Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
125/12.0JELSB.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: REABERTURA DA AUDIÊNCIA PARA APLICAÇÃO DA LEI PENAL MAIS FAVORÁVEL
Data do Acordão: 10/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - O artigo 371.º - A do CPP, introduzido na reforma de 2007 (pela lei nº 48/2007), passou a estipular a via processual adequada a assegurar o cumprimento do artigo 2.º do CP, maxime do seu nº 4, igualmente alterado em 2007 (pela Lei nº 59/2007).

II - Esta reabertura da audiência serve a aplicação retroactiva de lei penal mais favorável, e rege para casos de sucessão de leis penais no tempo.

III - Transitada em julgado a condenação, não pode haver lugar a reabertura da audiência de julgamento ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do CPP para repetição de diligências de prova.

IV - Não só inexiste uma identidade de razões ou de motivos que justifique a aplicação, por analogia, da norma pretendida (a reabertura da audiência ao abrigo do art. 371.º-A do CPP), como a lei processual penal prevê um (outro) meio para o recorrente poder apresentar e defender a sua pretensão (o recurso de revisão dos art.s 449.º a 466.º do CPP). [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 125/12.0JELSB, da Comarca de Setúbal, foi proferido despacho de indeferimento do requerimento formulado pelos arguidos A. e B., visando a reabertura da audiência de julgamento ao abrigo do art. 371.º-A do CPP.

Inconformados com o decidido, recorreram os arguidos, concluindo:

“1. Os arguidos requereram nos termos conjugados do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal e artigo 9.º do Código Civil a reabertura da audiência de julgamento, que condenou os arguidos.

2. Requerendo a final que de imediato e com carácter de muito urgente o processo fosse reaberto e todos os arguidos e testemunhas fossem ouvidas novamente, uma vez que alguns deles do primeiro julgamento revelaram as pressões realizadas pela Polícia Judiciária, para viciarem o seu depoimento em julgamento.

3. Tendo o douto tribunal “ a quo” indeferido o requerido por carecer em absoluto de fundamento legal.

4. Andou mal o tribunal “ a quo” ao decidir no sentido de que a reabertura da audiência ao abrigo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal só pode ter como fundamento a lei penal mais favorável.

5. É certo que o artigo 371.º-A do Código de Processo Penal preceitua que se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado novo regime.

6. Porém tal norma deveria ter sido aplicada por analogia e interpretada de forma mais ampla nos termos do artigo 9.º do Código Civil.

7. O tribunal “a quo” deveria ter interpretada a norma supra referenciada de forma extensiva, isto é, embora não estejamos perante a entrada em vigor de lei penal mais favorável, estamos perante a existência de novos factos, pois quem investigou e deteve os arguidos foram elementos da polícia judiciária, alguns dos que foram recentemente detidos e cujos factos ilícitos se desconhecem por o processo se encontrar em segredo de justiça, porém julga-se que tal pode ser “favorável” à defesa dos arguidos, pois já em sede de julgamento que ocorreu em Sesimbra as testemunhas foram questionadas sobre a forma de investigar prosseguida pela Polícia Judiciária, nomeadamente do núcleo chefiado pelo inspector R., que se encontra detido, factos que também levantaram desconfianças ao colectivo, o que determinou a absolvição dos arguidos em 1.ª instância.

8. Devendo tal normativo ser interpretado no sentido amplo, no sentido de que a reabertura do processo é mais favorável aos arguidos e pode visar a aplicação de outro regime, porquanto é posta em causa a veracidade das declarações e da investigação realizada pela Polícia Judiciária que vai depois determinar a condenação dos arguidos pelo Tribunal da Relação.

9. Discordamos também que a reabertura da audiência ao abrigo da já enunciada disposição legal não permite a aplicação por analogia.

10. Pois o juiz-decisor não se deve bastar com a letra da lei, devendo ir mais além e assumir e realizar a tarefa prática que é própria do direito, visando acabar com as imprecisões, a justiça não pode ter imprecisões.

11. Conforme dispõe o artigo 9.º do Código Civil sobeja alguma legitimidade ao pensador jurídico para eventualmente se desviar da posição assumida pelo legislador relativamente ao problema da interpretação.

12. Face ao caso concreto e atendendo a que os agentes policiais que prestaram depoimento em sede de julgamento e que esses depoimentos fundamentaram a condenação dos arguidos em 2.ª instância, e que são agora eles (agentes da autoridade) alvos de várias imputações criminosas, contra a realização da justiça e ainda de crimes de estupefacientes, os presentes autos têm obrigatoriamente de ser reabertos para que se possa averiguar da bondade ou não das decisões que foram proferidas.

13. Por outro lado é intolerável que num Estado de Direito democrático, como é o nosso, haja uma violação gritante dos direitos dos arguidos, da segurança e da certeza jurídica, pois uma justiça não pode ser imprecisa e duvidosa.

14. E atendendo ao facto de os agentes da polícia judiciária se encontrarem em prisão preventiva muitas são as dúvidas que se levantam sobre a bondade da decisão proferida.

15. O despacho recorrido viola assim grosseiramente os mais elementares dos direitos fundamentais previstos na nossa constituição e o princípio da confiança e da segurança jurídica visa a proteção da confiança, dos cidadãos e da comunidade, na ordem jurídica de tal forma que alterações não se admita a violação dos direitos adquiridos, expectativas criadas, situações jurídicas estabilizadas que justifiquem o sacrifício.

16. Face ao supra exposto, o despacho recorrido é inconstitucional por violar o disposto nos artigos 2.º e 32.º, n.º 1 da nossa Constituição. E bem assim o disposto no artigo 6.º, paragrafo 1.º da CEDH.

17. Termos em que deverá o tribunal “ ad quem” declarar a nulidade do despacho recorrido por violação dos princípios constitucionais e da nossa Constituição.”

O Ministério Público respondeu ao recurso do modo seguinte:

“O Ministério Público, após análise, entende que não assiste razão ao recorrente, uma vez que a decisão recorrida foi devidamente fundamentada, tendo a Mma Juiz "a quo" feito correcta e adequada aplicação do direito, pelo que, a mesma não padece da nulidade invocada nem de qualquer outra. Pelo exposto, entendemos que a decisão é insusceptível de qualquer reparo ou censura.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se no sentido da confirmação do despacho, e não houve resposta ao parecer.

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

“Vêm os arguidos/condenados A. e B. requerer nos termos do artigo 371º-A do C.P.P., aplicado por analogia, que seja reaberta, com caráter de muito urgente, a audiência que condenou os arguidos, porquanto se põe em causa a veracidade das declarações e da investigação realizada pela P.J. que determinou a condenação dos arguidos não na 1ª Instância mas na Relação.

Alegam os arguidos/condenados, ora requerentes, que a reabertura do processo deverá ter em consideração os factos imputados ao Insp. Chefe R., uma vez que a intervenção como testemunha e como indiciado pela prática de crimes contra a realização da justiça ferem de morte todos os processos em que teve intervenção, e este em particular, noticiando a comunicação social, na semana em que o requerimento de que se tratam foi apresentado, que os agentes da autoridade que depuseram em julgamento são alvo de imputações criminosas contra a realização da justiça e ainda de crimes de tráfico de estupefacientes, devendo, neste quadro, no entender dos requerentes, obrigatoriamente ser reabertos os processos para que sejam averiguadas a bondade ou não das decisões que foram proferidas.

A Digna Procuradora da República pronunciou-se no sentido de ser indeferido o requerido.

Entendemos ser evidente que a reabertura da audiência ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do C.P.P. só pode ter por fundamento a aplicação retroativa da lei penal mais favorável.

A reabertura da audiência ao abrigo da enunciada disposição legal não permite a aplicação por analogia nos termos pretendidos pelos arguidos/condenados, ora requerentes, pois que, o que requerem é a reinquirição de todos os arguidos e testemunhas, o que, na prática se traduziria na realização de um novo julgamento.

Como é sabido, após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, como acontece in casu, só por via do recurso extraordinário de revisão, nos termos previstos nos artigos 449º e seg.s do C.P.P. se pode impugnar a decisão.

Pelo exposto, por carecer, em absoluto, fundamento legal, indefere-se o requerido.
Notifique.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar é a de saber se, transitada em julgado a condenação, pode haver lugar a reabertura da audiência de julgamento ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do CPP, para repetição de diligências de prova.

O artigo 371º-A do CPP preceitua que “se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado novo regime”.

Ciente de que a situação que apresenta em recurso não se enquadra no âmbito de aplicação da norma invocada, defende o recorrente a aplicação do mesmo preceito legal por analogia ou por via de uma interpretação extensiva. Invoca indistintamente as duas vias de interpretação, fazendo-o também, adiante-se, injustificada e infundadamente.

Na verdade, as vias interpretativas pretendidas são (ambas) indefensáveis, desde logo porque, tendo a norma o seu campo de aplicação claramente delimitado e bem definido, e não se identificando, no caso em análise, qualquer identidade de razões, ou qualquer racionalidade comum às duas situações (a apresentada pelo arguido, por um lado, e a prevista na norma, pelo outro), nada justificaria a aplicação da norma invocada.

O art. 371º - A do CPP foi introduzido na reforma de 2007 (pela lei 48/2007), passando a estipular-se uma via processual adequada a assegurar o cumprimento do art. 2º do CP, maxime do seu nº 4, igualmente alterado em 2007 (pela Lei 59/2007).

Como resulta logo da epígrafe da norma, a abertura da audiência serve a aplicação retroactiva de lei penal mais favorável, e rege para casos de sucessão de leis penais no tempo.

Defende o recorrente que “embora não estejamos perante a entrada em vigor de lei penal mais favorável, estamos perante a existência de novos factos, pois quem investigou e deteve os arguidos foram elementos da polícia judiciária, alguns dos que foram recentemente detidos e cujos factos ilícitos se desconhecem por o processo se encontrar em segredo de justiça, porém julga-se que tal pode ser “favorável” à defesa dos arguidos”. Mas a sua pretensão carece de apoio legal, como se disse.

Como consta do despacho recorrido, é “evidente que a reabertura da audiência ao abrigo do disposto no artigo 371º-A do CPP só pode ter por fundamento a aplicação retroativa da lei penal mais favorável. A reabertura da audiência ao abrigo da enunciada disposição legal não permite a aplicação por analogia nos termos pretendidos pelos arguidos/condenados, ora requerentes, pois que, o que requerem é a reinquirição de todos os arguidos e testemunhas, o que, na prática se traduziria na realização de um novo julgamento.”

E como ali também se consignou, “após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, como acontece in casu, só por via do recurso extraordinário de revisão, nos termos previstos nos artigos 449º e seguintes do CPP se pode impugnar a decisão.”

No caso presente, não só inexiste uma identidade de razões ou de motivos que justifique a aplicação da norma pretendida (e a reabertura da audiência ao abrigo do art. 371º-A do CPP), como a lei processual penal prevê um (outro) meio para o recorrente poder apresentar e defender a sua pretensão (o recurso de revisão – arts 449º a 466º do CPP).

A existência de meio processual próprio para defesa dos propalados interesses e dos direitos dos arguidos, que os recorrentes sempre podem exercer, querendo, faz também claudicar a invocada violação da Constituição (art. 32º, nº 1 do CRP) que, consequentemente, não ocorre.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes que se fixam em 4UC a cada um deles (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP).

Évora, 11.10.2016

Ana Maria Barata de Brito

Maria Leonor Vasconcelos Esteves

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[1] - Acórdão sumariado pela relatora.