Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | BERGUETE COELHO | ||
| Descritores: | COACÇÃO SEXUAL AGRAVADA ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS | ||
| Data do Acordão: | 10/12/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | Assumindo a coacção (assim concretizada:“o arguido ordenou à criança que baixasse as suas calças e, caso não o fizesse, que o amarrava …o arguido introduziu um dedo da sua mão no ânus do menor, ao mesmo tempo que baixava as suas próprias calças e dizia ao menor que «lhe queria ir ao rabo») um desvalor autónomo, não obstante viesse a anteceder o objectivo final do arguido (o qual não chegou a concretizar-se por razões alheias à sua vontade), deve o mesmo ser punido pela prática de crime de coacção sexual agravado e não por crime de abuso sexual de criança na forma tentada. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora * 1. RELATÓRIO Nos autos em referência, de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, que correu termos no Juízo Central Criminal de Portimão, Comarca de Faro, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido (...), imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de ameaça e um crime de abuso sexual de menor na forma tentada, p. e p., respectivamente, pelos arts. 153.º, n.º 1, 172.º, n.º 2, 22.º e 23.º, todos do Código Penal (CP). O arguido não apresentou contestação, nem arrolou testemunhas. Realizado julgamento e proferido acórdão, decidiu-se: - absolver o arguido, como autor material, de um crime de ameaça, p e p pelo art. 153.º, n.º 1, do CP; - condenar o arguido, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 2, do CP, na redação conferida pela Lei n.º 99/2001, de 25.08. na pena de 3 (três) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período. Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões: 1.ª - O presente recurso vem interposto do acórdão proferido e depositado no dia 19 de Janeiro de 2021, no âmbito do Processo Comum, Tribunal Colectivo, n.º 222/01.7GCSLV, que absolveu o arguido (...) da prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, e condenou o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, p e p pelo art. 172.º, n.ºs 2, do Código Penal, na redação conferida Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. 2.ª - Analisado o acórdão proferido nos autos, o Ministério Público não se pode conformar com o mesmo. 3.ª - Com efeito, o Ministério Público entende que os factos integram um crime de coacção sexual agravado, p. e p. pelo art. 163.º, n.º 1, e art. 177.º, n.º 4, ambos do Código Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto. 4.ª - Além disso, o Tribunal a quo condenou o arguido numa pena de três anos de prisão, cuja execução suspendeu por igual período de tempo, entendendo o Ministério Público que devia ter sido aplicada ao arguido uma pena de prisão efectiva. 5.ª - o Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos: “1. No dia 10 de Outubro de 2001, o arguido convidou (...), na data com 12 anos de idade para ir ao quintal propriedade (…), sito no sítio da (…). 2. Já no seu interior, o arguido ordenou ao (…) que se dirigisse para uma divisão de apoio ao quintal e que baixasse as suas calças e, caso não o fizesse, que o amarrava. 3. Como tivesse sentido medo de vir a ser molestado pelo arguido, conforme este quis com a frase que proferiu, (...) pôs as suas calças para baixo. 4. Enquanto o fazia, o arguido introduziu um dedo da sua mão no ânus do menor ao mesmo tempo que baixava as suas próprias calças e dizia ao (...) que «lhe queria ir ao rabo» 5. Como tivesse magoado o (...), este começou a gritar, tendo quase de imediato aparecido no local algumas pessoas que disseram ao arguido para parar e ao menor para fugir. 6. O arguido tinha pleno conhecimento da idade de (...). 7. Quis satisfazer os seus desejos sexuais e quis introduzir o seu pénis no ânus do menor (...), o que só não conseguiu por este ter gritado e alertado pessoas que ali passavam 8. Agiu livre, deliberada e consciente de serem as suas condutas proibidas.” 9. O arguido tem registados os seguintes antecedentes criminais: a) Por sentença de 21.4.2005, transitada a 1.10.2020, proferida no processo n.º 135/03.8GfLLE do Juízo Local Criminal de Loulé, J3, foi condenado pela prática em 29.3.2003 de 2 crimes de desobediência na pena única de 170 dias de multa à razão diária de 5,00€ e na sanção acessória de proibição e conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses; b) Por sentença de 20.10.2005, transitada a 1.10.2020, proferida no processo n.º 204/03.4GELSB do Juízo Local Criminal de Loulé, J3, foi condenado pela prática em 20.4.2003, de 1 crime de condução em estado de embriaguez na pena de 80 dias de multa à razão diária de 5,00€ e na sanção acessória de proibição e conduzir veículos com motor pelo período de 6 meses e 15 dias; c) Por sentença de 21.12.2005, transitada a 30.9.2020, proferida no processo n.º 1568/04.8TALRA do Juízo Local Criminal de Leiria, J3, foi condenado pela prática em 15.12.2003, de 1 crime de desobediência na pena de 100 dias de multa à razão diária de 6,00€; d) Por sentença de 6.1.2012, transitada a 30.9.2020, proferida no processo n.º 1304/11.2PBLRA do Juízo Local Criminal de Leiria, J3, foi condenado pela prática em 13.12.2011 de 1 crime de coação e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena única de 1 ano de prisão, suspensa por igual período, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano; 10. (...) é o quarto elemento de uma fratria de oito. O seu processo de desenvolvimento decorreu no seio da família de origem, na aldeia de (…), arredores de (…). O ambiente familiar em que cresceu foi genericamente marcado pela coesão familiar, mantendo os pais, ambos já falecidos, um relacionamento ajustado. A situação financeira foi sempre permissível à satisfação das necessidades do agregado, asseguradas pelos rendimentos do trabalho do pai, funcionário numa carpintaria e pela agricultura de subsistência numa parcela de terreno, onde os elementos mais velhos da fratria também trabalhavam. A mãe assumiu o papel de gestão e organização doméstica, bem como dos cuidados dos filhos. A nível educativo fomentaram nos filhos a procura de qualificação escolar e o trabalho na área que fosse mais motivadora. (...) não revelou apetência pela prossecução dos estudos, tendo deixado de estudar com 13 anos de idade, após a frequência do 6º ano de escolaridade. Começou a trabalhar como aprendiz de pintor na área da construção civil, motivado pela obtenção de autonomia financeira para ajudar a família. Manteve-se a viver junto do agregado de origem até aos 20 anos, idade com que casou, tendo construído casa própria junto do agregado de origem. Do casamento, que manteve durante 11 anos, tem três filhos. Foi o principal elemento ativo a nível laboral, trabalhando ao longo deste período sempre como emigrante em vários países, como pintor na área industrial, permitindo à família alcançar uma confortável situação financeira. Em virtude dos longos períodos de emigração, a relação conjugal manteve um registo de baixo envolvimento, tendo sido a participação de (...) na vida familiar e educação dos filhos muito limitada. A relação veio a terminar. O seu modo de vida até aos 41 anos de idade, manteve-se sensivelmente idêntico trabalhando na indústria petrolífera, na área da pintura, em vários países de África e Médio Oriente. Para além do trabalho, que ocupava a maior parte do seu quotidiano, (...) privava com os colegas e viajava nos países onde trabalhava, no sentido de os conhecer melhor, reportando ter sido um período muito gratificante da sua vida, pelas experiências que teve. Em finais de 2000 regressou definitivamente a Portugal, fixando-se inicialmente na aldeia onde nasceu, dando início à atividade laboral por conta própria na área da pintura da construção civil. Por motivos de ordem laboral, em meados de 2001, (...) mudou-se para a zona do Algarve, mais concretamente (…), onde viveu até meados de 2002. O arguido encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde julho de 2020, à ordem do processo 69/20.1 GBGDL após incumprimento da medida de coação de proibição de contactos com a vítima, fiscalizada com recurso a meios de vigilância eletrónica, tendo sido recentemente condenado pela prática de um crime de violência doméstica e de violação da companheira, cuja pena ainda não transitou em julgado. Em meio prisional tem revelado capacidade de contenção dos impulsos e de cumprimento dos normativos, mas em meio livre existem indicadores de que poderá, em situações de tensão, recorrer ao uso de violência. O arguido tem dificuldades ao nível do processamento das emoções, denotando ser pouco envolvido e frio ao nível das relações de intimidade.” 6.ª - Na motivação sobre a matéria de facto, e com relevância para o caso, escreveu, ainda, o Tribunal a quo: “O arguido apresentou um discurso revelador de um propósito claro de afastar qualquer responsabilidade, assentando as suas declarações numa postura negatória dos factos e turva quanto ao conhecimento da pessoa do menor. Com efeito, foi evidente a contradição e embaraço que o mesmo revelou no confronto com os factos, começando por negar que conhecia o menor, para depois dizer que conhecia a sua mãe, que viu acompanhada do próprio menor numa ocasião em que a progenitora do ofendido o agredira com uma chapada, motivada pelo arguido lhe ter negado emprestar dinheiro. Por outro lado, do cotejo da leitura das declarações do menor (cuja notificação para julgamento não foi possível efectuar) com a leitura das declarações da testemunha (...) (leitura a que o arguido não se opôs e motivada pelo avivamento de memória, atendendo ao lapso de tempo entretanto ocorrido), resultou evidente que o arguido e menor foram surpreendidos por (...), tendo esta testemunha esclarecido que se deslocou ao local pois havia sido avisado que desconhecidos se estavam a entrar no quintal do seu padrinho (…), vendo arguido (que já conhecia) e ofendido nus da cintura para baixo e de joelhos no chão numa das divisões de apoio ao referido quintal, sito no sítio da (…). Constata-se assim que o local não era a residência do Arguido como refere o ofendido, mas antes a propriedade de um terceiro também em (…). Porém, o ofendido esclareceu de forma pormenorizada a forma como o arguido o abordou, bem como a ordem que lhe dá para baixar as calças, sob a ameaça de o amarrar, ao que acede, altura em que o arguido lhe introduz um dedo no ânus e lhe diz que lhe quer ir ao rabo, sendo que foi precisamente nessa altura em que o ofendido gritou que entrou no local a testemunha (...) e vê ambos despidos da cintura para baixo, aproveitando o ofendido para fugir, assim evitando que o arguido praticasse consigo coito anal. Foi igualmente pelas declarações do ofendido que o Tribunal formou convicção de que o arguido já o conhecia e, como tal, sabia a sua idade. Os factos atinentes ao elemento subjectivo, resultam da própria factualidade objectiva dada como provada que concatenada com as regras da experiência permitem formar convicção segura que o arguido, ordenando ao ofendido que retirasse as calças, introduzindo-lhe um dedo no ânus e dito que lhe queria ir ao rabo, pretendia efectivamente praticar coito anal com o mesmo. O Tribunal atendeu ainda ao assento de Nascimento de fls. 30 para prova da idade do ofendido à data dos factos. Quanto às condições económicas e pessoais do arguido, o Tribunal atendeu ao teor do relatório social junto aos autos. Para prova da ausência de antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em consideração o teor do certificado de registo criminal.” 7.ª - O Ministério Público, entende, perante a matéria dada como provada, que, relativamente ao crime em que foi ofendida o então menor (...), os factos integram um crime de coacção sexual agravado, p. e p., pelo art. 163.º, n.º 1, e art. 177.º, n.º 4, ambos do Código Penal. 8.ª - O bem jurídico tutelado no crime de coacção sexual é, tal como na violação, o da liberdade sexual. Cada um tem plena liberdade de determinar o quando, o como e com quem realiza a sua vida sexual. 9.ª - À data da prática dos factos, o traço distintivo entre um e outro passa pela natureza do acto praticado: o acto sexual de relevo, no crime de coacção sexual; a cópula, coito anal ou coito oral, na violação. 10.ª - Acto sexual de relevo é todo aquele que, de um ponto de vista, predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, pág. 447). 11.ª - Sendo um menor, o “relevo” como que está imanente a qualquer actuação libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser: tanto mais que se visa a protecção de pessoas que presumível ou manifestamente não dispõem do discernimento necessário para que, no que ao sexo respeita, se exprimirem ou comportarem com liberdade, com presciência ou autenticidade. 12.ª - Nos casos em existem práticas com menores, acresce o livre desenvolvimento do menor no plano sexual: presume-se que a prática de actos sexuais em menor ou com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global convertendo-o em condutas merecedoras de pena, atenta a sua dignidade penal. 13.ª - A coacção sexual pressupõe ainda o uso de violência ou ameaça grave e, para o preenchimento do tipo subjectivo, exige-se o dolo, que tem de abranger os elementos volitivo e cognitivo definidos a propósito do crime de violação, mas com referência ao “acto sexual de relevo”. 14.ª - Relativamente à ameaça grave, “deve por tal entender-se a manifestação de um propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa ameaçada não consentir no acto sexual. Nesta medida poderá reentrar neste conceito, em parte, a “violência psíquica”. 15.ª - Para que se verifique o crime de violação, na forma tentada, é necessário que o agente resolva manter com outra pessoa cópula, coito anal ou coito oral, através de violência ou ameaça grave, que tal crime não se chegue a consumar, que o arguido pratique acto de execução do crime de violação, sendo certo que ao crime consumado corresponde pena superior a três anos de prisão. 16.ª - Ensina Helena Moniz que a violação é a forma mais grave de coacção sexual, tornando o crime de violação como um crime especial relativamente ao crime de coacção sexual, entendido como o crime fundamental (anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2-06-2005, proferido no âmbito do processo n.º 1564/05-5, publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 15, n.º 2, Junho de 2005, págs. 299/300). 17.ª - Também o Professor Figueiredo Dias entende que, em matéria de tentativa, numa boa parte dos casos em que a violação não venha a consumar-se persiste a punibilidade do agente pelo crime de coacção sexual, desde que na execução da tentativa o agente haja cometido actos sexuais de relevo. 18.ª - Ainda de acordo com o Prof. Figueiredo Dias, em abstracto, a tentativa de violação é menos punida que a coacção sexual consumada e não existem razões para que se dê nesta hipótese prevalência ao crime de violação, tanto mais quanto o crime de coacção sexual funciona aqui como tipo fundamental. 19.ª - Consta do acórdão recorrido que: No caso dos autos, resulta da factualidade dada como provada que, à data dos factos, o arguido tinha 39 anos (era maior) e o ofendido tinha 12 anos, o que era do conhecimento do arguido. Mais se deu como provado que o arguido introduziu o dedo no ânus do menor, ao mesmo tempo que baixava as suas próprias calças e dizia ao (...) que «lhe queria ir ao rabo». Neste caso, a introdução de um dedo de uma das mãos no ânus do menor integra um acto sexual de relevo. Ao pretender praticar coito anal com o menor, ordenando-lhe que baixasse as calças, sob ameaça de o amarrar, baixando as suas próprias calças e introduzindo um dedo no ânus do menor e dizendo-lhe que queria ir ao rabo, é evidente que seria de esperar que de seguida introduzisse o seu pénis no ânus do menor, o que apenas não aconteceu por razões alheias à sua vontade, nomeadamente porque o menor gritou e ali compareceram pessoas, impedindo que o arguido concretizasse o seu intento libidinoso. 20.ª - Estamos assim perante os elementos típicos de um crime de violação, na forma tentada e, nesse iter criminis, igualmente de um crime de coacção sexual consumado. 21.ª - Porém, estando consumado o crime de coacção sexual através dos actos sexuais de relevo praticados pelo arguido, nas circunstâncias acima descritas, afigura-se-nos que, tal como concluem Figueiredo Dias e Helena Moniz, quando todos os actos de execução do crime tentado de violação integram o tipo de crime de coacção sexual, o agente deverá ser punido pelo crime de coacção sexual, dado que não existem razões para que se dê nesta hipótese prevalência ao crime de violação, tanto mais que o crime de coacção sexual funciona aqui como tipo fundamental. 22.ª - Assim sendo, salvo melhor opinião, a conduta do arguido preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de coacção sexual. 23.ª - Está ainda preenchida a circunstância agravante da pena, prevista no artigo 177.º, n.º 4, do Código Penal, posto que o menor tinha 12 anos de idade à data da prática dos factos, idade que era do conhecimento do arguido. 24.ª - Relativamente aos casos de concurso em que o agente comete, com a mesma acção e relativamente à mesma vítima o crime de abuso sexual de crianças e o de coacção sexual ou de violação, entende o Prof. Figueiredo Dias, “Considerando a lei expressamente que em todos os casos aqui em apreço (dos art. 163.º, 164.º, 165.º e 166.º) punido é só o crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele (cfr. art. 177 § 11 ss).” 25.ª - Ainda segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias relativamente à tentativa no crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º do Código Penal, se o arguido praticar actos sexuais de relevo, “o facto está consumado nos termos do n.º 1, mesmo que o plano fosse mais vasto e visasse acabar na prática, p. ex., dos actos referidos no n.º 2” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 550). 26.ª – Além disso, o crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal, é menos punido, em abstracto, que o abuso sexual de crianças, na forma consumada, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que se deve dar prevalência, neste caso, ao crime de abuso sexual de crianças, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 172.º, n.º 1, do C. Penal. 27.ª - Caso se entendam que os factos integram um crime de abuso sexual de crianças, devia o arguido ter sido punido pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal. 28.ª - Ao crime de coacção sexual agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas do artigo 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, ambos do Código Penal, corresponde, em abstracto, uma pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses. 29.ª - Caso assim não se entenda, teria de ser condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma consumada, previsto, à data dos factos, no artigo art. 172.º, n.º 1, do Código Penal, e punido, em abstracto, com pena de prisão de 1 a 8 anos de prisão. 30.ª - Diz o artigo 40.º do Código Penal que “a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” 31.ª - Dispõe o artigo 71.º do Código Penal que a que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo ainda o tribunal, na determinação concreta daquela, atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente as referidas nas várias alíneas do seu n.º 2. 32.ª - O direito criminal é estruturado com base na culpa do agente, e este princípio é indispensável, exercendo uma função fundamentadora e limitadora da mesma pena. Só depois é que intervêm as exigências do fim da prevenção especial e da prevenção geral (Ac. do S.T.J. de 15-02-95 CJ), Ano III, T. 1, p. 217). 33.ª - “Nos crimes de abuso sexual de crianças as exigências de prevenção geral têm uma finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos. Na determinação da medida das penas, dentro da moldura que as finalidades de prevenção geral impõem, como factor essencial de manutenção da confiança na protecção dos valores comunitários afectados, relevam o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução e a gravidade das consequências, a intensidade do dolo e os sentimentos manifestados no cometimento do crime – alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2005, in www.dgsi.pt) 34.ª - No caso dos autos, há que salientar: - É elevado o grau de ilicitude da conduta praticada e intenso se apresenta o dolo, que reveste a modalidade de dolo directo. - O modo de execução também se revela particularmente desvalioso, porquanto o arguido afectou de forma intensa um valor essencial relativamente a um menor de doze anos de idade, com consequências necessárias no desenvolvimento da personalidade e na formação e fortalecimento de valores essenciais. - O arguido desrespeitou de forma grave a liberdade do menor e insensibilidade perante a humilhação e sofrimento que lhe infligiu com a sua conduta, revelando, através da prática de tais actos, baixeza de carácter, mais acentuado se tivermos em consideração que o arguido era amigo do pai do menor e que era visita de casa deste, pelo que lhe merecia mais respeito. - A gravidade dos factos revela um sentimento de profunda desconformidade do arguido com valores essenciais da sociedade e uma defeituosa personalidade, que impõe acrescidas exigências de reinserção. - O modo de execução desvalioso, conduzindo o menor para um local isolado, num terreno, e depois para uma casa de banho, onde lhe disse que o ali amarrava se não despisse, criando temor no menor com doze anos de idade, que se sentiu constrangido a despir-se e introduzindo o dedo no rabo, magoando-o e dizendo-lhe que lhe queria ir ao rabo. - Não se mostrou arrependido, nem assumiu a gravidade dos actos que cometeu patenteando total insensibilidade pelos valores juridicamente tutelados, demonstrando que não interiorizou a gravidade da sua conduta. - As consequências, deixando o menor naturalmente traumatizado com tal situação que vivenciou. - As condições pessoais do arguido e a sua situação económica, de modesta condição económica e social e com baixa escolaridade. - Os fins e motivos que determinaram o arguido à prática do acto, dominado por desígnios sexuais primários, que visou a satisfação dos instintos sexuais, indiferente ao interesse do desenvolvimento harmonioso do menor da esfera sexual. - São prementes em ilícitos desta índole, provocando uma forte reprovação social. - Por outro lado, o arguido não tem antecedentes criminais, o que se torna irrelevante, atento o tipo de crime. 35.ª - Assim e considerando a moldura penal abstractamente aplicável ao crime em apreço e o supra exposto acerca da determinação da medida concreta da pena, concordamos com a pena de 3 anos de prisão, mas não podemos concordar que a pena aplicada pelo Tribunal a quo seja suspensa na sua execução. 36.ª - De acordo com o artigo 50.º exige-se apenas para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo para tanto atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto e às circunstâncias deste. 37.ª - Como tem sido jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena não colida com as finalidades da pena, ou seja, a defesa dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 38.ª - Assim, numa perspectiva de prevenção especial, a suspensão da execução da pena deverá favorecer a reinserção do condenado e, numa perspectiva de prevenção geral, deve atender às exigências mínimas e irrenunciáveis da defesa do ordenamento jurídico, importando que a sociedade não encare a suspensão como uma forma de impunidade. 39.ª - O juízo de prognose, centrado no arguido e no seu comportamento, reportando-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, não pode bastar-se nunca, como salienta o Prof. Figueiredo Dias, com a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto, devendo atender em especial às condições de vida do agente e à conduta anterior e posterior ao facto. 40.ª - Decorre do relatório social que, actualmente, “o arguido encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde julho de 2020, à ordem do processo 69/20.1 GBGDL após incumprimento da medida de coação de proibição de contactos com a vítima, fiscalizada com recurso a meios de vigilância eletrónica, tendo sido recentemente condenado pela prática de um crime de violência doméstica e de violação da companheira, cuja pena ainda não transitou em julgado. 41.ª - Em meio prisional tem revelado capacidade de contenção dos impulsos e de cumprimento dos normativos, mas em meio livre existem indicadores de que poderá, em situações de tensão, recorrer ao uso de violência. 42.ª - O arguido tem dificuldades ao nível do processamento das emoções, denotando ser pouco envolvido e frio ao nível das relações de intimidade.” 43.ª- Assim, o arguido não expressou qualquer vontade nem demonstrou factos que tenham reflexos no seu comportamento futuro, designadamente de que não repetirá condutas delituosas, pelo contrário, atenta a personalidade demonstrada e comportamento processual, caso nova situação se lhe depare, estamos em crer que o arguido volta a delinquir. 44.ª - Sendo elevadas as necessidades de prevenção geral, considerando as apontadas circunstâncias do facto, as condições pessoais do arguido e a sua conduta posterior ao crime, não se mostram reunidos os pressupostos para fazer um juízo de prognose de que a ameaça da pena será suficiente para cumprir essa finalidade. 45.ª - Conforme defendem os Tribunais Superiores, tendo em consideração as necessidades de prevenção geral, é importante que a sociedade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, a implicar a perda de confiança no sistema repressivo penal. 46.ª - Na esteira do Prof. Figueiredo Dias, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem decidido que a suspensão da execução da pena não deve ser decretada por a ela se oporem as necessidades de reprovação e prevenção do crime como exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico. 47.ª - Considerando que os factos supra elencados foram praticados no contexto supra descrito, com desprezível insensibilidade moral perante a vítima, um menor, que, apesar de decorridos tantos anos, não expressou qualquer arrependimento, que evidencia dificuldade de controlar os seus impulsos, a suspensão da execução da pena não se nos afigura como compreensível perante o sentido jurídico da comunidade. 48.ª - Assim, a pena de 3 anos de prisão em que foi condenado o arguido (…) não deve ser suspensa na sua execução. 49.ª - Por um lado, porque as circunstâncias pessoais do arguido não apontam para um juízo de prognose favorável a essa suspensão, e por outro, porque, ainda que se entenda ser possível fazer esse juízo de prognose, as exigências de prevenção reclamam que, no concreto, só a pena efectiva de prisão possa responder, adequadamente, às expectativas da comunidade na tutela, pelo sistema de justiça, dos bens jurídicos. 50.ª - Assim sendo, deveria o arguido (...) ter sido condenado, como autor material, de um crime de coacção sexual agravado, previsto e punido pelos artigos 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 99/2001, na pena de 3 anos de prisão. 51.ª - Ou, caso tal não mereça provimento que o arguido (...) seja condenado, como autor material, na forma consumada de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 99/2001, na pena de 3 anos de prisão. 52.ª - Decidindo como decidiu, o tribunal a quo violou os artigos 22.º, 23.º, 40.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 71.º, n.º 1 e 2, 73.º, 172.º, n.º 1 e 2, 163.º, n.º 1, 164.º, n.º 1, 177.º, n.º 4, todos do Código Penal. Termos em deverá ser dado provimento ao recurso e o acórdão recorrido ser revogado em conformidade com o exposto. O recurso foi admitido. O arguido não apresentou resposta. Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, entendendo que o acórdão recorrido não necessita, ao nível da pena, de qualquer intervenção correctiva. Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada disse. Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. * 2. FUNDAMENTAÇÃOO objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, a nulidade do acórdão (art. 379.º, n.º 1, do CPP), os vícios da decisão e as nulidades que não se considerem sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário Secção Criminal STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STJ: de 25.06.1998, in BMJ n.º 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ n.º 484, pág. 271; e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt; Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48; e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321. Delimitando-o, reside em apreciar: A) - do enquadramento dos factos no crime de coacção sexual agravado; B) - da não suspensão da execução da prisão. * No que ora interessa, consta do acórdão recorrido: Matéria de facto provada: 1. No dia 10 de Outubro de 2001, o arguido convidou (...), na data com 12 anos de idade para ir ao quintal propriedade (…), sito no sítio da (…). 2. Já no seu interior, o arguido ordenou ao (…) que se dirigisse para uma divisão de apoio ao quintal e que baixasse as suas calças e, caso não o fizesse, que o amarrava. 3. Como tivesse sentido medo de vir a ser molestado pelo arguido, conforme este quis com a frase que proferiu, (...) pôs as suas calças para baixo. 4. Enquanto o fazia, o arguido introduziu um dedo da sua mão no ânus do menor, ao mesmo tempo que baixava as suas próprias calças e dizia ao (...) que «lhe queria ir ao rabo». 5. Como tivesse magoado o (...), este começou a gritar, tendo quase de imediato aparecido no local algumas pessoas que disseram ao arguido para parar e ao menor para fugir. 6. O arguido tinha pleno conhecimento da idade de (...). 7. Quis satisfazer os seus desejos sexuais e quis introduzir o seu pénis no ânus do menor (...), o que só não conseguiu por este ter gritado e alertado pessoas que ali passavam. 8. Agiu livre, deliberada e consciente de serem as suas condutas proibidas. 9. O arguido tem registados os seguintes antecedentes criminais: a) Por sentença de 21.4.2005, transitada a 1.10.2020, proferida no processo n.º 135/03.8GfLLE do Juízo Local Criminal de Loulé, J3, foi condenado pela prática em 29.3.2003 de 2 crimes de desobediência na pena única de 170 dias de multa à razão diária de 5,00€ e na sanção acessória de proibição e conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses; b) Por sentença de 20.10.2005, transitada a 1.10.2020, proferida no processo n.º 204/03.4GELSB do Juízo Local Criminal de Loulé, J3, foi condenado pela prática em 20.4.2003, de 1 crime de condução em estado de embriaguez na pena de 80 dias de multa à razão diária de 5,00€ e na sanção acessória de proibição e conduzir veículos com motor pelo período de 6 meses e 15 dias; c) Por sentença de 21.12.2005, transitada a 30.9.2020, proferida no processo n.º 1568/04.8TALRA do Juízo Local Criminal de Leiria, J3, foi condenado pela prática em 15.12.2003, de 1 crime de desobediência na pena de 100 dias de multa à razão diária de 6,00€; d) Por sentença de 6.1.2012, transitada a 30.9.2020, proferida no processo n.º 1304/11.2PBLRA do Juízo Local Criminal de Leiria, J3, foi condenado pela prática em 13.12.2011 de 1 crime de coação e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena única de 1 ano de prisão, suspensa por igual período, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano; 10. (...) é o quarto elemento de uma fratria de oito. O seu processo de desenvolvimento decorreu no seio da família de origem, na aldeia de (…) arredores de (…). O ambiente familiar em que cresceu foi genericamente marcado pela coesão familiar, mantendo os pais, ambos já falecidos, um relacionamento ajustado. A situação financeira foi sempre permissível à satisfação das necessidades do agregado, asseguradas pelos rendimentos do trabalho do pai, funcionário numa carpintaria e pela agricultura de subsistência numa parcela de terreno, onde os elementos mais velhos da fratria também trabalhavam. A mãe assumiu o papel da gestão e organização doméstica, bem como dos cuidados dos filhos. A nível educativo fomentaram nos filhos a procura de qualificação escolar e o trabalho na área que fosse mais motivadora. (...) não revelou apetência pela prossecução dos estudos, tendo deixado de estudar com 13 anos de idade, após a frequência do 6º ano de escolaridade. Começou a trabalhar como aprendiz de pintor na área da construção civil, motivado pela obtenção de autonomia financeira para ajudar a família. Manteve-se a viver junto do agregado de origem até aos 20 anos, idade com que casou, tendo construído casa própria junto do agregado de origem. Do casamento, que manteve durante 11 anos, tem três filhos. Foi o principal elemento ativo a nível laboral, trabalhando ao longo deste período sempre como emigrante em vários países, como pintor na área industrial, permitindo à família alcançar uma confortável situação financeira. Em virtude dos longos períodos de emigração, a relação conjugal manteve um registo de baixo envolvimento, tendo sido a participação de (...) na vida familiar e educação dos filhos muito limitada. A relação veio a terminar. O seu modo de vida até aos 41 anos de idade, manteve-se sensivelmente idêntico trabalhando na indústria petrolífera, na área da pintura, em vários países de África e Médio Oriente. Para além do trabalho, que ocupava a maior parte do seu quotidiano, (...) privava com os colegas e viajava nos países onde trabalhava, no sentido de os conhecer melhor, reportando ter sido um período muito gratificante da sua vida, pelas experiências que teve. Em finais de 2000 regressou definitivamente a Portugal, fixando-se inicialmente na aldeia onde nasceu, dando início à atividade laboral por conta própria na área da pintura da construção civil. Por motivos de ordem laboral, em meados de 2001, (...) mudou-se para a zona do Algarve, mais concretamente (…), onde viveu até meados de 2002. O arguido encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde julho de 2020, à ordem do processo 69/20.1 GBGDL após incumprimento da medida de coação de proibição de contactos com a vítima, fiscalizada com recurso a meios de vigilância eletrónica, tendo sido recentemente condenado pela prática de um crime de violência doméstica e de violação da companheira, cuja pena ainda não transitou em julgado. Em meio prisional tem revelado capacidade de contenção dos impulsos e de cumprimento dos normativos, mas em meio livre existem indicadores de que poderá, em situações de tensão, recorrer ao uso de violência. O arguido tem dificuldades ao nível do processamento das emoções, denotando ser pouco envolvido e frio ao nível das relações de intimidade. Motivação: O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção, tal como preceitua o artigo 127 º do C.P.P. O arguido apresentou um discurso revelador de um propósito claro de afastar qualquer responsabilidade, assentando as suas declarações numa postura negatória dos factos e turva quanto ao conhecimento da pessoa do menor. Com efeito, foi evidente a contradição e embaraço que o mesmo revelou no confronto com os factos, começando por negar que conhecia o menor, para depois dizer que conhecia a sua mãe, que viu acompanhada do próprio menor numa ocasião em que a progenitora do ofendido o agredira com uma chapada, motivada pelo arguido lhe ter negado emprestar dinheiro. Por outro lado, do cotejo da leitura das declarações do menor (cuja notificação para julgamento não foi possível efectuar) com a leitura das declarações da testemunha (...) (leitura a que o arguido não se opôs e motivada pelo avivamento de memória, atendendo ao lapso de tempo entretanto ocorrido), resultou evidente que o arguido e menor foram surpreendidos por (...), tendo esta testemunha esclarecido que se deslocou ao local pois havia sido avisado que desconhecidos se estavam a entrar no quintal do seu padrinho (…), vendo arguido (que já conhecia) e ofendido nus da cintura para baixo e de joelhos no chão numa das divisões de apoio ao referido quintal, sito no sítio da (…). Constata-se assim que o local não era a residência do Arguido como refere o ofendido, mas antes a propriedade de um terceiro também em (…). Porém, o ofendido esclareceu de forma pormenorizada a forma como o arguido o abordou, bem como a ordem que lhe dá para baixar as calças, sob a ameaça de o amarrar, ao que acede, altura em que o arguido lhe introduz um dedo no ânus e lhe diz que lhe quer ir ao rabo, sendo que foi precisamente nessa altura em que o ofendido gritou que entrou no local a testemunha (...) e vê ambos despidos da cintura para baixo, aproveitando o ofendido para fugir, assim evitando que o arguido praticasse consigo coito anal. Foi igualmente pelas declarações do ofendido que o Tribunal formou convicção de que o arguido já o conhecia e, como tal, sabia a sua idade. Os factos atinentes ao elemento subjectivo, resultam da própria factualidade objctiva dada como provada que concatenada com as regras da experiência permitem formar convicção segura que o arguido, ordenando ao ofendido que retirasse as calças, introduzindo-lhe um dedo no ânus e dito que lhe queria ir ao rabo, pretendia efectivamente praticar coito anal com o mesmo. O Tribunal atendeu ainda ao assento de Nascimento de fls. 30 para prova da idade do ofendido à data dos factos. Quanto às condições económicas e pessoais do arguido, o Tribunal atendeu ao teor do relatório social junto aos autos. Para prova da ausência de antecedentes criminais - deve ler-se «Para prova dos antecedentes criminais» - do arguido, o Tribunal teve em consideração o teor do certificado de registo criminal. Enquadramento jurídico-penal: (…) Do crime de abuso sexual de crianças Sob a epígrafe “abuso sexual de crianças”, dispõe o art.º 171.º n.º 1, do CP que “quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14, ou levar a que ele seja por este praticado com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão um a oito anos”. O n.º 2 do mesmo preceito estipula que “Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a 10 anos”. Sucede que, à data dos factos, a norma incriminadora (art. 172.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, dispunha o seguinte: 1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 2. Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos. Cotejadas as duas normas, constatamos que a actual redação é mais penalizadora para o arguido, pois actualmente constitui crime consumado de abuso sexual de menores a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, circunstância que à data dos factos não ocorria, apenas constituindo crime, para o que o caso interessa, o acto sexual de coito anal, que no caso dos autos não passou do estádio da tentativa. Assim, sendo, temos um problema de leis no tempo, a resolver de acordo com o art. 2.º do Código Penal, segundo o qual as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependam. Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, o que no caso demanda a aplicação da lei vigente à data dos factos. No que concerne ao bem jurídico protegido, visa-se o livre desenvolvimento da personalidade da criança, em particular, e a liberdade e autodeterminação sexual, em geral. Tutela-se, assim, o livre desenvolvimento físico e psíquico da criança no âmbito sexual, sem experiências traumáticas advindas de intromissões abusivas de adultos. O fim tutelado pela incriminação do abuso sexual de crianças é a protecção absoluta dos menores de 14 anos (o limite etário dos 14 anos é normalmente entendido como a fronteira entre a infância e a adolescência), que, devido à sua natural imaturidade e impreparação devem ser especialmente acautelados contra actos que ponham em perigo o seu normal desenvolvimento sexual. «Protege-se a autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. A lei presume que (...) a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (...) e considera este interesse (...) tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a ameaça de pena criminal». - Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 541 e 542. «Trata-se de um crime de perigo abstracto (...), na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico e psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada (...).» – idem, págs. 542 e 543. Atenta-se nas perturbações fisiológicas e psicológicas de um precoce despertar sexual (seja ou não violento ou consentido), são factos e motivos suficientes para uma tutela jurídica efectuada naqueles termos – cfr. José Mouraz Lopes, Os Crimes Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 81. Ao nível do tipo objectivo, pune-se quem, sendo maior, praticar acto sexual de relevo com menor de 14 anos, ou levar a que ele seja por este praticado por outrem. O número 2 do art. 171 (à data 172.º) prevê uma agravação do crime no caso do acto sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal. Relativamente ao elemento subjectivo do tipo em análise, em qualquer das modalidades da acção previstas no artº. 171º (à data 172.º) e enunciadas supra, para o seu preenchimento, exige-se o dolo, pelo menos sob a forma de dolo eventual, que terá de se verificar relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objectivo (neste sentido vide Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 548). Sintetizando, são elementos do tipo: 1) Menoridade (menos de 14 anos) da vítima; 3) Prática de acto sexual de relevo, 4) sendo que ao nível da agravação, o acto sexual terá de consistir em cópula, coito oral ou coito anal Se o primeiro e segundo elementos do tipo não nos suscitam grandes considerações por serem dados objectivos, já o mesmo não acontece quanto ao que deverá ser entendido por acto sexual de relevo, conceito indeterminado a que a doutrina e jurisprudência têm vindo a densificar. Um acto será considerado quando tem por objecto directo o sexo humano e pelo menos envolve o próprio corpo ou o corpo de outrem; são desde logo todas as acções que de acordo com a sua aparência externa permitem reconhecer a sua relação com o sexo. Associado a esta expressão externa, exige-se um elemento subjectivo na forma de uma tendência sexual do agente, que deve estar consciente dessa relação, não sendo, porém, necessária a intenção de conseguir prazer. Excluem-se assim, e desde logo, as conversas ou as cantigas cujo tema seja o sexo, bem como o acto de as escutar, e também a representação e a contemplação de exposições que envolvam temas sexuais. Quanto à definição de “relevo”, tratando-se de uma designação indeterminada de quantidade ela está em geral associada à quantificação de um resultado. No caso dos actos sexuais, a quantificação que se lhes pode associar permite pôr de lado, qualificando-os como impertinências ou actuações de mau gosto (certos actos que ainda não se incluem no âmbito do tolerável). Deste modo, serão actos sexuais de relevo os que, não sendo insignificantes, se revelam, quando encarados na sua globalidade e de acordo com o modo e a intensidade (incluindo a duração) do agir, perigosos para o correspondente bem jurídico protegido com a incriminação. Revertendo ao caso dos autos, resulta da factualidade provada que, à data dos factos, o arguido tinha 39 anos (era maior) e o ofendido tinha 12 anos, o que era do conhecimento do arguido. Resultou igualmente provado que o arguido, introduziu o dedo no ânus do menor, ao mesmo tempo que baixava as suas próprias calças e dizia ao (...) que «lhe queria ir ao rabo». O ilícito em apreço constitui um crime material ou de resultado, a não produção do resultado típico, traduzido na lesão do bem jurídico leva a que o crime não se possa considerar consumado, sendo certo que, como vimos, a introdução de partes do corpo não era, à data dos factos, elemento do tipo. Assim, se a introdução do dedo do arguido no ânus do menor é, indubitavelmente, um acto sexual de relevo, desde logo pela zona atingida e pelo grau de violação da autodeterminação sexual, não chegando o arguido a praticar o coito anal que anunciava, quedamo-nos no domínio da tentativa. A este respeito, dispõe o artigo 22, n.º 1 do Código Penal que só há tentativa quando o agente pratica actos de execução do crime que decidiu cometer, sem que este chegue, contudo, a consumar-se. Actos de execução são os que preenchem um elemento constitutivo do tipo legal de crime, tal como os que sejam idóneos a produzir o resultado típico, ou ainda os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, sejam de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies anteriormente referidas (n.º 2 do citado artigo). Na verdade, resulta das considerações tecidas pelo arguido, ao pretender praticar coito anal com o menor, ordenando-lhe que baixasse as calças, sob ameaça de o amarrar, baixando as suas próprias calcas e introduzindo um dedo no ânus do menor e dizendo-lhe que queria ir ao rabo, é manifesto que era de esperar que de seguida colocasse o seu pénis no ânus do menor, o que apenas não aconteceu por razões alheias à sua vontade, o menor gritou e ali compareceram pessoas, dissuadindo o arguido de levar avante o seu propósito. O arguido agiu com dolo directo porquanto projectou a sua actividade delituosa e quis concretizá-la, como concretizou, para dessa forma satisfazer os seus desejos e instintos libidinosos. Não tendo resultado provada qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, o arguido será condenado pela prática do crime de abuso sexual de criança na forma tentada. Escolha e medida da pena: O crime de abuso sexual de crianças previsto, à data dos factos, no artigo art. 172.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é punido, em abstracto, com pena de prisão de 3 a 10 anos de prisão, sendo que por força da atenuação especial resultante da tentativa (art 177.º, n.º 1, al. b, do Código Penal), a pena será de 7 meses e 6 dias a 6 anos e 8 meses. Atendendo a que o crime em causa é punível apenas com pena de prisão, não há que proceder à escolha da pena, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, do Código Penal, passando-se, de imediato, à determinação da medida concreta daquela pena. A determinação da concreta medida da pena rege-se pelos critérios contidos nos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal. Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.” Assim, na determinação da medida concreta da pena, é preciso atender às finalidades próprias das penas, previstas no artigo 40.º do Código Penal. De acordo com o n.º 1 deste normativo, “a aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Deste modo, o julgador deve atender às finalidades de prevenção geral (sobretudo positiva), no sentido da defesa dos bens jurídicos e do ordenamento jurídico, assegurando a estabilização das expectativas contrafácticas da comunidade nas normas jurídicas violadas. Além disso, deve também orientar-se por finalidades de prevenção especial, já que a pena visa igualmente a reintegração ou ressocialização do agente do crime, por forma a habilita-lo a adoptar, no futuro, condutas conformes com os valores e bens tutelados pelo direito. O n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal dispõe ainda que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.” O nosso sistema penal assenta no princípio unilateral da culpa, nos termos do qual, não pode haver pena sem culpa, ainda que possa haver culpa sem pena. Além disso, a culpa funciona como o limite inultrapassável da pena. Nestes termos, na esteira da douta formulação do Professor Figueiredo Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Editora, 2001, página 65 e seguintes, que perfilhamos, na determinação da pena concreta deve seguir-se o modelo que comete à culpa a função de determinar o limite máximo da pena, cabendo à prevenção geral fornecer uma moldura cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, cumprindo, por último, à prevenção especial encontrar o quantum exacto da pena dentro da referida moldura da prevenção, que melhor sirva as exigências de ressocialização do agente. Assim, a culpa funciona como moldura de topo da pena, funcionando dentro dela as sub-molduras da prevenção, prevalecendo a geral sobre a especial. Para tanto, atender-se-á, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele”. Com efeito, e atendendo aos normativos supra citados, verifica-se que a favor do arguido estão os seguintes factos: - à data dos factos não tinha antecedentes criminais registados - está social, familiar e profissionalmente inserido - o tempo decorrido desde a prática dos factos Contra o arguido importa apontar as seguintes circunstâncias: - o dolo directo com que actuou. - A circunstância de o menor ter apenas 12 anos de idade e de lhe ter introduzido um dedo no ânus, o que só por si consubstancia já um acto sexual de relevo e agrava a ilicitude da sua conduta, bem como o facto de lhe ter ordenado que retirasse as calças sob ameaça de o amarrar se não obedecesse, o que naturalmente cria ainda mais pressão e temor psíquico no ofendido, menor de idade. Efectivamente, perante o que ficou dito, verifica-se que as necessidades de prevenção especial mostram-se medianas, atendendo por um lado à ausência de antecedentes criminais à data dos factos, contrabalançado pelo facto do arguido ter mantido com o menor acto sexual de relevo (introdução de dedo no ânus), não tendo chegado ao patamar de coito anal pela intervenção de terceiro que os surpreende já com as calças descidas. No que concerne às exigências de prevenção geral, as mesmas revelam-se muito acentuadas, atendendo ao número de vezes que este crime é praticado, causando enorme alarme social, demandando a pena uma expressão que reintroduza na comunidade a confiança na validade da norma violada, sendo certo que o tempo decorrido sobre a prática dos factos ameniza as prementes necessidades de prevenção especial que os casos de abuso sexuais de menores demandam Em face dos factores e das considerações descritas, entende-se ser adequada e suficiente a aplicação ao arguido pela prática do crime de abuso sexual de crianças tentado a pena de 3 anos de prisão. Da suspensão da execução da pena de prisão: Estabelece o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que o Tribunal, no exercício de um poder-dever, e não de uma mera faculdade em sentido técnico jurídico, suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ou posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal). Desta forma, importa fazer um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do Arguido, suspendendo-se a execução da pena de prisão, caso esse juízo seja favorável no sentido de que o mesmo no futuro não voltará a praticar crimes e de que fica assegurada a protecção dos valores – ou bens jurídicos – que a norma legal violada incrimina. O critério que preside à escolha desta pena de substituição assenta em finalidades exclusivamente preventivas, com prevalência para as considerações de prevenção especial de socialização relativamente às quais a prevenção geral funciona como limite para a sua actuação. A finalidade essencial é, assim, a ressocialização do agente na vertente de prevenção da reincidência cujas probabilidades de êxito são aferidas no momento da decisão em função dos indicadores previstos no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal. Em primeiro lugar, o Arguido foi condenado numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pelo que o pressuposto formal da suspensão está observado. Apurou-se que o Arguido, à data da prática dos factos, não tinha registado qualquer antecedente criminal, encontra-se familiarmente inserido. Obviamente que, com o que se vem dizendo, não se pretende aligeirar a gravidade dos factos, mas tão só enquadrá-los para que mereçam do Tribunal o tratamento jurídico mais adequado. Assim, ponderando o que se deixa exposto, considera-se que a simples censura dos factos cometidos e a ameaça da prisão realizam, no caso vertente, as exigências de prevenção especial. Do ponto de vista da prevenção geral, entende-se que à suspensão da execução da pena de prisão não se opõem considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Nestes termos, a pena de prisão em que o Arguido vai condenado será suspensa na sua execução pelo período de 3 anos. * Apreciando: A) - do enquadramento dos factos no crime de coacção sexual agravado: O recorrente, como refere, entende, perante a matéria dada como provada, que, relativamente ao crime em que foi ofendido o então menor (...), os factos integram um crime de coacção sexual agravado, p. e p., pelo art. 163.º, n.º 1, e art. 177.º, n.º 4, ambos do Código Penal. Manifestando concordar com a aplicação das disposições penais vigentes no momento da prática dos factos, porque se mostra mais favorável ao arguido, invoca, para o efeito desse enquadramento, no essencial, que: - O bem jurídico tutelado no crime de coacção sexual é, tal como na violação, o da liberdade sexual; - o traço distintivo entre um e outro passa pela natureza do acto praticado: o acto sexual de relevo, no crime de coacção sexual; a cópula, coito anal ou coito oral, na violação; - Para que se verifique o crime de violação, na forma tentada, é necessário que o agente resolva manter com outra pessoa cópula, coito anal ou coito oral, através de violência ou ameaça grave, que tal crime não se chegue a consumar, que o arguido pratique acto de execução do crime de violação, sendo certo que ao crime consumado corresponde pena superior a três anos de prisão; - Estamos assim perante os elementos típicos de um crime de violação, na forma tentada e, nesse iter criminis, igualmente de um crime de coacção sexual consumado; - Porém, estando consumado o crime de coacção sexual através dos actos sexuais de relevo praticados pelo arguido, nas circunstâncias acima descritas, afigura-se-nos que, tal como concluem Figueiredo Dias e Helena Moniz, quando todos os actos de execução do crime tentado de violação integram o tipo de crime de coacção sexual, o agente deverá ser punido pelo crime de coacção sexual, dado que não existem razões para que se dê nesta hipótese prevalência ao crime de violação, tanto mais que o crime de coacção sexual funciona aqui como tipo fundamental; - Relativamente aos casos de concurso em que o agente comete, com a mesma acção e relativamente à mesma vítima o crime de abuso sexual de crianças e o de coacção sexual ou de violação, entende o Prof. Figueiredo Dias, “Considerando a lei expressamente que em todos os casos aqui em apreço (dos art. 163.º, 164.º, 165.º e 166.º) punido é só o crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele (cfr. art. 177 § 11 ss).” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 552); - Ao crime de coacção sexual agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas do artigo 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, ambos do Código Penal, corresponde, em abstracto, uma pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses; - Caso assim não se entenda, teria de ser condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma consumada, previsto, à data dos factos, no artigo art. 172.º, n.ºs 1, do Código Penal, e punido, em abstracto, com pena de prisão de 1 a 8 anos de prisão. Vejamos. Na versão à data dos factos, tem-se em conta a seguinte previsão dos tipos legais em questão: - art. 172.º do CP, sob a epígrafe “Abuso sexual de crianças”: “1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 2 - Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos. (…)”; - art. 163.º do CP, sob a epígrafe “Coacção sexual”: 1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. (…)”. E em sede de agravação: - o art. 177.º do CP, sob a epígrafe “Agravação”: (…) 4 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º e 168.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos. (…)”. O Tribunal a quo enveredou pela subsunção dos factos ao crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, por referência àquele art. 172.º, conjugado com o art. 22.º, n.º 1, do CP. Fundamentou, “Sintetizando, são elementos do tipo: 1) Menoridade (menos de 14 anos) da vítima; 3) Prática de acto sexual de relevo, 4) sendo que ao nível da agravação, o acto sexual terá de consistir em cópula, coito oral ou coito anal e, ainda, “se a introdução do dedo do arguido no ânus do menor é, indubitavelmente, um acto sexual de relevo, desde logo pela zona atingida e pelo grau de violação da autodeterminação sexual, não chegando o arguido a praticar o coito anal que anunciava, quedamo-nos no domínio da tentativa”. Assim, pese embora tivesse acolhido a perspectiva de que a introdução do dedo do arguido no ânus do menor constituísse já acto sexual de relevo, atribuiu a prevalência à subsequente pertinência de que, acompanhado, como se provou, de que “ao mesmo tempo que baixava as suas próprias calças e dizia ao (...) que «lhe queria ir ao rabo»”, “Quis satisfazer os seus desejos sexuais e quis introduzir o seu pénis no ânus do menor (...), o que só não conseguiu por este ter gritado e alertado pessoas que ali passavam”. Deste modo, em detrimento da consumação daquele “prévio” acto sexual de relevo, pôs a tónica na intencionalidade subjacente ao acto que se seguiria, o que se apresenta tendencialmente consentâneo com a imagem que os factos fornecem e, por isso, de algum modo, aceitável, não sem, porém, se defrontar com a problemática relativa à circunstância de que os factos, tal como o recorrente preconiza, se revelarem como integrando, também, o crime de coacção sexual daquele art. 163.º e, agravado, nos termos do aludido art. 177.º. Tanto mais que, no caso, dentro desses parâmetros, a punição, em abstracto, do crime de coacção sexual agravado se reconduz a prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses, enquanto que, ao crime de abuso sexual de criança tentado, por que o Tribunal optou, cabe prisão de 7 meses e 6 dias a 6 anos e 8 meses. Além de que, em presença de identidade do bem jurídico protegido por ambos os ilícitos (a liberdade sexual no seu sentido mais amplo, ainda que a autodeterminação sexual, subjacente ao crime de abuso sexual, surja vocacionada para a preservação do livre desenvolvimento da personalidade em razão da pouca idade da vítima), o crime de coacção sexual constitui, comparativamente à especialização de que a violação se reveste, o tipo fundamental (Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, tomo I, pág. 446), exigindo, contudo, para a sua prática, diferentemente do crime de abuso sexual de crianças, seja efectivada através de violência, ameaça grave ou colocação da vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir. Ora, assente, no caso, a existência de acto sexual de relevo, desde logo mediante a introdução do dedo do arguido no ânus do menor, tal como o Tribunal e o recorrente reconhecem, afigura-se que o meio típico de ameaça grave se descortina, já que o arguido referiu ao menor que, se não baixasse as calças, o amarrava. A ameaça, para integração do conteúdo desse meio típico de coacção, tem de ser grave não só segundo o seu conteúdo, mas também segundo a sua medida e a sua intensidade (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 455). E na situação, encontrando-se o menor de 12 anos e com inevitável inferioridade física perante o arguido, a eminência da privação da liberdade não pode deixar de configurar ameaça grave, o mesmo é dizer, com mal importante, e manifesta relação entre a mesma e a finalidade que teve em vista. Crê-se que a coacção assumiu um desvalor autónomo, não obstante viesse a anteceder o objectivo, final, do arguido. E a propósito do concurso entre o crime de abuso sexual e o crime de coacção sexual e das dificuldades que a realidade suscita nesse âmbito, designadamente pela consagração de molduras penais iguais, punido é só o crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 552). Como assinalado pelo recorrente, Também o Professor Figueiredo Dias, no comentário ao crime de violação, defende que “Em matéria de tentativa vale sobretudo sublinhar que numa boa parte dos casos em que a violação não venha a consumar-se persistirá, em todo o caso, a punibilidade do agente pelo crime do art. 163.º (se na execução da tentativa ele houver cometido actos sexuais de relevo). (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 474). E ainda, conclui aquele ilustre penalista, “Isto porém não significa que entre a tentativa de violação e a coacção sexual interceda uma relação de concurso efectivo, mas só de concurso legal: restando saber se o agente deve ser punido por aquela tentativa ou pela coacção consumada. Em abstracto, a tentativa de violação é menos punida que a coacção sexual consumada e não existem razões para que se dê nesta hipótese prevalência ao crime de violação, tanto mais quanto o crime de coacção sexual funciona aqui como tipo fundamental (“consunção impura”, cfr. sobre o conceito EDUARDO CORREIA II 207). Ao menos em via de princípio, por isso, deverá o agente ser punido pela coacção sexual consumada.” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 454). Identicamente, acompanhando Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 476, O crime de abuso sexual de crianças é consumido pelo crime de coacção sexual ou de violação. Por exemplo, quando o agente use de violência sobre menor de 14 anos para praticar acto sexual de relevo, ele comete o crime do artigo 163.º, n.º 1, agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 6. (…), a punição do crime nos termos agravados do artigo 177.º, n.º 6, está numa relação de concurso aparente (consunção) com o crime de abuso sexual de crianças. Por fim, neste âmbito, a pertinente fundamentação do Acórdão do STJ de 29.10.2008, rel. Conselheiro Santos Cabral, no proc. n.º 08P2874, in www.dgsi.pt: (…) sufraga-se o entendimento expresso por Helena Moniz (Revista “Portuguesa de Ciência Criminal” Ano 15 pag 23.3) de que, quando os actos sexuais praticados consubstanciam a tentativa de violação e um crime de coacção sexual, a grande diferença entre uma situação e a outra é a intenção do agente ligada ao crime de violação, que será a de praticar cópula, coito anal ou coito oral. Como refere a autora citada, a atribuição de relevância à punição da tentativa em relevância ao crime consumado constituiria uma prevalência da punição de uma intenção em relação à punição de um facto. Em ambas as situações o agente que pratica estes actos realiza-os sem, no entanto, conseguir que a vítima sofra ou pratique cópula, coito anal ou coito oral; o agente fica-se pelo estádio da tentativa de crime de violação, que simultaneamente constitui um crime de coacção sexual consumada. Uma vez que se trata de um caso de concurso aparente entre a tentativa do crime de violação e o crime de coacção sexual - o crime fundamental - segundo as regras da consunção, será o agente punido pelo crime de coacção sexual consumado. Apesar de que o entendimento perfilhado pelo Tribunal não enferme de especial incorrecção, aliás, tendo secundado a integração dos factos levada a cabo pela acusação, maior rigor impõe que, de acordo com os indicados fundamentos, a posição defendida pelo recorrente mereça ser acolhida. Destarte, a conduta do arguido vai enquadrada no crime de coacção sexual agravado, p. e p. pelos arts. 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP, motivo por que, nesta dimensão, se altera a operada condenação. B) - da não suspensão da execução da prisão: Apesar de concordar com a medida da pena aplicada de 3 anos de prisão (sendo que, ao crime de coacção sexual agravado, cabe moldura penal mais elevada que ao crime de abuso sexual de crianças tentado, como referido), o recorrente defende que a mesma não deva ser suspensa na execução, apelando às necessidades de prevenção geral e à ausência de prognose favorável. Reporta-se às finalidades da punição e ao que deve atentar-se na determinação da medida da pena, por referência aos arts, 40.º e 71.º do CP. Invoca que: - É elevado o grau de ilicitude da conduta praticada e intenso de apresenta o dolo, que reveste a modalidade de dolo directo; - O modo de execução também se revela particularmente desvalioso, porquanto o arguido afectou de forma intensa um valor essencial relativamente a um menor de doze anos de idade, com consequências necessárias no e desenvolvimento da personalidade e na formação e fortalecimento de valores essenciais; - O arguido desrespeitou de forma grave a liberdade do menor e insensibilidade perante a humilhação e sofrimento que lhe infligiu com a sua conduta, revelando, através da prática de tais actos, baixeza de carácter, mais acentuado se tivermos em consideração que o arguido era amigo do pai do menor e que era visita de casa deste, pelo que lhe merecia mais respeito; - A gravidade dos factos revela um sentimento de profunda desconformidade do arguido com valores essenciais da sociedade e uma defeituosa personalidade, que impõe acrescidas exigências de reinserção; - O modo de execução desvalioso, conduzindo o menor para um local isolado, num terreno, e depois para uma casa de banho, onde lhe disse que o ali amarrava se não despisse, criando temor no menor com doze anos de idade, que se sentiu constrangido a despir-se e introduzindo o dedo no rabo, magoando-o e dizendo-lhe que lhe queria ir ao rabo; - Não se mostrou arrependido, nem assumiu a gravidade dos actos que cometeu patenteando total insensibilidade pelos valores juridicamente tutelados, demonstrando que não interiorizou a gravidade da sua conduta; - As consequências, deixando o menor naturalmente traumatizado com tal situação que vivenciou; - As condições pessoais do arguido e a sua situação económica, de modesta condição económica e social e com baixa escolaridade; - Os fins e motivos que determinaram o arguido à prática do acto, dominado por desígnios sexuais primários, que visou a satisfação dos instintos sexuais, indiferente ao interesse do desenvolvimento harmonioso do menor da esfera sexual. E concretamente acerca da suspensão da execução da prisão: - todas as circunstâncias que rodearam a acção criminosa, são de tal forma censuráveis que merecem uma censura efectiva; - não se pode olvidar os factores de prevenção especial e geral, a personalidade evidenciada pelo arguido e a postura demonstrada em sede de audiência de discussão e julgamento; - Deve optar-se pela suspensão da execução da pena quando existir um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido; - cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena não colida com as finalidades da pena, ou seja, a defesa dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; - numa perspectiva de prevenção especial, a suspensão da execução da pena deverá favorecer a reinserção do condenado e, numa perspectiva de prevenção geral, deve atender às exigências mínimas e irrenunciáveis da defesa do ordenamento jurídico, importando que a sociedade não encare a suspensão como uma forma de impunidade; - Da conduta anterior sabe-se, pelo teor do relatório social junto aos autos, que o arguido constituiu família, foi trabalhar para o estrangeiro, e a relação conjugal manteve um registo de baixo envolvimento, tendo sido a participação de (...) na vida familiar e educação dos filhos muito limitada, terminando depois a relação conjugal; - Depois da prática destes factos, o arguido sofreu várias condenações, mas por crimes de diferente natureza. Decorre ainda do relatório social que, actualmente, “o arguido encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde julho de 2020, à ordem do processo 69/20.1 GBGDL após incumprimento da medida de coação de proibição de contactos com a vítima, fiscalizada com recurso a meios de vigilância eletrónica, tendo sido recentemente condenado pela prática de um crime de violência doméstica e de violação da companheira, cuja pena ainda não transitou em julgado; - Em meio prisional tem revelado capacidade de contenção dos impulsos e de cumprimento dos normativos, mas em meio livre existem indicadores de que poderá, em situações de tensão, recorrer ao uso de violência; - O arguido tem dificuldades ao nível do processamento das emoções, denotando ser pouco envolvido e frio ao nível das relações de intimidade.” - Assim, o arguido não expressou qualquer vontade nem demonstrou factos que tenham reflexos no seu comportamento futuro, designadamente de que não repetirá condutas delituosas, pelo contrário, atenta a personalidade demonstrada e comportamento processual, caso nova situação se lhe depare, estamos em crer que o arguido volta a delinquir; - Sendo elevadas as necessidades de prevenção geral, considerando as apontadas circunstâncias do facto, as condições pessoais do arguido e a sua conduta posterior ao crime, não se mostram reunidos os pressupostos para fazer um juízo de prognose de que a ameaça da pena será suficiente para cumprir essa finalidade. - Considerando que os factos supra elencados foram praticados no contexto supra descrito, com desprezível insensibilidade moral perante a vítima, um menor, que, apesar de decorridos tantos anos, não expressou qualquer arrependimento, que evidencia dificuldade de controlar os seus impulsos, a suspensão da execução da pena não se nos afigura como compreensível perante o sentido jurídico da comunidade. No essencial, por seu lado, o Tribunal sustentou a suspensão da execução da prisão: “O critério que preside à escolha desta pena de substituição assenta em finalidades exclusivamente preventivas, com prevalência para as considerações de prevenção especial de socialização relativamente às quais a prevenção geral funciona como limite para a sua actuação. A finalidade essencial é, assim, a ressocialização do agente na vertente de prevenção da reincidência cujas probabilidades de êxito são aferidas no momento da decisão em função dos indicadores previstos no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal. (...) Apurou-se que o Arguido, à data da prática dos factos, não tinha registado qualquer antecedente criminal, encontra-se familiarmente inserido. Obviamente que, com o que se vem dizendo, não se pretende aligeirar a gravidade dos factos, mas tão só enquadrá-los para que mereçam do Tribunal o tratamento jurídico mais adequado. Assim, ponderando o que se deixa exposto, considera-se que a simples censura dos factos cometidos e a ameaça da prisão realizam, no caso vertente, as exigências de prevenção especial. Do ponto de vista da prevenção geral, entende-se que à suspensão da execução da pena de prisão não se opõem considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Nestes termos, a pena de prisão em que o Arguido vai condenado será suspensa na sua execução pelo período de 3 anos”. Ora, o sistema sancionatório do nosso CP assenta na concepção básica de que a pena privativa da liberdade – sendo embora um instrumento de que os ordenamentos jurídico-penais actuais não conseguem ainda infelizmente prescindir – constitui a ultima ratio da política criminal (…) bem pode afirmar-se que o CP vigente deu realização (…) aos princípios político-criminais da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão (Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs. 52/53). Também, segundo Anabela Miranda Rodrigues, “Sistema Punitivo Português”, Revista Sub Judice, n.º 11, Janeiro/Junho.1996, pág. 32, A principal linha de força a destacar aqui é que a prisão (…) deve ver a sua aplicação reduzida aos casos de cometimento de crimes mais graves em que uma reacção através de outras formas de pena não poderia assegurar o efeito essencial de prevenção geral desejado. Nisso se traduz a natureza da prisão como ultima ratio, em sintonia com o art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, designadamente tendo em conta o subjacente princípio da proporcionalidade, consubstanciado, segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, volume I, págs. 392 e seg., na proibição do excesso, que se desdobra nos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade em sentido restrito. As finalidades das penas - de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização -, que emergem da previsão do art. 40.º, n.º 1, do CP, conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime, mas sempre tendo presente a real necessidade da aplicação da pena, na qual se incluirá, num sentido amplo, o seu modo de execução. E se essas finalidades se puderem atingir de modo menos gravoso que com a sujeição a prisão, há que dar prevalência a outras penas, como sejam, as previstas penas de substituição, cujo elenco e âmbito de aplicação, através da revisão do Código operada pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, foram alargados, na sequência do que já era afirmado na Exposição de Motivos constante da Proposta de Lei n.º 98/X (na origem dessa revisão), de que «A revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado» e que «de entre as suas principais orientações, destacam-se: (…) a diversificação das sanções não privativas da liberdade, para adequar as penas aos crimes, promover a reintegração social dos condenados e evitar a reincidência». Em sintonia, confere-se, em geral, e também face ao princípio da subsidiariedade da intervenção penal, a preferência por reacções criminais não detentivas, devendo as detentivas só ter lugar quando aquelas não se revelarem adequadas ou suficientes à prevenção, sendo que, ainda, a aplicação de pena privativa da liberdade tem necessariamente de se dirigir, mormente, à ressocialização. E na ponderação relativa das finalidades punitivas, a confiança na validade das normas tem de ser garantida pela afirmação da integridade axiológica que a própria condenação em si mesma sempre traduz. A suscitada suspensão da execução da prisão consubstancia medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico, que tem a virtualidade, além do mais, de dar expressão a que a prisão (e sua execução) constitui essa ultima ratio da punição, apesar de limitada pela salvaguarda das referidas finalidades punitivas. Do ponto de vista dogmático, é uma pena de substituição, já que é necessariamente aplicada em substituição da pena de prisão concretamente determinada, mas revestindo a natureza de verdadeira pena, com carácter autónomo e com campo de aplicação, regime e conteúdo político-criminal próprios. Por isso, a sua aplicação funda-se em critérios de legalidade, não de moralidade, havendo que respeitar as exigências legais para a sua aplicação, as quais, no essencial, se reconduzem à ideia da existência de prognóstico favorável quanto ao comportamento futuro do agente, sem esquecer todas as circunstâncias que, na vertente da medida da pena, em concreto, se coloquem e não colidam com as necessidades preventivas que se deparem. A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos - «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo e, a pág. 501, Ela (a prevenção geral) deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…) como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias (Figueiredo Dias, ob. antes cit., pág. 343). São, pois, unicamente, considerações de prevenção, mormente sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, e não de culpa, que devem conduzir a apreciação acerca da aplicação da suspensão da execução da prisão (mesmo Autor, ob. cit., pág. 344 e, entre muitos, o Acórdão do STJ de 20.02.2008, no proc. n.º 08P295, in www.dgsi.pt, segundo o qual, Para aplicação desta pena de substituição necessário se torna que o julgador se convença de que o facto cometido não está de acordo com a personalidade do arguido, que foi caso acidental, esporádico, ocasional, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas, não olvidando que a pena de substituição não pode colocar em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos). Não deverá, pois, ser decretada, mesmo que o tribunal conclua por um prognóstico favorável à luz de considerações exclusivas de socialização do arguido, quando a essa suspensão se opuserem as finalidades da punição, nomeadamente as considerações de prevenção geral sob a forma dessas exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que só por estas exigências se limita o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto. Tal prognose favorável consiste na esperança de que o condenado sentirá a condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum delito (Jescheck, “Tratado de Direito Penal, Parte Geral”, 2.º vol., pág. 1154, edição em castelhano). Acresce que é dever do juiz assentar o incontornável «juízo de prognose», favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza, o que não quer dizer, obviamente, que tenha de atingir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do agente. Não obstante, pois, sempre e inevitavelmente, com algum risco fundado e calculado, mas ainda assim assente em razões minimamente fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, sob pena de frustração das finalidades punitivas e, mormente, de se colocar em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos. Revertendo, então, ao concreto, entende-se que a argumentação do recorrente, se bem que relativamente consentânea com os critérios gerais atendíveis e, até, diga-se, legitimada pela situação de fronteira que os autos revelam, não impõe, contudo, que se altere a posição tomada pelo Tribunal. Na verdade, a apreciação efectuada no acórdão, ainda que algo sucinta, não deixou de atender às exigências de prevenção que devem presidir à análise em vista, tendo colocado a tónica na ausência, à data dos factos, de antecedentes criminais e à inserção familiar do arguido. A tanto haverá que acrescentar-se, por relevante, o tempo decorrido desde os factos, que remontam a Outubro de 2001, ainda que, pelo menos em parte, isso tivesse resultado, como o recorrente assinala, do desconhecimento do paradeiro do arguido. As suas condenações posteriores aos factos versaram ilícitos de diversa natureza e, também, por crimes praticados há tempo considerável (em 2003 e 2011). Não se descuram as elevadas exigências de prevenção geral que o crime de coacção sexual agravado reclamam, dada a repulsa da consciência comunitária que desencadeia, e a vários níveis, de inegável relevância negativa, impondo, pois, resposta punitiva adequada. Por isso, as considerações do recorrente, nessa vertente, são compreensíveis. Todavia, haverá que sopesá-las com a dimensão dos actos em presença, sendo que estes, embora com gravidade assinalável, não se colocam em patamar que se revele, de todo, intolerável com a sujeição a pena não privativa da liberdade. Relativamente às necessidades de prevenção especial, o Tribunal sublinhou, e bem, “mostram-se medianas, atendendo por um lado à ausência de antecedentes criminais à data dos factos, contrabalançado pelo facto do arguido ter mantido com o menor acto sexual de relevo (introdução de dedo no ânus), não tendo chegado ao patamar de coito anal pela intervenção de terceiro que os surpreende já com as calças descidas”. Acrescente-se, ainda, que assumem a importância atinente aos aspectos de personalidade do arguido que se provaram, suscitando, assim, algumas reservas, mas não de molde a uma premente defesa da sociedade que lhes deva estar associada ao ponto de requerer a privação da liberdade. Por seu lado, o quadro vivencial do arguido não afasta, forçosamente, o juízo de prognose favorável necessário à suspensão da execução da prisão. Sem prejuízo de que, das suas condições pessoais e da sua postura em audiência, decorra alguma dificuldade na densificação desse juízo, entende-se que se apresenta ainda tendencialmente tolerada a esperança de que se conduza de acordo com as normas vigentes e, além, do mais, na vertente sexual que aqui se depara. Ponderado todo o circunstancialismo, crê-se, pois, que a suspensão da execução da prisão contribuirá para a reinserção social do arguido e não afecta irremediavelmente as exigências, sobretudo de prevenção geral, que ao caso importam. * DECISÃO Em face do exposto, decide-se: - conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, - em substituição, condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de coacção sexual agravado, p. e p. pelos arts. 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP (na redacção conferida pela Lei n.º 99/2001, de 25.08); - no mais, manter o acórdão recorrido. Sem custas. * Processado e revisto pelo relator. 12.Outubro.2021 Carlos Jorge Berguete João Gomes de Sousa |