Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
878/24.2PAPTM.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
COACÇÃO SEXUAL
CONCURSO APARENTE
CONCURSO EFETIVO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: Constituindo uma evidência que os bens protegidos com as incriminações de violência doméstica e de coação sexual não são coincidentes, o significado social e o sentido social da ilicitude material de uma e de outra das ditas incriminações são distintos.
Os actos que vieram a ser tidos como integradores do crime de coação sexual têm uma matriz autónoma e um sentido social diferenciado dos outros que foram qualificados como de violência doméstica pois possuem um diferente desvalor de acção e de resultado, em suma, um desvalor autónomo o que conduz, crê-se, de modo claro, à desconsideração, no caso, do princípio ne bis in idem não apenas na sua faceta de proibição de dupla valoração mas também naquela outra em que se exige que a aplicação de um tipo legal a uma certa conduta deve esgotar todo o desvalor de acção e de resultado inerente a essa conduta.

Por conseguinte, condutas diferenciadas, atacando diferentes bens jurídicos com uma inescapável pluralidade de sentidos de ilicitude e, logo, pluralidade de infracções diferenciadamente valoradas para efeito da sua punição e não um único sentido autónomo de ilicitude correspondendo-lhe uma «predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados» caso em que se estaria, então sim, perante uma situação de concurso aparente.

Consequentemente também se não poderá configurar, no comportamento global em apreço, uma intercepção ou cruzamento de conteúdos de ilícito de maneira a que se possa falar de violação da proibição de dupla valoração.

Em síntese, estamos perante dois crimes em concurso efetivo.

Decisão Texto Integral: I – Relatório1.
a. No Juízo Central Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum e tribunal coletivo de AA, nascido a …/…/1978, com os demais sinais dos autos, ao qual fora imputada a prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), de um crime de violação, previsto no artigo 164.º, n.º 2, al. b), de um crime de coação sexual agravada, previsto no artigo 163.º, n.º 2 e de dois crimes de coação sexual, previstos no artigo 163.º, n.º 1, todos do Código Penal (doravante CP).

Durante o curso da audiência, o tribunal coletivo suscitou e tramitou, nos termos da lei (artigo 358.º, n.º 3), o incidente da alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, relativamente aos imputados crimes de violência doméstica e de coação sexual, este com referência previsto ao artigo 163.º, n.º 2 do CP, no sentido de este crime se mostrar em relação de concurso aparente com aquele, nele se integrando, mas nos termos previstos nos números 1 e 3 do mesmo artigo.

A final, o tribunal coletivo proferiu acórdão, no qual considerou haver uma relação de concurso aparente entre o crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e 2, al. a) do CP e o crime de coação sexual, previsto no artigo 163.º, n.º 1 do mesmo código, entendendo estar este consumido por aquele, condenando, em conformidade, o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e 2, al. a) do CP, numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa sua execução por igual período, nos termos previstos no artigo 50.º, n.º 1 e 5 do CP, com regime de prova que integrará a frequência de programa direcionado para a sensibilização e prevenção da violência doméstica e mais fixando, como regra de conduta, a proibição de contactar – por qualquer meio - com a ofendida durante todo o período da suspensão, proibição essa a ser fiscalizada através de meios de fiscalização à distância, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.

Mais arbitrou, a favor da ofendida BB, uma indemnização, que fixou em € 1.000,00 em conformidade com o previsto no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e 16.º, n.º 2 da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, condenando o arguido a pagá-la.

b. Inconformado com tal decisão dela recorre o Ministério Público, que remata a respetiva motivação com as seguintes conclusões:

“1. A factualidade a que se reporta os pontos 11 a 18 da matéria de facto provada, foi erradamente qualificada no acórdão sob recurso, como integrando a prática do crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 1, do Código Penal, sendo certo que, pelos motivos adiante aduzidos deveria ter sido integrada na prática do crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal, ilícito este pelo qual deverá o arguido AA ser condenado em concurso real com o crime de violência doméstica.

2. Mostra-se atualmente, cremos, incontroverso, que o beijo na boca com tentativa de introdução da língua e no pescoço, é um ato sexual de relevo, sendo certo que, toda a atuação do arguido AA descrita na factualidade em causa, integra uma pesada ofensa do sentimento de pudor comum à maioria das pessoas, transgressor da intimidade da ofendida BB.

3. O crime de coação sexual, previsto e punido no artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal é um crime de execução vinculada, exigindo-se que o constrangimento da vítima seja praticado por meio de violência física, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, o agente ter tornado a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir.

4. No caso, o arguido AA entrou no quarto da ofendida BB, deitou-se em cima desta, prendeu-lhe os braços e as pernas, imobilizando-a e tentou retirar-lhe as calças do pijama que trajava, o que não logrou, em virtude de aquela se ter contorcido para o lado esquerdo, a fim de evitar que o arguido lhe tirasse as calças, altura em que este colocou o joelho em cima da perna da vítima para evitar que esta conseguisse sair debaixo de si. Em simultâneo e, fazendo uso da força, o arguido beijou a ofendida na boca – tentando introduzir a língua – e no pescoço. O arguido só largou a vítima em virtude dos gritos da mesma.

5. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vislumbra como se poderá excluir a violência da factualidade em causa: é que o arguido AA só conseguiu praticar os atos de natureza sexual referidos em virtude de se ter deitado em cima da vítima e, seguidamente, prendeu-lhe os braços e as pernas, imobilizando-a e colocou o joelho em cima da perna da vítima para evitar que esta conseguisse sair debaixo de si.

6. De resto, o Ministério Público descreveu na acusação todos os factos (objetivos e subjetivos) relativos ao crime de coação sexual, previsto e punível pelo artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal.

7. Assim sendo, dúvidas não restam que foi exercida violência física, e de forma dinâmica, tanto assim que, em resultado das mencionas condutas, a vítima sofreu no membro inferior direito: equimose arroxeada-acastanhada, no terço lateral do terço médio da coxa direita, com 8 cm x 6 cm, de maiores dimensões, lesões essas que foram determinantes de um período de doença fixável em 12 dias.

8. Pelo exposto, o Tribunal «a quo» interpretou incorretamente o artigo 163.º, do Código Penal e, por conseguinte, deve o arguido AA ser condenado pela prática do crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal em concurso real com o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.ºs 1 alínea b) e 2 alínea a) do Código Penal.

9. Na determinação da medida da pena é preciso ter em conta as elevadíssimas exigências de prevenção geral existentes relativamente ao crime de violência doméstica, «pois importa alertar os potenciais delinquentes para as penas e, deste modo, tentar evitar que outros homens (maridos, companheiros, namorados e filhos) repitam este exemplo (…)» e, bem assim, as relevantes exigências de prevenção especial, em particular, a circunstância de o arguido não ter admitido a prática dos factos e, por conseguinte, não assumiu uma atitude de arrependimento e de valoração crítica da sua conduta; o ter atuado sempre com dolo direto (a forma mais intensa) e no interior da residência da vítima e, por último, nem a acusação proferida no âmbito do processo n.º 1995/23.1… (onde foi condenado, por acórdão transitado em julgado, pela prática dos crimes de violência doméstica e de violação) o fez arrepiar caminho, o que apenas sucedeu, com a aplicação nesses autos da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, tudo, por isso, a reclamar um maior juízo de censura.

10. Pelo exposto, relativamente ao crime de violência doméstica entendemos que deverá ser aplicada ao arguido AA a pena parcelar de 3 anos e 6 meses de prisão, sendo certo que, o Tribunal «a quo» ao ter aplicado a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, interpretou incorretamente o disposto nos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal.

11. No que tange a crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal, para além das fortes exigências de prevenção geral, in casu, são também relevantes as exigências de prevenção especial, considerando, por um lado, o dolo direto e intenso com que foram praticados os factos, a falta de censura crítica da sua conduta por parte do arguido AA e, por outro lado, a acusação em outro processo também por crime contra a liberdade sexual (pelo qual veio a ser condenado).

12. Todavia, o grau de ilicitude é mediano, considerando a forma de atuação e o grau de violência empregue, pois, estando em causa violência efetiva, a mesma apenas terá sido exercidas por breves minutos, em resultado da qual, a lesão sofrida traduziu-se numa equimose no membro inferior direito e, bem assim, não esquecendo a sua integração laboral e apoio familiar, afigura-se-nos correta e ajustada que seja aplicada ao arguido AA a pena parcelar de 3 anos e 6 meses pela prática do crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal.

13. Na determinação da pena única, há que ter em conta os critérios a que se alude no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal e, bem assim que, a moldura do cúmulo (cfr. artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal) deverá ser fixada entre 3 anos e 6 meses (= limite mínimo) e 7 anos de prisão (= limite máximo).

14. Ora, considerando os factos na sua globalidade, a idade do arguido, os antecedentes criminais que devem ser enquadrados no sentido de que a condenação averbada no certificado do registo criminal ocorreu em momento posterior às datas da prática dos factos pelos quais foi condenado nos presentes autos e, apesar de sobressair a vontade do arguido em detrimento da vontade da vítima, não se pode ainda afirmar, pelo menos por ora, que a pluralidade radique na personalidade do arguido, que esta manifeste uma certa tendência para a prática de ilícitos, para que surta um efeito agravativo.

15. Pelo exposto, deverá ser aplicada ao arguido AA a pena de 5 anos suspensa na sua execução por igual período de 5 anos (cfr. artigo 50.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal), «com sujeição a regime de prova nos termos do artigo 53.º, n.º 1 do referido diploma legal, devendo ser elaborado PIRS pela DGRSP que inclua programas direcionados para ações de sensibilização para a prevenção da violência doméstica, fixando ainda ao arguido a regra de conduta de proibição de contactar – por qualquer meio – com BB durante o período de suspensão fiscalizada através de meios de fiscalização à distância, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.»

c. O arguido não respondeu (tempestivamente) ao recurso.

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação (TR), o Ministério Público junto desta instância de recurso, na vista dos autos, secundou inteiramente a posição sustentada no recurso.

e. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso De acordo com o disposto no artigo 412.º2, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Suscitam-se no presente recurso as seguintes questões:

1.ª questão - Qualificação jurídica dos factos.

2.ª questão - Medida da(s) pena(s).

2. Do acórdão recorrido.

O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

“1. O arguido AA e a ofendida BB mantiveram um relacionamento, como se de marido e mulher se tratassem, partilhando cama, mesa e habitação, entre fevereiro/março de 2022 e agosto/setembro de 2023.

2. Nesse período, fixaram residência conjunta na Rua …, ….

3. Desse relacionamento, não nasceram filhos em comum.

4. O relacionamento de ambos terminou em setembro de 2023, contudo continuaram a compartilhar tal residência desde a data da separação até, pelo menos, 12 de junho de 2024.

5. Cada um dos visados tem o seu próprio andar, com entradas distintas, ainda que, dentro da habitação propriamente dita não existam quaisquer barreiras físicas que impeçam o acesso.

6. No âmbito do processo com NUIPC 1995/23.1… foi proferido despacho de acusação contra AA pela prática contra BB de um crime de violência doméstica, em concurso real com dois crimes de violação.

7. Contudo, o arguido, não obstante a cessação do relacionamento amoroso, ocorrida em setembro de 2023 e a acusação deduzida no processo com NUIPC 1995/23.1…, que versou os factos ocorridos entre fevereiro/março de 2022 e 20 de Julho de 2023, não alterou a sua conduta.

8. No período compreendido entre 20 de julho de 2023 e 13 de maio de 2024, por mais do que uma vez, o arguido disse à ofendida que esta não queria manter relações sexuais consigo porque «andava a foder com outros homens»

9. No período compreendido entre 20 de julho de 2023 e 13 de maio de 2024, pelo menos por três vezes, quando a Ofendida se encontra em casa, o Arguido anda nu pela casa.

10. No mesmo período temporal, por mais do que três vezes, o arguido masturbou-se em frente à ofendida.

11. No dia 12 de abril de 2024, a ofendida chegou à residência por volta das 02h30m e foi-se deitar no seu quarto.

12. Quando se encontrava deitada na cama, ainda acordada, o arguido entrou no quarto e agindo contra a vontade e sem o consentimento da ofendida, deitou-se em cima de si, prendeu-lhe os braços e as pernas, imobilizando-a e tentou retirar-lhe as calças do pijama que trajava, o que não logrou.

13. Não obstante, nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido, fazendo uso da força, beijou a ofendida na boca – tentando introduzir a língua – e no pescoço.

14. A ofendida contorceu-se para o lado esquerdo, a fim de evitar que o arguido lhe tirasse as calças, altura em que este colocou o joelho em cima da sua perna para evitar que esta conseguisse sair debaixo de si.

15. A ofendida, pela sua inferioridade física, não conseguiu fazer com que o arguido saísse de cima de si, pelo que começou a gritar.

16. O arguido acabou por largá-la, tendo a ofendida abandonado a residência e ido para a via pública.

17. Em consequência direta e necessária da agressão descrita em 14, sofreu a Ofendida, no membro inferior direito: equimose arroxeada-acastanhada, no terço lateral do terço médio da coxa direita, com 8cmx6cm, de maiores dimensões.

18. Tal lesão determinou um período de doença fixável em 12 (doze) dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.

19. No período compreendido entre 25 de fevereiro de 2024 e 13 de maio de 2024 o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe: «tenho uma arma de fogo em casa, está escondida num sítio onde não a encontras e não te mostro que tenho medo que me mates».

20. Com o propósito de a sua presença demover o arguido de aceder à casa de banho nos momentos em que tomava banho, a ofendida começou a pedir à sua irmã CC que esta estivesse presente nesses momentos.

21. No dia 11 de maio de 2024, entre as 14h00m e as 15h00m, encontrando-se CC na sala da residência de arguido e ofendida, o arguido subiu ao 1.º andar e entrou na casa de banho, enquanto a ofendida tomava banho.

22. Com a sua conduta descrita em 14, o arguido, agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde da ofendida, o que quis e conseguiu.

23. De igual modo, ao atuar da forma acima descrita, o arguido agiu sempre com o propósito de molestar física e psicologicamente a ofendida e afetá-la na sua dignidade pessoal, segurança, liberdade, honra e bem-estar, propósito esse que logrou alcançar, porquanto a ofendida teme e receia pela saúde, vida, liberdade sexual e integridade física, afetando-a na sua capacidade de decisão.

24. Mais agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, além do mais, no interior da residência, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, mas, apesar de o saber, quis atuar da forma descrita, causando, como causou, humilhação, sofrimentos físicos e psíquicos, medo e inquietação e receio pela vida, integridade física e segurança à sua ex-companheira BB.

25. Sabia ainda o arguido que as suas condutas, supra descritas, eram adequadas e suscetíveis de atingir, como atingiram a ofendida nas suas honra, consideração e dignidade pessoais, que lhe são devidas, quer enquanto pessoa, quer na qualidade de ex-companheira daquele, humilhando-a.

26. O arguido sabia que sobre si recaía o dever de tratar a ofendida, com particular respeito e consideração, atendendo ao vínculo que os unia e que não podia atuar do modo supra descrito.

27. Quis o arguido, pela forma supra descrita, satisfazer os seus desejos libidinosos, perfeitamente ciente de que a ofendida não pretendia manter qualquer contacto de natureza sexual com ele.

28. Contudo, contrariamente à vontade desta, este vem agindo da forma acima descrita, pondo em causa a sua liberdade sexual, o que representou e logrou.

29. O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal

Mais se provou que

30. O arguido AA estudou até ao 6.º ano de escolaridade e, posteriormente, ingressou na sua primeira experiência laboral, no ramo da construção civil, nomeadamente como pintor, onde permaneceu durante vários anos, sendo-lhe reconhecida uma conduta responsável e empenhada ao nível laboral.

31. Antes da sua reclusão, o arguido tinha uma situação laboral estável, na …, em …, para onde pretende regressar quando for libertado, uma vez que mantém vínculo contratual.

32. O arguido tem uma filha, de 25 anos, com quem mantém uma relação próxima, apesar da separação dos pais quando tinha 15 anos.

33. À data da sua detenção residia com a Ofendida, em casa arrendada, despendendo 150€ a título de renda.

34. Em meio prisional, o arguido revelou uma atitude consentânea com as regras e normas institucionais, não tendo registo de sanções disciplinares.

35. Não desenvolvia atividade ocupacional no Estabelecimento Prisional devido à indefinição da sua situação jurídico-penal.

36. Em cumprimento da medida de coação de obrigação de permanência na habitação o arguido passou a integrar o agregado familiar da sua irmã, composto por esta, pelo seu marido e filha maior.

37. Não dispõe de rendimentos próprios, subsistindo do apoio do núcleo familiar que integrou, que subsiste do vencimento do cunhado – equivalente ao salário mínimo – e dos rendimentos varáveis gerados pela exploração de um café pela irmã.

38. Do certificado de registo criminal de AA consta a seguinte condenação:

a. por decisão proferida em 14.10.2024, transitada em julgado em 13.11.2024, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º 1995/23.1…, do Juízo Central Criminal de …, J…, foi o Arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, previsto e punido no artigo 152.º, n.ºs 1 alínea b) e 2 alínea a) do Código Penal e por um crime de violação, previsto e punível pelos artigos 164.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 e 177.º, n.º 1, alínea b) ambos do Código Penal, ambos por factos praticados em 2023, na pena 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e regras de conduta.”

3. Apreciando.

1.ª questão.

Pugna o recorrente pela alteração da qualificação jurídica quanto aos factos 11 a 18, considerando que do mesmo resulta a comissão (autónoma) pelo arguido de um crime de coação sexual agravada prevista no n.º 2 do artigo 163.º do CP. Fica implícito que se tem igualmente em vista os factos provados 27 a 29, respeitantes à intenção da prática de tais factos pelo arguido.

A distinção entre a coação sexual prevista no n.º 1 do artigo 163.º para a prevista no n.º 2 do mesmo artigo, assenta num modo agravado de constrangimento da vítima, visando-se a prática de ato sexual de relevo, sendo elementos constitutivos do tipo de ilícito agravado, um modo superlativo de constrangimento, seja através do exercício da violência, ter colocado a vítima num estado de inconsciência ou na impossibilidade de resistir. Em ambas as situações há coação (constrangimento da liberdade sexual da vítima), tendo o agente em vista a prática de ato sexual de relevo. Expressando-se esse constrangimento mediante um dos referidos meios típicos de coação previstos na lei (exercício da violência, ter colocado a vítima num estado de inconsciência ou na impossibilidade de resistir).

Na avaliação dos factos respetivos, contantes dos factos em causa, o tribunal coletivo considerou que o arguido visava ter relações sexuais com a vítima e, prosseguindo o objetivo a que se propunha, atuou de molde a constranger a liberdade desta, não tendo, contudo, considerado que aquela atuação fosse violenta, no sentido normativo de tal conceito no âmbito do crime em referência. Sucede que, neste preciso contexto, o conceito de violência coincide com o uso da força física com vista a vencer a resistência que a vítima pudesse oferecer.3 Justamente o que sucedeu, como linearmente emerge da descrição contida nos factos provados. Pois que o arguido sem o consentimento da ofendida entrou no quarto dela, quando esta estava deitada na cama, ainda acordada, e logo o arguido atuou em conformidade com a intenção que levava: deitou-se em cima dela, “prendeu-lhe os braços e as pernas, imobilizando-a e tentou retirar-lhe as calças do pijama que trajava” (…) “a ofendida contorceu-se para o lado esquerdo, a fim de evitar que o arguido lhe tirasse as calças, altura em que este colocou o joelho em cima da sua perna para evitar que esta conseguisse sair debaixo de si». Ainda logrou beijar a ofendida na boca (tentando introduzir nela a sua língua) e no pescoço. Esta começou a gritar”, só então o arguido desistiu do seu intento. Tendo a ofendida “abandonado a sua residência e ido para a via pública.” Em consequência de tal vis compulsiva (por banda do arguido), a ofendida ficou com uma “equimose arroxeada-acastanhada, no terço lateral do terço médio da coxa direita, com 8cmx6cm, de maiores dimensões (…) que determinou um período de doença» de 12 dias sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.” É, por isso, inequívoca a comissão do ilícito de coação sexual, nos termos do n.º 2 do art.º 163.º do CP, conforme bem sustenta o recorrente.

Porém, para além da alteração da qualificação jurídica dos aludidos factos defendida pelo recorrente, o mesmo suscita também a questão da existência de um concurso efetivo entre o crime de coação sexual p. e p. p. art.º 163.º, n.º 2 do CP e o crime de violência doméstica p. e p. p. art.º 152.º, números 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do mesmo diploma.

Para tanto, cita o seguinte excerto do texto de Ana Barata Brito (publicado na Revista do CEJ, 2018, II, página 111):

“(…), o certo é que não pode deixar de se considerar como erro a punição de um agente infractor por um só crime de violência doméstica ou por um só crime mais grave que com este se apresente em concurso indevidamente tido como aparente, quando ele, ao longo de um certo período de tempo – curto ou longo, não interessa – insulta, agride, persegue, priva da liberdade, viola, e por vezes mata ou tenta matar a vítima, e, não fora essa especial relação de afecto ou proximidade existente entre esse agente e essa vítima, teria sido esse autor condenado por vários crimes (de injúria, de ofensa à integridade física, de perseguição, de sequestro, de violação, de homicídio) em concurso efectivo.

É importante registar que a eventual e possível condenação do agente como autor de um crime de violência doméstica em concurso efectivo com um crime de violação, (…) – em concurso efectivo heterógeneo de crimes -, passa aqui pela prévia identificação de uma situação de concurso efectivo homogéneo entre dois ou mais crimes de violência doméstica, sendo um ou alguns destes, pela regra da subsidiariedade expressa que o tipo consagra, punidos então pelo crime que prevê a pena mais grave.

Ou seja, o concurso efectivo heterogéneo encontra aqui na sua base uma relação de concurso efectivo homogéneo.

É a ponderação deste concurso homogéneo que, repito, nunca pode ser desconsiderada.”

Desde logo, avançamos que é esta também a nossa posição.

Com efeito, pelas essenciais razões expostas no Acórdão deste TRE proferido em 28/01/2025 no processo nº 199/22.5GFELV.E14, também aqui entendemos que há uma relação de concurso efetivo entre os crimes de que o arguido foi acusado.

Com efeito, tendo o arguido na ocasião mencionada nos pontos 11 a 18 dos factos provados usado de violência e assim levado a ofendida a sofrer acto sexual de relevo, “verificando-se anteriormente e posteriormente atos enquadráveis no tipo de violência doméstica, tratando-se os bens jurídicos protegidos pelos dois crimes (de violência doméstica e de violação), de bens jurídicos que se têm por distintos, atingidos por condutas que são autonomizáveis (inclusivamente ao nível da respetiva resolução delituosa), mostra-se correta a punição do arguido pela prática em concurso efectivo dos crimes de violência doméstica e de violação agravada.”

Na verdade, o critério fundamental para a distinção entre, in casu, o concurso aparente e o concurso efetivo, deve radicar na unidade ou pluralidade dos juízos de censura que se podem formular a propósito de cada uma das diversas condutas

A este propósito, pode ler-se no Acórdão do STJ de 27.11.2018 proferido no processo n.º 574/16.4PBAGH.S1, disponível em www.dgsi.pt o seguinte significativo excerto:

“I - O art. 164.º, n.º 1, do CP descreve o crime de violação como um caso especial de coacção sexual, uma coacção sexual qualificada. O agente constrange a vítima (por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir), seja menor ou adulto, homem ou mulher, a sofrer ou praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos. Com o que se criminalizam condutas que atentam gravemente contra a liberdade da vontade do sujeito, através de coacção grave ou violência.

(…)

III - Sistematicamente integrado, no CP, no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, especificamente, no capítulo dos crimes contra a integridade física, a teleologia do crime de violência doméstica assenta na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo aquelas condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física como psíquica.

IV - O n.º 1 do art. 152.º do CP, com o segmento «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal», consagra, de modo expresso, regra da subsidiariedade, significando, segundo alguns, que a punição por este crime apenas terá lugar quando ao crime geral a que corresponde a ofensa não seja aplicada uma pena mais grave.

V - Neste entendimento, se a punição do(s) crime(s) concorrente(s) for superior a 5 anos – pena mais elevada do que a máxima abstracta prevista para a violência doméstica – estaremos perante um concurso aparente de crimes, sendo a incriminação do art. 152.º afastada em resultado da regra da subsidiariedade.

VI - Uma aplicação meramente formal e positivista da regra da subsidiariedade expressa no citado art. 152.º, do CP poderá traduzir-se numa injustiça material de muitas decisões e num benefício para o infractor-arguido dificilmente tolerável.

VII - A prática mais ou menos constante e reiterada das condutas descritas no art. 152.º, do CP desde que cada uma dessas condutas não permita a sua autonomização, dará origem a uma unicidade normativo-social, tipicamente imposta, pelo que o agente terá praticado um só crime, desde que esteja em causa uma só vítima.

VIII - Esta unidade pode vir a cindir-se, no entanto, quando algum dos actos isolados permita a verificação do tipo social de um crime mais grave – ofensa à integridade física grave, violação, homicídio -, devendo o agente ser punido em concurso efectivo com os crimes de violência doméstica.

IX - Na relação do crime de violência doméstica com outros de pena mais elevada, considera-se, pois, que a prática de crime mais grave é um factor de cisão da unicidade do crime, devendo concorrer, em concurso efectivo, o crime mais grave e a violência doméstica.

X - Como salienta MARIA PAULA RIBEIRO FARIA, «para afirmar a pluralidade criminosa é necessário que se deixe afirmar em relação ao agente mais do que um juízo de censura referida a uma pluralidade de processos resolutivos». Segundo a mesma autora, há que «acrescentar à pluralidade de bens jurídicos violados uma pluralidade de processos volitivos merecedores de distintos juízos de censura», justificando-se a unidade ou pluralidade desses juízos de censura numa «valoração mais global que corresponde ao significado social do facto que inspira a própria formulação dos tipos legais de crime» - o sentido social da ilicitude material.

XI - No caso apreciado, a actuação do arguido na agressão sexual cometida afasta-se do conjunto de agressões e outras ofensas praticadas sobre a ofendida, então sua companheira, tendo obedecido a uma autónoma resolução perfeitamente cindível das reiteradas resoluções presentes nos demais comportamentos. Tendo presente o perfil das ofensas reiteradamente cometidas sobre a ofendida, tem-se como evidente que a violação praticada em finais de 2014 não radica no mesmo processo volitivo presente naquelas ofensas.

XII - Constituindo igualmente uma evidência que os bens protegidos com as incriminações de violência doméstica e de violação, tendo pontos de contacto, não são coincidentes. O significado social e o sentido social da ilicitude material de uma e de outra das ditas incriminações são distintos, não obstante os pontos comuns que se podem aí observar.

XIII - O juízo de censura pela prática do crime de violação assume autonomia relativamente ao que deve ser formulado relativamente às ofensas unificadas na violência doméstica.”

No caso dos presentes autos, entendemos que existe um núcleo de factos (objetivos) antes e depois dos factos aqui em causa (factos 11 a 18) que integram, de forma incontroversa, o crime de violência doméstica (factos 8 a 10 e 19 a 21). Tais factos objetivos têm a sua correspondência subjetiva nos factos provados 23 e 26, de onde se sublinha a consciência e vontade de atacar o centro fundamental de autonomia da vontade da vítima e da sua dignidade como pessoa, que esta específica tutela penal visa proteger.

Por seu turno, os factos provados 11 a 18 possuem um significado social de uma ilicitude claramente diferenciada, merecedora de um diverso juízo de censura. Com efeito entre estes e aqueles não há uma unidade de realização típica, traduzindo os primeiros um “plus” relativamente aos segundos: há a transposição de uma fronteira entrando o agente num território de ilicitude qualitativa e quantitativamente diversa e mais grave (até no sentido social).

Explicando esta diferenciação dos substratos que fundamentam a diversidade dos juízos de censura imputados, diz-nos o Acórdão do STJ de 20.04.2017 proferido no processo n.º 2263/15.8JAPRT. P1.S1 (disponível em https://juris.stj.pt/ecli):

“Esta situação de concurso legal ou aparente de crimes exige, contudo, repete-se, a verificação de certas circunstâncias que terão de ser aferidas mediante a percepção dos «sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global». É «a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente, submetido à cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade de factos puníveis e nesta acepção de crimes».

Ora, salvo o devido respeito, em rigor, os actos que vieram a ser tidos como integradores do crime de [crime diverso da VD] têm uma matriz autónoma e um sentido social diferenciado dos outros que os precederam e que foram qualificados como de violência doméstica – configurando ameaças, coacção, ofensas corporais e injúrias – pois possuem um diferente desvalor de acção e de resultado, em suma, um desvalor autónomo o que conduz, crê-se, de modo claro, à desconsideração, no caso, do princípio ne bis in idem não apenas na sua faceta de proibição de dupla valoração mas também naquela outra em que se exige que a aplicação de um tipo legal a uma certa conduta deve esgotar todo o desvalor de acção e de resultado inerente a essa conduta.

Por conseguinte, condutas diferenciadas, atacando diferentes bens jurídicos com uma inescapável pluralidade de sentidos de ilicitude e, logo, pluralidade de infracções diferenciadamente valoradas para efeito da sua punição e não um único sentido autónomo de ilicitude correspondendo-lhe uma «predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados» caso em que se estaria, então sim, perante uma situação de concurso aparente.

Consequentemente também se não poderá configurar, no comportamento global em apreço, uma intercepção ou cruzamento de conteúdos de ilícito de maneira a que se possa falar de violação da proibição de dupla valoração.” Em síntese, perfilhamos o entendimento de que estamos perante dois crimes em concurso efetivo. *

* 3. b) Medida da(s) pena(s).

Preconiza o recorrente uma alteração do quantum punitivo fixado relativo ao crime de violência doméstica, propondo o seu incremento para 3 anos e 6 meses de prisão.

Vejamos. O aludido crime cometido pelo arguido é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos. (artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do CP)

O tribunal a quo fundamentou a fixação daquela pena da seguinte forma:

“No caso sub judice, e percorrendo aos critérios plasmados no artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal, importa considerar que as necessidades de prevenção geral relativas ao crime de violência doméstica assumem importância essencial, uma vez que este crime assume em Portugal – ainda nos dias de hoje – proporções alarmantes, revelando-se premente contrariar a mentalidade que subjaz a este tipo de condutas, até pela insegurança que gera, atendendo a que os desfechos, não raras vezes, se revelam trágicos, acrescendo ainda as nefastas consequências para a saúde física e psíquica, das vítimas deste tipo de criminalidade, que urge tutelar e acautelar.

Já no que concerne ao grau de ilicitude dos factos praticados, a mesma afigura-se elevada, atendendo a que foram praticados após a dedução de uma acusação contra o Arguido por factos de idêntica natureza e à mesma vítima.

As lesões infligidas na saúde psicológica da vítima revestem gravidade.

É importante salientar que, não obstante o Arguido ter verbalizado o seu arrependimento, a realidade é que a postura por si assumida demonstrou precisamente o contrário, tendo adoptado uma postura desculpabilizante das suas acções e de vitimização.

Ademais, dada a factualidade provada, é de concluir que o Arguido actuou com dolo directo, ou seja, representou os factos por si praticados como crime, e, mesmo assim, actuou com intenção de os realizar, aceitando os seus resultados.

A favor do Arguido milita a sua inserção social e profissional, bem como o apoio familiar.

Já a condenação averbada no seu certificado de registo criminal não é um verdadeiro antecedente criminal – uma vez que é posterior à prática dos factos.

Ponderados todos os aspectos acima enunciados e as enunciadas molduras penais, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao Arguido AA de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.”

Entendemos que a fixação de tal pena se pauta por uma acentuada (e de certa forma, injustificada) benevolência, uma vez que (dizendo respeito à totalidade da conduta do arguido) abrange também os factos provados 11 a 18 (e os correspondentes factos subjetivos), não só autonomizados normativamente, como se decidiu supra, mas, sobretudo, pela carga de violência que incorporam, mostrando-se, assim, desajustada face a uma moldura punitiva que tem o seu mínimo em dois anos de prisão, ou seja, apenas 6 meses acima de tal limite.

Contudo, se retirarmos tais factos, já a fixação em causa se nos afigura adequada, sendo certo que o grau de ilicitude é (apenas) médio (tendo em atenção especialmente a ausência de agressões físicas e a frequência e gravidade das condutas do arguido), sendo que a ausência de confissão não releva, ao invés do defendido pelo recorrente, como circunstância agravante das necessidades de prevenção especial, estando, por outro lado, nesta sede vedada a valoração da dedução da acusação por outros factos por a isso se opor o princípio da presunção de inocência.

Assim, decidir-se-á (muito embora por motivos parcialmente diversos) a manutenção da pena fixada quanto a este crime.

Também se manterá a suspensão da execução da pena de prisão, bem assim como as penas acessórias:5 de proibição de contactos com a vítima, com vigilância eletrónica, por se mostrar imprescindível à manutenção da segurança e tranquilidade da vítima, fiscalizada através de meios de fiscalização à distância (em conformidade com o disposto no artigo 35.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro), durante todo período de vigência da suspensão da execução da pena principal e da obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência (n.º 4 e 5 do art.º 152.º do CP).

Relativamente ao crime de crime de coação sexual agravada, p. e p. p. art.º 163.º, n.º 2 do CP, a moldura punitiva é de 1 a 8 anos de prisão.

Aqui, subscrevendo integralmente a posição do recorrente, que afirma que “o grau de ilicitude é mediano, considerando a forma de actuação e o grau de violência empregue, pois, estando em causa violência efectiva, a mesma apenas terá sido exercidas por breves minutos, em resultado da qual, a lesão sofrida traduziu-se numa equimose no membro inferior direito e, bem assim, não esquecendo a integração laboral e apoio familiar de que beneficia o arguido (…) afigura-se-nos correcta e ajustada que lhe seja aplicada a pena parcelar de 3 anos e 6 meses (…).

Com efeito, dado aquele grau de ilicitude e ponderando as demais circunstâncias referidas (na decisão recorrida e na motivação de recurso) mostra-se adequada a proposta fixação da pena por este crime, ainda longe do respetivo ponto médio da moldura punitiva abstrata.

Pelos mesmos motivos que fundamentaram a suspensão da execução da pena quanto ao crime de VD, também aqui se decidirá por tal suspensão, por igual período ao da pena agora determinada.

*

*

Quanto à medida da pena única, dir-se-á.

Quadro normativo:

Artigo 77.º6

Regras da punição do concurso

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Deste modo, a moldura punitiva do concurso tem como limites:

1) limite mínimo – pena mais grave: 3 anos e 6 meses de prisão.

2) limite máximo – soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – 6 anos de prisão.

Resulta do n.º 1 da norma acima reproduzida que na determinação da medida da pena deve atender-se à díade conjunto dos factos / personalidade do agente.

''Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência7 (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).''8

Começando pela avaliação da personalidade do arguido, não se nos afigura correto reduzir os factos a uma mera pluriocasionalidade9, descortinando-se, atento o lapso de tempo e a homogeneidade das condutas, já uma clara “tendência” para a prática de actos similares, traduzindo uma personalidade já especialmente inclinada para a prática de atos criminosos. Há, consequentemente, de ponderar um efeito agravante evidente dentro da moldura penal conjunta, de forma a que o mesmo surta o efeito de afastar o arguido da criminalidade.

Relativamente à ponderação conjunta ''dos factos'', entendemos que esta terá de passar, necessariamente, pela ponderação de cada uma das penas a que os mesmos conduziram. Assim, ''[c]om essa (…) dissolução ou confusão da pena numa punição global, o crime integra-se num conjunto de crimes e, simultaneamente, perde a sua correspondência directa que, de acordo com a norma incriminadora, lhe era proporcionada, para a encontrar apenas numa “quota ideal” da punição global que o agente na realidade vai cumprir, o que (…) põe em questão a proporção entre crime e pena que resultava da norma incriminadora singular.

Importa apurar se e em que medida essa proporção se mantém nessa integração e, por isso, se a pena única resulta proporcionada ao crime enquanto integrado no concurso.

Isto só pode apurar-se consideradas as coisas na perspetiva de cada crime e da pena singular que lhe corresponde.''10

In casu, atentas as molduras punitivas abstratas, as proporções que presidiram à fixação das penas parcelares acima mencionadas e à avaliação negativa da personalidade do arguido a que acima aludimos, que deverá ter como reflexo um incremento do quantum punitivo, entendemos que se mostra justificada a fixação daquela pena única em 5 (cinco) anos de prisão.

Manter-se-á a suspensão da execução decidida quanto às penas parcelares, agora pelo período da pena única, a que acrescem as penas acessórias acima mencionadas.

Termos estes em que o recurso se mostra merecedor de total provimento em matéria da qualificação jurídica dos factos e parcial no concernente à medida concreta da pena de VD, sendo provido no demais.

III – Dispositivo.

Pelos motivos expostos, acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, condenar o arguido:

1 – Pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. p. art.º 152.º, n.º 1.º, al. b) e n.º 2, al. b) do CP, numa pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

2 – Pela prática de um crime de coação sexual agravada, p. e p. p. art.º 163.º, n.º 2 do CP, numa pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo.

Mantém-se a condenação nas penas acessórias de frequência de programa de prevenção da violência doméstica e de proibição de contactos com a vítima, com vigilância eletrónica, por todo o período de cumprimento da pena principal.

Sem custas. (art.º 522.º, n.º 1)

Évora, 10 de julho de 2025

Edgar Valente (relator por vencimento)

Francisco Moreira das Neves (1.º adjunto, vencido, cfr. voto junto)

Jorge Antunes (2.º adjunto)

Voto de vencido

Apoditicamente diríamos que as normas penais têm por escopo a proteção dos bens jurídicos essenciais ao fluir pacífico da vida em sociedade, visando a tutela de «todas as condições e finalidades necessárias ao livre desenvolvimento do indivíduo, à realização dos seus direitos fundamentais e ao funcionamento de um sistema estatal construído em torno dessa finalidade.»11 O crime de violência doméstica tem expressis verbis por referência a inflição de maus tratos ao cônjuge ou pessoa a este equiparada (nos termos das demais alíneas do § 1.º do artigo 152.º CP), nele incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal. Isto é, pode decompor-se em vários tipos de crimes comuns, uma vez que é suficientemente abrangente e capaz de contemplar inúmeros comportamentos que, se individualmente considerados, seriam reconduzíveis a outras distintas incriminações.

E, nas mais das vezes, a violência doméstica integra factos suscetíveis de preencherem diversos tipos de crimes, havendo entre estes uma relação de concurso aparente, marcado pela subsidiariedade expressa do crime de violência doméstica perante os demais tipos de crime - nos termos expressamente previstos na parte final do § 1.º do artigo 152.º CP.12

Nessas circunstâncias verificar-se-á um concurso entre as normas penais respetivas, havendo entre elas uma relação de consunção expressa13, que se verifica quando o conteúdo de injusto de uma ação típica abrange, incluindo-o, outro tipo, de modo que de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor.14 Sendo impura a consunção quando o crime mais gravemente punido é consumido pelo menos grave.

É, a nossos olhos, o que sucede no presente caso: o crime cometido é de violência doméstica, mas a moldura legal da sua punibilidade advém do crime de coação agravada (artigo 163.º CP § 2.º do CP), porque este tem uma moldura mais grave. Consideraríamos, pois, na linha do projeto que não colheu consenso, que o arguido cometeu um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b), com referência ao artigo 163.º, § 2.º CP, porque tendo sido anteriormente consortes (arguido e vítima), continuaram coabitantes da mesma casa, sendo todos os atos ilícitos praticados nesse contexto. Fixando a pena em 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Francisco Moreira das Neves

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1 Seguiremos a essencial estrutura do projeto inicial, exceto, evidentemente, quanto às questões que suscitaram divergência.

2 E a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 7/95, de 19out1995, DR, I-A de 28dez1995.

3 Neste sentido Jorge de Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., 2012, página 726.

4 Subscrito, como relator, pelo aqui 2.º adjunto, sendo o aqui relator ali o 2.º adjunto, com votos de vencido subscritos pelo 2.º adjunto em ambos.

5 Que são de aplicação obrigatória no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão e não apenas facultativa, como o vocábulo «podem» ainda constante do § 4.º do artigo 152.º pode induzir em erro. Veja-se o que de modo perentório consta do artigo 34.º-B, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.

6 Do C. Penal.

7 Contra esta valoração, José Lobo Moutinho (Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2005, página 1285), nos seguintes termos: ''É que, de duas uma, ou isso [essa tendência] se reflectiu na perpetração dos diversos crimes (e naturalmente de modo crescente nos sucessivos crimes) - e então deve ser e é ponderada na sua inerência como que adverbial a cada crime – ou isso não se reflectiu em qualquer dos sucessivos factos criminosos – e então, mesmo admitindo a sua verificação, num Direito penal do facto é penalmente irrelevante''. Discordamos deste entendimento pelas seguintes ordens de razões: é verdade que, em circunstâncias ideais, na determinação da pena correspondente a cada crime, deve ser (por imposição legal) ponderado o seu comportamento anterior, ou seja, relativamente a cada pena deverá valorar-se o passado criminal do agente. Contudo, no mundo da aplicação concreta do Direito, nem sempre as coisas se passam assim, podendo não ser valorado um passado criminal indiciador de uma clara tendência criminosa, simplesmente porque tal passado ainda não foi investigado/julgado (caso do concurso superveniente). Mesmo que assim aconteça, só na determinação da pena conjunta se pode ter uma imagem global das características da personalidade do agente, estruturalmente diferente do julgamento retrospetivo parcelar que é efetuado aquando da fixação de cada pena. Por outro lado, poderá descortinar-se essa tendência no julgamento conjunto de uma miríade de factos que a sustentem, não sendo aí, obviamente, possível a avaliação retrospetiva conjunta dos delitos cometidos, dada a simultaneidade da determinação das respetivas penas.

8 Jorge de Figueiredo Dias in Direito Penal, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, páginas 291/2.

9 Como o mesmo preconiza, afirmando que “não radica na sua personalidade”.

10 José Lobo Moutinho in Ob. cit., página 1331.

11 Claus Roxin, O conceito de bem jurídico como padrão crítico da norma penal porto à prova. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 23, n.º 1, 2013, pp. 12.

12 Sem prejuízo de nos casos em que se provem factos integradores de diversos crimes puníveis, cada um deles, com pena superior a 5 anos de prisão, se tenha de graduar autonomamente a pena concreta de cada conduta criminal autónoma, de molde a alcançar uma moldura abstrata da pena do crime de violência doméstica que não atenue a gravidade da globalidade das condutas (artigo 77.º, § 2.º CP).

13 De modo bastante claro e esquemático cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, Universidade Católica Editora, pp. 133/134 (anotação ao artigo 30.º).

14 Cf. acórdão do STJ, 13out2004, proc. 04P3210, rel. Henriques Gaspar.