Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
971/18.0T8STR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 971/18.0T8STR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) e mulher (…) intentaram contra (…) a presente acção declarativa, pedindo a sua condenação no pagamento das benfeitorias que realizaram no prédio que foi vendido ao R., no valor de € 304.500,00, acrescido de juros contados desde a citação.
Alegam para o efeito que compraram a (…) e mulher (…) três prédios rústicos, artigos (...), (...) e (...), da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias.
Adquiridos os prédios pelos vendedores, foram os mesmos registados sob o nº …/20090519, com a indicação de que abrange 3 prédios.
Os vendedores, (…) e mulher (…), foram declarados insolventes e o administrador da insolvência resolveu o contrato de compra e venda celebrado com os AA., revertendo a compra e venda, voltando o prédio à Massa Insolvente, vendendo posteriormente, em 19.11.2015 o prédio ao R..
Mais alegam os AA. que, apesar da resolução da compra e venda a favor da Massa Insolvente, devem ser indemnizados pelas benfeitorias que realizaram no prédio, entre a data de aquisição (07.01.2011) e a data da resolução em benefício da Massa (29.05.2012), e que foram por si custeadas, no valor de € 304.500,00.
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Citado, o R. apresentou contestação invocado a excepção dilatória de caso julgado, por as questões suscitadas pelos AA. já terem sido apreciadas no âmbito de outras acções já transitadas em julgado.
Os AA. intentaram em 26.09.2012 acção de impugnação da resolução do contrato de compra e venda, com o Proc. n.º 1910/11.5TBVNO-G. Esta acção foi julgada improcedente com fundamento na caducidade do direito de impugnação da resolução e transitou em julgado depois de confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
Posteriormente, em 20.01.2016, os AA. intentaram uma nova acção contra a Massa Insolvente e o R. (…), com o Processo nº 1910/11.5TBVNO-J, do Juízo de Comércio de Santarém – J2, pedindo:
I) a condenação da R. Massa Insolvente de (…) e (…) no pagamento do preço do prédio que foi objecto da resolução;
II) a condenação do R. (…) a reconhecer que, operada a acessão industrial imobiliária, são os AA. os proprietários das benfeitorias e do prédio, mediante a obrigação destes lhe pagarem o preço do prédio.
Subsidiariamente, III) a condenação do R. (…) a pagar-lhes o valor das benfeitorias, ou seja, a quantia de € 304.500,00, acrescida de juros desde a citação.
Na contestação, os RR. Massa Insolvente de (…) e (…) e (…) invocaram a excepção de caso julgado. Foi proferida sentença que declarou procedente a excepção de autoridade do caso julgado e absolveu os RR. da instância. A sentença considerou que, em face da decisão de improcedência da acção de impugnação da resolução em benefício da Massa, proferida no âmbito do Processo n.º 1910/11.5TBVNO-G, e da consequente declaração de reconhecimento do direito de propriedade da Massa Insolvente sobre o prédio dos autos, encontravam-se os AA. impedidos de discutir os termos do reconhecimento de tal direito de propriedade na nova acção, independentemente dos fundamentos jurídicos invocados para esse efeito.
Esta decisão transitou em julgado em 21.03.2017.
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Os AA. pronunciam-se na réplica quanto às excepções e à litigância de má-fé, concluindo pela sua improcedência.
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Foi proferido saneador sentença onde se verificou procedente a excepção de caso julgado e foi o R. absolvido da instância.
Os AA. foram condenados como litigantes de má fé.
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Desta sentença recorrem os AA. defendendo que não há caso julgado que impeça o conhecimento do pedido uma vez que não existe a tripla identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido. Mais alegam que a figura da autoridade do caso julgado corresponde a errada interpretação e aplicação da doutrina e da jurisprudência já que a lei não a contempla direta ou inequivocamente.
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O recorrido contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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A matéria de facto considerada pelo tribunal recorrido é a seguinte:
1 - Correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, uma acção com Proc. nº 1910/11.5TBVNO-G, no qual foram AA. (…) e (…) e R. a Massa Insolvente de (…) e (…), na qual os AA. pediram que fosse revogada a resolução em benefício da Massa Insolvente, da escritura de compra e venda que haviam outorgado como compradores, mantendo-se a sua titularidade sobre o prédio.
2 – No Proc. nº 1910/11.5TBVNO-G foi proferida sentença que julgou improcedente por caducidade do direito de impugnação da resolução em benefício da Massa Insolvente, absolvendo a Massa Insolvente de (…) e (…) do pedido, sentença que foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e que transitou em julgado em 23.07.2013.
3 – Correu no Juízo de Comércio de Santarém – J2, uma acção com Proc. nº 1910/11.5TBVNO-J, no qual foram AA. (…) e (…) e R. a Massa Insolvente de (…) e (…) e (…), na qual os AA. pediram I) a condenação da R. Massa Insolvente de (…) e (…) no pagamento do preço do prédio que foi objecto da resolução; II) a condenação do R. (…) a reconhecer que, operada a acessão industrial imobiliária, são os AA. os proprietários das benfeitorias e do prédio, mediante a obrigação destes lhe pagarem o preço do prédio. Subsidiariamente, III) a condenação do R. (…) a pagar-lhes o valor das benfeitorias, ou seja, a quantia de € 304.500,00, acrescida de juros desde a citação.
4 – No Proc. nº 1910/11.5TBVNO-J, do Juízo de Comércio de Santarém – J2 foi proferida sentença que julgou verificada a excepção de caso julgado da sentença proferida no Proc. nº 1910/11.5TBVNO-G, e absolveu os RR. da instância, e que transitou em julgado em 21.03.2017.
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Ao longo do que se segue teremos em conta o estudo de Rui Pinto com o título «Exceção e Autoridade do Caso Julgado ­— Algumas notas Provisórias», publicado na revista Julgar Online, de Novembro de 2018. Este estudo expõe o problema com a doutrina e jurisprudência actualizadas pelo que para ele remeteremos sempre que necessário.
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O resumo dos factos é este:
Os AA. compraram três prédios onde realizaram benfeitorias. Contudo, tal venda foi resolvida a favor da Massa Insolvente dos vendedores e os prédios foram, depois, vendidos ao R..
Foram propostas duas acções sobre esta questão.
Numa (apenso G do processo de insolvência), proposta contra a Massa Insolvente, os AA. pediram que fosse revogada a resolução em benefício da Massa Insolvente, da escritura de compra e venda que haviam outorgado como compradores, mantendo-se a sua titularidade sobre o prédio. Foi julgada improcedente por estar caducado o direito de impugnar a resolução.
Noutra (apenso J), proposta contra a Massa Insolvente e o presente R., foi pedido que a Massa Insolvente pagasse o preço da compra dos prédios e que o R. fosse condenado a reconhecer que os AA. são os proprietários das benfeitorias. Por último, e a título subsidiário, que o R. fosse condenado a pagar-lhes o preço dessas benfeitorias. Nesta acção foi julgada procedente a excepção de caso julgado da sentença proferida na outra acção (apenso G).
No presente processo, os AA. demandam só o R. (que foi quem comprou à Massa Insolvente os três prédios) pedindo que este seja condenado a pagar o valor das benfeitorias realizadas.
O fundamento da decisão recorrida está a p. 11:
«Do confronto do pedido formulado neste processo, com aqueles que os AA. já formularam no Proc. 1910/11.5TBVNO-J, resulta claramente que o pedido de condenação do R. (…) a pagar-lhes as benfeitorias por eles edificadas no prédio, no valor de € 304.500,00 ficou definitivamente decidido nesse processo».
É contra este entendimento que os recorrentes se insurgem.
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Começam os recorrentes por afirmar que a figura da autoridade do caso julgado, como algo diferente do próprio caso julgado, não tem apoio legal.
Mas não têm razão. Não há erro da doutrina ou da jurisprudência em admitir tal figura pois que o fundamental é que a nova questão jurídica tenha sido considerada, mesmo que não decidida expressamente, numa anterior sentença. Trata-se apenas de um efeito do caso julgado.
«O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem.
«O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur.
«Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão» (negritos no original) (Rui Pinto, ob. cit., p. 6).
Como também escrevem Lebre de Feitas e Isabel Alexandre (Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, Coimbra, 2017, p. 599), a «exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito».
Não se trata, pois, de uma invenção (passe a expressão) inútil mas tão-só do reconhecimento de todas as consequências possíveis do alcance de uma sentença. Distingue-se o impedimento de uma nova decisão sobre objecto igual (efeito negativo) do conteúdo de uma decisão anterior que vincula a posterior decisão sobre objecto distinto (efeito positivo). Daqui extrai a Relação de Guimarães, em ac. de 7 de Agosto de 2014, as seguintes conclusões:
«- Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente;
«- Quando a apreciação do objecto processualmente antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior.
«Ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objectos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a excepção do caso julgado».
Ponto é que, para efeitos positivos do caso julgado, a decisão anterior constitua um pressuposto da nova. Como escreve o citado Autor, o «efeito positivo externo consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respetivos objetos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objetos processuais conexos» (p. 25).
No efeito negativo do caso julgado, a identidade de elementos indicados no art.º 581.º, Cód. Proc. Civil, tem de existir; já no efeito positivo tal identidade não é exigível, bastando que o objecto da segunda acção esteja consumido pelo da primeira (seja por conexão ou qualquer outra ligação entre ambos).
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Por último, um dos elementos que permitem a formação do caso julgado é o da preclusão, isto é, a perda da oportunidade, quando ela existia, de discutir um dado objecto da acção. Como é sabido, toda a defesa deve ser deduzida da contestação (art.º 573.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil) sendo corolário deste princípio da concentração da defesa a preclusão: se não impugnar os factos alegados pelo autor, se não alegar os factos que integram uma excepção ou mesmo se não deduzir excepções, fica sem a possibilidade de o vir a fazer num momento posterior (cfr. Lebre de Freitas, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 2.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 295; e também com Isabel Alexandre, ob. cit., p. 566).
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Ainda na delimitação do caso julgado, não podemos deixar de considerar os fundamentos da decisão. Se é só esta que transita nos precisos termos e limites em que julga (art.º 621.º, Cód. Proc. Civil), as razões do decidido são imperiosas para conhecermos os termos do julgamento. Como escreve Rui Pinto, o «título jurídico de onde emanam efeitos para a esfera do destinatário da decisão é, assim, a parte dispositiva nos termos dos fundamentos» (p. 19).
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A sentença recorrida, como acima se disse, julgou procedente a excepção de caso julgado (ou seja, o seu efeito negativo, inibitório de propositura de nova acção) com o fundamento que o pedido agora formulado nesta acção já havia sido apresentado na anterior (o apenso J), sendo certo que a acção foi julgada improcedente. Afirma que «é forçoso concluir que o pedido formulado pelos AA. já foi apreciado nos processos nº 1910/11.5TBVNO-G e nº 1910/11.5TBVNO-J».
A primeira decisão (improcedência da acção de impugnação da resolução em benefício da massa) tem como efeito positivo que o direito de propriedade sobre os prédios não mais pode ser discutido pelos recorrentes.
A segunda decisão foi uma decisão que não conheceu dos pedidos (principal e subsidiário) por força de uma excepção dilatória (o caso julgado, precisamente). A sentença entendeu que o caso julgado formado pela primeira sentença obstava ao conhecimento do mérito da causa relativamente a todos os pedidos. Com efeito, se o caso julgado tivesse sido entendido como restrito aos pedidos principais, os de conhecimento obrigatório, o tribunal conheceria do pedido subsidiário. A força vinculativa da primeira sentença não impedia, admitindo sem conceder, que o tribunal julgasse o segundo pedido. Mas, e é indiferente avaliar a bondade da segunda sentença (a função do caso julgado é a certeza da definição jurídica de uma situação e não a correção dessa definição), o certo é que o tribunal, ao não conhecer do pedido subsidiário, o fez porque o caso julgado também impedia que dele conhecesse.
Assim, está vedado aos recorrentes voltar a suscitar a questão das benfeitorias porque o tribunal já decidiu que ela estava a coberto da primeira sentença, mesmo que o pedido igual ao desta acção tivesse sido apresentado a título subsidiário.
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Notaremos ainda que, ao contrário do que afirmam os recorrentes, existe aqui identidade de pedido, causa de pedir e sujeitos entre esta acção e acção do apenso J (a segunda).
As partes (recorrentes e recorrido como AA. e R.) são as mesmas, a causa de pedir é a mesma (indemnização por realização de benfeitorias) e o pedido também é igual (condenação no pagamento de tais benfeitorias).
Em função disto, a sentença recorrida é de manter, tanto no que toca à consideração da autoridade do caso julgado como no que toca à litigância de má fé.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Évora, 2 de Maio de 2019
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos