Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
895/16.6T8BJA.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ILEGITIMIDADE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - tendo a ação por objeto a anulação do contrato de compra e venda com fundamento no regime legal inserto no artigo 877.º do CC (venda a filhos ou netos), o litígio existente entre a filha dos vendedores/irmã do comprador e este não pode ser definitivamente composto sem a presença na ação de todos os outorgantes do referido contrato;
- a relação jurídica material controvertida impõe, neste caso, o litisconsórcio necessário de todos os intervenientes no contrato, sob pena de ilegitimidade, exceção dilatória de conhecimento oficioso;
- em sede de recurso não tem cabimento o incidente de intervenção de terceiro para sanar a preterição do litisconsórcio necessário.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Réu: (…)

Recorrida / Autora: (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual a Autora peticiona que seja anulada a venda realizada pela escritura pública de compra e venda lavrada em 11/09/2006 tendo por objeto o prédio urbano devidamente identificado, determinando-se o cancelamento do respetivo registo.

Alega, para tanto, que o Réu, seu irmão, munido de uma procuração passada pelos pais de ambos, celebrou o negócio consigo próprio, outorgando a escritura de compra e venda sem que nunca a Autora tenha dado o seu consentimento para o efeito. Apela ao regime inserto no artigo 877.º, n.º 2, do Código Civil.

O Réu contestou a ação, invocando a caducidade do direito exercido pela A., pugnando ainda pela improcedência da ação. Mais formula pedido reconvencional, a ser atendido em caso de procedência da ação, peticionando a condenação da Autora a pagar-lhe metade do valor pago pelo imóvel acrescido das benfeitorias.

Proferido que foi despacho saneador em sede de audiência prévia[1], inexiste nele menção à apreciação da (i)legitimidade das partes.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação procedente e o pedido reconvencional improcedente, conforme segue:
«Declaro anulado o contrato de compra e venda identificado no ponto 5 da matéria de facto, relativo ao prédio urbano sito na Rua do (…), n.º 30, na freguesia de Baleizão, concelho de Beja, encontra-se inscrito na matriz predial n.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja sob o n.º (…).
Ordena-se o cancelamento da inscrição relativa à aquisição, por compra, a favor de (…) e (…), na Conservatória do Registo Predial de Beja, constante da apresentação n.º (…), de 2006/09/14 referente ao prédio urbano sito na Rua do (…), n.º 30, na freguesia de Baleizão, concelho de Beja, encontra-se inscrito na matriz predial n.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja sob o n.º (…).
Condeno a Autora (…) a restituir ao Réu o montante de € 5.000,00, referente a metade do preço pago pelo Réu, (…), pela compra do referido prédio urbano.
Absolvo do pedido reconvencional a Autora, (…).
Condeno em custas o Réu, (…).
Condeno em custas, que se fixa em 1 unidade de conta, referentes ao pedido de litigância de má-fé o Réu, (…).»

Inconformado, o Réu apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que decrete a improcedência da ação. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. Tendo por base as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, os documentos juntos, considerando ainda uma correcta apreciação crítica destas, as regras da experiência comum, entende o recorrente deve impor-se a alteração da matéria de facto dada como provada alterando-se o ponto 13 para não provado;
2. É o que resulta dos excertos das mensagens citadas e das declarações transcritas supra e cujos depoimentos se mostram reproduzidos da seguinte forma:
A) Depoimento do Recorrente, (…) – declarações essas que foram gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal – CD1, que tiveram início no dia 18/10/2017 pelas 10:17:32 e terminaram pelas 10:38:44 e que em resumo se citaram.
B) Depoimento da Recorrida, … (declarações essas que foram gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal – CD1, que tiveram início no dia 18/10/2017 pelas 10:39:55 e terminaram pelas 11:11:20 e que em resumo se citaram.
C) Depoimento da testemunha, … (declarações essas que foram gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal – CD1, que tiveram início no dia 18/10/2017 pelas 11:16:54 e terminaram pelas 11:42:44 e que em resumo se citaram.
D) Depoimento da testemunha, … (declarações essas que foram gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal – CD1, que tiveram início no dia 18/10/2017 pelas 11:44:15 e terminaram pelas 12:04:38 e que em resumo se citaram.
E) Depoimento da testemunha, … (declarações essas que foram gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal – CD1, que tiveram início no dia 18/10/2017 pelas 12:05:29 e terminaram pelas 12:28:36 e que em resumo se citam).
F) Depoimento da testemunha, … (declarações essas que foram gravadas no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal – CD1, que tiveram início no dia 18/10/2017 pelas 12:29:17 e terminaram pelas 12:37:00 e que em resumo se citam).
3. Pelo que deverá dar-se como não provado que a Autora apenas teve conhecimento do acordo referido em 5, após o falecimento dos progenitores de ambas as parte;
4. Dando-se como provado que “A Autora, desde data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 2015 teve conhecimento do acordo referido em 5” e alterando-se, em consequência disso, o facto ali dado como provado;
5. Ao assim não decidir, não fez o Tribunal a quo um correcto julgamento da matéria de facto porque há uma clara discrepância entre a fundamentação e as declarações prestadas, tudo conjugado com os documentos juntos e a demais prova produzida;
Sem prescindir,
6. Apesar do contrato pelo qual a transmissão da propriedade foi validamente titulada ter sido a escritura pública de compra e venda celebrada a 11 de Setembro de 2006, os negócios que lhe estão na génese são o contrato de compra e venda designado de “contrato promessa de compra e venda” e a Procuração Irrevogável outorgada a favor do Recorrente, ambos a 19 de Agosto de 2002;
7. Pretendendo a Recorrida atacar a validade do negócio celebrado entre o Recorrido e os pais de ambos, impunha-se peticionar também, e com os mesmos fundamentos, a anulação daqueles dois dos contratos sob pena dos mesmos persistirem como válidos no ordenamento jurídico;
8. Ao não o ter feito, não poderá obter a anulação de uma escritura que apenas materializa o conteúdo daqueles, visto que caducou o direito que teve de, aceitando-se a sua versão dos factos, atacar a validade dos contratos anteriores, em particular da procuração utilizada para a realização da escritura;
9. A assim não se entender e a manter-se, por um lado, anulada a escritura pública, mas por outro, válida a procuração, nada impede o Recorrente de voltar a celebrar, consigo mesmo, nas mesmas condições, nova escritura pública tendo por objecto o urbano pelo preço de € 10.000,00;
10. Ao assim não decidir violou o Tribunal a quo o preceituado nos artigos 414.º, 607.º, n.º 4 e 5, 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, bem como dos artigos 265.º, n.º 3, 1170.º, n.º 2 e 1175.º do Código Civil;
11. Se Vossas Excelências, em face das conclusões atrás enunciadas:
A) Alterarem a resposta dada aos factos provados e, em consequência disso:
a) Derem como não provado o factos constante do ponto 13 da matéria de facto dada como provada;
b) Derem como provado, em substituição daquele que: A A., desde data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 2015 teve conhecimento do acordo referido em 5.
Sem prescindir, assim decidindo ou não,
B) Julgarem improcedente o pedido formulado pela Recorrida, farão uma vez mais serena, sã e objectiva JUSTIÇA

A Recorrida, em sede de contra-alegações, pugna pela improcedência do recurso mas, caso assim não se entenda, deve ser alterada a sua condenação a pagar € 5.000,00 ao Réu, pois nada recebeu do negócio realizado.

Recebidos os autos neste Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, foi proferido despacho convidando as partes a pronunciarem-se, querendo e em 10 dias, sobre a ilegitimidade passiva decorrente da preterição do litisconsórcio necessário passivo. Aludiu-se designadamente ao seguinte:
«Por via do disposto no artigo 33.º, n.º 2, do CPC, é necessária a intervenção de todos os interessados na ação quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. Sob pena de ilegitimidade na ação, o que constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso, que implica na absolvição do Réu da instância – cfr. artigos 33.º, n.º 1, 577.º, alínea e), 278.º, n.º 1, alínea d) e 608.º, n.º 1, do CPC. O que tem aplicação em sede de recurso – cfr. artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
(…)
Assinala o Recorrente que «a A. não foi parte no negócio. Não vendeu nada nem recebeu qualquer quantia por conta do preço.
Quem interveio no negócio foram os pais do Recorrente e da Recorrida pelo que, anulado o negócio integrará o imóvel o património daqueles e são estes os obrigados a restituir o preço recebido.
Equivale o mesmo a dizer-se que, tendo o pai falecido e nunca tendo havido partilhas pelo seu divórcio com a mãe, é o imóvel propriedade da mãe e da herança aberta por óbito dos pais da Autora e Réu.
E são estes dois patrimónios que terão de ser partilhados – primeiro o acervo patrimonial aberto com o divórcio; em segundo lugar o acervo hereditário aberto por óbito dos pais do A., caso a casa, no todo ou em parte, lhe venha a ser adjudicada. Não poderia nunca a Recorrida ser condenada a pagar, fosse a quantia de € 5.000,00, fosse a quantia de € 10.000,00, por não ser no seu património que aquele bem seria integrado» – cfr. fls. 148 verso e 149.

Apenas a Recorrida apresentou pronúncia sendo que, no que respeita à matéria colocada em audição, requereu a intervenção da progenitora de ambos, (…), da mulher do Réu à data da outorga da escritura de compra e venda e da atual mulher do Réu.

Assim, atentas as conclusões da alegação de recurso, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[2], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[3], são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do anteriormente apreciado[4]:
- da ilegitimidade e da intervenção processual de terceiros em sede de recurso;
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da falta de fundamento para a anulação da escritura pública de compra e venda.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. O prédio urbano sito na Rua do (…), n.º 30, na freguesia de Baleizão, concelho de Beja encontra-se inscrito na matriz predial n.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja sob o n.º (…).
2. Em 19 de Agosto de 2002, por escritura pública outorgada na Secretaria Notarial de Beja, (…) e (…), na qualidade de outorgantes, declararam que “(…) constituem bastante procurador seu filho, (…), casado, natural da freguesia de Santiago Maior, concelho de Beja, residente em (…) 6 21073 Hamburg, Alemanha, a quem conferem os poderes necessários para em nome deles mandantes, vender ou prometer vender, pelo preço e condições que entender, o prédio urbano sito na Rua do (…), n.º 30, sito na freguesia de Baleizão, concelho de Beja, inscrito na matriz sob o artigo (…); outorgando e assinando a respectiva escritura, receber o preço e do mesmo dar quitação, para assinar pelas cláusulas e condições que entender quaisquer contratos de promessa de compra e venda, para na Conservatória do Registo Predial competente requerer quaisquer actos de registo provisórios ou definitivos, assinando e praticando tudo o que se torne necessários aos indicados fins.”
3. Mais declaram que: “(…) lhe conferem poderes para junto da Caixa Geral de Depósitos, S.A., liquidar a hipoteca, registada na Conservatória do Registo Predial pela inscrição (…) que incide sobre o prédio atrás identificado. A presente procuração é conferida no interesse do mandatário, pelo que é irrevogável, só podendo ser revogado com o acordo expresso deste e não caduca por morte, interdição ou inabilitação do mandante (…)”; “(…) consentem na celebração, pelo procurador ora constituído, de quaisquer negócios consigo mesmo, seja em nome do próprio, seja em representação de terceiros.
4. Na mesma data, (…) e (…), prometeram por acordo, por escrito denominado “contrato de promessa de compra e venda”, com o Réu, a entrega do prédio urbano referido mediante a contrapartida de € 10.000,00, mais referindo que a outorga da escritura pública seria feita no prazo de 24 meses.
5. Em 11 de Setembro de 2006, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial da Notária (…), o Réu, por si e na qualidade de procurador dos seus pais, (…) e (…), declarou que “(…) pela presente escritura, em nome dos seus constituintes e pelo preço de dez mil euros, já recebido por aqueles vende a si próprio, o prédio urbano, destinado exclusivamente à habitação, sito na Rua do (…), n.º 30, na freguesia de Baleizão, concelho de Beja, descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja, sob a ficha número (…), de seis de Outubro de mil novecentos e oitenta seis, com a aquisição do referido prédio aí registada a favor dos vendedor, pela inscrição G-dois, inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), com o valor patrimonial tributável para efeitos de IMT e de selo de € 3.162,34.”.
6. A aquisição, por compra, a favor de (…) e (…), encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Beja, mediante a apresentação número (…), de 2006/09/14.
7. (…), progenitor das partes, faleceu no estado de divorciado, em Beja, no dia 19 de Janeiro de 2016.
8. Em 2000, (…) começou a ter dificuldades financeiras e não conseguia pagar a prestação do imóvel referido, nem prover ao sustento do agregado familiar.
9. O Réu assumiu o pagamento da referida prestação, bem como de outras despesas do seu pai, tendo comunicado a este que pretendia assegurar a aquisição da casa, entregando as respetivas quantias para algo que seria seu.
10. O Réu entregou as verbas necessárias para o pagamento de todas as despesas do imóvel em causa, prestações incluídas, até 2006, ano em que se liquidou a totalidade do crédito.
11. Em 2006, o Réu transferiu para o seu nome os acordos relativos ao fornecimento de água e energia elétrica, sendo que os pagamentos eram efetuados nos serviços próprios, através do envio de dinheiro por parte do Réu para o seu pai.
12. O Réu efetuou obras, não concretamente apuradas, no prédio urbano referido.
13. A Autora apenas teve conhecimento do acordo referido em 5., após o falecimento dos progenitores de ambas as partes.
14. A presente ação foi proposta em 23 de Maio de 2016.
15. O valor patrimonial do prédio referido é de € 45.133,72, determinado em 2015.

B – O Direito

Da ilegitimidade e da intervenção processual de terceiros em sede de recurso

Sendo a legitimidade o poder de gestão, relativamente ao concreto processo, sobre determinada pretensão material, nos termos do disposto no artigo 30.º do CPC vai aferir-se a legitimidade pela titularidade do interesse direto em demandar (legitimidade ativa) e pelo interesse direto em contradizer (legitimidade passiva). Este interesse tem por base a posição subjetiva da pessoa perante a relação controvertida ou seja, a relação do sujeito com o concreto objeto da causa, pelo que se distingue do mero interesse (objetivo) em agir «traduzido na necessidade objetivamente justificada de recorrer à ação judicial.»[5]

«A legitimidade processual é (...) uma qualidade da parte determinada pela titularidade de um conteúdo referido a um certo pedido.»[6]

«Há ilegitimidade quando se verifica uma disparidade entre os titulares dos interesses em conflito, ou das posições na relação jurídica, e as partes ou sujeitos da relação jurídica processual.»[7]

Para identificar os titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade, a lei fixou, supletivamente, o princípio da coincidência da titularidade da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor, com a legitimidade – artigo 30.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Casos há, porém, em que por força da lei ou do negócio em causa, se exige a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, sob pena de ilegitimidade – cfr. artigo 33.º, n.º 1, do CPC. É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal – cfr. artigo 33.º, nº 2, do CPC. A decisão produz esse efeito sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado – cfr. artigo 33.º, n.º 3, do CPC.

«Não se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais.
A pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas ações de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcela.»[8]

Nas palavras de Anselmo de Castro[9] «o que se pretende é que não sejam proferidas decisões que praticamente venham a ser inutilizadas por outras proferidas em face dos restantes interessados, por virtude de a relação jurídica ser de tal ordem que não possam regular-se inatacavelmente as posições de alguns sem se regularem as dos outros.» Neste sentido, Antunes Varela[10] inclui no litisconsórcio necessário as relações indivisíveis por natureza, que têm de ser resolvidas de modo unitário para todos os interessados, sem a presença dos quais a decisão não conduziria a nenhum efeito útil, como nas ações constitutivas em que a falta de alguns deles poria em causa a globalidade da própria relação jurídica; e bem assim aquelas em que só a intervenção de todos produzirá, não apenas algum efeito útil, mas ainda o considerado normal, definindo a situação concreta entre as partes, de tal modo que não possa vir a ser inutilizada por outros interessados a quem a decisão não seja oponível, como em casos de limitação de indemnização por responsabilidade objetiva.

No caso em apreço, o contrato cuja anulação vem peticionada foi celebrado entre (…), entretanto falecido, e (…), por um lado (os vendedores) e o réu (…), por outro (o comprador). Na verdade, embora celebrado pelo R. (…) consigo mesmo, o negócio foi outorgado em nome e em representação de (…) e (…), conforme procuração (irrevogável e que não caduca com a morte, conforme documento junto) por estes emitida em favor de (…). Por conseguinte, os efeitos jurídicos decorrentes do negócio cuja validade aqui está colocada em causa repercutem-se diretamente na esfera jurídica de … (dos seus herdeiros, atenta a data da sua morte) e de …. A ação não pode correr termos à revelia de sujeitos intervenientes (ainda que por intermédio de representantes) no negócio.

Por conseguinte, o litígio existente entre a A. … (filha dos vendedores e irmã do comprador, que alega não ter dado o consentimento para que se realizasse a venda), e o R. … (filho dos vendedores e comprador) não pode ser definitivamente composto sem a presença na ação de todos os outorgantes do referido contrato, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar. A relação jurídica material controvertida impõe, portanto, o litisconsórcio necessário de todos os intervenientes no contrato.

Verifica-se, assim, a ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário passivo, exceção dilatória de conhecimento oficioso. O que implica na absolvição do Ré da instância, ainda que em fase de recurso – cfr. artigos 33.º, n.º 1, 577.º, alínea e), 578.º, 278.º, n.º 1, alínea d), 608.º, n.º 1 e 663.º, n.º 2, do CPC.

Embora se trate de falta de pressuposto processual suscetível de sanação, certo é que apenas até ao termo da fase dos articulados é que pode ser requerido o chamamento para intervenção de terceiro no caso de ocorrer preterição do litisconsórcio necessário – cfr. artigo 318.º, nº 1, alínea a), do CPC. Por conseguinte, não pode o incidente processar-se em sede de recurso.

Cabe, pois, absolver o Réu da instância por ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário passivo.

Com o que resulta prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

Relativamente à instância reconvencional, contudo, cabe notar que o segmento absolutório inserto na sentença proferida em 1.ª Instância transitou em julgado, pois não se trata de matéria versada nas alegações de recurso apresentadas.[11]

As custas recaem sobre a Autora – artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC.

Concluindo: (…)


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela revogação da decisão recorrida, absolvendo-se o Réu da instância.

Custas pela Autora.

*

Évora, 24 de maio de 2018
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Cfr. fls. 81 e seguintes.
[2] Cfr. artigos 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[3] Cfr. artigo 608.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC.
[4] Artigo 608.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC.
[5] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 134.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a Legitimidade Processual, p. 91.
[7] Castro Mendes, Direito Processual Civil, II vol. P. 224 e 225.
[8] CPC Anotado, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, vol. 1.º, p 78.
[9] Direito Processual Civil Declaratório, 2.º vol. 1982, p. 199.
[10] RLJ, 117.º, p. 380 e seguintes.
[11] Cfr. Ac. STJ de 09/11/2017.