Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | EMÌLIA RAMOS COSTA | ||
Descritores: | ACÇÃO DE PREFERÊNCIA PREÇOS DECLARADOS BENFEITORIAS UNIDADE DE CULTURA | ||
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Data do Acordão: | 01/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I – As benfeitorias necessárias e as úteis, cujo levantamento implique o detrimento da coisa, dão direito à atribuição de um valor pecuniário ao possuidor, a ser calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa e não segundo as regras da responsabilidade civil. II – Relativamente às benfeitorias úteis, compete a quem pretende usufruir da atribuição desse valor alegar e provar que tais benfeitorias, apesar de não serem indispensáveis para a conservação da coisa, lhe aumentaram o valor. III – O direito à propriedade privada integra o conceito de direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias constantes do título II da Constituição da República Portuguesa. IV – Para que se aplique o disposto no art. 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, ao direito à propriedade privada, exigem-se dois requisitos: (i) existência de uma afetação negativa do direito de propriedade, nos termos expressos no n.º 1 do art. 62.º da Constituição da República Portuguesa; e (ii) a parte que seja atingida do direito de propriedade tenha natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias do título II da Constituição da República Portuguesa. V – Por o disposto no art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, não limitar o núcleo essencial do direito à propriedade privada, não padece o mesmo de qualquer inconstitucionalidade orgânica. VI – Nos termos do art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, apenas àquele que é, à data da venda, proprietário do prédio confinante assiste legitimidade para pretender fazer valer, em ação judicial, o seu direito de preferência. VII – Compete ao preferente, em ação de preferência, proceder ao pagamento das despesas inerentes à aquisição do imóvel objeto da preferência, com exceção das referentes ao registo de aquisição, por tal não interferir com a validade do contrato, sob pena de obter um enriquecimento sem causa. VIII – Não se pode confundir a situação prevista na al. a) do n.º 1 do art. 542.º do Código de Processo Civil com a mera discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, pois tal implicaria uma incompreensível e intolerável limitação à interposição de ações ou à dedução de meios de defesa em juízo. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 1564/17.5T8BJA.E1 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1] ♣ Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:I – Relatório … (Autor) intentou a presente ação declarativa de condenação, para exercício de preferência, sob a forma de processo comum, contra … (1.º Réu), … e … (2.º Réus) e … (3.º Réu), solicitando, a final, que a ação seja julgada procedente, por provada, devendo, em consequência: a) ser reconhecido ao Autor o direito de preferência na aquisição do prédio misto identificado no artigo 12º da presente p.i., descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob o n.º …/20100813 - freguesia de (…), substituindo-se para o efeito ao 2º R. marido e 3º R.; b) serem os RR. condenados a entregarem o agora indicado prédio ao A., livre e desocupado; e c) ser ordenado o cancelamento de todo e qualquer registo que o 2º R. marido e 3º R., compradores, tenham feito a seu favor em compra do supra aludido prédio, designadamente o constante da inscrição decorrente da apresentação 2661 de 2017/06/08 e outras que estes venham a fazer, sempre com todas as demais consequências que ao caso couberem. Para o efeito, alegou, em síntese, que é dono e legítimo proprietário de um prédio misto que é confinante com o prédio misto que pertencia ao primeiro Réu e que este vendeu aos restantes Réus, em 20-04-2017, sem lhe ter dado qualquer conhecimento das condições do negócio, condições essas que apenas veio a ter conhecimento em 01-06-2017, sendo que nos termos do art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, tem direito de preferência relativamente a tal venda. Mais alegou que irá proceder ao depósito da quantia de € 200.000,00, valor esse que consta na escritura como sendo o do preço da venda, sendo, de igual modo, esse o valor da ação. … Os Réus (…), (…) e (…) contestaram, solicitando, a final, a improcedência da presente ação, ou, caso assim não se deva entender:(i) deve reconhecer-se aos reconvintes (…) e (…) o direito ao preço real pago pelos Réus no montante de € 320.000,00, sendo o Autor condenado a pagar a estes Réus, na proporção de ¾ a (…), e ¼ a (…), ou seja, além do valor depositado de € 200.000,00, ainda o valor de € 120.000,00; ainda o montante de € 10.801,86 a título de despesas pelo custo da escritura, registo e impostos; os respetivos juros a partir da citação, à taxa legal, e até integral pagamento; e ainda, aos Réus (…) e (…), a quantia de € 26.419,69 a título de benfeitorias; (ii) deve reconhecer-se aos reconvintes (…) e (…) o direito de retenção do prédio até pagamento da indemnização pelas benfeitorias executadas. Para o efeito, alegaram, em síntese, que o Autor não goza do direito de preferência porque (i) conhecendo os contornos do negócio, declarou não querer preferir; (ii) não é o único proprietário confinante, sendo que nenhum desses proprietários confinantes renunciou ao direito de opção, alguns deles, inclusive, com áreas inferiores às áreas do prédio do Autor; e (iii) um dos prédios confinantes pertencia a (…) que, por permuta, alienou aos Réus (…) e (…), transmitindo, desse modo, para estes o seu direito de preferência. Alegaram ainda que, dada a área do prédio do Autor, não possui o mesmo direito de preferência. Relativamente ao pedido reconvencional, alegaram, em síntese, que o preço real da venda foi de € 320.000,00, o que o Autor bem sabe; que nas despesas da escritura de compra e venda, registo de aquisição e respetivos impostos despenderam a quantia de € 10.801,86, a qual lhes é devida; e que, a título de benfeitorias, os Réus (…) e (…) despenderam a quantia de € 26.419,69; atribuindo o valor ao pedido reconvencional de € 157.221,55. … O Réu (…) contestou, terminando, pedindo que (i) fosse considerada procedente por provada a invocada exceção perentória de renúncia ao direito de preferência, absolvendo as Rés dos pedidos contra si formulados, nos termos do disposto no art. 576.º, n.º 3, do Código Processo Civil; (ii) fosse considerada procedente por provada a invocada exceção perentória de caducidade do exercício do direito de preferência, absolvendo as Rés dos pedidos contra si formulados, nos termos do disposto no art. 576.º, n.º 3, do Código Processo Civil; (iii) fosse considerada procedente por provada a invocada exceção perentória de abuso de direito, absolvendo as Rés dos pedidos contra si formulados, nos termos do disposto no art.º 576.º, n.º 3, do Código Processo Civil. Pediu ainda que, caso as invocadas exceções não procedam, deveria a ação ser julgada improcedente, por não provada, absolvendo os Réus dos pedidos formulados, devendo o Autor ser condenado em custas e procuradoria condigna; e, caso os pedidos do Autor procedam, deverá o pedido reconvencional proceder, por provado, e o exercício do direito de preferência pelo Autor ser declarado pelo valor de € 320.000,00.Para o efeito, alegou, em síntese, que o Autor tinha conhecimento das condições da venda do prédio de sua propriedade aos restantes Réus, tendo declinado tal oferta, pelo que renunciou ao direito de preferência, e que a venda real do prédio foi de €320.000,00. Alegou ainda que, desde março de 2017, o Autor sabia que o Réu (…) tinha prometido vender o prédio aos outros Réus, pelo preço de € 320.000,00, pelo que, aquando da interposição da presente ação, o direito de preferência já se mostrava caducado. Alegou, por fim, que o Autor, ao criar no Réu (…) a convicção de que não queria comprar o prédio pelo preço estipulado, e agora interpor a presente ação, agiu em abuso de direito, na vertente venire contra factum proprium, sendo que o Autor também não pretende utilizar o prédio para fins agrícolas, mas sim para proceder à sua venda a terceiros e, desse modo, recolher uma mais valia imobiliária. Quanto ao pedido reconvencional, invoca que o Autor apenas pode preferir pelo preço real de € 320.000,00 e não pelo preço de € 200.000,00. … O Autor replicou, solicitando, a final, a improcedência, por não provada, das defesas por exceção e a improcedência, por não provada, da reconvenção deduzida.Em síntese, impugnou o valor da venda como sendo de € 320.000,00, negou ter renunciado ao direito de preferência, ter tido conhecimento dos elementos da venda em março de 2017, ter criado no Réu (…) qualquer convicção de que não queria comprar a sua propriedade e ser sua intenção vender os dois prédios. Relativamente aos pedidos reconvencionais, impugna os € 120.000,00 a mais pela venda, considera não ser seu dever reembolsar os Réus (…), (…) e (…) das despesas efetuadas com a compra do prédio, e impugna as despesas alegadamente efetuadas em benfeitorias no mencionado prédio. … Realizada a audiência prévia, não foi possível a conciliação das partes. … Em 12-07-2018, foi proferido despacho saneador, no qual foi fixado o valor da causa em € 357.221,55, foram admitidos os pedidos reconvencionais e a réplica, e foi feito o saneamento do processo, bem como a identificação do objeto do litígio e dos temas de prova.… Pelos Réus (…) e (…) e outros foram apresentadas reclamações nos termos do artigo 596.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, tendo o Autor vindo a apresentar resposta à reclamação apresentada pelo Réu (…).… Por despacho proferido 27-09-2018, o tribunal a quo pronunciou-se sobre as reclamações apresentadas.… Em 12-02-2019 foi junto aos autos o relatório pericial solicitado.… O Autor (…) solicitou esclarecimentos adicionais a tal relatório, os quais se mostram juntos a 09-04-2019.… Realizado o julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida sentença em 08-04-2020, com o seguinte teor:Pelo exposto o Tribunal julga: A) A acção totalmente procedente, por provada, e em consequência: (i) Reconhece ao Autor o direito de preferência na aquisição do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob o número nº …/20100813 - freguesia de (…), pelo valor de € 320.000,00 (trezentos e vinte mil euros); (ii) Condena os Réus (…), (…) e (…) a entregarem o indicado prédio ao Autor, livre e desocupado; (iii) Ordena o cancelamento dos registos que os 2º R. marido e 3º R., tenham feito a seu favor sobre o aludido prédio, designadamente o constante da inscrição decorrente da apresentação 2661 de 2017/06/08; B) Julga a reconvenção parcialmente procedente e em consequência: (i) Condena o Autor a pagar aos Réus (…) e (…) a quantia de € 15.227,59 (quinze mil duzentos e vinte e sete euros e cinquenta e nove cêntimos); (ii) Reconhece aos Réus o direito de retenção sobre o prédio benfeitorizado até que se mostre paga ou garantida tal quantia. Custas da acção pelos Réus. Custas da reconvenção pelo Autor na proporção de 3/4 e pelos Réus (…) e (…) na proporção de 1/4 – art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Processo Civil. Registe e notifique. … Inconformados com a sentença, os Réus (…) e (…) interpuseram recurso, apresentado as seguintes conclusões:1. Deve ser alterada a matéria de facto, dando-se como provados os seguintes factos: "D) O Autor comunicou ao Réu (…) que pelo preço de € 320.000,00 (trezentos e vinte mil euros) não estava interessado em comprar o prédio, estando aliás, também vendedor do seu prédio." "H- Os 2º e 3º RR dispenderam a quantia de € 1.500,00 com a limpeza do curso de água;" "I- A reparação do tanque existente na propriedade custou aos 2º e 3º RR € 800,00€." "J - A execução do furo custou 2.100,00€." 2) Impõem a alteração da matéria de facto os seguintes meios de prova: a) Relativamente ao facto D: I - Documento número dois junto com a contestação do Réu (…) – contrato celebrado com a (…); II - Documento número três junto com a contestação do Réu (…) – Adenda ao contrato celebrado com a (…); III - Os seguintes depoimentos: A) Depoimento de (…) prestado na sessão de julgamento de 27 de Setembro de 2019 – 13:38:14 às 14:46:35, (00:00:00 a 01:08:20); B) Depoimento de (…) prestado na sessão de julgamento de 27 de Setembro de 2019 – 15:32:00 às 15:43:25, (de 00:00:00 a 00:11:24); C) Depoimento de (…) prestado na sessão de julgamento de 27 de Setembro de 2019 – 11:03:52 às 12:18:10, (00:00:00 a 01:14:17); b) Relativamente aos factos H), I) e J): A) O relatório pericial; B) As declarações de parte do Réu, (…), prestadas na sessão de julgamento de 26 de Setembro de 2019 - 09:50:27 às 10:20:56, (00:00:00 a 00:30:28); 3. Sendo dado como provada a matéria da alínea D: que o Autor conhecia as condições do negócio e que declarou não estar interessado no prédio pelo valor de € 320.000,00 ao intentar a acção, pretendendo exercer o direito de preferência, agiu com abuso de direito (artigo 334º do C.C.). 4. Caso não sejam apurados os valores dispendidos com as obras, factos H) I) e J) deve ser relegado para liquidação de sentença o valor das despesas com a limpeza do curso de água, a reparação do tanque e a execução do furo, uma vez que foi dado como provado a realização destas benfeitorias – pontos 16 e 18 dos factos provados; 5.O proprietário do prédio confinante com a área de 730.750 m2 não tem direito de preferência na alienação de um prédio confinante, com a área de 657.000 m2, muito superiores, qualquer deles à unidade mínima de cultura (48 ha) ao abrigo do artigo 26º do DL 73/2009, de 31 de Março. 6. O citado artigo 26º tem de ser interpretado restritivamente e seria inconstitucional a interpretação daquela norma no sentido de que seria legal a preferência, na venda de prédios confinantes, quaisquer que fossem as áreas dos prédios em questão, nomeadamente as áreas de 730 ha e 657 ha dos prédios dos Autor e Réu (como decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/10/2002 - processo 03A1755). 7. O artigo 26º do DL é organicamente inconstitucional, uma vez que o Governo legislou sobre matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, sem autorização desta, em matéria de direitos, liberdade e garantias dos cidadãos. 8. À data da contestação os Réus, (…) e mulher, (…), eram já proprietários de um prédio confinante com a área de 9,3 hectares; 9.E encontravam-se em tempo de exercer a preferência, relativamente ao prédio alienado; 10.De facto, os Réus adquiriram por compra o prédio confinante inscrito na matriz sob o artigo … da união de freguesias de (…), que antes era pertença de (…), e que gozava de preferência, a que não renunciaram, encontrando-se em tempo de exercer a preferência. 11.Os direitos e obrigações da proprietária desse prédio foram transferidos para o Réu, (…) e mulher, que assim passaram a ser titulares do direito de preferência; 12.Tendo os Réus adquirido, por compra, o prédio a (…), não teriam de exercer contra eles próprios o direito de preferência. 13.A questão não se resolve da forma equacionada na sentença, dizendo apenas que à data da alienação do prédio, os Réus não eram proprietários confinantes, pois o direito de preferência da anterior proprietária foi transferido para os Réus; 14.Esta questão suscitada na contestação, não foi apreciada pela Meritíssima Juiz; 15.Aliás, os Réus teriam sempre um melhor direito de preferência, uma vez que o seu prédio confinante era um minifúndio, com a área de 9,3 hectares, inferior à unidade mínima de cultura que é naquela região de 48 hectares; 16.Os recorrentes têm direito a ser ressarcidos das despesas com a escritura, registos e impostos (Imposto Municipal sobre Transmissões e selo), no valor de € 10.801,86 (dez mil, oitocentos e um euros e oitenta e seis cêntimos); 17. Por preço de aquisição deve entender-se estas despesas como ensina Antunes Varela (anotação ao artigo 1410º do Código Civil). 18. Só assim o Autor fica investido na mesma posição dos Réus, e se assim não fosse, existiria um enriquecimento sem causa, já que o Autor adquiria um prédio, ficando dispensado do pagamento de despesas que necessariamente teria de suportar, se o prédio lhe tivesse sido directamente vendido. 19. Procedendo a acção, o que se coloca, sem concessão, o autor fica colocado na mesma posição que os Réus, devendo, por isso, suportar as despesas efectuadas pelos Réus com a aquisição; 20. A douta sentença não fixou correctamente as custas, já que em relação à acção, as custas devem ser suportadas em partes iguais pelo Réu … (50%) e pelos Réus compradores (na proproção de 3/4 de 50% para os Réus … e mulher, … e de 1/4 de 50% para o Réu …); 21.Quanto ao pedido reconvencional deve ser clarificado na Decisão a soma dos dois valores: ou seja, € 120.000,00 relativa ao preço e € 15.227,59 relativa a benfeitorias, no total de € 135.227,59; 22.Quanto a custas do pedido reconvencional, devem ser suportadas na seguinte proporção: o Autor: 86% do valor e os Réus (…) e mulher, (…): 14% do valor; 23.0 Autor deve ser condenado a pagar aos Réus (…) e mulher, (…), juros a partir da citação, até integral pagamento, à taxa legal em vigor, relativamente ao pedido reconvencional de benfeitorias, conforme peticionado na contestação. 24. Foram violados, por erro de interpretação os artigos 1380º, 216º, 1273º, 805º, 806º, 473º e 334º do Código Civil e 26º do DL 73/2009 de 31 de Março; A douta sentença não interpretou bem os factos, aplicou incorrectamente o direito, devendo ser proferido acórdão no sentido indicado no recurso. TERMOS EM QUE A) DEVE SER REVOGADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA E JULGADA A ACÇÃO IMPROCEDENTE, CONDENANDO-SE O AUTOR NAS CUSTAS DO PROCESSO. B) DEVE SER DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 26º DO DL 73/2009 DE 31 DE MARÇO; C) SE ASSIM NÃO SE ENTENDER, DEVE O RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E PARA ALÉM DOS VALORES INDEMNIZATÓRIOS JÁ FIXADOS NA SENTENÇA (A FAVOR DOS RECORRENTES … e …, O VALOR DO PREÇO REAL DE COMPRA DE € 320.000,00, NA PROPORÇÃO DE 3/4 PARA (…) E DE 1/4 PARA (…) E A FAVOR DOS RECORRENTES (…) E MULHER, (…), O DIREITO AO VALOR DE € 15.227,59 A TÍTULO DE BENFEITORIAS); DEVE, AINDA, O AUTOR SER CONDENADO A PAGAR AOS RECORRENTES (…) e (…), O CUSTO DA ESCRITURA, REGISTO E IMPOSTOS, NO VALOR DE € 10.801,86, NA PROPORÇÃO DE 3/4 PARA (…) E DE 1/4 PARA (…) E AINDA COM JUROS A PARTIR DA CITAÇÃO, À TAXA LEGAL EM VIGOR ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO AOS RÉUS (…) E (…) OS SEGUINTES VALORES: I-1.500,00 € relativos à limpeza do curso de água, ou o que se apurar em execução de sentença; II-800,00€ relativos à reparação do tanque existente na propriedade, ou o que se apurar em execução de sentença. III-2.100,00€ relativos à execução do furo, ou o que se apurar em execução de sentença. E JUROS A PARTIR DA CITAÇÃO, À TAXA LEGAL EM VIGOR ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO AOS RÉUS (…) E (…) SOBRE A QUANTIA DE € 15.227,59. ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA … O Autor José (…) contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.… Por despacho judicial proferido em 30-10-2020 o tribunal a quo procedeu à retificação de um lapso de escrita na sentença proferida, relativo ao constante no ponto 13.º dos factos provados.… O tribunal a quo indeferiu o requerido pelos Apelantes quanto ao efeito suspensivo do recurso e admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.… Os Apelantes vieram requerer a condenação do Apelado em multa como litigante de má-fé.… Em resposta, o Apelado veio solicitar a improcedência, por carência de fundamentos, do pedido da sua condenação como litigante de má-fé.… Ao Apelantes vieram requerer, ao abrigo do art. 647.º, n.º 4, do Código Processo Civil, que ao recurso fosse atribuído efeito suspensivo mediante a prestação de caução a fixar pelo tribunal.… Em resposta, o Autor veio solicitar que fosse mantido o efeito atribuído em 1.ª instância ao recurso. … Após ter sido proferido despacho relativamente ao efeito do recurso, o qual foi mantido, foi recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos.Dispensados os vistos legais por acordo, cumpre apreciar e decidir. ♣ II – Objeto do RecursoNos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil). Assim, no caso em apreço, as questões que importa decidir são: 1) Impugnação da matéria de facto; 2) Abuso de direito; 3) Aplicação do incidente de liquidação em execução de sentença às despesas efetuadas pelos Apelantes; 4) Inexistência de direito de preferência por parte do Apelado; 5) Inconstitucionalidade do art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03; 6) Direito de preferência dos Apelantes; 7) Direito dos Apelantes a serem ressarcidos das despesas efetuadas com a aquisição do imóvel; 8) Erro na fixação das custas; 9) Erro quanto à fixação dos juros no pedido reconvencional; e 10) Litigância de má fé do Apelado. ♣ III – Matéria de FactoO tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos: 1. O A. é dono do prédio misto, de características preponderantemente rústicas, denominado “Herdade dos (…)”, sito no Lugar do Monte da Ribeira das (…), união das freguesias de Garvão e Santa Luzia (concretamente na extinta freguesia de Santa Luzia), concelho de Ourique, distrito de Beja, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob o n.º …/19890526 – freguesia de Santa Luzia, com a área total de 730.750 (setecentos e trinta mil setecentos e cinquenta) metros quadrados, equivalente a 73,075 hectares, composto, na sua parte rústica, por cultura arvense, montado de sobro ou sobreiral, cultura arvense de azinho, oliveiras, sobreiros e terreno estéril, correspondente esta à sua área descoberta de 729.718,5 (setecentos e vinte e nove mil setecentos e dezoito metros quadrados e cinquenta decímetros quadrados) metros quadrados, equivalente a 72,97185 hectares, e, bem assim, por morada de casas térreas, destinadas a habitação, alpendre, palheiro, cavalariça e forno de cozer pão, com a área de 177 (cento e setenta e sete) metros quadrados, mais arrecadações, com a área de 345 (trezentos e quarenta e cinco) metros quadrados, e morada de casas, destinadas a habitação, armazém e arrecadações, com a área de 509,5 (quinhentos e nove metros quadrados e cinquenta decímetros quadrados) metros quadrados, perfazendo assim a área coberta de 1.031,5 (mil e trinta e um metros quadrados e cinquenta decímetros quadrados) metros quadrados; 2. O prédio confronta a norte com o prédio desanexado, à data, de (…), ora 1º réu, e outros (prédio desanexado com a descrição registral nº …/20100813 – freguesia de Santa Luzia); a nascente, com (…); a sul, com (…), (…) e outros, (…), … (cabeça-de-casal da herança de), … e …; e a poente com Cooperativa Agrícola, SARL; inscrito actualmente na competente matriz predial rústica da sobredita união de freguesias no artigo … ARV, Secção … (com origem no artigo … ARV, Secção G, da extinta freguesia de Santa Luzia), e na respectiva matriz urbana, nos artigos …, … e …, com origem, respectivamente, nos artigos urbanos (…), (…) e (…) da já aludida extinta freguesia, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob o número …/19890526 – freguesia de Santa Luzia (descrição em livro nº …, do Livro nº …); 3. O prédio em causa e com as enunciadas características foi resultante da divisão operada por acordo celebrado no âmbito da acção de divisão coisa comum que correu no extinto Tribunal Judicial da Comarca de Ourique sob a referência de Proc. n.º 373/2001, em que foram requerentes o agora 1º réu, (…), e mulher, (…), homologado por sentença de 2009.06.23, transitada em julgado em 2009.07.27; 4. No âmbito da acção de divisão de coisa comum foi adjudicado a … (ora 1º réu), e mulher, (…) prédio misto, de características preponderantemente rústicas, também denominado “Herdade dos (…)”, sito no Lugar do Monte da (…), união das freguesias de Garvão e Santa Luzia, inscrito actualmente na competente matriz predial rústica da sobredita união de freguesias no artigo … ARV, Secção 1G (com origem no artigo … ARV, Secção G, da extinta freguesia de Santa Luzia), e na respectiva matriz urbana, nos artigos … e …, com origem, respectivamente, nos artigos urbanos … e … da já aludida extinta freguesia, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob o número nº …/20100813 - freguesia de Santa Luzia; 5. Este prédio confronta a norte com (…) – Investimentos Imobiliários e Turísticos, S.A., (…) e (…); a nascente, com (…) e outros, (…) e outros e (…); a sul, com o prédio donde foi desanexado de … (ora autor); e a poente, com (…) e (…); 6. Ambos os prédios estão incluídos na mesma área da RAN – Reserva Agrícola Nacional; 7. Por escritura pública outorgada em 20.04.2017 o 1º R. vendeu este prédio livre de ónus e encargos e pelo preço global de € 200.000,00, ao 2º R. marido, (…), casado no regime da comunhão de adquiridos com (…), na proporção de ¾, e ao aqui 3º Réu, (…), casado no regime da separação de bens com (…), na proporção de ¼; 8. A descrita aquisição, atenta a mencionada proporção, em favor do 2º réu marido e do 3º réu foi objecto da respectiva inscrição registral - Apresentação 2661 de 2017/06/08; 9. O 1º R. não comunicou ou informou o A. da intenção de vender o indicado bem imóvel, e, “a fortiori”, do projecto de venda, com as correspondentes condições de transacção, seja o preço, condições de pagamento, e identificação dos compradores; 10. Os compradores do prédio não eram proprietários de qualquer outro prédio confinante com aquele, nomeadamente incluído na mesma mancha ou área da RAN – Reserva Agrícola Nacional; 11. Em 16.11.2017 os RR. celebraram uma escritura pública de rectificação da escritura de compra e venda outorgada no dia 20-04-2017, fazendo constar «Que, pela presente escritura, rectificam a acima mencionada escritura de compra e venda no sentido de ficar a constar que o valor global da venda foi, na realidade, no montante de trezentos e vinte mil euros»; 12. Este foi o preço efectivamente pago pelos 2º e 3º RR. ao 1º R.; 13. Os RR. (…) e (…) adquiriram por permuta o prédio rústico denominado Vale de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob o n.º …/20120530, que confronta a poente com o prédio vendido pelo 1º aos restantes RR., aquisição registada pela Ap. 45 de 2018/02/07; (retificado por despacho proferido em 30-10-2020). 14. Os 2º e 3º RR. suportaram: € 540,00 com a escritura e registo; € 7.701,86 com o imposto municipal sobre transações; € 2.560,00 com o imposto de selo; 15. O RR. (…) e (…) desmataram uma parte da propriedade, com o que gastaram € 6.042,00; 16. Procederam à abertura de um furo artesiano; 17. Na propriedade não existia poço, furo ou fonte de água; 18. Procederam à limpeza de um curso de água; 19. Colocaram um telhado novo com isolamento térmico na casa, com o que gastaram € 15.227,59; 20. O que foi necessário para evitar a degradação e ruína da casa. … E deu como não provados os seguintes factos:A) Os demais potenciais confinantes do prédio não se mostraram interessados na aquisição do mesmo; B) O Autor não pretende efectuar qualquer exploração agrícola dos dois prédios, o que pretende é que o seu prédio por via da junção ao prédio de que foi proprietário o Réu (…), tenha uma maior valorização em termos de preço de mercado, a fim de o poder vender a terceiros por um preço muito mais elevado do que aquele que corresponde à soma do valor de mercado de cada um dos prédios isoladamente; C) No início de 2015, o Réu (…) comunicou ao Autor que pretendia vender o seu prédio, tendo fixado o preço em € 350.000,00; D) O Autor comunicou ao Réu (…) que pelo preço de € 320.000,00 (trezentos e vinte mil euros) não estava interessado em comprar o prédio, estando, aliás, também vendedor do seu prédio; E) Esta afirmação do Autor foi feita, mesmo após ter sido confrontado com a informação que lhe foi dada pelo Réu (…) de que, ante o seu desinteresse na aquisição por tal valor, iria vender o prédio a um terceiro; F) Em Outubro de 2016, o Autor teve conhecimento da celebração do contrato promessa de compra e venda, tal como do respectivo preço e promitentes-compradores; G) O Autor, pelo menos desde Março de 2017 que tinha conhecimento das condições essenciais no negócio de compra e venda do prédio sub iudice; H) Os 2º e 3º RR despenderam a quantia de € 1.500,00 com a limpeza do curso de água; I) A reparação do tanque existente na propriedade custou aos 2º e 3º RR. € 800,00; J) A execução do furo custou € 2.100,00; K) Os 2º e 3º RR compraram uma bomba submersível no valor de € 750,00. ♣ IV – Enquadramento jurídicoConforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) houve erro na apreciação da matéria de facto; (ii) o Apelado atuou com abuso de direito; (iii) é de aplicar o incidente de liquidação em execução de sentença às despesas efetuadas pelos Apelantes; (iv) inexiste direito de preferência por parte do Apelado; (v) é inconstitucional o art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03; (vi) existe direito de preferência dos Apelantes; (vii) existe direito dos Apelantes a serem ressarcidos das despesas efetuadas com a aquisição do imóvel; (viii) houve erro na fixação das custas; (ix) houve erro quanto à fixação dos juros no pedido reconvencional; e (x) há litigância de má fé do Apelado. … 1 – Impugnação da matéria de factoNos termos das conclusões apresentadas pelos Apelantes, os factos não provados D), H), I) e J) deverão ser dados como provados, em face dos documentos 2 e 3 juntos com a contestação do Réu (…), dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…), do relatório pericial e das declarações de parte do Réu (…). Cumpre decidir. Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que: 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º. Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre o Recorrente, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016, no âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt: I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe. II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado. Relativamente à apreciação da matéria de facto em sede de recurso, importa acentuar que o disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil consagra atualmente um duplo grau de jurisdição, persistindo, porém, em vigor o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz da 1.ª instância, previsto no art. 607.º, n.º 5, do mesmo Diploma Legal. No entanto, tal princípio da livre apreciação da prova mostra-se condicionado por uma “prudente convicção”, competindo, assim, ao Tribunal da Relação aferir da razoabilidade dessa convicção, em face das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da ciência e da lógica. Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 31-05-2016, no âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt: I - O tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou. II - Desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640.º, o tribunal da Relação não poderá deixar de fazer a reapreciação da matéria de facto impugnada, podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1.ª instância. Cita-se ainda o sumário do acórdão do TRG, proferido em 04-02-2016, no âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt: I- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. E, a ser assim, o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação da matéria de facto, deve, não só recorrer a todos os meios probatórios que estejam à sua disposição e usar de presunções judiciais para, desse modo, obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, como também, sem incorrer em excesso de pronúncia, ao alterar a decisão de determinados pontos da matéria de facto, retirar dessa alteração as consequências lógicas inevitáveis que se repercutem noutros pontos concretos da matéria de facto, independentemente de tais pontos terem ou não sido objeto de impugnação nas alegações de recurso. Cita-se a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-01-2015, no âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt: XIII - Não ocorre excesso de pronúncia da decisão, se a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retira dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso. Por fim, importa ainda esclarecer que o Tribunal da Relação, na sua reapreciação da prova, terá sempre que atender à análise crítica de toda a prova e não apenas aos fragmentos de depoimentos que, por vezes, são indicados, e que retirados do seu contexto, podem dar uma ideia bem distinta daquilo que a testemunha efetivamente mencionou, bem como daquilo que resultou da globalidade do julgamento. Apreciemos, então. Os Apelantes deram cumprimento aos requisitos previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil. Consigna-se que se procedeu à audição de todo o julgamento. a) Facto D) Consta dos factos não provados D) que: D) O Autor comunicou ao Réu (…) que pelo preço de € 320.000,00 (trezentos e vinte mil euros) não estava interessado em comprar o prédio, estando, aliás, também vendedor do seu prédio; Segundo os Apelantes, este facto deveria ter sido dado como provado em face dos documentos 2 e 3 juntos com a contestação do Réu (…) e dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…). Relativamente aos documentos 2 e 3 juntos com a contestação do Réu (…), importa mencionar que se trata de um contrato de mediação, subscrito em 13-05-2015, para o qual se mostrava atribuído como preço do imóvel a quantia de € 350.000,00, e não a quantia pela qual o referido imóvel veio a ser vendido, no montante de € 320.000,00, pelo que, mesmo que o Apelado tivesse tido conhecimento desta proposta, e não a tivesse aceitado, tal nunca permitiria concluir que também tinha sido contatado relativamente ao montante de € 320.000,00, conforme consta do facto que não foi dado como provado. Dir-se-á ainda que o documento 3 apenas se reporta a algo mencionado pelo Réu … (que em 13-05-2015 já tinha contatado o Apelado), ou seja, apenas comprova que aquela declaração foi proferida por aquele Réu naquela data, já não a veracidade dessa declaração. Por fim, e quanto aos depoimentos referidos, importa esclarecer que a testemunha (…) apenas confirmou que em 27-02-2014 existia um anúncio para venda de toda a propriedade (a parte do Réu … e do Apelado) e que nos dois contactos que, pouco tempo depois, teve com o Apelado, este lhe disse que estaria disposto a vender a sua parte pelo montante de € 400.000,00 ou € 450.000,00 (já não se recordava bem), sendo tal valor irrenegociável, o que manteve nesses dois encontros. Já sobre a vontade de o Apelado vender tal propriedade nos anos seguintes a 2014, nada soube dizer. Relativamente ao depoimento da testemunha (…), este apenas se limitou a confirmar a veracidade dos documentos 2 e 3 juntos com a contestação do Réu (…), ou seja, que os mesmos foram firmados entre a (…) e o Réu (…), sendo a adenda elaborada de acordo com a vontade desse Réu e nos termos por este solicitados. Por fim, e quanto ao depoimento da testemunha (…), amigo de longa data do Réu (…), em total sintonia com a apreciação efetuada pelo tribunal de 1.ª instância, tal depoimento não nos mereceu qualquer credibilidade, sendo manifesta a falta de justificação para ter ouvido uma conversa alegadamente existente entre tal Réu e o Apelado, numa esplanada, no centro de Loulé, durante o seu horário de trabalho, onde, apesar de se encontrar sentado numa outra mesa e de costas, apercebeu-se, concretamente, de que todos os pormenores da venda do imóvel pelo referido Réu aos Apelantes tinha sido conversado com o Apelado. Na realidade, credível é sim o depoimento da testemunha (…), que não possui qualquer ligação especial com nenhuma das partes envolvidas, e que afirmou em tribunal ter o Apelado lhe solicitado para o ajudar na compra da propriedade do Réu (…), uma vez que este queria vender a propriedade, mas não a ele, visto que, à data, não se falavam. Pelo exposto, mantém-se o facto D) como não provado. b) Factos H), I) e J) Constam dos factos não provados H), I) e J) que: H) Os 2º e 3º RR despenderam a quantia de € 1.500,00 com a limpeza do curso de água; I) A reparação do tanque existente na propriedade custou aos 2º e 3º RR. € 800,00; J) A execução do furo custou € 2.100,00; Segundo os Apelantes, estes factos deveriam ter sido dados como provados em face do relatório pericial e das declarações de parte do Réu (…). Ora, basta atentar no depoimento de parte do Réu (…) para se constatar que, em parte alguma do seu depoimento, o mesmo mencionou qualquer quantia relativamente ao valor das despesas com a limpeza do curso de água, da reparação do tanque ou da execução do furo, pelo que, quanto aos factos pretendidos (e independentemente do valor a atribuir às declarações de parte), tais declarações são irrelevantes. Por fim, e quanto ao que consta no relatório pericial junto aos autos, tal não comprova aquilo que os Apelantes pagaram por tais atividades, apenas indica qual seria o valor justo a pagar pelas mesmas, pelo que não pode servir de prova quanto àquilo que os Apelantes efetivamente pagaram. Pelo exposto, andou bem o tribunal a quo ao não ter dado como provados tais factos, improcedendo, também nesta parte, a impugnação da matéria de facto. … 2 – O Apelado atuou com abuso de direitoNo entender dos Apelantes, caso fosse dado como provada a alínea D), o Apelado deveria ser condenado por abuso de direito, nos termos do art. 334.º do Código Civil. Uma vez que o facto não provado D) assim se manteve, não procederemos à apreciação desta questão. … 3 – Aplicação do incidente de liquidação em execução de sentença às despesas efetuadas pelos ApelantesNo entender dos Apelantes, caso não venham a ser apurados os valores despendidos por estes com as obras de benfeitoria relativas à limpeza do curso de água, à reparação do tanque e à execução do furo, deverá tal valor ser relegado para liquidação de sentença. Analisemos. Dispõe o art. 216.º do Código Civil que: 1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. 2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias. 3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante. Por sua vez, dispõe o art. 1273.º do Código Civil que: 1. Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. 2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa. Resulta do teor de tais artigos que, por um lado, não havendo lugar ao levantamento das benfeitorias (quer por serem necessárias, quer, no caso das benfeitorias úteis, por tal implicar o detrimento da coisa), o direito ao valor delas pelo possuidor será calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 473.º, n.º 1, do Código Civil) e não segundo as regras da responsabilidade civil (arts. 562.º e 566.º do Código Civil); e, por outro, que o possuidor apenas pode receber o valor das benfeitorias necessárias e das úteis cujo levantamento implicaria o detrimento da coisa, já não o valor das benfeitorias voluptuárias. Cita-se, a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 17-11-2015, no âmbito do processo n.º 480/11.9TBMCN.P1.S1[2]: I. O adquirente preferido goza do direito ao reembolso das benfeitorias que tenha realizado, nos termos do art. 1273º do Código Civil. II. O valor das benfeitorias necessárias que o adquirente preferido realizou é calculado, tal como o das úteis, segundo as regras do enriquecimento sem causa, e não segundo as regras da responsabilidade civil. Importa, assim, apurar, em primeiro lugar, a que tipo se reportam as benfeitorias que os Apelantes reclamam. Resulta dos factos provados que os Apelantes procederam à abertura de um furo artesiano, sendo que inexistia na propriedade poço, furo ou fonte de água (factos 16 e 17); e procederam à limpeza de um curso de água (facto 18). Porém, não se tratando de benfeitorias que tivessem por finalidade evitar a perda, a destruição ou deterioração do prédio misto (benfeitoria necessária), para que as mesmas pudessem ser consideradas úteis, teria de ter sido alegado, e provado, que, apesar de não serem indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentaram o valor. Tais factos não foram, porém, alegados (e provados) pelos Apelantes, competindo-lhes a eles o ónus da prova (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil)[3]. Sempre se dirá que, quanto ao furo, por se tratar de uma propriedade com cultura de sequeiro, competia aos Apelantes alegarem quais os motivos por que, naquela situação em concreto, tal furo, implicou um aumento do valor do prédio objeto da ação de preferência, o que manifestamente não fizeram. Relativamente à limpeza de um curso de água, para além de não terem sido alegados quaisquer factos demonstrativos do aumento do valor do referido prédio com tal limpeza, sempre se dirá que, em regra, tal atividade possui natureza cíclica, pelo que sempre importaria apurar quando é que essa atividade tinha sido realizada e se, à data da entrega do prédio, o beneficiário do direito de preferência ainda beneficiaria dela, o que manifestamente não se mostra apurado. Por fim, quanto à reparação do tanque (a qual não consta sequer da matéria dada por provada), sempre se dirá, de igual modo, que não foram alegados quaisquer factos que permitam concluir de que maneira o prédio em questão ficou valorizado com tal reparação. Nesta conformidade, bem andou o tribunal a quo ao não ter determinado o pagamento pelo Apelado aos Apelantes das benfeitorias supra elencadas. Pelo exposto, e quanto a esta matéria, improcede a pretensão dos Apelantes. … 4 – Inexistência de direito de preferência por parte do ApeladoDefendem os Apelantes que o proprietário do prédio confinante com a área de 730.750 m2 não tem direito de preferência na alienação de um prédio confinante, com a área de 657.000 m2, muito superiores, qualquer deles, à unidade mínima de cultura (48 ha), ao abrigo do art. 26º do DL n.º 73/2009, de 31-03. Decidamos. Dispõe o art. 26º do DL n.º 73/2009, de 31-03, que: 1 - Sem prejuízo dos direitos de preferência estabelecidos no Código Civil e em legislação complementar, os proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN gozam do direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinantes. 2 - Os proprietários dos prédios rústicos ou mistos inseridos na RAN que os pretendam vender, comunicam por escrito a sua intenção aos confinantes que podem exercer o seu direito nos termos dos artigos 416.º a 418.º do Código Civil. 3 - No caso de violação do prescrito nos números anteriores é aplicável o disposto no artigo 1410.º do Código Civil, exceto se a alienação ou dação em cumprimento tiver sido efetuada a favor de um dos preferentes. Por sua vez, dispõe atualmente o art. 1380.º, n.º 1, do Código Civil que: 1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante. É manifesto que o DL n.º 73/2009, de 31-03, é uma lei especial em face do Código Civil, pelo que aos prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN (como é o caso) aplica-se o disposto no art. 26.º desse DL e não o que dispõe o art. 1380.º, n.º 1, do Código Civil, visto que a lei especial prevalece sobre a lei geral (art. 7.º, n.º 3, do Código Civil). Basta atentar na leitura do citado art. 26.º para facilmente se concluir que inexiste qualquer limitação de área ao exercício do direito de preferência, pelo que, da aplicação do art. 26.º, n.º 1, do DL n.º 73/2009, de 31-03, resulta que o Apelado efetivamente tinha direito de preferência sobre o imóvel adquirido pelos Apelantes. Deste modo, e quanto a este aspeto, improcede a pretensão dos Apelantes. … 5 – Inconstitucionalidade do art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03No entender dos Apelantes, é inconstitucional a interpretação do art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, no sentido de que existe direito de preferência, na venda de prédios confinantes, quaisquer que sejam as áreas dos prédios em questão, por violação do art. 94.º da Constituição da República Portuguesa. De igual modo, existe uma inconstitucionalidade orgânica relativa ao DL n.º 73/2009, de 31-03, uma vez que o Governo legislou sobre matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, sem autorização desta, em matéria de direitos, liberdade e garantias dos cidadãos. Apreciemos. Dispõe o art. 94.º da Constituição da República Portuguesa que: 1. O redimensionamento das unidades de exploração agrícola que tenham dimensão excessiva do ponto de vista dos objectivos da política agrícola será regulado por lei, que deverá prever, em caso de expropriação, o direito do proprietário à correspondente indemnização e à reserva de área suficiente para a viabilidade e a racionalidade da sua própria exploração. 2. As terras expropriadas serão entregues a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei, a pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou a outras formas de exploração por trabalhadores, sem prejuízo da estipulação de um período probatório da efectividade e da racionalidade da respectiva exploração antes da outorga da propriedade plena. Dispõe ainda o art. 1376.º do Código Civil que: 1. Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno. 2. Também não é admitido o fraccionamento, quando dele possa resultar o encrave de qualquer das parcelas, ainda que seja respeitada a área fixada para a unidade de cultura. 3. O preceituado neste artigo abrange todo o terreno contíguo pertencente ao mesmo proprietário, embora seja composto por prédios distintos. Dispõe, por sua vez, o art. 27.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, que: Para efeitos de fracionamento, nas áreas RAN, a unidade de cultura corresponde ao triplo da área fixada pela lei geral para os respetivos terrenos e região. Resulta, igualmente, do art. 3.º da Portaria n.º 219/2016, de 09-08, que: A unidade de cultura a que se refere o artigo 1376.º do Código Civil, para Portugal continental e por NUT III nos termos do Regulamento (UE) n.º 868/2014 da Comissão, de 8 de agosto de 2014, é a constante do anexo II da presente portaria e que dela faz parte integrante. Nos termos do citado anexo II, a unidade mínima de cultura para terreno de sequeiro, no Concelho de Ourique, é de 48ha. Da conjugação dos citados artigos, resulta que, no caso das áreas RAN, a unidade de cultura, para efeitos de fracionamento, é de 144ha, pelo que necessariamente têm de ser admitidas áreas com estas dimensões, as quais, aliás, correspondem à unidade mínima de cultura, abaixo da qual não é possível o fracionamento. Atente-se ainda que resulta do n.º 1 do art. 94.º da Constituição da República Portuguesa que o redimensionamento das unidades de exploração agrícola que tenham dimensão excessiva do ponto de vista dos objetivos da política agrícola constará de lei, ou seja, a apreciação do que se possa entender como dimensão excessiva de uma unidade de exploração agrícola, segundo os objetivos da política agrícola, não se mostra previsto na Constituição, tendo tal de resultar da lei. Ou, dito de outro modo, os limites à iniciativa privada que possam por em causa os objetivos da política agrícola, que, necessariamente vão mudando ao longo dos tempos, não decorrem da Constituição, mas sim da lei. No caso em apreço, as áreas RAN resultam exatamente de objetivos específicos de política agrícola, segundo os quais, determinadas áreas agrícolas, por demasiado pequenas, não são rentáveis, razão pela qual, aliás, nestes específicos terrenos a unidade mínima de cultura, para efeitos de fracionamento, é superior ao triplo da unidade mínima de cultura dos terrenos que não se encontrem abrangidas pela RAN. Na realidade, o que consta do anexo II da Portaria n.º 219/2016, de 09-08, é o limite mínimo da unidade de cultura, e não o seu limite máximo, como os Apelantes parecem querer fazer crer. No caso em apreço, resulta do facto provado 1 que o prédio misto de que o Apelado é proprietário possui 73,075 ha, sendo que não consta dos factos provados os hectares do prédio misto que os Apelantes adquiriram em 20-04-2017 (factos provados 4 e 7), porém, mesmo a admitir-se que teria 65,700 ha (conforme invocado pelos Apelantes), tal implicaria um total de 138,775 ha, ou seja, inferior a 144ha, ou seja, inferior à área mínima prevista para efeito de fracionamento. Por último, dir-se-á ainda que, de acordo com o anexo I, da Portaria n.º 219/2016, de 09-08, a superfície máxima do redimensionamento de explorações agrícolas, para terreno de sequeiro, no Concelho de Ourique, encontra-se fixada em 360 ha. Deste modo, apenas nos resta concluir que inexiste qualquer inconstitucionalidade material do art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, em face do disposto no art. 94.º da Constituição da República Portuguesa. Relativamente à invocada inconstitucionalidade orgânica do DL n.º 73/2009, de 31-03, quanto aos arts. 26.º, 29.º e 39.º, importa mencionar que o artigo que se encontra em análise é o art. 26.º, pelo que apenas quanto a este artigo se debruçará a nossa análise. Refere o art. 62.º da Constituição da República Portuguesa que: 1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. 2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização. Por sua vez, dispõe o art. 17.º da Constituição da República Portuguesa que: O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. Por último, refere o art. 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, que: 1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) b) Direitos, liberdades e garantias; Desde já, e em primeiro lugar, o art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, não se reporta a situações de requisição ou de expropriação, relativamente às quais, é evidente a necessidade de serem legisladas por lei (n.º 2 do art. 62.º da Constituição da República Portuguesa). Os direitos liberdades e garantias constam no título II (“Direitos, liberdade e garantias” – arts. 24.º a 57.º) da Constituição da República Portuguesa, e neles não se mostra incluído o direito à propriedade privada, porém, aplica-se o regime estabelecido para os direitos liberdades e garantias constantes no título II também aos direitos fundamentais de natureza análoga, nos termos do art. 17.º desse Diploma. Ora, é comummente aceite na jurisprudência nacional que o direito à propriedade privada integra a categoria de “direitos fundamentais de natureza análoga”[4]. E, a ser assim, aplica-se ao direito à propriedade privada o regime dos direitos, liberdades e garantias naquilo que nele revestir natureza análoga. Conforme bem refere o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 517/99, proferido no âmbito do processo n.º 61/95[5]: O direito de propriedade é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, gozando por isso mesmo (ex vi do artigo 17º da Constituição), do respectivo regime naquilo que nele reveste natureza análoga (cf. o citado Acórdão n.º 329/99 e a jurisprudência aí citada). Daí que a aplicação do disposto no art. 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, se limitará ao direito de propriedade naquilo que revestir natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, sendo que, para que tal aconteça, se exigem dois requisitos: (i) exista uma afetação negativa do direito de propriedade, nos termos expressos no n.º 1 do art. 62.º da Constituição da República Portuguesa; e (ii) a parte que seja atingida do direito de propriedade tenha natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias do título II da Constituição da República Portuguesa. Atente-se ainda ao que, sobre esta matéria, explana o já citado acórdão do Tribunal Constitucional[6]: É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de 1991), cabem na reserva legislativa parlamentar 'as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias'. Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e), 65º, nº 4, e 66º, nº 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos. FERNANDO ALVES CORREIA fala do direito de propriedade urbana como 'um direito planificado'; e afirma que os planos urbanísticos são instrumentos que definem 'o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo', sem que, ao menos em regra, tenham natureza expropriativa (Estudos cit., páginas 47 e 50). A conclusão a que acaba de chegar-se não é posta em crise pelo facto de a licença em causa nos autos já ter sido concedida no momento da edição das normas sub iudicio – e de, assim, se estar perante uma ablação de um direito (no caso, do direito de lotear) que, uma vez validamente concedido, passou a integrar a esfera patrimonial (é dizer, a propriedade) do titular da licença. De facto, a ablação desse direito, sendo, embora, susceptível de originar uma obrigação de indemnizar, não tem a virtualidade de transmudar a essência do direito de propriedade, por forma a fazer incluir nela faculdades que a garantia constitucional não cobre (recte, as faculdades de lotear, urbanizar e construir). Na realidade, não se incluindo na natureza análoga (aos direitos, liberdades e garantias) do direito de propriedade privada, os direitos de urbanizar, lotear e edificar, não sendo, por isso, de aplicar a essas situações o disposto no art. 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, menos sentido faz considerar-se fazer parte dessa natureza análoga o direito de preferência previsto no art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, o qual não implica para o seu proprietário (diferentemente das limitações inerentes às leis referentes à urbanização, loteamento e edificação, que, muitas vezes, impedem a valorização do imóvel) qualquer diminuição das condições de venda do seu imóvel, visto que a venda é efetuada nas exatas condições acordadas, havendo apenas a substituição do adquirente. Nesta conformidade, por o disposto no art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, não limitar o núcleo essencial do direito à propriedade privada, não padece o mesmo de qualquer inconstitucionalidade orgânica. Improcede, assim, e nesta parte, a pretensão dos Apelantes. … 6 – Direito de preferência dos ApelantesSegundo os Apelantes, por, à data da contestação, já serem proprietários de um prédio confinante com o prédio em questão nos autos, cuja a área é de 9,3 ha, o qual gozava de preferência (inclusive, de melhor preferência do que a do Apelado), uma vez que a proprietária, à data da aquisição do prédio dos autos, não tinha renunciado ao direito de preferência, pelo que os direitos e obrigações dessa proprietária foram transferidos para os Apelantes, os quais passaram a ser titulares desse direito de preferência. Cumpre decidir. Conforme consta do art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, “os proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN gozam do direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinantes”, ou seja, o direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento é atribuído aos proprietários dos prédios confinantes e não ao próprio prédio confinante, e necessariamente aos proprietários dos prédios confinantes à data em que se exerce o direito de preferência (aquando da venda) e não relativamente aos proprietários que, no futuro, venham a adquirir algum dos prédios confinantes, independentemente de o proprietário, à data, ter tido ou não conhecimento das condições da venda. Na realidade, apenas ao proprietário à data da venda assistia legitimidade para pretender fazer valer, em ação judicial, o seu direito de preferência, claro que apenas também se à data da interposição da ação mantivesse os pressupostos desse direito de preferência, ou seja, mantivesse a propriedade do prédio confinante. Conforme se salienta no sumário do acórdão do STJ, proferido em 11-02-2015, no âmbito do processo n.º 174/12.8TBLGS.E1.S1[7]: I - De acordo com o art. 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, o direito de preferência aí previsto – a ser exercido perante qualquer modalidade de alienação ou na dação em cumprimento – pressupõe que o prédio do proprietário preferente e o prédio alienado ou dado em cumprimento estejam integrados na RAN e que os mesmos sejam rústicos ou mistos (na definição do art. 3.º, al. j) do mesmo diploma). II - Posto que os réus não eram, à data da aquisição do prédio misto pelo autor, proprietários de um terreno confinante com aquele, é de concluir que não estão reunidos os pressupostos referidos em I. No caso em apreço, os Apelantes por não serem proprietários de qualquer prédio confinante à data da venda do prédio em questão não lhes assistia o direito de preferência, pelo que, após aquele momento, já não é possível constituir-se tal direito a seu favor. Nesta conformidade, não assiste razão aos Apelantes neste aspeto, mantendo-se, quanto a este ponto, a sentença recorrida. … 7 – Direito ao ressarcimento das despesas efetuadas com a aquisição do imóvelDefendem os Apelantes que têm direito a ser ressarcidos das despesas com a escritura, registos e impostos no valor de €10.801,86, uma vez que só assim o Autor fica investido na mesma posição dos Réus e, se assim não fosse, existiria um enriquecimento sem causa, já que o Autor adquiria um prédio, ficando dispensado do pagamento de despesas, que necessariamente teria de suportar, se o prédio lhe tivesse sido diretamente vendido. Decidamos. Da matéria provada resulta, no seu ponto 14, que: 14. Os 2º e 3º RR. suportaram: € 540,00 com a escritura e registo; € 7.701,86 com o imposto municipal sobre transações; € 2.560,00 com o imposto de selo; Consta da sentença recorrida sobre esta matéria o seguinte: Os réus reclamam do autor para além do pagamento do valor real do negócio de compra e venda celebrado, a quantia de € 10.801,86, relativa aos custos que suportaram com a escritura e com impostos. Conforme resulta do acima exposto o valor a atender no exercício do direito de preferência pelo autor é o real e não o constante do negócio simulado inicialmente celebrado entre os réus. Quanto ao pedido de reembolso das despesas tidas com a escritura e impostos á manifesta a sua improcedência. Os réus não enquadram juridicamente a sua pretensão e o certo é que a mesma não tem qualquer fundamento legal. Com efeito o autor não deu de modo nenhum causa a tais despesas. Pelo contrário, foi o primeiro réu que resolveu celebrar o contrato com os restantes réus violando o direito do autor. Assim, em bom rigor quem deu causa a tais despesas foi o primeiro réu. É também de afastar a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa já que inexiste qualquer enriquecimento pelo autor motivado pelas despesas tidas pelos réus. Desde já afirmamos não ser este o nosso entendimento. Efetivamente o preferente substitui o adquirente, à data da venda, no contrato, tudo se passando como se sempre tivesse sido o preferente o adquirente, pelo que não se procede a um novo contrato, nem ao pagamento de novas despesas com a escritura de compra e venda ou de um novo pagamento do IMT ou de um novo imposto de selo. Por este motivo, não faz qualquer sentido se invocar a circunstância de o preferente ter ou não dado causa a tais despesas, antes sim, atender-se que o preferente para adquirir aquele prédio, à data do contrato, teria de ter despendido exatamente aquelas despesas, sem as quais o contrato não se teria realizado. Deste modo, compete ao preferente proceder ao pagamento ao adquirente de tais montantes, sob pena de obter um enriquecimento sem causa (art. 473.º do Código Civil). Já não será assim quanto à despesa com a inscrição da aquisição a seu favor no registo, facto este que não interfere na validade do contrato de compra e venda e que apenas beneficia o adquirente. Cita-se a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 08-09-2016, no âmbito do processo n.º 1022/12.4TBCNT.C1.S1[8]: Não obstante, tem a ré JJ direito a ser reembolsada das despesas que realizou com a escritura de compra e venda, o pagamento do IMT e o imposto de selo, no valor global de € 2.494,66, comprovadas nos autos e cujo pagamento pediu no âmbito do pedido reconvencional que deduziu. Não lhe assiste já direito ao que despendeu com a inscrição da aquisição a seu favor no registo predial, facto posterior à aquisição e de que só a aquela ré beneficiou. No caso dos autos, resulta da matéria dada como provada que o imposto municipal sobre transações (IMT) importou na quantia de € 7.701,86 e o imposto de selo na quantia de € 2.560,00, sendo tais quantias devidas pelo Apelado aos Apelantes na proporção de 3/4 e ao Réu (…), na proporção de 1/4 (facto provado 7). Por sua vez, consta dos factos provados que a escritura e o registo importaram na quantia de € 540,00, não se distinguindo, em tal facto provado, os valores da escritura dos do registo, sendo que o Apelado apenas se mostra obrigado a pagar aos Apelantes e ao Réu (…) o montante relativo à escritura, já não o relacionado com o registo. Tal circunstância poderia ser relegada para liquidação em execução de sentença (art. 358.º do Código de Processo Civil), porém, por já constar do processo a documentação necessária para proceder a tal apuramento, em face do documento 18 junto com a contestação dos Apelantes e do Réu (…), facilmente se constata que com a escritura os Apelantes e o referido Réu despenderam € 290,00 (visto que a despesa com o registo foi no montante de € 250,00). Assim, o Apelado deverá proceder ao pagamento aos Apelantes e ao Réu (…) da quantia total de € 10.551,86, sendo 3/4 para os primeiros e 1/4 para o segundo. Nesta conformidade, e quanto a este ponto, procede parcialmente a pretensão dos Apelantes. … 8 – Erro na fixação das custasNo entender dos Apelantes, quer as custas da ação quer as custas do pedido reconvencional foram mal calculadas: as primeiras porque deveria ter sido fixado que as custas da ação seriam suportadas em partes iguais pelo Réu … (50%) e pelos Réus compradores (na proporção de 3/4 de 50% para os Réus … e mulher, … e de 1/4 de 50% para o Réu …); e as segundas porque, ao não ser devidamente clarificado o valor do pedido reconvencional, foram mal calculadas as custas, que deveriam ter sido fixadas na proporção de 86% do valor para o Apelado e 14% para os Apelantes. Apreciemos. Refere o art. 607.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, que: 6 - No final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respetiva responsabilidade. Refere igualmente o art. 527.º do Código de Processo Civil que: 1 - A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. 2 - Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. 3 - No caso de condenação por obrigação solidária, a solidariedade estende-se às custas. No caso em apreço, na sentença recorrida consta: Custas da acção pelos Réus. Custas da reconvenção pelo Autor na proporção de 3/4 e pelos Réus (…) e (…) na proporção de 1/4 – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. Relativamente às custas da ação em face da matéria que se mostra provada, efetivamente a proporção das custas não deve ser igual quanto a todos os Réus, devendo o Réu (…) pagar 50% das custas, enquanto vendedor, e os outros 50% deverão ser pagos pelos outros Réus, enquanto compradores, sendo 3/4 para os Réus (…) e (…) e 1/4 para o Réu (…). Pelo que, quanto à ação, procede a pretensão dos Apelantes. Relativamente ao pedido reconvencional, importa atentar ao valor deste. Conforme resulta da Petição Inicial o valor da ação é de € 200.000,00; conforme resulta do pedido reconvencional o valor deste pedido é de € 157.221,55; e conforme resulta do despacho saneador proferido o valor total da ação é de € 357.221,55. Será, assim, sobre o valor de € 157.221,55 que se apurará a proporção de custas a pagar pelo Autor e pelos Réus. Assim, em face da sentença proferida pela 1.ª instância, quanto à reconvenção, deveriam ter sido fixadas as custas ao Autor no montante de 86% e aos Apelantes no montante de 14% (sendo as fixadas na sentença ligeiramente vantajosas para o Autor). Nesta conformidade, e quanto a custas procede na integra a pretensão dos Apelantes. … 9 – Erro quanto à fixação dos juros no pedido reconvencionalNo entender dos Apelantes, os juros do pedido reconvencional relativamente às benfeitorias devem ser contados a partir da citação, conforme peticionado na contestação. Cumpre decidir. Dispõe o art. 804.º do Código Civil que: 1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor. 2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido. Dispõe ainda o art. 805.º, n.º 1, do Código Civil que: 1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir Relativamente às benfeitorias, importa atender que o seu beneficiário só passa a ter direito à respetiva indemnização quando entregar o bem que beneficiou com as benfeitorias, o que, na situação em apreço, é o prédio misto, pelo que a mora do devedor dessa indemnização só se constitui após tal ocorrência. Cita-se, quanto a este assunto, o acórdão do TRE, de 03-05-1977, in CJ, 1977, 3.º, p.546: O pedido de indemnização de benfeitorias que não podem levantar-se sem detrimento da coisa destina-se a evitar um enriquecimento sem causa à custa do possuidor que é obrigado a entregar a coisa benfeitorizada. Sem obrigação de entrega, não haverá direito de indemnização como implicitamente se pressupõe nos arts. 1273.º e 1275.º. Assim, os juros do pedido reconvencional relativamente às benfeitorias apenas são contados a partir da entrega do prédio misto objeto de entrega, caso tal indemnização não seja de imediato paga, sem prejuízo do direito de retenção a que tem direito (art. 754.º do Código Civil). Nesta conformidade, e quanto aos juros, improcede a pretensão dos Apelantes. … 10 – Litigância de má fé do ApeladoSegundo os Apelantes, o Apelado ao ter invocado nas suas contra-alegações que o recurso interposto pelos Apelantes estava fora de prazo, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar; tendo igualmente invocado factos falsos ao mencionar que os custos do registo da preferência serão pagos por si, quando os mesmos ficam a cargo do tribunal, pelo que deverá ser condenado em multa como litigante de má-fé. Em resposta, o Apelado veio requerer a improcedência, por carência de fundamentos, do pedido da sua condenação como litigante de má-fé, alegando, em síntese, que a sua argumentação, quanto à primeira situação, apesar de não ter sido a seguida pelo tribunal a quo, reporta-se a uma interpretação jurídica que considera válida; e, quanto à segunda situação, desconhece a base legal, a qual também não é indicada pelos Apelantes, para a alegada isenção de custos registrais a seu favor. Analisemos. Dispõe o art. 542.º do Código de Processo Civil que: 1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. 3 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé. No caso em apreço, nas situações invocadas pelos Apelantes, a alínea que poderia estar em causa é a al. a) do n.º 1 do art. 542.º do Código de Processo Civil, ou seja, que em ambas as invocações jurídicas o Apelado tivesse deduzido oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar. Na realidade, não se pode confundir a situação prevista nesta alínea com a mera discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, pois tal implicaria uma incompreensível e intolerável limitação à interposição de ações ou à dedução de meios de defesa em juízo. Como bem esclarecem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa em O Código de Processo Civil Anotado[9]: A lei não coloca entraves irrazoáveis à introdução em juízo de pretensões ou de meios de defesa, nem consente que se faça do direito de ação uma interpretação correspondente a uma verdadeira petição de princípio, segundo a qual o acesso aos tribunais estaria reservado aos que tivessem razão. Se um dos objetivos do exercício do direito de ação é o reconhecimento de uma situação jurídica tutelável, o recurso legítimo aos tribunais não pode restringir-se àqueles que inequivocamente tenham a razão do seu lado. Ao invés, a lei confere uma vasta amplitude ao direito de ação ou de defesa, de maneira que, para além da repercussão no campo das custas judiciais, não retira do decaimento qualquer outra consequência a não ser que alguma das partes aja violando as regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual. Assim, não deve confundir-se a litigância de má-fé com: a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo; b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar; c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor Assim, para que se recorra à citada al. a) do n.º 1 do art. 542.º do Código de Processo Civil não basta que a interpretação jurídica indicada pela parte não tenha obtido provimento, torna-se necessário que resulte dos autos a violação das regras e princípios básicos de atuação processual. De igual modo, a violação de tais regras e princípios básicos terá de ocorrer de uma atuação dolosa ou negligente grave. Por outro lado, quando está em causa a citada alínea, estamos perante má fé material, o que implica como requisito para a sua existência que apenas a parte vencida possa nela incorrer[10]. Em face deste último requisito, relativamente à oposição do Apelado quanto ao não pagamento aos Apelantes dos valores por estes pagos a título de registos, uma vez que foi dado provimento à versão do Apelado, e independentemente da diversidade de argumentação jurídica, jamais poderíamos estar perante a citada alínea. Deste modo, e quanto a tal situação, por o Apelado não ter ficado vencido nessa oposição, não se mostram preenchidos os requisitos para a invocada litigância de má fé por parte do Apelado. Já relativamente à tempestividade do recurso, o Apelado efetivamente foi vencido, no entanto, a sua argumentação, ainda que não tenha convencido o tribunal, em nada denotou qualquer comportamento doloso ou de negligência grave, limitando-se à invocação convicta de uma determinada interpretação jurídica, com a qual, porém, discordamos. Também neste ponto, por não se verificarem os requisitos do dolo ou negligência grave, nem que o Apelante devesse conhecer a falta de fundamento da oposição apresentada, soçobra a sua condenação como litigante de má fé. Pelo exposto, conclui-se pela improcedência da pretensão dos Apelantes. … Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):(…) ♣ V – DecisãoPelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, determinando, em consequência, a alteração da sentença: 1) Quanto ao ponto B, relativo à reconvenção, condenar o Autor/Apelado a pagar aos Apelantes e ao Réu (…) a quantia total de € 10.551,86 (dez mil, quinhentos e cinquenta e um euros e oitenta e seis cêntimos), sendo 3/4 para os primeiros e 1/4 para o segundo. 2) Quanto às custas: a) relativamente à ação, fixam-se as custas pelos Réus, sendo 50% a pagar pelo Réu (…), e os outros 50% deverão ser pagos pelos outros Réus, sendo 3/4 para os Réus (…) e (…) e 1/4 para o Réu (…); b) relativamente ao pedido reconvencional, fixam-se as custas ao Autor no montante de 86% e aos Apelantes no montante de 14%. 3) No demais mantém-se a sentença recorrida. 4) Julgar improcedente o incidente de litigância de má fé deduzido pelos Apelantes. Relativamente à Apelação, custas pelos Apelantes (…) e (…) e pelo Apelado (…), sendo de 96,75% para os Apelantes e de 3,25% para o Apelado. Relativamente ao incidente de litigância de má fé, custas pelos Apelantes. Notifique. ♣ Évora, 14 de janeiro de 2021Emília Ramos Costa (relatora) Conceição Ferreira Rui Machado e Moura _________________________________________________ [1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Conceição Ferreira; 2.º Adjunto: Rui Machado e Moura. [2] Consultável em www.dgsi.pt. [3] Veja-se o acórdão do TRG, proferido em 13-02-2020, no âmbito do processo n.º 711/15.6T8VVD.G1, consultável em www.dgsi.pt. [4] Veja-se o acórdão do STJ, proferido em 09-04-2003, no âmbito do processo n.º 036344, consultável em www.dgsi.pt. [5] Consultável em www.pgdlisboa.pt. [6] Vejam-se, em igual sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 374/03, proferido no âmbito do processo n.º 480/98, consultável em www.pgdlisboa.pt; e n.º 218/2020, proferido no âmbito do processo n.º 397/2019, consultável em www.tribunalcontitucional.pt. [7] Consultável em www.dgsi.pt. [8] Consultável em www.dgsi.pt. [9] Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 592-593. [10] Veja-se Acórdão do TRG, proferido em 04-10-2018, no âmbito do processo n.º 1716/17.8T8VNF.G1, consultável em www.dgsi.pt. |