião; sustentam que se encontram edificadas em cada uma das três parcelas as casas de habitação que descrevem, não constituindo os terrenos circundantes solos aptos para cultura, mas sim os quintais ou logradouros das referidas habitações, o que sustentam impor a improcedência da ação, como tudo melhor consta do articulado apresentado. Notificado para o efeito, o autor apresentou articulado no qual se pronunciou sobre a matéria de exceção arguida na contestação. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, após o que se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova. Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, nos termos seguintes: Em face do exposto, o Tribunal decide julgar totalmente improcedente a presente acção declarativa e, consequentemente, absolver os Réus do pedido. Custas a cargo do Ministério Público, sem prejuízo das isenções legalmente previstas. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por decisão que julgue a ação procedente, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem: «1.º A sentença recorrida ao dar como provado que «24. Os solos circundantes das três parcelas de terreno onde se encontram edificadas 3 casa de habitação melhor descritas supra não são aptos para cultura, constituindo os quintais ou logradouros das referidas casas de habitação.» está em contradição manifesta com os factos dados como provados nos pontos 2., 3. , 5., 12., 15. e 20. da matéria de facto provada.2.º De facto, deu-se como provado que os RR procederam à divisão de um prédio rústico com a composição indicada no ponto 2. dos factos provados, que estes por doação verbal entraram na posse de tais parcelas em 1990 e em data não apurada há cerca de 40 anos e que as parcelas resultantes da divisão que adquiriram são compostas de «cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola…», onde existe uma casa de habitação em que habitam (pontos 12, 15 e 20 dos factos provados).3.º Pelo que, não só a natureza rustica do imóvel resulta da prova documental junta ao processo com a PI e designadamente da escritura pública celebrada pelos próprios RR;4.º Como também se deu como provada a composição das parcelas de terreno em causa como sendo de prédio composto de cultura arvense de regadio, citrinos e pomar de pruneideas.5.º Assim sendo, não podia dar-se como provado que tal prédio «não tem aptidão para cultura», estando tal facto em manifesta contradição com a prova documental produzida em julgamento e demais factos provados nos pontos 2, 3, 12, 15 e 20.6.º Ao que acresce, que não é admissível que a construção clandestina de casas de habitação em terrenos rústicos, leve à conversão por decisão judicial da natureza do imóvel em urbano, com a consequente alteração do fim do imóvel.7.º Sob pena de violação de regras imperativas referentes à proibição de construções clandestinas.8.º Pelo que, deverá o ponto 24.º dos «factos provados» ser eliminado da sentença.9.º Ademais, as normas vigentes que visam a proibição de fracionamento de prédios rústicos são normas imperativas que visam a preservação do ambiente, o ordenamento do território e a qualidade de vida,10.º são erigidos em normas que defendem os interesses de toda a coletividade e são exemplos de interesses difusos (art. 52º, nº 3, al. a) da Constituição), cuja defesa incumbe ao M. Público.11.º Na sentença recorrida, conferiu-se prevalência aos interesses dos particulares intervenientes na escritura de divisão, e dando-se como provado que a aquisição das parcelas fraccionadas ocorreu por usucapião, admitindo-se a aquisição por usucapião de prédios rústicos ainda que com violação das normas de proibição de fracionamento, em detrimento das normas imperativas a que subjazem interesses de ordem pública, que proíbem o fracionamento de prédios rústicos.12.º Tal interpretação não é, porém, consentânea com a regra definida no artigo 9.º do Código Civil, que prevê que na interpretação, deve ponderar-se a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.13.º Na verdade, na ponderação das normas em confronto (por um lado, as normas que regem o instituto de aquisição por usucapião e, por outro lado, as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos), o fulcro da questão está em saber o valor que a posse invocada para aquisição por usucapião tem, se a mesma se impõe mesmo contrariando normas de interesse público de valor constitucional (art. 66.º da Constituição).14.º A pergunta que se coloca é: os atos de posse baseados num facto proibido pelas leis imperativas de interesse público permitem a aquisição por usucapião?15.º Sufragamos o entendimento que não é assim atualmente - como já se admitia que não o fosse no âmbito do Código de Seabra - «não obstante o artigo 1287.º do Código Civil excluir a usucapião quando haja "disposição em contrário" - no Código de 1867, o artigo 506.º, excluía do objeto da usucapião as coisas "que não forem exceptuadas por lei" - que o seu âmbito de aplicação é mais vasto, não sendo de excluir a usucapião apenas quando uma disposição legal o determine. Mencionava-se já no âmbito do Código de Seabra que a lei consentia exceções implícitas, tal o caso das coisas incorpóreas.»16.º Na verdade como se referiu supra «A exclusão da usucapião sobre parcelas de propriedade justifica-se quando dela resulte ofensa de princípios de direito público; justifica-se igualmente noutros casos no sentido em que a usucapião, enquanto instrumento legal de aquisição originária de um direito, não pode servir, qual esponja que apaga o ato constitutivo da aquisição derivada da propriedade, para afastar normas imperativas que sujeitam quem adquiriu a coisa por aquisição derivada.»17.º Não é, destarte, admissível a aquisição por usucapião de parcelas de prédios rústicos resultantes de fracionamento ilegal, por desrespeitar as regras proibição de fracionamento de prédios com a área mínima correspondente à unidade de cultura para a região.18.º Já que, tal aquisição, contendendo com normas de caráter imperativo, que visam a tutela de interesses predominantemente públicos por traduzirem o reconhecimento jurídico de um bem que, em primeira linha, compete à comunidade, não pode considerar-se eficaz.19.º Ao decidir em sentido contrário, a Mma Juiz a quo violou o disposto nos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil e Portaria n.º 202/70 de 21/04 (vd. atualmente a Portaria 219/2016, de 09/08) e o artigo 66.º da CRP e o artigo 294.º do Código Civil.20.º A divisão que os Réus formalizaram através de escritura traduz-se em negócio contrário às normas legais imperativas que proíbem o fracionamento pretendido.21.º Assim, in casu, quer a divisão operada pela escritura impugnada quer a invocada aquisição por usucapião são ilegais (contrária a normas legais imperativas)22.º Pelo exposto, é manifesto que estando demonstrado nos factos provados na sentença recorrida que os Réus operaram um fracionamento contrário a normas legais imperativas de um prédio rústico, a única decisão compatível com os factos apurados (com a supressão do artigo 24.º da matéria de facto nos termos supra propugnados) é a declaração de invalidade da escritura, bem como da aquisição das parcelas destacadas de forma ilegal por usucapião e consequente cancelamento do respetivo registo.23.º Nestes termos e nos demais de direito, deve julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, ser a ação intentada pelo Ministério Público ser julgada procedente com todas as consequências legais.»Não foram apresentadas contra-alegações. Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes: - da impugnação da decisão relativa à matéria de facto; - da violação da proibição do fracionamento do prédio rústico operado pela escritura de divisão de coisa comum e da aquisição por usucapião de cada uma das parcelas de terreno resultantes da divisão do prédio. Corridos os vistos, cumpre decidir. 2. Fundamentos 2.1. Decisão de facto 2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância: 1. Os cinco Réus foram outorgantes na escritura pública de divisão de coisa comum lavrada em 13 de Novembro de 2013 no Cartório Notarial de Clara Maria Pereira dos Santos Rodrigues, em Salvaterra de Magos, que consta de fls. 2 a 4 do livro de notas para escrituras diversas n.º 119-A, fazendo-se o 1.º Réu, BB, representar no acto por um procurador. 2. Em tal escritura os cinco Réus declararam ser os donos e legítimos possuidores nas proporções de ½ indivisa para o 1.º Réu, de ¼ indiviso para os 2.º e 3.º Réus e ¼ indiviso para os 4.º e 5.º Réus do seguinte imóvel: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola, com a área de dez mil novecentos e vinte metros quadrados, descrito sob o número … na Conservatória do Registo Predial de Almeirim e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo ….º da secção 002 registado a seu favor nas aludidas proporções. 3. Mediante tal escritura os cinco Réus procederam à divisão daquele prédio rústico em três parcelas materialmente distintas e independentes que identificaram da seguinte forma: - Prédio um: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas, com área de cinco mil quatrocentos e sessenta metros quadrados inscrito na matriz cadastral da freguesia de Fazendas de Almeirim sob parte do artigo ….º, secção 002, confrontando a norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com Rua da Ajuda, do nascente com Amândio CC e outro e do poente com BB ao qual atribuem o valor de três mil euros; - Prédio dois: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola com área de dois mil setecentos e trinta metros quadrados inscrito na matriz cadastral da freguesia de Fazendas de Almeirim sob parte do artigo ….º, secção 002, confrontando do norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com EE, do nascente com José F… e do poente com BB ao qual atribuem o valor de mil e quinhentos euros; - Prédio três: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas com área de dois mil setecentos e trinta metros quadrados inscrito na matriz cadastral da freguesia de Fazendas de Almeirim sob parte do artigo ….º, secção 002, confrontando do norte com CC, do Sul com Rua da Ajuda, do nascente com José F… e do poente com BB ao qual atribuem o valor de mil e quinhentos euros. 4. Na mesma escritura declararam adjudicar: - ao primeiro outorgante, o Réu BB o mencionado “Prédio um”, pelo valor de três mil euros; - aos Réus CC e mulher DD o aludido “Prédio dois” pelo valor de mil e quinhentos euros e - aos Réus EE e mulher FF, o “Prédio três” pelo valor de mil e quinhentos euros. 5. Os Réus não apresentaram por ocasião da celebração da escritura pública referida no art. 1.º o parecer favorável da Direcção Regional de Agricultura. 6. O prédio indicado em 2. pertencia a Guilhermina C…, falecida em 2 de Dezembro de 1953. 7. O prédio identificado em 2. foi herdado por óbito de Guilhermina C… pelos seus únicos filhos e genros: Maria G… e marido Joaquim V… e Ermelinda C… e marido Amândio L…. 8. O prédio identificado em 2. foi sujeito a partilha verbal entre os filhos de Guilhermina C…, tendo ficado adjudicado em dois novos prédios rústicos, na proporção de metade do prédio inicial para cada um. 9. Em 1990, o prédio identificado em 3. como Prédio um foi doado verbalmente por Ermelinda C… ao 1.º Réu. 10. Em 1977, Maria G… e Joaquim V… doaram verbalmente a outra metade do prédio rústico identificado em 2. aos seus filhos, CC e EE. 11. CC e EE dividiram a metade do prédio rústico referida em 10. da seguinte forma: o prédio identificado em 3. como “Prédio dois” aos 2.º e 3.º Réus e o prédio identificado em 3. como “Prédio três” aos 4.º e 5.º Réus. 12. O 1.º Réu habita, quando se encontra em Portugal, a casa de rés-do-chão existente no prédio, com a área de 5.640 m2, composto de cultura arvense de regadio, citrinos e pomar de prunoideas, sito em Concelho, na freguesia das Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, a confrontar do Norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com Rua da Ajuda, de Nascente com CC e outro e do Poente com BB, inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob parte do artigo … da secção 002. 13. O 1.º Réu usa, limpa, pinta, arranja a casa de rés-do-chão referido em 12. 14. O 1.º Réu actua da forma descrita em 12. e 13. há mais de vinte anos, de forma autónoma, livre, continuada e reiteradamente, à vista de todos, sem oposição e na convicção de que é o legítimo possuidor, com exclusão de quaisquer outros. 15. DD e CC habitam na casa de rés-do-chão existente no prédio, com a área de 2.730 m2, composto de cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícolas, sito em Concelho, na freguesia das Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, a confrontar do Norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com EE, de Nascente com José F… e do Poente com BB, inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob parte do artigo … da secção 002 há mais de 40 anos. 16. DD e CC remodelaram e ampliaram a casa de rés-do-chão existente no imóvel descrito em 15.. 17. DD e CC tomam as suas refeições e dormem na casa de rés-do-chão existente no imóvel descrito em 15., usando-a, pintando-a e arranjando-a. 18. DD e CC retiram do imóvel descrito em 15. os respectivos frutos das árvores aí existentes, podando-as e preservando-as, em seu benefício. 19. DD e CC actuam da forma descrita em 15. a 18. há mais de quarenta anos, de forma autónoma, livre, continuada e reiteradamente, à vista de todos, sem oposição e na convicção de que são os seus legítimos possuidores, com exclusão de quaisquer outros. 20. EE e FF habitam na casa de rés-do-chão existente no prédio, com a área de 2.730 m2, composto de cultura arvense de regadio, citrinos e pomar de prunoideas, sito em Concelho, na freguesia das Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, a confrontar do Norte com Amândio Carvalho Vaz Pisco Marques, do Sul com Rua da Ajuda, de Nascente com José Florêncio e do Poente com Rui Jorge Resende Reguinga, inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob parte do artigo … da secção 002 há mais de 40 anos. 21. EE e FF tomam as suas refeições e dormem na casa de rés-do-chão existente no imóvel descrito em 20., que construíram, usando-a, limpando-a e arranjando-a. 22. EE e FF retiram do imóvel descrito em 20. os respectivos frutos das árvores aí existentes, podando-as e preservando-as, em seu benefício. 23. EE e FF actuam da forma descrita em 20. a 22. há mais de quarenta anos, de forma autónoma, livre, continuada e reiteradamente, à vista de todos, sem oposição e na convicção de que são os seus legítimos possuidores, com exclusão de quaisquer outros. 24. Os solos circundantes das três parcelas de terreno onde se encontram edificadas as três casas de habitação melhor descritas supra não são aptos para cultura, constituindo os quintais ou logradouros das referidas casas de habitação. 2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância: a) O 1.º Réu retira do prédio identificado em 12. os respectivos frutos das árvores aí existentes, podando-as e preservando-as, em seu benefício. 2.2. Apreciação do objeto do recurso 2.2.1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto O recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na sentença recorrida, sustentando que o facto constante do ponto 24 de 2.1.1. foi indevidamente considerado provado, devendo ser julgado não provado, por estar em contradição com os factos julgados provados sob os pontos 2, 3, 5, 15 e 20 de 2.1.1.. Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 1, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Esta reapreciação da decisão proferida sobre determinados pontos da matéria de facto deve, de forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, ter a mesma amplitude que o julgamento efetuado na 1.ª instância, o que importa a apreciação da prova produzida, com vista a permitir à Relação formar a sua própria convicção. Está em causa, no caso presente, a reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância relativa ao indicado ponto da matéria de facto, com vista a apurar se, face aos factos tidos como assentes sob os pontos 2, 3, 5, 15 e 20 de 2.1.1., o facto impugnado pelo recorrente deve ser excluído da factualidade assente. O facto impugnado tem a redação seguinte: 24. Os solos circundantes das três parcelas de terreno onde se encontram edificadas as três casas de habitação melhor descritas supra não são aptos para cultura, constituindo os quintais ou logradouros das referidas casas de habitação. Invoca o apelante a existência de contradição entre este facto e os constantes dos pontos 2, 3, 5, 15 e 20 de 2.1.1., com a redação seguinte: 2. Em tal escritura os cinco Réus declararam ser os donos e legítimos possuidores nas proporções de ½ indivisa para o 1.º Réu, de ¼ indiviso para os 2.º e 3.º Réus e ¼ indiviso para os 4.º e 5.º Réus do seguinte imóvel: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola, com a área de dez mil novecentos e vinte metros quadrados, descrito sob o número … na Conservatória do Registo Predial de Almeirim e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo ….º da secção 002 registado a seu favor nas aludidas proporções. 3. Mediante tal escritura os cinco Réus procederam à divisão daquele prédio rústico em três parcelas materialmente distintas e independentes que identificaram da seguinte forma: - Prédio um: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas, com área de cinco mil quatrocentos e sessenta metros quadrados inscrito na matriz cadastral da freguesia de Fazendas de Almeirim sob parte do artigo ….º, secção 002, confrontando a norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com Rua da Ajuda, do nascente com CC e outro e do poente com BB ao qual atribuem o valor de três mil euros; - Prédio dois: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola com área de dois mil setecentos e trinta metros quadrados inscrito na matriz cadastral da freguesia de Fazendas de Almeirim sob parte do artigo ….º, secção 002, confrontando do norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com EE, do nascente com José F… e do poente com BB ao qual atribuem o valor de mil e quinhentos euros; - Prédio três: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas com área de dois mil setecentos e trinta metros quadrados inscrito na matriz cadastral da freguesia de Fazendas de Almeirim sob parte do artigo …º, secção 002, confrontando do norte com CC, do Sul com Rua da Ajuda, do nascente com José F… e do poente com BB ao qual atribuem o valor de mil e quinhentos euros. 5. Os Réus não apresentaram por ocasião da celebração da escritura pública referida no art. 1.º o parecer favorável da Direcção Regional de Agricultura. 12. O 1.º Réu habita, quando se encontra em Portugal, a casa de rés-do-chão existente no prédio, com a área de 5.640 m2, composto de cultura arvense de regadio, citrinos e pomar de prunoideas, sito em Concelho, na freguesia das Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, a confrontar do Norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com Rua da Ajuda, de Nascente com CC e outro e do Poente com BB, inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob parte do artigo … da secção 002. 15. DD e CC habitam na casa de rés-do-chão existente no prédio, com a área de 2.730 m2, composto de cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícolas, sito em Concelho, na freguesia das Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, a confrontar do Norte com Rua Sá da Bandeira, do Sul com EE, de Nascente com José F…e do Poente com BB, inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob parte do artigo … da secção 002 há mais de 40 anos. 20. EE e FF habitam na casa de rés-do-chão existente no prédio, com a área de 2.730 m2, composto de cultura arvense de regadio, citrinos e pomar de prunoideas, sito em Concelho, na freguesia das Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, a confrontar do Norte com CC, do Sul com Rua da Ajuda, de Nascente com José F… e do Poente com BB, inscrito na matriz predial rústica da mesma freguesia sob parte do artigo … da secção 002 há mais de 40 anos. Defende o apelante que, face aos factos constantes dos indicados pontos, não podia ter-se considerado provado que o prédio em causa não tem aptidão para cultura, conforme consta do ponto 24 impugnado. Sustenta o recorrente que, tendo-se considerado provado que os réus procederam à divisão de um prédio rústico com a composição indicada no ponto 2. de 2.1.1., que por doação verbal entraram na posse de tais parcelas em 1990 e em data não apurada há cerca de 40 anos e que as parcelas resultantes da divisão que adquiriram são compostas de «cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola…», onde existe uma casa de habitação em que habitam, daqui decorre que não podia dar-se como provado que tal prédio «não tem aptidão para cultura»; acrescenta que não é admissível que a construção clandestina de casas de habitação em terrenos rústicos leve à conversão, por decisão judicial, da natureza do imóvel em urbano, com a consequente alteração do fim do imóvel, sob pena de violação de regras imperativas referentes à proibição de construções clandestinas. Vejamos se lhe assiste razão. Analisando o teor do ponto 24 de 2.1.1., verifica-se que comporta um segmento descritivo da realidade de facto – os solos circundantes das três parcelas de terreno onde se encontram edificadas as três casas de habitação melhor descritas supra constituem os quintais ou logradouros das referidas casas de habitação – e um elemento conclusivo baseado num conceito jurídico – não são aptos para cultura. Decorre da motivação da impugnação deduzida que apenas este último segmento do ponto 24, relativo à aptidão do solo para cultura, vem questionado pelo apelante, não sendo posto em causa o segmento descritivo supra indicado, apesar se ser peticionada a exclusão da totalidade do ponto 24 da factualidade assente. A aptidão do solo para cultura configura um conceito jurídico, ao qual se reporta o artigo 1376.º do Código Civil, constituindo condição da aplicação do regime do fracionamento de prédios rústicos previsto no preceito que se trate de terreno apto para cultura, conforme decorre do respetivo n.º 1. Assim sendo, verifica-se que o aludido segmento do ponto 24, ao consignar, com referência aos solos das parcelas de terreno em causa, que não são aptos para cultura, não configura matéria de facto, antes se traduzindo numa conclusão baseada no indicado conceito jurídico, isto é, configura uma apreciação dos factos constantes do segmento descritivo do ponto 24 à luz do conceito jurídico constante do artigo 1367.º, n.º 1. Nesta conformidade, considerando que o elemento em causa não constitui matéria de facto, cumpre determinar a respetiva exclusão da factualidade provada, mantendo a parte restante do ponto 24. Pelo exposto, procede parcialmente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, em consequência do que se determina a exclusão da factualidade provada do aludido segmento – não são aptos para cultura – do ponto 24, o qual passará a ter a redação seguinte: Os solos circundantes das três parcelas de terreno onde se encontram edificadas as três casas de habitação melhor descritas supra constituem os quintais ou logradouros das referidas casas de habitação. 2.2.2. Fracionamento de prédio rústico e instituto da usucapião Com a presente ação pretende o Ministério Público, com fundamento na violação do regime legal de fracionamento de prédios rústicos, obter a anulação da escritura de divisão de coisa comum outorgada pelos réus a 13-11-2013, através da qual declararam dividir em três parcelas um prédio rústico comum com a área de 10 920 m2 e adjudicar ao 1.º réu uma parcela com a área de 5460 m2, aos 2.º e 3.º réus uma parcela com a área de 2730 m2 e aos 4.º e 5.º réus uma parcela com a área de 2730 m2. Na sentença proferida pela 1.ª instância reconheceu-se a aquisição pelos réus, por usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas em causa e, por se ter entendido que o instituto da usucapião prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento da propriedade rústica por ofensa da área de cultura mínima, julgou-se improcedente a ação; considerou-se, ainda, que a ação sempre improcederia por se entender que a proibição do fracionamento da propriedade rústica não é aplicável ao caso presente, com fundamento no preenchimento pela factualidade provada da previsão da alínea a) do artigo 1377.º do Código Civil. O recorrente defende posição contrária e, apesar de não pôr em causa o preenchimento, pela factualidade assente, dos pressupostos da aquisição do mencionado direito por usucapião, sustenta que tal forma de aquisição originária não opera, pelos motivos que expõe, e que a proibição do fracionamento da propriedade rústica por ofensa da área de cultura mínima é aplicável ao caso presente e impõe a procedência da ação. Face ao objeto do recurso, cumpre apreciar se a escritura de divisão de coisa comum outorgada pelos réus configura um ato de fracionamento contrário ao disposto no artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil. Sob a epígrafe Fraccionamento, dispõe o n.º 1 do citado preceito o seguinte: Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno. Por seu turno, o artigo 1379.º do mesmo código, na redação em vigor à data em que foi outorgada a escritura de divisão de coisa comum a que respeitam os presentes autos – posteriormente alterada pela Lei n.º 111/2015, de 27-08, que estabeleceu o Regime Jurídico da Estruturação Fundiária, em vigor desde 30-09-2015 –, sob a epígrafe Sanções, dispõe, além do mais, o seguinte: 1. São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º (…)[1]. 2. Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público (…). 3. A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto (…). Quanto à área da unidade de cultura a atender, há que ter em conta a Portaria n.º 202/70, de 21-04, que se encontrava em vigor à data da outorga da escritura de divisão de coisa comum (dia 13-11-2013) – posteriormente revogada pela Portaria n.º 219/16, de 09-08, que entrou em vigor a 10-08-2016, após a propositura da presente ação –, diploma que fixa a unidade de cultura para diversas zonas do país, em função do tipo de terreno – terreno de sequeiro ou terreno de regadio – e, tratando-se de terreno de regadio, do tipo de cultura – arvense ou hortícola. Considerando a localização no concelho de Almeirim do terreno em causa, releva a unidade de cultura fixada para Santarém, com os valores seguintes: 2 hectares para culturas arvenses em terrenos de regadio, 0,5 hectares para culturas hortícolas em terrenos de regadio e 4 hectares para terrenos de sequeiro. Ao estabelecer restrições ao fracionamento de prédios aptos para cultura, visa a estatuição constante do artigo 1376.º, conforme explica Luís Filipe Pires de Sousa (Acções especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 33), evitar a criação de micro-parcelas pouco rentáveis, por razões de interesse público relacionadas com a defesa da viabilidade e rentabilização económica. O fracionamento é, nas palavras de Rui Pinto/Cláudia Trindade (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 192), “uma operação de estruturação fundiária que consiste na divisão da área de um prédio (…) em unidades prediais que passem a ser objeto de direito de propriedade autónomo”. Esclarecem Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 259) que “o fracionamento só é possível no caso de haver divisão da coisa por dois ou mais proprietários”. Daqui decorre que o fracionamento de um prédio rústico pressupõe, não apenas a sua divisão em duas ou mais parcelas, mas também a respetiva transferência para dois ou mais proprietários, ocorrendo aquando da prática do ato translativo da propriedade[2]. No caso presente, está em causa uma escritura de divisão de coisa comum, através da qual os réus, declarando serem os donos e legítimos possuidores, nas proporções de ½ indiviso para o 1.º réu, ¼ indiviso para os 2.º e 3.º réus e ¼ indiviso para os 4.º e 5.º réus, do prédio que identificam, procederam à respetiva divisão em três parcelas de terreno e adjudicaram uma ao 1.º réu, outra aos 2.º e 3.º réus e a última aos 4.º e 5.º réus. Verificando que os réus, invocando a qualidade de comproprietários do bem imóvel em causa, procederam à divisão amigável a que alude o artigo 1413.º, n.º 1, do Código Civil, fazendo cessar a indivisão através da escritura de divisão de coisa comum em apreciação, dúvidas não há de que através da escritura se operou a divisão do prédio e a transferência de cada uma das parcelas para diferentes proprietários, assim constituindo um ato de fracionamento, nos termos e para os efeitos previstos no citado artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil. Considerou a decisão recorrida que o fracionamento do prédio havia operado anteriormente à escritura de divisão de coisa comum, através da divisão verbal do mesmo em três parcelas e respetiva doação aos réus – concretamente, através de partilha verbal efetuada entre as duas filhas de Guilhermina C…, que o herdaram por óbito da progenitora ocorrido a 01-12-1053 e o dividiram em duas parcelas, adjudicando uma a cada uma delas, na sequência do que uma filha doou em 1990 a respetiva parcela ao ora 1.º réu e a outra doou em 1977 a parcela que lhe coube aos 2.º e 4.º réus maridos, que a dividiram em duas parcelas e adjudicaram uma a cada um deles –, e subsequentes atos possessórios praticados pelos réus sobre a respetiva parcela. A 1.ª instância concluiu que se encontram preenchidos os requisitos legalmente exigidos para a aquisição pelos réus, por usucapião, do direito de propriedade sobre a respetiva parcela, o que determinou a procedência da exceção arguida e a consequente improcedência da ação, por se ter entendido que o instituto da usucapião prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento da propriedade rústica por ofensa da área de cultura mínima. Porém, apesar de não vir questionado na apelação o preenchimento, pela factualidade provada, dos pressupostos da aquisição por usucapião pelos réus do direito de propriedade sobre a respetiva parcela, vêm postos em causa os efeitos daí decorrentes, sendo certo que não pode olvidar-se que os réus não lançaram mão de uma escritura de justificação, através da qual declarassem a aquisição, por usucapião, de cada uma dessas parcelas do prédio, mencionando as circunstâncias de facto que entendessem determinar o início da posse e aquelas que a consubstanciassem e caracterizassem, como geradora da usucapião. Os réus optaram por outorgar uma escritura de divisão de coisa comum, na qual, invocando a sua qualidade de comproprietários do prédio que identificam e a circunstância de não pretenderem permanecer na indivisão, procederam à divisão do mesmo em três parcelas e à adjudicação de cada uma a diferentes outorgantes. É a anulabilidade desta escritura de divisão de coisa comum que está em causa nos presentes autos e constitui o objeto da ação, não assumindo relevância jurídica, para o efeito, o eventual preenchimento dos pressupostos da aquisição, por usucapião, das parcelas de terreno em causa, considerando que os réus não optaram por fazer valer esta forma de aquisição originária do direito de propriedade, antes tendo operado a divisão amigável do prédio através da escritura de divisão de coisa comum outorgada. Não estando em causa a apreciação da validade de uma escritura de justificação, mas sim de escritura de divisão de coisa comum, a eventual aquisição anterior por usucapião, aí não invocada, não releva para efeitos do objeto da ação, encontrando-se mesmo em contradição com a declaração constante da escritura, na qual os réus invocam a sua qualidade de comproprietários do prédio, a indivisão deste e a circunstância de não pretenderem manter essa indivisão, procedendo à divisão do prédio em três parcelas e à adjudicação destas a diferentes outorgantes. Extrai-se do disposto no artigo 1287.º do Código Civil, ao facultar ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, que a usucapião não opera automaticamente pelo decurso do prazo previsto na lei, carecendo de ser invocada. Ora, tal manifestação de vontade dos possuidores, no sentido de adquirirem por usucapião o direito de propriedade sobre a parcela em causa, não foi efetivada no âmbito do ato em apreciação, o que impõe se conclua que o eventual preenchimento, pela factualidade considerada provada, dos pressupostos da aquisição por usucapião pelos réus do direito de propriedade sobre a respetiva parcela, não releva para efeitos da apreciação da validade da escritura de divisão de coisa comum outorgada. Como tal, cumpre verificar se o fracionamento operado através da escritura de divisão de coisa comum violou normas que o proíbam, por ofensa da área de cultura mínima, nos termos do artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil, e da Portaria n.º 202/70, de 21-04, conforme sustenta o apelante. Para o efeito, há que averiguar se é aplicável a invocada proibição de fracionamento e, em caso afirmativo, se a superfície das parcelas decorrentes da divisão viola o limite mínimo à data fixado para o tipo de terreno e de cultura na zona geográfica em causa. O n.º 1 do citado artigo 1376.º proíbe o fracionamento de terrenos aptos para cultura em parcelas de área inferior à superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada para a zona geográfica onde se localiza o prédio. Por outro lado, o artigo 1377.º do mesmo Código prevê, nas suas três alíneas, determinadas situações em que é possível o fracionamento, dispondo que a proibição não é aplicável, designadamente, a terrenos que constituam partes componentes de prédios urbanos ou se destinem a algum fim que não seja a cultura, conforme decorre da alínea a), cujos pressupostos considerou a decisão recorrida preenchidos pela matéria de facto assente, motivo pelo qual se entendeu inaplicável a proibição do fracionamento. Analisando o n.º 1 do artigo 1376.º, verifica-se que a imposição de um limite mínimo aos atos dos quais decorra fracionamento apenas se reporta aos terrenos aptos para cultura, o que desde logo afasta a aplicação do regime aos prédios urbanos. Quanto ao que deverá entender-se por terrenos aptos para cultura, explica Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., p. 33) que se trata de terrenos “próprios para fins agrícolas, florestais ou pecuários” e afirmam Rui Pinto/Cláudia Trindade (ob. cit., p. 192) que se reporta a “prédio rústico explorado para a produção agrícola ou florestal”. O n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil opera a distinção entre prédios rústicos e prédios urbanos nos termos seguintes: Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro. Conforme explica Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., p. 22-23), “o critério decisivo da distinção entre prédio rústico e urbano assenta na denominada teoria da afectação económica, segundo a qual há que ponderar o fim do aproveitamento do prédio. Assim, se a parte urbana serve de apoio à parte não construída do solo, o prédio é rústico; pelo contrário, se a parte não construída do solo serve de apoio à parte urbana, o prédio será urbano”. Acrescenta o autor (loc. cit.) que “não se provando factos que permitam inferir, com toda a certeza, a natureza urbana, haverá que qualificar o prédio – por defeito – como rústico”. Relativamente ao significado da expressão partes componentes de prédios urbanos, constante da 1.ª parte da alínea a) do artigo 1377.º, há que atender ao estatuído no citado n.º 2 do artigo 204.º, ao considerar prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro, assim qualificando como parte integrante de um prédio urbano os terrenos que lhe sirvam de logradouro. Em anotação ao mencionado artigo 204.º, esclarecem Pires de Lima/ Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 196) o seguinte: “Em conformidade com o critério legal, não devem considerar-se prédios urbanos, mas partes componentes dos prédios rústicos, as construções que não tenham autonomia económica, tais como as adegas, os celeiros, as edificações destinadas às alfaias agrícolas, etc., assim como não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos, como os jardins, pátios ou quintais. Ao logradouro deve ser atribuída a mesma natureza do edifício a que está ligado (…)”. Por outro lado, em anotação à alínea a) do artigo 1377.º e referindo-se aos terrenos que servem de logradouro aos prédios urbanos, afirmam estes autores (ob. cit., vol. III, p. 262) que “são estes (…) os que podem ser fraccionados, independentemente do fim a que se destinem, atenta a sua função em face do prédio urbano que integram”. Esclarecem Rui Pinto/Cláudia Trindade (ob. cit., p. 193) que “o regime do fracionamento aplica-se verificadas duas condições quanto ao prédio: que se trate de um prédio rústico (…) e que seja um terreno apto para cultura (…)”, acrescentando que “por isso, nos termos da al. a), a proibição não é aplicável ao terreno integrante de prédio urbano – i.e., a um logradouro (…) – ou se a sua exploração não for, ab inicio ou supervenientemente, a cultura”. Face às regras de distribuição do ónus da prova estatuídas no artigo 342.º do Código Civil, pretendendo o autor obter a anulação da escritura de divisão de coisa comum outorgada pelos réus, incumbe-lhe o ónus da prova de que se trata de um terreno apto para cultura e de que as parcelas resultantes da divisão efetuada têm área inferior à da unidade de cultura, dado que estes elementos constituem factos constitutivos do direito de anulação decorrente da violação da proibição estatuída pelo n.º 1 do artigo 1376.º; incumbe aos réus, por seu turno, perante a exceção que arguiram, demonstrar que o terreno não é apto para cultura e que se trata de parte componente de prédio urbano ou se destina a um fim que não seja a cultura, elementos que configuram factos impeditivos da anulação, nos termos previstos na alínea a) do artigo 1377.º. Para efeitos da possibilidade de fracionamento dos prédios, é sabido que há que atender à realidade existente aquando da divisão, analisando as características do bem imóvel nessa ocasião, conforme tem sido unanimemente considerado pela jurisprudência. Neste sentido, pode citar-se, a título exemplificativo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2011 (relator: Helder Roque), proferido na revista n.º 30031-A/1979.L1.S1 - 1.ª Secção (publicado em www.dgsi.pt), no qual se considerou que o juízo acerca da divisibilidade da coisa comum deve reportar-se ao momento e estado em que a mesma se encontrava quando a divisão é requerida, atendendo-se ao que o prédio é e não ao que poderá vir a ser. Por outro lado, esta apreciação tem de ser efetuada através da análise da matéria de facto provada, no que respeita às características do prédio e das construções nele existentes, bem como à utilização dada ao solo e a tais construções, não se mostrando vinculativa a qualificação do prédio e a respetiva descrição constantes do registo predial ou da inscrição matricial. Efetivamente, tendo em conta que a identificação física dos prédios, nomeadamente as respetivas confrontações, áreas e limites, não é abrangida pela presunção derivada do registo predial, estatuída no artigo 7.º do Código de Registo Predial, e que a certidão da inscrição na matriz não faz prova plena da composição do prédio, sendo certo que a descrição constante da matriz predial, no que respeita à área, delimitações e composição do prédio, poderá resultar de declaração dos próprios interessados, não correspondendo à realidade, ou mostrar-se desatualizada, cumpre atender à matéria de facto considerada assente. No caso presente, está em causa a divisão em três parcelas do prédio que se encontra identificado na escritura nos termos seguintes: prédio rústico sito em Concelho, freguesia de Fazendas de Almeirim, concelho de Almeirim, composto por cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola, com a área de dez mil novecentos e vinte metros quadrados, descrito sob o número 1948 na Conservatória do Registo Predial de Almeirim e inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo ….º da secção 002. Provou-se que se encontra construída uma casa de habitação em cada uma das três parcelas e que os terrenos circundantes constituem os quintais das referidas construções, existindo árvores de fruto em duas das parcelas. Analisada tal factualidade, verifica-se que dela não decorre qualquer elemento que permita caracterizar o terreno como uma unidade produtiva, qualquer indicação de que seja cultivado, de quais as culturas predominantes e se são praticadas em regime de regadio ou de sequeiro, o que impede a determinação da unidade de cultura aplicável, considerando que as áreas fixadas pela Portaria n.º 202/70, de 21-04, pressupõem a prévia classificação do tipo de cultura praticado, face à concreta utilização dada ao terreno[3]. A mera menção à existência de árvores de fruto em duas das parcelas não permite caracterizar minimamente o aproveitamento do terreno em termos produtivos, não decorrendo da factualidade assente que o prédio seja explorado para produção agrícola ou florestal, assim não se extraindo da realidade predial considerada provada qualquer elemento concreto que permita considerar o terreno em causa como apto para cultura. Acresce que se encontram implantadas no terreno três casas de habitação, constituindo os terrenos circundantes os respetivos quintais. Se, por um lado, as casas de habitação não podem, evidentemente, ser qualificadas como partes integrantes de um prédio rústico, antes devendo tais edifícios ser considerados prédios urbanos, por outro lado, os terrenos circundantes servem-lhes de logradouro, assim constituindo parte componente desses prédios urbanos. Verifica-se, assim, que a matéria de facto provada preenche a previsão da 1.ª parte da alínea a) do artigo 1377.º, o que afasta a aplicação da proibição do fracionamento estatuída no n.º 1 do artigo 1367.º, conforme considerou, ainda que subsidiariamente, a decisão recorrida. Improcede, assim, a apelação. Em conclusão: I – A escritura de divisão de coisa comum, através da qual foi operada a divisão de um prédio em três parcelas de terreno e a adjudicação de cada uma a diferentes proprietários, constitui um ato de fracionamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil. II – Estando em causa a apreciação da anulabilidade de escritura de divisão de coisa comum e não de uma escritura de justificação, a eventual aquisição anterior por usucapião das parcelas de terreno resultantes da divisão não releva para efeitos do objeto da ação, encontrando-se mesmo em contradição com a declaração constante da escritura, na qual invocam os outorgantes a sua qualidade de comproprietários do prédio, a indivisão deste e a circunstância de não pretenderem manter essa indivisão, procedendo à divisão do prédio em três parcelas e à adjudicação destas a diferentes outorgantes; III - Pretendendo o autor obter a anulação de escritura de divisão de coisa comum e invocando os réus a exceção prevista no artigo 1377.º, al. a), do Código Civil, incumbe ao primeiro provar que se trata de um terreno apto para cultura e de que as parcelas resultantes da divisão têm área inferior à da unidade de cultura, factos constitutivos do direito de anulação decorrente da violação da proibição estatuída pelo n.º 1 do artigo 1376.º; daquele Código, e compete aos segundos demonstrar que o terreno não é apto para cultura e que se trata de parte componente de prédio urbano ou se destina a um fim que não seja a cultura, factos impeditivos da anulação integradores da exceção arguida; IV - Para efeitos da possibilidade de fracionamento dos prédios, há que atender à realidade existente aquando da divisão; V - A apreciação tem de ser efetuada através da análise da matéria de facto provada, no que respeita às características do prédio e das construções nele existentes, bem como à utilização dada ao solo e a tais construções, não se mostrando vinculativa a qualificação do prédio e a respetiva descrição constantes do registo predial ou da inscrição matricial; VI – Não decorrendo da factualidade provada qualquer elemento que permita caracterizar o terreno como unidade produtiva, indicando se é cultivado, quais as culturas predominantes e se são praticadas em regime de regadio ou de sequeiro, mostra-se inviável a determinação da unidade de cultura aplicável, considerando que as áreas fixadas pela Portaria n.º 202/70, de 21-04, pressupõem a prévia classificação do tipo de cultura praticado, face à concreta utilização dada ao terreno; VII – Encontrando-se implantadas no terreno três casas de habitação e constituindo os terrenos circundantes os respetivos quintais, deverão tais edifícios ser considerados prédios urbanos e os terrenos circundantes partes componentes desses prédios urbanos, o que preenche a previsão da 1.ª parte da alínea a) do artigo 1377.º e afasta a aplicação da proibição do fracionamento estatuída no n.º 1 do artigo 1367.º. 3. Decisão Nestes termos, acorda-se em negar provimento à apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida, ainda que com fundamentação parcialmente diversa. Sem custas, por delas estar isento o recorrente. Notifique. Évora, 16-05-2019 Ana Margarida Leite Cristina Dá Mesquita Silva Rato __________________________________________________ [1] Em resultado das alterações introduzidas pela Lei n.º 111/2015, de 27-08, os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º passam a ser nulos. [2] Conforme se considerou no acórdão desta Relação de 01-02-2007 (relator: Bernardo Domingos, proferido no processo n.º 2764/05.5-3 e publicado em www.dgsi.pt), o objetivo do legislador é o de evitar a divisão material do prédio, a separação do domínio material e físico; essa separação não ocorre quando se opera uma divisão da propriedade para efeitos matriciais ou registrais, ficando o domínio na mesma pessoa, mas sim quando esse domínio é transferido para outrem, designadamente por venda, troca ou outro negócio jurídico; é nesse momento que se opera o fracionamento e não quando se procede à simples divisão formal. No mesmo sentido, cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-06-2011 (relator: Nuno Cameira), proferido na revista n.º 197/2000.E1.S1 – 6.ª Secção e publicado em www.dgsi.pt. [3] No mesmo sentido, cf. o acórdão do STJ de 18-10-2007 (relator: Ferreira de Sousa), proferido na revista n.º 2991/07 - 7.ª Secção, de cujo sumário (publicado em www.stj.pt), se extrai o seguinte: I - Para se saber se há ou não violação da área de unidade de cultura tem de se classificar o terreno em função do predomínio das culturas que nele se praticavam à data do fraccionamento, conforme a Portaria n.º 202/70, de 21-04. II - Como dos factos provados não resulta quais as culturas predominantes no prédio, à data do fraccionamento, não se pode proceder à sua classificação como terreno de sequeiro ou de regadio e, consequentemente, à determinação da unidade de cultura. III - Por isso, não se pode afirmar ter ocorrido violação da norma do art. 1376.º, n.º 1, do CC, que proíbe o fraccionamento de terrenos aptos para cultura em parcelas de área inferior à unidade de cultura. No sentido de que deve atender-se à cultura predominante que se pratica em determinado terreno no momento em que ocorram os atos ou negócios jurídicos da sua divisão ou fracionamento, que não ao da sua maior aptidão natural, cf. o acórdão do STJ de 17-12-2015 (relator: Tomé Gomes), proferido na revista n.º 285/1999.E2.S1 - 2.ª Secção (publicado em www.dgsi.pt), no qual se considerou que não se apurando, de entre a cultura arvense ou hortícola, qual a cultura efetivamente predominante, à data da divisão ou do fracionamento do prédio, não é lícito concluir pela verificação do vício de anulabilidade previsto no art. 1379.º, n.º 1, do CC e que não se provando qual a cultura predominante prosseguida nas parcelas resultantes dessa divisão, não se pode também concluir pela verificação do vício de anulabilidade. |