Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
893/23.3T8FAR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ARRENDAMENTO
QUITAÇÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
CAUÇÃO
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. A declaração de quitação do preço – in casu, recibos de renda emitidos pelo locador e entregues à locatária – constitui o reconhecimento de facto desfavorável aos interesses do credor e que favorece o devedor, tendo assim natureza confessória – art. 352.º, 374.º n.º 1 e 376.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
2. Tendo sido feita à parte contrária, tem força probatória plena – art. 358.º n.º 2 do Código Civil – sem prejuízo do declarante poder fazer prova, por qualquer meio, da falta ou vícios da vontade, nos termos gerais (art. 359.º).
3. A norma do n.º 1 do art. 1045.º do Código Civil, trata da não restituição simples, i.e., daqueles casos em que a falta de restituição do locado ocorre por causas não imputáveis ao locatário.
4. Por seu turno, o n.º 2 aplica-se quando a falta de restituição ocorra por culpa do locatário, configurando-se então a mora deste, independentemente de interpelação.
5. A entrega das chaves do locado ao senhorio, pelo locatário, traduz a manifestação de vontade deste em pôr termo ao contrato de locação, consubstanciando-se na tradição simbólica da posse do locado para o locador.
6. A obrigação de restituição do locado pela locatária não é correspectiva da obrigação de devolução do valor da caução pela locadora, pois o cumprimento de uma obrigação não depende da outra.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Faro, AA, BB e CC demandaram DD Mediação Imobiliária, Lda., EE e FF, pedindo a declaração que são donas e legítimas proprietárias da fracção autónoma identificada nos autos, destinada a comércio, e que que os RR. sejam condenados a restituírem-na, livre e devoluta de pessoas e coisas e, ainda, que sejam solidariamente condenados a pagarem-lhes um mínimo de € 1.306,63 por cada mês em que detenham a aludida fracção, a contar do dia 01.08.2021, inclusive, e até à data em que a restituição tenha lugar.
Na contestação, os RR. deduziram a excepção de ilegitimidade passiva dos réus/pessoas singulares e, em sede reconvencional, pediram a condenação das AA. a pagarem à Ré/sociedade, a quantia global de € 9.582,01.
Na audiência prévia, logrou-se a conciliação parcial das partes quanto aos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade das AA. e restituição da fracção em causa, o que foi homologado por sentença.
Foi proferido saneador julgando improcedente a excepção de ilegitimidade passiva dos réus/pessoas singulares e admitindo liminarmente o pedido reconvencional.
Prosseguindo os autos para apreciação do pedido de indemnização formulado pelas AA. e do pedido reconvencional que contra elas foi dirigido, realizou-se julgamento, após o que foi proferida sentença, contendo o seguinte dispositivo:
«(…) decido:
A. Julgar a acção parcialmente procedente, porque parcialmente provada e, por conseguinte, condeno os réus “DD Mediação Imobiliária, Lda.”, EE e FF, em regime de solidariedade, a pagarem às autoras AA, BB e CC a quantia de 25 000,00 € (vinte e cinco mil euros) pelo dano da privação de uso do locado;
B. Julgar o pedido reconvencional parcialmente procedente, por parcialmente provado e, por conseguinte, condeno as autoras/reconvindas AA, BB e CC a pagarem à sociedade/ré/reconvinte “DD Mediação Imobiliária, Lda.”, o valor global de 7 414,24 € (sete mil, quatrocentos e catorze euros e vinte e quatro cêntimos);
C. Absolvo ambas as partes do demais peticionado (incluindo os réus do pedido de condenação como litigantes de má fé).»

Inconformadas, ambas as partes interpõem recurso do assim decidido.
As conclusões apresentadas não efectuam uma verdadeira síntese dos fundamentos pelos quais se pede a alteração do decidido, como exigido pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, mas podem ser surpreendidas as seguintes questões fundamentais a decidir no recurso, que assim se identificam (art. 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil):
No recurso dos RR.:
· Se deve ser alterada a resposta aos pontos 20, 23 e 25 dos factos provados
· Se existe nexo causal entre o comportamento da Ré sociedade e os danos invocados pelas AA.
· Se se justifica a fixação de uma indemnização de € 25.000,00 pelos prejuízos provocados, a título de responsabilidade extracontratual.
· Se os RR. pessoas singulares podem ser responsabilizados pelo pagamento da indemnização fixada.
No recurso das AA.:
· Se deve ser alterada a resposta ao ponto 7 dos factos provados, dando-o como não provado;
· Se das declarações de parte da Ré EE, dos recibos de rendas, e do depoimento da testemunha Valdir de Andrade não se pode dar como provado que se encontram pagas as rendas dos meses de Agosto de 2018 a Janeiro de 2019.
· Se devem assim ser julgados improcedentes todos os pedidos reconvencionais.

Apenas responderam as AA., sustentando o não provimento do recurso da contraparte.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Impugnação da matéria de facto
(…)
*
Ponto 7 do elenco de factos provados (impugnado pelas AA.):
A sentença declarou provado, neste ponto, o seguinte:
7. A ré/sociedade pagou as rendas relativas aos seis primeiros meses de renda.”
Pretendem as AA. que este facto seja dado como não provado.
Argumentam que das declarações de parte da Ré EE, dos recibos de rendas, e do depoimento da testemunha …, não se pode dar como provado nem os pagamentos, nem os meios de pagamentos utilizados pela Ré/Sociedade durante os 1.ºs seis meses de renda.
Apreciando, estão juntos aos autos os recibos de renda desses meses, emitidos pelo falecido marido da 1.ª A., cuja letra e assinatura não está impugnada.
Ora, o documento particular que o credor entrega ao devedor, ao abrigo do art. 787.º do Código Civil, declarando que recebeu o valor em dívida, constitui declaração de factos contrários aos seus interesses (in casu, o recebimento das rendas), estabelecendo a presunção de que o pagamento existiu – art. 376.º n.º 2 do Código Civil[1].
A declaração de quitação do preço constitui o reconhecimento de facto desfavorável aos interesses do credor e que favorece o devedor, tendo assim natureza confessória – art. 352.º, 374.º n.º 1 e 376.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil. E tendo sido feita à parte contrária, tem força probatória plena – art. 358.º n.º 2 do Código Civil – sem prejuízo do declarante poder fazer prova, por qualquer meio, da falta ou vícios da vontade, nos termos gerais (art. 359.º).[2]
Neste aspecto, em julgamento apenas foram realizadas conjecturas acerca do eventual não recebimento dos valores quitados. Os recibos foram emitidos por pessoa que já faleceu, e as testemunhas … e … apenas referiam que terceiro lhes teria dito que os valores das primeiras seis rendas não teriam sido pagos, mas disso não tinham conhecimento pessoal. E quanto à Ré EE, não reconheceu a falta de pagamento dessas rendas, pelo contrário, insistiu que estavam pagas.
Por estes motivos, entendemos que a prova não impõe a alteração do decidido em primeira instância quanto ao ponto 7, pelo que a impugnação deduzida pelas AA. não procede.
*
Em resumo, a impugnação fáctica deduzida pelas AA. improcede totalmente, e quanto à deduzida pelos RR. improcede quanto aos pontos 23 e 25, e apenas procede parcialmente quanto ao ponto 20, que ficará com a seguinte redacção:
20. (Não obstante), desde 01/08/2021 inclusive e até 22/09/2023 (data da realização da audiência prévia) a ré DD Mediação Imobiliária, Lda., vem ocupando a fracção autónoma em causa, sem qualquer autorização ou consentimento dos autores, aí mantendo a sua sede social e recebendo correspondência.”

A matéria de facto julgada provada é, assim, a seguinte:
1. Através de documento escrito, datado de 11/7/2018, a autora AA e o seu falecido marido, GG (na qualidade primeiros outorgantes) cederam de arrendamento à ré “DD Mediação Imobiliária, Ldª.” (na qualidade de segunda outorgante, devidamente representada no acto, pela sua sócia gerente EE) a fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés de chão esquerdo, (loja) do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal denominado “Edifício …, sito na Rua …, que se encontra inscrito na matriz predial sob o art. … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº …, com destino ao exercício da actividade imobiliária.
2. De acordo com os pontos 1.º e 3.º da clausula 5.ª do referido acordo, entre as partes foi estipulado o pagamento da renda mensal no valor de 1.300,00 € (mil e trezentos euros), a ser paga através da conta bancária com o IBAN …, cuja titular é a autora AA, sendo a renda do primeiro mês a relativa ao mês de Agosto de 2018.
3. E, no ponto 4.º da mesma clausula consta:
Na data da assinatura do presente contrato o Segundo Outorgante entrega ao Primeiro Outorgante a quantia de 7 800,00 € (sete mil e oitocentos euros), equivalente a 6 meses de renda, a título de caução e garantia das boas intenções de pagamento.” aceite
4. E, no ponto 5.º, da mesma clausula consta:
O valor referido no ponto 4.º da presente clausula será devolvido no final do contrato ao Segundo Outorgante, desde que as rendas sejam pagas até ao final do presente contrato e no acto de entrega do imóvel o mesmo se encontre em bom estado de conservação” aceite
5. E, no ponto 1.º da clausula 6.ª do mesmo acordo consta:
O Primeiro Outorgante é responsável pela reparação do vidro exterior.”
6. A quantia aludida em 3. foi paga através de cheque, em data anterior a 11/7/2018 e depositado na conta bancária da autora AA e marido, com o IBAN … logo em 29/06/2018 e devido à ré “DD Mediação Imobiliária, Ldª.” querer garantir, e mesmo antes da assinatura do acordo referido supra, que a autora AA e seu falecido marido lhe arrendariam a fracção em causa.
7. A ré/sociedade pagou as rendas relativas aos seis primeiros meses de renda.
8. Em Fevereiro de 2019, a ré DD começou a pagar à autora AA e marido a renda mensal devida, através de transferências bancárias para a conta com o IBAN …, e tendo pago:
i. Em 08/02/2019 a renda de Fevereiro de 2019, (1300,00 € - 325,00 € retenção =) 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros);
ii. Em 08/03/2019 a renda de Março de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros);
iii. Em 05/04/2019 a renda de Abril de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros);
iv. Em 06/05/2019 a renda de Maio de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
v. Em 05/06/2019 a renda de Junho de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
vi. Em 04/07/2019 a renda de Julho de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
vii. Em 07/08/2019 a renda de Agosto de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
viii. Em 03/09/2019 a renda de Setembro de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
ix. Em 08/10/2019 a renda de Outubro de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
x. Em 05/11/2019 a renda de Novembro de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
xi. Em 04/12/2019 a renda de Dezembro de 2019, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
xii. Em 07/01/2020 a renda de Janeiro de 2020, 981,63 € (novecentos e oitenta e um euros e sessenta e três cêntimos), após retenção, sendo que, a renda mensal foi aumentada a partir de Janeiro inclusive de 2020;
xiii. Em 05/02/2020 a renda de Fevereiro de 2020, 979,97 € (novecentos e setenta e nove e noventa e sete cêntimos), após retenção;
xiv. Em 06/03/2020 a renda de Março de 2020, 975,00 € (novecentos e setenta e cinco euros), após retenção;
xv. Em 15/04/2020, e referente a parte da renda do mês de Abril de 2020, 500,00 € (quinhentos euros), sendo-lhe perdoada pelos senhorios a restante parte da renda do mês de Abril de 2020, devido ao Covid
xvi. Em 06/05/2020, e referente a parte da renda do mês de Maio de 2020, 480,00 € (quatrocentos e oitenta euros), perdoando os senhorios a restante parte da renda do mês de Maio de 2020 devido ao Covid
xvii. Em 02/06/2020 a renda de Junho de 2020, 986,00 € (novecentos e oitenta e seis euros), após retenção;
xviii. Em 02/07/2020 a renda de Julho de 2020, 979,00 € (novecentos e setenta e nove euros), após retenção;
xix. Em 11/08/2020 a renda de Agosto de 2020, 986,00 € novecentos e oitenta e seis euros), após retenção;
xx. Em 10/09/2020 a renda de Setembro de 2020, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxi. Em 09/10/2020 a renda de Outubro de 2020, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxii. Em 10/11/2020 a renda de Novembro de 2020, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxiii. Em 08/12/2020 a renda de Dezembro de 2020, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxiv. Em 08/01/2021 a renda de Janeiro de 2021, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxv. Em 09/02/2021 a renda de Fevereiro de 2021, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxvi. Em 05/03/2021 a renda de Março de 2021, 987,00 € novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxvii. Em 12/04/2021 a renda de Abril de 2021, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxviii. Em 11/05/2021 a renda de Maio de 2021, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção;
xxix. Em 03/06/2021 a renda de Junho de 2021, 987,00 € (novecentos e oitenta e sete euros), após retenção.
9. A partir de Janeiro de 2020 inclusive, a renda foi sendo aumentada para o montante mensal de 1306,63 € (mil, trezentos e seis euros e sessenta e três cêntimos).
10. Em meados de Junho de 2021, a ré “DD Mediação Imobiliária, Ldª.” deduziu oposição à renovação do dito acordo, pelo que este terminou em 31/07/2021.
11. Em 31/7/2021 encontrava-se em dívida o montante de 979,97 € (novecentos e setenta e nove euros e noventa e sete cêntimos);
12. Foi emitida factura n.º FCC 1/3667, em nome da ré/sociedade, datada de 16/07/2018, no valor de 594,21 € (quinhentos e noventa e quatro euros e vinte e um cêntimo), relativa à instalação do vidro das traseiras da loja;
13. A colocação do referido vidro foi solicitada ao senhorio GG, e autorizada pelo mesmo;
14. Muito embora, a factura em causa não lhe tenha sido apresentada.
15. As autoras aceitam pagar o valor referido em 12.
16. Em meados de Maio de 2019, a montra da loja arrendada surgiu partida.
17. Chegado o dia 31/07/2021 a ré “DD Mediação Imobiliária, Ldª.” retirou as suas coisas de dentro da loja, deixando o espaço livre (ressalvando o toldo da loja que ainda se encontra lá colocado),
18. Com efeito, a ré “DD Mediação Imobiliária, Lda.” retirou parte da publicidade que mantinha na loja, mas não retirou o painel publicitário superior;
19. Mudando-se para outro imóvel no qual instalou o seu estabelecimento, onde tem todos os seus pertences e equipamentos, onde os seus funcionários laboram, onde os seus clientes se deslocam.
20. (Não obstante), desde 01/08/2021 inclusive e até 22/09/2023 (data da realização da audiência prévia) a ré DD Mediação Imobiliária, Lda., vem ocupando a fracção autónoma em causa, sem qualquer autorização ou consentimento dos autores, aí mantendo a sua sede social e recebendo correspondência.
21. Em Agosto de 2021, a ré DD Mediação Imobiliária, Lda. colocou na montra do arrendado vários avisos com a seguinte informação “Caros clientes, amigos e conhecidos informamos que iremos abrir a nossa nova Imobiliária no próximo dia 01/09/2021 na Rua …. Continuamos disponíveis para o ajudar, pelo que pode contactar-nos para o: +351 … geral@....com”
22. Informação que, à data da contestação, ainda se encontrava lá visível.
23. Entre a ré EE e a autora foram mantidas conversas pessoais no sentido de se fazer a entrega das chaves do arrendado, desde que a autora fizesse a devolução do montante de 7.800,00 € (sete mil e oitocentos euros), bem como o pagamento das despesas alegadamente suportadas pela ré e que, no entender desta, eram da responsabilidade dos senhorios.
24. A autora AA, atenta a doença do seu marido, ficou transtornada com os pedidos que os réus lhe fizeram e disse a estes que iria debruçar-se sobre o assunto e que voltariam a falar.
25. Desde meados de Agosto de 2021 as autoras pediram por diversas vezes aos réus para que estes lhes entregassem a dita fracção autónoma.
26. Em 24/08/2021 foi remetida missiva aos autores onde se pode ler:
(…) a minha cliente pretende entregar-lhes as chaves da Loja no próximo dia 31.08.2021 contra:
a) A devolução de parta da caução prestada aquando da celebração do contrato, após o desconto da última renda devida - € 6.493,37 – 7 800,00 (caução inicial) – valor da renda relativa ao mês de Julho de 2021 (€ 1306,63) – conforme Clausula Quinta n.º 4 e n.º 5 do mencionado contrato;
b) Reembolso da quantia de € 745,00 relativa à reparação do vidro exterior (conforme clausula Sexta n.º 1, do mencionado contrato – cf. Facturas que se anexam à presente carta
c) Reembolso da quantia de € 221,40 relativa à reparação do toldo exterior - cf. Factura que se anexa à presente carta
Em face do exposto, ficarei assim a aguardar o envio de comprovativo da transferência bancária (…) até ao próximo dia 30.08.2021, bem como a indicação de hora e local para a entrega das chaves da Loja no próximo dia 31.08.2021.” – fls. 45
27. A ré “DD Mediação Imobiliária, Lda.” procedeu à rescisão do contrato de electricidade com a EDP Comercial.
28. Em 9/10/2018, a ré “DD Mediação Imobiliária, Lda.” solicitou a denúncia do contrato de fornecimento de água com o Município de Loulé, e a baixa viria a ser efectuada em 19/08/2021.
29. E é susceptível de ser tomado de arrendamento a todo o momento e a todo o tempo para fins comerciais por renda mensal nunca inferior a 1.000,00 € (mil euros).

Aplicando o Direito.
1. Da indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada:
Sobre esta matéria regula do art. 1045.º do Código Civil, determinando o n.º 1 que, se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. E o n.º 2 acrescenta que essa indemnização será elevada para o dobro, em caso de mora do locatário.
Os RR. argumentam não existe nexo causal entre o comportamento da Ré sociedade e os danos invocados, e assim não se justifica a fixação da indemnização de € 25.000,00 atribuída pelo tribunal recorrido.
Diremos, a propósito, que a norma contida no n.º 1 do art. 1045.º do Código Civil, trata da não restituição simples, i.e., daqueles casos em que a falta de restituição ocorre por causas não imputáveis ao locatário (por exemplo, quando o locatário ilide a presunção de culpa pela não restituição, quando o locador tolera a manutenção do gozo pelo locatário, quando exista uma situação controvertida não provocada pelo locatário e enquanto ela não se solucionar, ou quando a restituição não possa ter lugar por outra causa imputável ao locador). Por seu turno, o n.º 2 aplica-se quando a falta de restituição ocorra por culpa do locatário, configurando-se então a mora deste, independentemente de interpelação, por via do art. 805.º n.º 2 al. a) do Código Civil.[3]
Resulta das normas conjugadas dos arts. 804.º n.º 2 e 805.º n.º 2 al. a) do Código Civil, que o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido, e se a obrigação tiver prazo certo há mora independentemente de interpelação. E é ao devedor que incumbe provar que a falta de cumprimento não procede de culpa – art. 799.º n.º 1 do Código Civil.
Ora, a Ré sociedade, locatária do imóvel, não logrou demonstrar que a falta de entrega do locado não procedia de culpa sua, pois condicionou a entrega das chaves do prévio pagamento de diversos valores, entre eles a caução, sem que aos senhorios fosse dada a possibilidade de vistoriarem o imóvel e verificarem o seu estado de conservação.
A entrega das chaves do locado ao senhorio, pelo locatário, traduz a manifestação de vontade deste em pôr termo ao contrato de locação, consubstanciando-se na tradição simbólica da posse do locado para o locador, constituindo a recepção das mesmas por este último a aceitação da proposta de distrate do contrato de arrendamento, podendo até configurar-se uma situação de revogação real, válida independentemente de forma escrita.
Porque a entrega das chaves do locado resulta na execução, imediata, da obrigação de restituição do locado, compreende-se que até a mesma ser realizada não se possa considerar que o locado foi efectivamente restituído, pois estando as chaves em poder do locatário, este não fica impossibilitado de continuar a gozá-lo ou fruí-lo, ainda que já tenha procedido à desocupação.
Assim, tendo a Ré sociedade, locatária da fracção, o dever de a restituir às AA. no dia 31.07.2021, mercê da denúncia que ela, locatária, realizou, deveria nessa data ter entregado o locado, o que só veio a fazer na sequência da transacção judicial realizada em sede de audiência prévia, no dia 22.09.2023.
Acresce que a Ré sociedade/locatária não podia alegar qualquer excepção do não cumprimento do contrato, pois esta é própria dos contratos bilaterais. Para que a excepção se aplique, não basta que o contrato crie obrigações para ambas as partes, sendo também preciso que as obrigações sejam correspectivas, correlativas ou interdependentes, isto é, que uma seja sinalagma da outra.[4]
No caso, a obrigação de restituição do locado pela locatária não era correspectiva da obrigação de devolução do valor da caução pelas locadoras: o cumprimento de uma obrigação não dependia da outra.
Tanto mais que estando em causa uma caução, que deveria ser devolvida, segundo os termos contratuais acordados – cláusula 5.ª n.º 5 – se as rendas forem pagas até ao final do contrato e o imóvel se encontrar em bom estado de conservação, não podia a locatária exigir a devolução da caução antes da efectiva entrega do imóvel e da verificação pelas locadoras do seu estado de conservação.
Enfim, porque a indemnização fixada na sentença – € 25.000,00 – situa-se até em parâmetro inferior ao que seria devido por força do art. 1045.º n.º 1 do Código Civil, resta manter tal indemnização, tanto mais que as AA. não recorrem dessa parte da sentença.
*
2. Da responsabilidade dos RR. pessoas singulares:
Questionam os RR. pessoas singulares a sua condenação, pois não são locatários e não assumiram a obrigação de cumprimento das obrigações resultantes do contrato.
A demanda dos RR. pessoas singulares não é fundada na petição inicial em qualquer desconsideração da personalidade jurídica da Ré sociedade, mas na sua intervenção pessoal no incumprimento do contrato, que os factos não demonstram.
De todo o modo, acaso as AA. pretendessem a desconsideração da personalidade jurídica da Ré sociedade, diríamos que não existe preceito na lei portuguesa que tutele esta figura, sendo a determinação das circunstâncias susceptíveis da sua aplicação meramente casuística, embora apoiada em princípios gerais como sejam o abuso de direito, a má-fé e o intuito de prejudicar terceiros.
Através deste instituto visa-se a responsabilização do património daquele que, instrumentalizando a sociedade, retirou proveitos próprios actuando em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada, identificando a doutrina como um desses casos a chamada confusão de patrimónios, com indiferenciação das esferas patrimoniais da sociedade e do sócio, quer por inobservância de regras societárias, quer pelo uso do património social para fins exclusivamente pessoais.
Porém, o recurso a este instituto é de carácter meramente subsidiário, apenas devendo ser utilizado quando inexista outro fundamento legal apto a invalidar a conduta desrespeitosa.[5]
No dizer de Armando Manuel Triunfante e Luís de Lemos Triunfante, “a desconsideração deve sempre ceder na presença de outro preceito, norma ou instituto que responda inteiramente ao problema. Não queremos com isto dizer que os valores que motivaram a desconsideração se encontram afastados dessas situações. Não é o caso porque essas normas são muitas vezes motivadas também por eles. Contudo, a aplicação autónoma da desconsideração deve restringir-se às hipóteses onde não existe já solução no direito positivo que, nessa medida, se revela mais segura e eficaz.”[6]
Ora, os autos não demonstram que os RR. pessoas singulares tenham instrumentalizado a Ré sociedade para retirar proveitos próprios em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada, assim criando uma indiferenciação das esferas patrimoniais da sociedade e dos sócios.
Neste aspecto, nada está alegado acerca da inobservância de regras societárias e do uso do património social para fins exclusivamente pessoais, pelo que os RR. pessoas singulares serão absolvidos.
*
Quanto ao recurso das AA., estava dependente da procedência da impugnação fáctica quanto ao ponto 7, o que não ocorreu, e porque outras questões não são suscitadas no seu recurso, resta julgá-lo improcedente.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso interposto pelas AA. e concede-se parcial provimento ao interposto pelos RR., pois determina-se a absolvição dos RR. EE e FF.
No mais, a sentença é confirmada.
Custas pelas AA. quanto ao seu recurso.
As do recurso dos RR., pela Ré sociedade.

Évora, 9 de Maio de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
José António Moita
Maria Adelaide Domingos

_________________________________________________
[1] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 10.05.2022 (Proc. 73700/20.YIPRT.C1), em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 31.05.2016 (Proc. 19/14.4T8SAT.C1), em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. a anotação à referida norma contida em “Leis do Arrendamento Urbano Anotadas”, Coordenação de António Menezes Cordeiro, 2014, Almedina, pág. 81.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.09.2016 (Proc. 6514/12.2TCLRS.L1.S1), em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.11.2017 (Proc. 919/15.4T8PNF.P1.S1) e de 19.06.2018 (Proc. 446/11.9TYLSB.L1.S1), ambos em www.dgsi.pt.
[6] In Desconsideração da Personalidade Jurídica – Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial, publicado na revista Julgar, n.º 9, ano 2009, pág. 141.