Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
167/20.1T9GDL-A.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
ALEGAÇÃO DE FACTOS QUE FUNDAMENTEM O RISCO
RECEBIMENTO DA PROVIDÊNCIA
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O juízo indiciário a realizar pelo JIC quando chamado a apreciar a aplicabilidade da medida cautelar de arresto preventivo deverá suportar-se na factualidade objetiva invocada pelo requerente da providência: quanto à probabilidade séria da existência do direito basta a alegação e prova dos factos que apontem para a aparência da sua existência; no que tange ao receio de perda da garantia patrimonial, exige-se que se verifique que o mesmo seja justificado e de alguma forma exteriormente manifestado, o que deverá ser aferido casuisticamente.
II - Porém, o Tribunal não pode levar a sua exigência de aferição tão longe que retire sentido e efeito útil à providência, sendo que não são apenas as atitudes predeterminadas e intencionais do devedor, concretizadas com o propósito de frustrar a realização do crédito, nomeadamente alienando ou dissipando bens do seu património, que justificam a medida cautelar de arresto preventivo, podendo existir outro circunstancialismo que fundamente o risco subjacente à previsão legal da providência e que justifique o seu decretamento.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de arresto preventivo que constituem o apenso A dos processo de inquérito que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de …-J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 167/20.1T9GDL, em 02.11.2022, foi proferido despacho indeferindo liminarmente a providência cautelar de arresto preventivo de um imóvel propriedade do arguido AA, concretamente do prédio urbano sito na Rua …, ….

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Inconformada com tal decisão, veio a requerente, BB, interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“a) O decretamento do arresto preventivo depende da probabilidade da existência do crédito e da existência de justo receio de que o devedor inutiliza, oculte, se desfaça dos seus bens, que em princípio integram a garantia do credor:

b) Quanto ao requisito da probabilidade da existência de um direito de crédito, o legislador não exige a prova da verificação efetiva desse crédito, mas tão-só que seja provável a existência do mesmo.

c) O critério do legislador é o da aparência de um direito do credor, não se afigurando necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero "fumus boni juris", ou seja, que o direito se apresente como verosímil. Também, quanto ao "periculum in mora" não é necessário que exista certeza de que a perda da garantia se vai tornar efectiva com a demora, bastando que se verifique um justo receio de tal perda vir a concretizar-se.

d) Em matéria de procedimentos cautelares a lei contenta-se com a aparência de realidade do direito invocado, ou seja, com um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança. Trata-se de formular um juízo de valor sobre matéria de facto apoiado em simples critérios próprios do homo prudens, em presunções naturais ou de experiência.

e) Quanto ao fundado receio de perda da garantia patrimonial consubstancia-se no perigo de serem praticados atos de ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do devedor — não sendo necessária a prova de qualquer conduta dolosa ou fraudulenta nesse sentido — até que o credor obtenha um título executivo que lhe permita atingir o património do devedor. O justo receio da perda de garantia patrimonial pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito.

f)Corre termos o processo de inquérito n. 2 167/20.1T9GDL, em que são arguidos CC e AA, na sequência de uma denúncia apresentada pela aqui recorrente, por crime de burla informática, infidelidade, e abuso de confiança.

g) A aqui recorrente é neta e única herdeira da ofendida DD.

h)DD, ofendida e avó da recorrente, no ano de 2012 tinha 79 anos e encontrava-se incapacitada, acamada e posteriormente, em 2013, internada num lar da Santa Casa da Misericórdia. Desde 2013 que a ofendida não se levantava da cama, no Lar onde residia.

i) Era a arguida que se encontravam encarregue de cuidar da ofendida, e que decidiu colocá-la num Lar quando esta ficou incapacitada de se movimentar totalmente. Era também a arguida que tinha acesso às contas bancárias da ofendida unicamente para realizar pagamentos (despesas de saúde, essencialmente).

j) Os arguidos, em comunhão de esforços, apropriaram-se do cartão de multibanco da ofendida, e, fazendo uso como sendo seu, realizaram inúmeros levantamentos e transferências bancárias, no período que mediou Junho de 2012 e Janeiro de 2017.

k) Os levantamentos eram realizados em Máquinas ATM localizadas em estabelecimentos de jogos de sorte e azar (casinos, bingos, etc).

l) O cartão de multibanco era também utilizado para efetuar compras em locais de pronto a vestir, diversão, supermercados, carregamentos de telemóveis, e restaurantes, que totalizam a quantia de € 65.324,60.

m) Os arguidos realizaram, também, inúmeras transferências para uma conta bancária com o N. …, cujo titular é o arguido AA, e que totalizam o montante de € 33.370,00, Bem como um pagamento com cartão de crédito no valor de € 2.500,00.

n) Para além disso, os arguidos estavam encarregues de receber as rendas, depositar na conta da falecida e dar a respetiva quitação, referentes a dois imóveis propriedade da ofendida.

o) Acontece que os arguidos, no período entre Junho de 2012 e Janeiro de 2017, depositaram as rendas na conta N. … também da … pertencente ao arguido AA, no montante mensal de 300,00 (trezentos euros).

p) Para além desses valores subtraídos da Conta Bancária do Banco …, que totalizam o valor de € 101.194,60, há ainda a fundada suspeita de que os arguidos também movimentaram a conta bancária da ofendida junto do Banco …, cujos extratos ainda não foram disponibilizados por aquela entidade bancária, embora o Ministério Público já tenha intimado a referida entidade nesse sentido por duas vezes.

q) Assim, há fundada suspeita de que o valor total que os arguidos subtraíram das contas bancárias da ofendida ascenda a um valor muito superior aos cerca de € 100.000,00 já apurados.

r) A ofendida encontrava-se a residir num Lar, acamada e impossibilitada de se movimentar, desde 2012, conforme o relatório do Lar da Santa Casa da Misericórdia de … junto aos autos, a únicas pessoas que tinham acesso à conta bancária da ofendida era a sua cuidadora e o marido desta (os dois arguidos), e todas as compras efetuadas foram em beneficio dos mesmos, uma vez que a ofendida não consumia qualquer produto que não fosse disponibilizado pelo Lar, muito menos conseguia movimentar-se e deslocar-se a Casinos (nomeadamente na …) para jogar. Para além disso, e conforme prova fotográfica junto aos autos, os arguidos têm fotos em Casinos, recebendo prémios de clientes habituais.

s) Tendo em conta o montante elevado que os arguidos subtraíram da conta da ofendida, a idade do arguido, que já conta com mais de … anos, a inexistência de outros bens propriedade dos arguidos, e a morosidade do processo, a recorrente tem um justo receio de que o arguido se desaposse do único bem de que é titular com vista à dissipação do seu património, em prejuízo dá recorrente, que, desse modo, verá afastada qualquer possibilidade de satisfazer o seu crédito.

t) Para além disso, os arguidos usaram grande parte do dinheiro da ofendida em casinos, bingos e outros estabelecimentos de sorte e azar, indiciando que os mesmos padecem de um vício de jogo, contribuindo esse facto, determinantemente, para o aumento do risco de dissipação do património do arguido.

u) Na verdade, e como já se referiu, quanto ao requisito da probabilidade da existência de um direito de crédito, o legislador não exige a prova da verificação efetiva desse crédito, mas tão-só que seja provável a existência do mesmo. O critério do legislador é o da aparência de um direito do credor, não se afigurando necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero "fumus boni juris", ou seja, que o direito se apresente como verosímil.

v) O que o Tribunal a quo parece na sua fundamentação exigir para considerar preenchido o requisito da aparência do direito é uma certeza absoluta existência deste, o que se mostra contrário à ratio dos procedimentos cautelares.

w) Em boa verdade, as providências cautelares têm na sua ratio a necessidade do credor, antes de obter sentença condenatória do devedor, invocar a verosimilhança do seu direito e, com isso, conseguir impedir um dano irreparável futuro que só ocorrerá com a condenação do credor, se esta vier a ocorrer.

x) Dito isto, e tendo em conta que era a arguida (sobrinha da ofendida) a responsável por cuidar da ofendida, apenas os arguidos tinham acesso à conta da ofendida (facto que em mais de 2 anos de inquérito nenhum dos arguidos veio negar), que a ofendida se encontrava acamada e sem capacidade de se movimentar, que eram os arguidos que visitavam a ofendida no Lar, não tendo esta qualquer outra visita de familiares exceto da neta e ora recorrente, que os arguidos pediram e receberam dos inquilinos as rendas dos imóveis propriedade da ofendida diretamente na sua conta, que há registo nos extratos de movimentações diárias e recorrentes em casinos (por todo o país), que os arguidos são conhecidos jogadores de jogos de sorte e azar, havendo inclusive fotografias dos mesmos a receber prémios de clientes habituais, e que há transferência diretas da conta da ofendida para a conta do arguido, outra conclusão não se poderá retirar, através de um juízo de valor apoiado em simples critérios próprios do homo prudens, em presunções naturais ou de experiência, de que há efetivamente uma aparência do direito de crédito da recorrente sobre os arguidos.

y) Para além disso, no processo de inquérito que corre termos, há outra queixa idêntica apresentada por EE contra os arguidos por factos idênticos. Os arguidos são denunciados por EE por se terem apropriado do cartão de multibanco do seu pai, enquanto este estava aos cuidados dos arguidos, e terem subtraído 50.000,00 Euros. Aliás, a própria arguida assinou uma confissão de dívida em que reconhece dever a EE 50.000,00 Euros.

z) Infere-se que já não é a primeira vez que os arguidos são denunciados por factos idênticos, e sempre com o mesmo modus operandi, apropriarem-se de cartões de multibanco de pessoas idosas que estavam sobre o seu cuidado e utilizarem as suas contas bancárias como sendo suas.

aa) Assim, deve ser considerado que o requisito do "fumus bonis iuris" se encontra preenchido.

bb) Na verdade, o arguido com a conduta plasmada nos autos (subtração de dinheiro para jogos de sorte e azar) demonstra um muito provável vício de jogo, o que aumenta substancialmente o perigo do mesmo dissipar património para conseguir liquidez que alimente o seu vício.

cc) Para além disso, e como já referido, quanto ao fundado receio de perda da garantia patrimonial consubstancia-se no perigo de serem praticados atos de ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do devedor — não sendo necessária a prova de qualquer conduta dolosa ou fraudulenta nesse sentido — até que o credor obtenha um título executivo que lhe permita atingir o património do devedor. O justo receio da perda de garantia patrimonial pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito.

dd) Não é, pois, necessário que o arguido tenha realizado atos tendentes à dissipação do seu património, mas apenas que haja perigo de o vir efetivamente a fazer, com grave prejuízo para a recorrente.

ee) Entende a recorrente que, na pendência da acção principal, o arguido pode vir a dissipar património com o intuito de o mesmo não responder por eventual condenação, ou, com o intuito, provável, de necessitar de dinheiro para apostar em casinos. E esse risco aumenta com a factualidade do mesmo não ter filhos, sendo sua única herdeira a arguida, sua mulher.

ff) Para além disso, o arguido tem … anos, não compreendendo a recorrente a fundamentação do Tribunal a quo que sustenta que não advém da idade do arguido um maior risco do mesmo vir a falecer na pendência da acção do que um cidadão médio. O arguido já ultrapassou a esperança média de vida dos indivíduos do sexo masculino, havendo grande probabilidade de que o seu falecimento aconteça com brevidade superior a um cidadão médio.

gg) Também, quanto ao "periculum in mora" não é necessário que exista certeza de que a perda da garantia se vai tornar efectiva com a demora, bastando que se verifique um justo receio de tal perda vir a concretizar-se.

hh) Afigura-se à recorrente outra conclusão não ser possível de retirar, com os factos constantes nos autos, e a prova carreada para o processo, da existência de justo receio de que o arguido inutilize, oculte, se desfaça dos seus bens, que em princípio integram a garantia do credor, colocando este último na impossibilidade total de vir a ser ressarcido.

ii) Assim, deve ser considerado que o requisito do "periculum in mora" se encontra preenchido.”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra na qual deverá ser “decretado o arresto preventivo do imóvel sito na Rua … e propriedade do arguido”.

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Por despacho proferido em 24.11.2022, o recurso foi admitido, tendo sido decidido em tal despacho – por aplicação analógica do disposto no artigo 641º, nº 7 do CPC – não se determinar o cumprimento do disposto no artigo 411º, nº 6 do CPP por se ter entendido que as notificações aí previstas poderiam pôr em causa a eficácia da medida requerida caso o recurso viesse a ser julgado procedente e o arresto preventivo viesse a ser decretado.

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O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação, tendo tido vista dos autos, nos termos do artigo 416.º, n.º 1 do CPP, apôs o seu visto.

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Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber:

- Determinar se a decisão recorrida, ao indeferir liminarmente o requerimento apresentado pela assistente de arresto preventivo de um imóvel do arguido, desrespeita, ou não, os critérios definidos na lei para o recebimento de tal providência.

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II.II - A decisão recorrida.

Após a apresentação pela assistente, em 02.11.2022, da resposta ao convite ao aperfeiçoamento do seu requerimento de arresto preventivo, foi, na mesma data, proferida pelo tribunal “a quo” a decisão recorrida com o seguinte conteúdo:

“(…) Veio BB requerer contra AA se decrete o arresto preventivo do (direito de propriedade do) prédio urbano sito na Rua …, …, e cuja melhor identificação remete para Certidão Permanente, de que junta uma cópia datada de 5-6-2021.

Alegou, em suma, mesmo após convite a aperfeiçoamento, que é única herdeira de DD, sua avó, falecida em 18 de Fevereiro de 2020. E nessa qualidade, após ter obtido acesso aos elementos bancários da mesma, detectou terem sido efectuadas numerosas transferências e pagamentos, que nunca concretiza, em datas e ocasiões que também não concretiza, mas que terão no seu conjunto, valor super autos principais, de inquérito (presume-se que se refira a CC), conjuntamente com o arguido AA, movimentou a conta bancária da quem, não se sabe, nem em que condições) montantes de rendas devidas à avó da requerente em conta daquele.

Para fundar o justo receio de perda de garantia patrimonial, alega que o arguido já tem … anos, que nenhum dos arguidos tem outros bens, e que o inquérito se já arrasta há mais de 2 anos, pelo que é provável que ou o arguido venha a falecer antes da sentença condenatória, ou que o arguido se desaposse do único bem de que é titular com vista à dissipação do seu património cfr. fls. 3, verso.

Requer o arresto do imóvel supra aludido, na totalidade do direito (sendo metade a título titular do quinhão hereditário por morte de sua mãe (sendo metade a título próprio e outra metade como titular do quinhão hereditário por morte de sua mãe)

Para tanto indica como prova para além um documento, o depoimento de uma testemunha.

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O arresto preventivo, previsto em sede de processo penal, rege-se pelas regras do processo civil artigo 228º, número 1, do Código de Processo Penal.

Cumpre apreciar liminarmente.

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1. Da legitimidade da requerente.

Nos termos do disposto no artigo 30º, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

O interesse em contradizer advém do prejuízo causado à parte pela procedência da acção.

Nos presentes autos, o interesse da requerente advém de ser única herdeira da ofendida DD, qualidade esta comprovada pela habilitação de herdeiros que, pese embora não tenha sido junta neste apenso, se encontra junta aos autos como doc. número 3 apresentado aquando a queixa.

Admitindo-se a aceitação de tal herança por parte da requerente (facto que esta não aduz, mas se subentende do teor do requerimento inicial), a mesma tem legitimidade para reclamar direitos da mesma (artigos 2079º, 2088º, 2089º e 2091º número 1 do Código Civil).

Nesta medida, e ressalvando-se que o conceito de legitimidade para a constituição de assistente, assentando como assenta no conceito de legitimidade processual penal (artigo 68º do Código de Processo Penal), não coincide necessariamente com a legitimidade para requerer a aplicação de medidas de garantia patrimonial , que no caso do arresto preventivo, segue segundo o regime jurídico processual civil (artigo 228º, número 1, do Código de Processo Civil), a requerente, por ter interesse direto em demandar, é parte legítima no presente procedimento.

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2. Do indeferimento liminar.

O Código de Processo Penal consagra no seu artigo 228º a possibilidade de se proceder ao arresto preventivo de bens do arguido ou do responsável civil, o qual todavia se processará nos termos da lei civil, obedecendo aos seus requisitos substantivos e processuais.

Consagrado no Código Civil (artigos 619º a 622º) e no (novo) Código de Processo Civil (artigos 391º a 396º), o arresto, segundo os artigos 619º, número 2 do primeiro dos diplomas, e 391º, números 1 e 2, do segundo dos diplomas, consiste numa apreensão judicial de bens do devedor, ou de bens transmitidos pelo devedor a um terceiro, requerida pelo credor que demonstre a probabilidade da existência do seu crédito e tenha justo receio de perda da sua garantia patrimonial.

Com este mecanismo, os bens do devedor são apreendidos, congelados, com vista a manutenção e salvaguarda da garantia patrimonial do credor e do seu respectivo direito.

O arresto em si consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora artigo 391º, número 2, do Código de Processo Civil e 622º, número 2, do Código Civil.

Os procedimentos cautelares justificam-se pela necessidade de obter uma composição provisória da situação controvertida antes de ser proferida a decisão definitiva, para assegurar a utilidade da decisão e a efectividade da tutela jurisdicional em obediência ao disposto no artigo 2.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, encontrando o seu fundamento constitucional na garantia do acesso ao direito e aos tribunais, constitucionalmente consagrada no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Como se sabe, em processo civil todo o pedido assenta em factos. Há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz à margem da aplicação da lei por averiguação de acontecimentos cuja existência ou não existência não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica.

É às partes que, em primeira linha, compete moldar a realidade fáctica da causa. Ao Tribunal, como órgão imparcial, apenas é pedido que se pronuncie. Mas a matéria sobre que se pede a pronúncia é exterior a este.

Com efeito, o juiz só pode servir-se dos factos nucleares articulados pelas partes artigo 5º, proemio, do Código de Processo Civil.

Os articulados são as peças processuais, de suporte escrito, onde as partes, além do mais, fazem narrar os factos que pretendem trazer aos autos do processo. Na petição inicial (no caso, requerimento inicial), há-de o autor expor os factos que servem de fundamento à acção (cfr. artigo 552º do Código de Processo Civil).

Estes factos narrados pelo autor hão-de ser, no mínimo, os essenciais e constitutivos da acção (cfr. artigo 342º, nº 1 do Código Civil) e hão-de permitir reconhecer uma causa de pedir, sob pena de ter lugar um vício processual completo (cfr. art. 186º, número 2, al. a) do Código de Processo Civil).

A causa de pedir pode definir-se como o conjunto de factos essenciais com a vocação de, uma vez verificados, serem capaz de enquadrar uma certa norma jurídica de carácter substantivo e assim conseguirem fazer produzir o efeito jurídico-material estatuído naquela norma.

Nas providências cautelares, ainda que decididas sem audição prévia do requerido, aplica-se o mesmo princípio: é ao requerente que cumpre trazer ao Tribunal a matéria de facto

As providências cautelares podem ser conservatórias ou antecipatórias, visando as primeiras acautelar o efeito útil da acção principal, assegurando a manutenção da situação que existia quando se iniciou o litígio e as segundas antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal.

Estas finalidades concretizam a relação de dependência e instrumentalidade que caracteriza a providência cautelar em relação à acção principal pendente ou a instaurar, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva (artigo 362º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Dispõe o artigo 391.º do Código de Processo Civil que «O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu credito pode requerer o arresto de bens do devedor.»

Quanto à demonstração da existência do direito é pacífico que basta demonstrar uma mera probabilidade séria da existência do direito (A. dos Reis, Código do Processo Civil Anotado, I, pág. 620), ou seja «basta que sumariamente (sumaria cognitio) se conclua pela séria probabilidade da existência do direito invocado (fumus boni juris) e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora).» (Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Volume III, 3.ª edição, pag. 241).

Ora, analisada a factualidade que, nessa perspectiva, foi alegada no requerimento inicial e no requerimento de resposta ao convite de aperfeiçoamento (fls. 2-4- e 14-18), afigura-se-nos que a outra conclusão se não pode chegar que não seja a insuficiência de factualidade bastante de onde se possa concluir no sentido da verificação do requisito em análise.

Como já se referiu, salta à vista a natureza conclusiva e inespecificada do alegado nos artigos 8º a 20 do alegado no requerimento inicial. Matéria esta que não é concretizada no requerimento de fls. 14-18, basta atentar no teor do artigo 31º (Que saídas de valores considera a requerente anormais? Quando saíram? De que maneira?), 34º a 4\1º (Quando foram feitos tais pagamentos? Que que forma? Por quem?), 49º (Quem efectuou tais transferências? Quantas transferências? Quais as circunstâncias em que foram efectuadas? Quando?) e 53º (em que actos concretos se baseia a requerente para chegar a tal quantia?).

O alegado destina da forma que o vem, não é suficiente aos propósitos da providência, na medida em que não se narra quem fez o quê, quando, e como.

Não se sabe quantas vezes foram praticadas as condutas, por quem, nem onde, nem em que data. Apenas se apontam prejuízos, mas com base no que vem alegado, mantêm-se inespecificadas as acções que lhes deram lugar.

A requerente limita-se a aludir a suspeitas, assentes num silogismo pouco explicado em que, se por um lado eram os arguidos que cuidavam da sua falecida avó, foram eles os responsáveis por tais movimentos e transferências, ainda que fique por se saber quem fez exatamente o quê, quando e como, afim de se poder assacar responsabilidades concretas.

Não existe no alegado qualquer substracto factual donde se possa assacar, ainda que indiciariamente, um dever de indemnizar aos arguidos, o que se compreende na medida em que, conforme admite a requerente, o inquérito ainda se encontra em curso e o Ministério Público ainda não se pronunciou sobre a factualidade denunciada (designadamente, no que toca à suficiência ou insuficiência dos indícios que permitam alvitrar a sua posterior demonstração).

E obviamente, até tendo em conta o princípio do dispositivo, que rege o presente procedimento (artigos 228º, número 1, do Código de Processo Penal, e 5º, número 1, do Código de Processo Civil) não cabe ao tribunal respigar os autos de inquérito e dele retirar e transcrever os factos nucleares de que depende a procedência do pedido da requerente, apenas a esta assistindo o direito de o fazer. Caso o fizesse, aliás, a sua independência passaria a ser inevitavelmente questionável, pois praticaria de livre mote acção cujo ónus compete à parte.

De resto e conforme foi dito pelo Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 25-5-2020, proc. número 217/18.1T8MTA.L1-2, in www.dgsi.pt., com o qual inteiramente se concorda:

I) O princípio do dispositivo, consagrado no art.º 3.º do CPC, além de fazer impender sobre os interessados o ónus da iniciativa processual, estende-se à conformação do objecto do processo integrado, não só pela formulação do pedido, como ainda pela alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento.

II)De acordo com tal princípio, a lei faz recair sobre a parte onerada com o ónus da prova os meios necessários a convencer o Tribunal da realidade dos factos alegados.

III) O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.

IV) Não pode o juiz ao abrigo do princípio do inquisitório suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e postergar o princípio da auto-responsabilização das partes.

Ainda,

Para aferição do requisito respeitante ao justo e fundado receio necessária se torna a "alegação de factos objectivos, concretizadores e indiciadores de um receio forte, justo, fundado", ou seja "dos factos consubstanciadores de verificação eminente de um dano provável futuro e não de um dano ou lesão já verificados".

O justo receio “pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito” (Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. IV, pag.174).

Ainda, o receio do credor, para ser considerado justo, há-de assentar em factos concretos, que o revelem à luz de uma de uma prudente apreciação; não basta o receio subjectivo, porventura exagerado, de ver insatisfeita a prestação a que tem direito - Jacinto de Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de processo Civil, vol.II, pág. 191.

Como foi dito pelo Tribunal da Relação do Porto em acórdão de 26/11/2001, proc. número 0151443, in www.dgsi.pt Para haver justo receio da perda de garantia patrimonial não basta um temor crédito tem elevada probabilidade, em função da situação e comportamento do devedor.

Ora, analisada a factualidade que, nessa perspectiva, foi alegada no requerimento inicial e no requerimento de resposta ao convite de aperfeiçoamentos (fls. 2-4- e 14-18), afigura-se-nos, também neste tocante, que a outra conclusão se não pode chegar que não seja a insuficiência de factualidade bastante de onde se possa concluir no sentido da verificação do requisito em análise.

Na realidade, a requerente não alega factualidade concreta donde se possa retirar o justo receio de perda da garantia patrimonial, bastando-se com juízos conclusivos baseados na idade do arguido e na inexistência de outros bens de propriedade de ambos os arguidos, no sentido de, a ser provado, poder o tribunal concluir pela existência de um justo receio de que os mesmos não pagarão a quantia a que venham a ser condenados (se o vierem a ser).

O facto de o arguido já ter … anos por si só não pode fundar tal receio, porquanto pese embora a possibililidade de decesso seja efectivamente maior, pela ordem natural biológica, com o avanço da idade, no caso concreto e excluindo esse facto, nada existe que leve a concluir por uma maior probabilidade relativamente ao arguido que ao cidadão médio, sendo também que são conhecidos amplamente casos de bem maior longevidade por numerosos indivíduos. E quanto à arguida, nada se alega a este respeito.

Por outro lado, não vem alegado qualquer acto de dissipação de património, nem qualquer acção que leve a concluir que o arguido tenha em mente alienar o dito bem imóvel, sendo até plausível que, no caso se não ser único herdeiro de metade do mesmo (o que a requerente também não esclarece cabalmente) tenha que realizar partilhas prévias a qualquer alienação total, o que certamente dificultaria de sobremaneira tal iniciativa.

Na verdade, o receio da perda ou do perigo de perda da garantia patrimonial do requerente de uma providência de arresto tem de revelar-se como sério, dependente da realização de prova positiva resultante de factos concretamente alegados e de onde se possa concluir por essa mesma perda e/ou receio de perda de garantia patrimonial, que é objecto de protecção pelo Direito.

Doutrina e jurisprudência maioritariamente concluem pela obrigatoriedade dos factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. I, pág. 684, Prof. Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. II, pág. 6; Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26.Março.1983, CJ, 1983, tomo III, pág. 132.

Assim sendo, julga-se, perante o relato conclusivo e alegação factual plasmada no requerimento inicial, não se mostrarem verificados os requisitos de que a lei faz depender a eventual procedência da providência intentada, mormente por se não verificar uma mera probabilidade séria da existência do direito e um justo receio de perda de garantia patrimonial, pelo que se indefere liminarmente a presente providência, artigo 590º, número 1, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 288º número 1, do Código de Processo Penal.(…)”

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

Compulsados os autos, constatamos que, para análise da questão que somos chamados a apreciar, relevam os seguintes factos de natureza processual:

- Corre termos o processo de inquérito nº167/20.1T9GDL, que constitui o processo principal de que estes autos são apenso, em que são arguidos CC e AA;

- Em tal inquérito, iniciado com uma queixa apresentada pela assistente/recorrente, investigam-se factos que poderão integrar a prática pelos arguidos dos crimes de burla informática, infidelidade e abuso de confiança que tiveram como ofendida DD.

- A recorrente é neta e única herdeira da ofendida DD, o que lhe assegura a sua qualidade de assistente.

- Em 11.10.2022 foi apresentado o requerimento, que deu origem ao presente apenso, de arresto preventivo de um imóvel do arguido, requerimento que, após ter sido proferido o despacho datado de 12.10.2022 convidando ao aperfeiçoamento, foi aperfeiçoado através do requerimento apresentado em 31.10.2022.

- Em 02.11.2022 foi proferida decisão de rejeição liminar do requerimento de arresto preventivo, que constitui a decisão recorrida.

*

Defende a assistente no seu recurso dever ser revogada a decisão recorrida porquanto, ao contrário do que na mesma se consignou, foram alegados factos relativos à provável existência do direito que se pretende acautelar e que é resultante da prática dos crimes investigados nos autos principais e, bem assim, factos relativos ao receio fundado de perda da garantia patrimonial de tal direito de crédito.

Vejamos se lhe assiste razão.

O arresto preventivo em processo penal – concretamente, o respetivo objeto, pressupostos, fins que visa assegurar e competência para o seu decretamento – encontra-se regulado no artigo 228º do CPP, nos seguintes termos:

“Artigo 228.º

Arresto preventivo

1 - Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial.

2 - O arresto preventivo referido no número anterior pode ser decretado mesmo em relação a comerciante.

3 - A oposição ao despacho que tiver decretado arresto não possui efeito suspensivo.

4 - Em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado.

5 - O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta.

6 - Decretado o arresto, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável, promovendo-se o subsequente cancelamento do mesmo quando sobrevier a extinção da medida.

7 - O arresto preventivo é aplicável à pessoa coletiva ou entidade equiparada.”

*

Por seu turno, o CPC regula o procedimento cautelar de arresto nos seus artigos 391º a 393º, que dispõem:

“Artigo 391.º

Fundamentos

1 - O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.

2 - O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.”

Artigo 392.º

Processamento

1 - O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.

2 - Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação.

Artigo 393.º

Termos subsequentes

1 - Examinadas as provas produzidas, o arresto é decretado, sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais.

2 - Se o arresto houver sido requerido em mais bens que os suficientes para segurança normal do crédito, reduz-se a garantia aos justos limites.

3 - O arrestado não pode ser privado dos rendimentos estritamente indispensáveis aos seus alimentos e da sua família, que lhe são fixados nos termos previstos para os alimentos provisórios.

*

Numa breve resenha sobre a natureza, os pressupostos e os objetivos que se visam acautelar com o arresto preventivo, importará registar que o mesmo é a medida de garantia patrimonial mais gravosa prevista no processo penal.

Pese embora as medidas de garantia patrimonial (a caução económica e o arresto preventivo) se aproximem das medidas de coação – ambas com assento legal no Livro IV do CPP, intitulado “Das medidas de coação e de garantia patrimonial” – justificando-se tal proximidade pelas finalidades cautelares a ambas subjacentes e pela similitude dos riscos que acarretam no que diz respeito à compressão dos direitos individuais dos visados, o certo é que as exigências de aplicação das medidas de garantia patrimonial, mesmo do arresto preventivo, se apresentam como menos rigorosas do que os requisitos de aplicação das medidas de coação, mormente das mais gravosas. (1) O que bem se compreende, pois que, na escala de valores constitucionais que importa tutelar, a perda do património, referenciada no artigo 62º, nº 1 da CRP e associada ao risco inerente à aplicação das medidas de garantia patrimonial, não é comparável à privação da liberdade, à qual alude o artigo 27º da CRP, causada pela aplicação da prisão preventiva.

Por outro lado, tal como nas medidas de coação, com a aplicação das medidas de garantia patrimonial não pode visar-se uma antecipação das consequências jurídicas do crime (2), mas apenas a garantia processual do seu cumprimento futuro, pois que o que está em causa são apenas as “exigências processuais de natureza cautelar” a que alude o artigo 191º, nº 1 do CPP. Daqui resulta que, balanceando os interesses individuais relativos ao direito de propriedade e os interesses coletivos atinentes à eficácia da perseguição criminal, a aplicação das medidas de garantia patrimonial, incluindo o arresto preventivo, que se prefigura como a mais gravosa, pressupõe a observância dos seguintes requisitos (3):

1 - Respeito pela taxatividade da sua previsão legal, significando que, no âmbito do processo penal, sob pena de violação do princípio da legalidade, só poderá lançar-se mão de uma das duas medidas de garantia patrimonial expressamente previstas e não de qualquer outro procedimento cautelar não especificado.

condenatórias, ou obviar à continuação da atividade criminosa ou perturbadora da ordem pública), em especial as decretadas em face de «fortes indícios da prática do crime» (vg. Artºs 200º e 202º do CPP (…)”.

2 - Verificação da necessidade da sua aplicação para garantir a conservação do património e a futura exequibilidade da decisão penal condenatória, pelo que só poderão decretar-se tais medidas quando existir fundado receio de perda da garantia patrimonial, devendo o requerente alegar e provar os factos que comprovem esse receio (periculum in mora).

3 - Adequação ou idoneidade da medida a aplicar para satisfazer as necessidades cautelares que no caso se façam sentir, devendo o JIC decretar a medida que se revele suficiente, dando sempre preferência às menos gravosas e garantindo dessa forma o respeito pelo princípio da subsidiariedade, sempre presente quando estão em causa restrições de direitos.

4 - Proporcionalidade da medida escolhida em relação à gravidade do caso concreto. Quanto ao respeito do princípio da proporcionalidade na aplicação destas medidas, refere João Conde Correia “(…)Para além da ponderação abstrata efetuada pelo legislador e já refletida nos comandos legais, o juiz deverá assim, considerando, designadamente, a duração da medida, a gravidade do crime imputado (…) o grau de indícios existente e as consequências daquela sobre o visado, verificar se a solução que lhe é apresentada é proporcional e consignar o seu juízo no respetivo despacho (…)”. (4)

Precisamente atendendo à restrição que acarreta aos direitos, liberdades e garantias das pessoas singulares ou coletivas constitucionalmente protegidos, atingindo o património lícito do visado, (ao contrário da medida de apreensão, que só atinge o património contaminado (5), a medida de arresto preventivo só pode ser decretada pelo juiz de instrução criminal, a quem o nº 1 do artigo 228º do CPP expressamente atribui tal competência.

Quanto ao juízo indiciário a realizar pelo JIC quando chamado a apreciar a aplicabilidade da medida cautelar de arresto preventivo, é consensual o entendimento segundo o qual o mesmo deverá suportar-se na factualidade objetiva invocada pelo requerente da providência (6). De facto, tal como sustenta a decisão recorrida, “(…) Nas providências cautelares, ainda que decididas sem audição prévia do requerido, aplica-se o mesmo princípio: é ao requerente que cumpre trazer ao Tribunal a matéria de facto que, uma vez indiciariamente provada, permitirão tribunal concluir pela existência do “fumus boni iuris” e do “periculum in mora”e assim provir ao pedido efetuado”.

De facto, as providências cautelares estão sujeitas à alegação e prova dos requisitos enunciados na lei. É, pois, necessário que o requerente invoque os factos nos quais faz assentar quer a séria probabilidade da existência do direito invocado, quer o justificado receio de que a demora na resolução definitiva do litígio lhe venha a causar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.

A jurisprudência tem entendido que quanto à probabilidade séria da existência do direito basta a alegação e prova dos factos que apontem para a aparência da sua existência, o que o Tribunal conhecerá em termos sumários. No que tange ao receio de perda da garantia patrimonial, exige-se que se verifique que o mesmo seja justificado; deverá existir um receio fundado e de alguma forma exteriormente manifestado, o que deverá ser aferido casuisticamente.

Porém, e não obstante dever certificar-se da existência de condições assentes em factos objetivos e concretos que façam antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito, o Tribunal não pode levar a sua exigência de aferição tão longe que retire sentido e efeito útil à providência.

Entre os fatores a ter em conta para aferição dos requisitos do arresto contam-se os relacionados com a situação económica do devedor, a sua maior ou menor solvabilidade, a atividade profissional desenvolvida, o próprio montante do crédito, os indícios de anterior dissipação ou ocultação de bens, a exiguidade do património do devedor – o risco aumenta se o património for pequeno para garantir o montante da dívida – ou facto de aquele se furtar ao contacto com o credor ou, de qualquer modo, denotar pretender eximir-se ao cumprimento da obrigação. Daqui resulta que, ao contrário do que parece inculcar a decisão recorrida, não são apenas as atitudes predeterminadas e intencionais do devedor, concretizadas com o propósito de frustrar a realização do crédito, nomeadamente alienando ou dissipando bens do seu património, que justificam a medida cautelar de arresto preventivo, podendo existir outro circunstancialismo que fundamente o risco subjacente à previsão legal da providência e que justifique o seu decretamento. (7)

Reforçando tal linha argumentativa, acrescentamos finalmente que a medida de arresto preventivo, como a solicitada nos autos, realizadas a coberto do regime processual estabelecido no artigo 228º do CPP, consubstancia uma ferramenta essencial para obviar aos riscos de ocultação e dissipação do património. Tal como eloquentemente refere João Conde Correia “Os arts. 227.º e 228.º, sob o título medidas de garantia patrimonial, constituem uma parte desprezada pela praxis jurídica quotidiana, mas importantíssima para a bondade da decisão penal (…) se no decurso do processo, tão cedo quanto isso seja possível, não forem tomadas as devidas cautelas patrimoniais, o veredictum será inexequível, tornando-se contraditório e incompreensível: pune o crime, mas permite que o condenado mantenha, algures, os seus proventos intactos, prontos para serem usufruídos mais tarde. (…) Aqueles que praticam o crime com o intuito de obter proventos económicos tudo farão para que eles não sejam, depois, retirados. É, por isso mesmo, necessário inverter a velha cultura judiciária, exclusivamente centrada na pena, dando a devida utilidade prática a estes mecanismos adjetivos (…). Em suma, o periculum in mora deverá resultar da avaliação global das circunstâncias objetivas e subjetivas concretas, considerando-se preenchido quando o juiz concluir pela existência de perigo de futura frustração da vertente patrimonial da sentença.” (8)

*

Na situação dos autos, pese embora a recorrente pareça confundir, na sua motivação de recurso, a fundamentação e o sentido da decisão recorrida com o que poderia ter sido a decisão final de mérito da providência (9), a verdade é que o que vem posto em causa na presente instância recursiva não é a decisão de não decretamento do arresto por falta de prova dos seus requisitos, mas sim a decisão de rejeição liminar do requerimento inicial da providência por falta de alegação dos factos sustentadores dos respetivos requisitos legais, uma vez que é este o conteúdo da decisão recorrida. Ou seja, o que importa apreciar é se no requerimento inicial de arresto se encontram presentes os pressupostos de que a lei faz depender o decretamento de tal medida de garantia patrimonial, tal como propugna a recorrente, ou se, ao invés, os mesmos não se encontram alegados, justificando-se, assim, a rejeição liminar do requerimento nos termos sustentados na decisão recorrida. Dito de outro modo, importa saber se a assistente, no seu requerimento, invocou factos concretos que sustentem o fundado receio de perda da garantia patrimonial relativa ao pagamento da indemnização ou de outras obrigações derivadas do crime imputado ao arguido, e que nos autos principais de inquérito se encontra em investigação, ou seja, factos dos quais seja possível retirar, no juízo perfunctório próprio dos procedimentos cautelares, o periculum in mora e o fumus boni iuris ou, numa linguagem penal, o fumus comissi delicti.

Ora, a análise do requerimento de arresto e do iter processual acima consignado não nos permite concluir nos termos em que concluiu a decisão sindicada, que, aliás, nos parece sustentada em conceitos estritamente civilistas e totalmente desligada da perspetiva processual penal à luz da qual não poderemos deixar de apreciar a medida em causa (10).

Com vista a melhor apurarmos a suficiência da alegação factual contida no requerimento inicial, analisemos concretamente e mais de perto os factos objetivos que aí se invocam. Consta de tal requerimento – após o aperfeiçoamento apresentado em resposta ao despacho que a isso convidou – que:

“(…) 11. Conforme consta do processo principal, a ora Requerente, Assistente no processo principal, é a única neta de DD.

12. E, única herdeira de DD falecida a 18 de fevereiro de 2020, cfr. docs. 1, 2 e 3 juntos com a Queixa-Crime.

13. Porquanto, DD, através de testamento datado 7 de outubro de 1999, deixou toda a sua quota disponível à Requerente, cfr. doc. 3 junto com a Queixa-Crime.

14. Tendo a requerida tido conhecimento do mesmo a 20 de fevereiro de 2020, cfr.doc. 3 junto com a Queixa-Crime.

15. Assim, a Requerente é a única herdeira da falecida DD, pelo que tem legitimidade para requerer o presente procedimento cautelar de arresto.

III – DOS FACTOS

16. No dia 1 de abril de 2013, a avó da Requerente foi declarada ter uma incapacidade de 100% pelas finanças, cfr. doc. 4 junto com a Queixa-Crime.

17. Mas, ainda antes dessa data, a avó da Requerente, desde junho de 2012, já se encontrava acamada com apoio domiciliário, pela associação social de … em virtude de já não conseguir ser autónoma.

18. Tendo ficado internada desde 23 de abril de 2013 no lar da Santa Casa da Misericórdia de …, sito na Rua …, ....

19. Era auxiliada pela arguida, que tinha ficado encarregue de receber as rendas dos imóveis arrendados da avó da Requerente, fazer os respetivos depósitos nas suas contas e fazer também os pagamentos quer do lar, quer das despesas de saúde, em virtude da impossibilidade da ora falecida em gerir o seu quotidiano.

20. Tendo, no entanto, a Requerente, entre o ano 2012 e 2020, mantido sempre contacto com a arguida, que lhe dava conhecimento do estado de saúde da sua avó, quer pelo telefone, quer pessoalmente quando a Requerente visitava em … a sua avó.

21. Quando a avó da Requerente faleceu, a 18 de fevereiro de 2020, a ora Requerente foi contactada pela arguida para se deslocar a … para tratar das cerimónias fúnebres.

22. A 20 de Fevereiro de 2020, a Requerente teve conhecimento através da abertura do testamento que a sua avó a tinha instituído como única e universal herdeira da sua quota disponível, a seu favor.

23. Compulsados todos os documentos que lhe tinham sido entregues e com a informação que era a única e universal herdeira da sua falecida avó, a Requerente tentou apurar da existência de depósitos junto das instituições bancárias, para poder ter acesso a eles e fazer os pagamentos necessários, quer à Santa Casa da Misericórdia, quer à agência funerária e os demais encargos, indagou.

24. Tendo sido surpreendida no mesmo momento em que tentava apurar desses depósitos por telefonemas da arguida, que a persuadia a fazer esses pagamentos, e a questionava qual o motivo pelo qual estava a tentar apurar os montantes em depósito na conta da sua avó.

25. Com tudo isto, a ora Requerente, suspeitou que o comportamento da arguida fazia antever que a mesma poderia estar a tentar ocultar alguns factos.

26. Com essa suspeita, a ora Requerente procurou apurar todos os movimentos quer de despesas da sua avó, quer de movimentos bancários no período que mediou a sua incapacidade e a sua morte.

27. Para tal, instou a Santa Casa da Misericórdia de …, a …, dependência de … e a …..

28. Tendo obtido, resposta da Santa Casa da Misericórdia de …, que informou as condições contratuais referente ao lar onde a avó da Requerente se encontrava, e que existia um valor por liquidar de € 294,89 (duzentos e noventa e quatro euros e oitenta e nove cêntimos), cfr. Doc. 6 junto com a Queixa-Crime.

29. Da …, recebeu o extrato bancário completo desde 21 de dezembro de 2009 até 11 de janeiro de 2017, altura em que a conta ficou a zeros, cfr. doc. 7, composto por 61 laudas, junto com a Queixa-Crime.

30. Pela simples análise do extrato fornecido pela …, a Requerente conseguiu apurar que no período que mediou entre 21 de dezembro de 2009 até junho de 2012 a conta da falecida avó apresentava apenas entradas e saídas de valores, que dizem respeito ao recebimento da sua reforma e pagamento de despesas correntes. Cfr. Doc. 7, composto por 61 laudas, vide laudas de 1 a 13, junto com a Queixa-Crime.

31. No período que medeia entre junho de 2012 e janeiro de 2017, a conta apresenta saída de valores que a ora Requerente considera anormais.

32. Até porque a sua falecida avó já não se encontrava em condições de poder movimentar a conta.

33. E os valores discriminados pelo extrato bancário revelam que as contas bancárias da falecida avó da Requerente eram movimentadas como de uma conta corrente se tratasse com levantamentos, transferências e depósitos que levantam sérias suspeitas que a referida conta era movimentada pela arguida e arguido para seu proveito próprio, como passamos a exemplificar.

34. Não parece plausível que a falecida avó da ora Requerente que se encontrava incapacitada e posteriormente acamada (conforme relatório médico junto ao processo principal) pudesse fazer levantamentos em ATM’S nos referidos pontos de levantamento que passamos a exemplificar.

Nomeadamente,

35. …, que se infere ser um estabelecimento hoteleiro, com casino.

36. …, que se infere ser um estabelecimento com uma vertente de jogos de sorte e azar.

37. …, que se presume aquisição de títulos do tesouro, ou de dívida pública que se desconhece o beneficiário.

38. …. que se infere ser um estabelecimento com uma vertente de jogos de sorte e azar.

39. Bem como vários levantamentos e compras efetuadas em locais de lazer, pronto a vestir, diversão, supermercados, carregamentos de telemóveis, restaurantes e farmácias que nunca foram documentadas ou apresentada qualquer plausibilidade para a existência das mesmas que totaliza o valor € 65.324.60 (sessenta e cinco mil trezentos e vinte e quatro euros e sessenta cêntimos), cfr.Doc. 7, composto por 61 laudas, Vide lauda 14 a 61, junto com a Queixa-Crime.

40. Inúmeras transferências para uma conta bancária com o N.º … também da …, cujo titular é AA, arguido, e que totalizam o montante de 33.370,00 (trinta e trinta e três mil trezentos e setenta euros) cfr. Doc. 7, composto por 61 laudas, Vide lauda 11, 12, 13, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 35, 38, 39, 41, 42, 44, 48, 49, 50, 51, 56, 57, 58, 59 e 60, junto com a Queixa-Crime.

41. Bem como um pagamento com cartão de crédito no valor de 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros). Cfr. Doc. 7, composto por 61 laudas, Vide lauda 21, junto com a Queixa-Crime.

42. DD, avó da Requerente, no ano de 2012 tinha 79 anos, encontrava-se incapacitada, acamada e posteriormente, em 2013, internada num lar da Santa Casa da Misericórdia como já foi demonstrado.

43. Muito menos teria capacidade de se locomover para tais locais.

44. Os locais, onde foram feitas as referidas transações demonstram um padrão de uma prática que pressupõe um comportamento de vício de jogo.

45. A Requerente, instou, por várias vezes, quer através mails quer através de contactos telefónicos e presencias a … que se recusou a facultar os referidos extratos bancários

correspondentes à conta com o n.º … titulada pela avó da Requerente. Vide Doc. 8 junto com a Queixa-Crime.

46. Os mails foram dirigidos a FF, subgerente do balcão da … de …. Vide Doc. 9 junto com a Queixa-Crime.

47. A Avó da Requerente era proprietária de 2 imóveis arrendados, sendo que um dos imóveis sito na Rua … - … estava arrendado a GG.

48. A arguida, estava encarregue de receber as rendas, depositar na conta da falecida e dar a respetiva quitação.

49. Na verdade, as rendas eram depositadas na conta N.º … também da … pertencente ao arguido AA, no montante mensal de 300,00 (trezentos euros).

50. A ora arguida após a morte da avó da Requerente contactou várias vezes o inquilino, GG, com o propósito de o tentar persuadir em omitir todas as informações relativamente aos montantes da renda que eram pagos, e em que conta eram depositados tais montantes.

51. Os arguidos eram os únicos encarregues de cuidar da avó da requerente, sendo também os únicos que tinham acesso às suas contas bancárias.

52. Os arguidos, casados, foram vistos, em inúmeros eventos, em casinos, de norte a sul do país, conforme fotografias junto ao processo principal.

53. Assim, é claro e cristalino que há factos indiciários fortes que indicam que os arguidos movimentaram a conta bancária da avó da Requerente para proveito próprio, em união de esforços, locupletando-se com mais de 100.000,00 €.

54. Daí resulta que, finda a acção principal, é muito provável que os arguidos venham a ser condenados numa indemnização à Requerente no valor nunca inferior a 100.000,00 €.

55. Acontece que os arguidos não têm qualquer património para além do imóvel propriedade do arguido e identificado no requerimento inicial.

56. Por esse motivo, há uma fortíssima possibilidade da Requerente, caso o imóvel não seja arrestado, nunca vir a ser efetivamente indemnização por falta de meios económicos dos arguidos.

(…)

59. Para além disso, os arguidos frequentavam com regularidade casinos, sendo esses os locais onde foram feitos muitos dos levantamentos da conta bancária da falecida. (…)”

*

Entendeu o tribunal recorrido que o requerimento inicial, com o conteúdo transcrito padece de insuficiência “de factualidade bastante de onde se possa concluir no sentido da verificação do requisito em análise [leia-se, ao que cremos, o requisito da probabilidade da existência do direito invocado]”. Para fundamentar tal juízo, afirma o juiz a quo que as alegações da requerente assumem natureza conclusiva e não especificada, afirmando concretamente no que diz respeito ao requerimento em apreciação que:

“(…) não se narra quem fez o quê, quando, e como. Não se sabe quantas vezes foram praticadas as condutas, por quem, nem onde, nem em que data.

Apenas se apontam prejuízos, mas com base no que vem alegado, mantêm-se inespecificadas as acções que lhes deram lugar.

A requerente limita-se a aludir a suspeitas, assentes num silogismo pouco explicado em que, se por um lado eram os arguidos que cuidavam da sua falecida avó, foram eles os responsáveis por tais movimentos e transferências, ainda que fique por se saber quem fez exatamente o quê, quando e como, afim de se poder assacar responsabilidades concretas.

Não existe no alegado qualquer substracto factual donde se possa assacar, ainda que indiciariamente, um dever de indemnizar aos arguidos, o que se compreende na medida em que, conforme admite a requerente, o inquérito ainda se encontra em curso e o Ministério Público ainda não se pronunciou sobre a factualidade denunciada (designadamente, no que toca à suficiência ou insuficiência dos indícios que permitam alvitrar a sua posterior demonstração).

E obviamente, até tendo em conta o princípio do dispositivo, que rege o presente procedimento (artigos 228º, número 1, do Código de Processo Penal, e 5º, número 1, do Código de Processo Civil) não cabe ao tribunal respigar os autos de inquérito e dele retirar e transcrever os factos nucleares de que depende a procedência do pedido da requerente, apenas a esta assistindo o direito de o fazer. Caso o fizesse, aliás, a sua independência passaria a ser inevitavelmente questionável, pois praticaria de livre mote acção cujo ónus compete à parte. (…)”

Quanto ao requisito do justo receio, concluiu, de igual modo o tribunal recorrido que:

“(…)Ora, analisada a factualidade que, nessa perspectiva, foi alegada no requerimento inicial e no requerimento de resposta ao convite de aperfeiçoamentos (fls. 2-4- e 14-18), afigura-se-nos, também neste tocante, que a outra conclusão se não pode chegar que não seja a insuficiência de factualidade bastante de onde se possa concluir no sentido da verificação do requisito em análise.

Na realidade, a requerente não alega factualidade concreta donde se possa retirar o justo receio de perda da garantia patrimonial, bastando-se com juízos conclusivos baseados na idade do arguido e na inexistência de outros bens de propriedade de ambos os arguidos, no sentido de, a ser provado, poder o tribunal concluir pela existência de um justo receio de que os mesmos não pagarão a quantia a que venham a ser condenados (se o vierem a ser).

O facto de o arguido já ter … anos por si só não pode fundar tal receio, porquanto pese embora a possibililidade de decesso seja efectivamente maior, pela ordem natural biológica, com o avanço da idade, no caso concreto e excluindo esse facto, nada existe que leve a concluir por uma maior probabilidade relativamente ao arguido que ao cidadão médio, sendo também que são conhecidos amplamente casos de bem maior longevidade por numerosos indivíduos. E quanto à arguida, nada se alega a este respeito.

Por outro lado, não vem alegado qualquer acto de dissipação de património, nem qualquer acção que leve a concluir que o arguido tenha em mente alienar o dito bem imóvel.(…)”

*

Não subscrevemos, porém, o entendimento exposto na decisão recorrida.

Efetivamente – e não obstante reconhecermos que, a vários passos do requerimento inicial, se misturam factos e juízos conclusivos – o certo é que os factos que poderão sustentar a aparência do direito criado na esfera jurídica da requerente pela prática do crime e o receio de perda da sua garantia patrimonial, a nosso ver, estão lá alegados.

Quanto ao direito da requerente, alega a mesma que, sendo a única herdeira da falecida DD, sua avó, ficou lesada com as condutas dos arguidos, que descreve e factualiza suficientemente, nos artigos 31º a 41º e 47º a 51º do requerimento de arresto, nos seguintes termos:

- No período que decorreu entre junho de 2012 e janeiro de 2017, os arguidos (que estavam encarregados de cuidar da falecida DD, sendo os únicos que tinham acesso às suas contas bancárias) movimentaram a conta da avó da requerente, sem autorização da mesma, em proveito próprio, fazendo transferências, levantamentos (estes em ATM´s em locais que identifica) e pagamentos, movimentos que ascenderam à quantia de 65 324,60 € (sessenta e cinco mil trezentos e vinte e quatro euros e sessenta cêntimos);

- No mesmo período, fizeram transferências para uma conta bancária com o N.º …, da …, cujo titular é o arguido e que totalizam o montante de 33 370,00 € (trinta e trinta e três mil trezentos e setenta euros);

- E realizaram um pagamento com cartão de crédito no valor de 2 500,00 € (dois mil e quinhentos euros).

- A arguida estava encarregada de receber as rendas de dois imóveis da avó da Requerente que se encontravam arrendados e de as depositar na conta daquela, sendo que as rendas eram depositadas na conta n.º … da …, pertencente ao arguido, no montante mensal de 300,00 € (trezentos euros).

É verdade que os alegados movimentos bancários não se encontram especificados, em número, datas e valor, não se nos afigurando, porém, que tal individualização se revelasse imprescindível para que se considerasse suficientemente alegada a probabilidade da existência do direito que se pretende acautelar com a providência. Não é indicada uma data e um valor concreto relativamente aos levantamentos, às transferências e aos pagamentos, mas indicam-se valores globais, alega-se a forma de atuação e remete-se para a documentação que consta dos autos principais e que atestará tais movimentos bancários. E não se olvide que os autos se encontram ainda na fase da investigação no processo de inquérito do qual este é apenso, pelo que bem se compreenderá que a requerente possa não ter ainda na sua posse todos os elementos factuais que lhe permitam alegar mais pormenorizadamente cada uma das condutas imputadas aos arguidos. Tal circunstancialismo não poderá, porém, em nosso entender, ser erigido como obstáculo a que a assistente requeira a utilização das medidas de garantia patrimonial ao seu dispor para garantir a efetividade futura do seu direito.

No que diz respeito ao fundado receio de perda da garantia patrimonial, invoca a requerente, nos artigos 29º, 44º, 59º e 61º do requerimento de arresto que:

- Em janeiro de 2017 a conta da … da avó da requerente ficou a zeros.

- Os arguidos, casados, foram vistos, em vários eventos, em casinos, de norte a sul do país (conforme fotografias junto ao processo principal);

- Muitos dos levantamentos da conta bancária foram feitos nos casinos que os arguidos frequentavam com regularidade, o que demonstram um padrão de uma prática que pressupõe um comportamento de vício de jogo.

- Para além do imóvel que se pretende arrestar, propriedade do arguido, os arguidos não têm qualquer outro património.

Os factos alegados pela requerente, de os arguido terem deixado a zeros a conta da falecida, de frequentarem casinos e de não possuírem qualquer outro património para além do imóvel do arguido que se pretende arrestar, poderá, a nosso ver, sustentar o receio justificado de que o arguido, a qualquer momento, possa proceder à alienação de tal imóvel, não só com vista a obter liquidez para satisfazer o alegado vício de jogo, mas também com o intuito de se desfazer o único bem que, alegadamente, poderá responder pela uma indemnização que se apure ser devida à Requerente.

É, a nosso ver, quanto baste para se considerar cumprido o ónus de alegação da factualidade da qual poderá vir a retirar-se a probabilidade da existência do crédito e o receio fundado da perda da sua garantia patrimonial.

Relembrando que o que vem posto em causa no recurso que nos encontramos a apreciar não é a decisão final da providência, mas sim a decisão liminar de rejeição da mesma por alegada falta de invocação dos factos sustentadores dos requisitos legais do arresto preventivo solicitado, mais não haverá do que julgar totalmente procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que admita o requerimento inicial e que designe data para a produção da prova indicada pela requerente.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, determinando que seja proferida outra que admita o requerimento inicial de arresto preventivo e que designe data para a produção da prova indicada pela requerente.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 15 de dezembro de 2022

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

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1 Neste sentido se pronunciou já o Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 724/2014, de 28.10.2014, disponível em www.dgsi.pt, ao considerar que “(…)os requisitos de que depende o decretamento do arresto, também em processo penal por força da remissão consignada no artº 228º, nº 1, do CPP, respeitam tão só à aparência do direito de crédito e ao perigo da dissipação do património ( cfr. artº 391º e 392º, do CPC), verifica-se que os mesmos não se relacionam sequer com as condutas ou circunstâncias relevantes para a aplicação da generalidade das medidas de coação (sobretudo tendo em conta os requisitos estabelecidos no artº 204º, do CPP, visando estas medidas, designadamente, assegurar a eficácia e eficiência do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer no que respeita à execução das decisões

2 Pelo que não poderão ser entendidas como uma exigência da tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 20º da CRP, nem como qualquer forma de proteção do bem jurídico hipoteticamente violado e muito menos poderão ser utilizadas para prosseguir fins retributivos, antecipando a decisão final do processo, sob pena de violarem a presunção de inocência consagrada no artigo 32º, nº 2 da CRP.

3 A este propósito, cfr. João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2ª edição, Almedina, 2021, páginas 636 a 638.

4Ob. cit, página 638.

5 Expressões utilizadas pertinentemente por João Conde Correia, ob. cit., página 635.

6 Neste sentido, encontramos vasta jurisprudência, entre a qual, podemos citar os seguintes acórdãos: acórdão da Relação de Coimbra de 19.12.2012, relatado pela Desembargadora Olga Maurício; acórdãos da Relação de Guimarães de 10.05.2021, relatado pelo Desembargador Paulo Serafim, de 27.09.2021 relatado pela Desembargadora Cândida Martinho e de 24.01.2022, relatado pelo Desembargador António Teixeira; acórdãos da Relação de Lisboa de 02, 04.2019, relatado pelo Desembargador, de 21.09.2021, relatado pelo Desembargador João Carrola; acórdão da Relação de Porto de 01.04.2020, relatado pela Desembargadora Maria Luísa Arantes e acórdão da Relação de Évora de 10.05.2020, relatado pela Desembargadora Laura Maurício, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

7 Neste sentido se pronunciaram também, em termos que acompanhamos, o acórdão da Relação de Lisboa de 06.03.2018, relatado pelo Desembargador Carlos Moreira e o acórdão da Relação de Lisboa, de 28.05.2019, relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

8 Ob cit, páginas 632 e 642.

9 A título de exemplo, transcrevemos alguns excertos da motivação de recurso, a nosso ver claramente elucidativos de tal confusão: “(…)quanto ao requisito da probabilidade da existência de um direito de crédito, o legislador não exige a prova da verificação efetiva desse crédito (…) O que o Tribunal a quo parece na sua fundamentação exigir para considerar preenchido o requisito da aparência do direito é uma certeza absoluta existência deste.(…) ou “(…)outra conclusão não se poderá retirar, através de um juízo de valor apoiado em simples critérios próprios do homo prudens, em presunções naturais ou de experiência, de que há efetivamente uma aparência do direito de crédito da recorrente sobre os arguidos.(…) e, principalmente, “(…) Nestes termos e nos mais de Direito que Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, doutamente suprirão, o presente recurso deve ser julgado procedente, por provado, com todas as devidas e legais consequências, nomeadamente, deverá ser decretado o arresto preventivo do imóvel (…)”

10 Remetemos aqui para as considerações teóricas que acima deixámos expostas quanto à natureza, fins e pressupostos das medidas de garantia patrimonial e, concretamente, da medida de arresto preventivo em causa nos presentes autos.