Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
520/24.1T8MMN.E1
Relator: HENRIQUE PAVÃO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
REQUISITOS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
NULIDADE
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A inobservância do preceituado no artigo 58º do RGCO pode constituir irregularidade sujeita ao regime do artigo 123º do C. P. Penal.
II - No que respeita à fundamentação da decisão condenatória da autoridade administrativa, a irregularidade só é de conhecimento oficioso se se verificar uma completa omissão quanto aos fatores que devem ser ponderados na determinação da coima ou da sanção acessória. Se a decisão condenatória da autoridade administrativa fundamenta a decisão nos fatores relevantes que foi possível apurar na fase da instrução, não ocorre qualquer nulidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

Nos presentes autos de recurso de contraordenação que correm termos no juízo de competência genérica de Montemor-o-Novo, juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, foi a arguida ..., S.A, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, foi proferida sentença que decidiu:


a) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 21.03.2020 (Proc. n.º 83.2020), na coima de €27 000,00;


b) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 08.04.2020 (Proc. n.º 82.2020), na coima de €30 000,00;


c) Condenar a sociedade arguida ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 20.04.2021 (Proc. n.º 144.2021), na coima de €27 000,00;


d) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 30.04.2021 (Proc. n.º 78.2020), na coima de €35 000,00;


e) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 23.04.2022 (Proc. n.º 38.2022), na coima de €43 000,00;


f) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 24.11.2022 (Proc. n.º 37.2023), na coima de €30 000,00;


g) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 24.11.2022 (Proc. n.º 37.2023), na coima de €24 000,00;


h) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 05.12.2022 (Proc. n.º 177.2022), na coima de €47 000,00;


i) Condenar a ..., S.A pela prática de 1 contraordenação muito grave, prevista e sancionada pelo artigo 81.º, n.º 3, alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, praticada em 10.12.2022 (Proc. n.º 9.2023), na coima de €55 000,00


j) Operado o cúmulo jurídico, condenar a arguida na coima única de €180 000,00;


k) Revogar a decisão administrativa, na parte em que condenou a arguida na sanção acessória de encerramento da exploração pelo praxo máximo de 3 anos e imposição de medidas adequadas à prevenção dos danos ambientais decorrente da sanção acessória de encerramento do estabelecimento;


l) Condenar a arguida na sanção acessória de publicidade da decisão condenatória, através da publicação de um extrato com a caracterização da infração, nomeadamente circunstâncias de tempo e lugar, as normas violadas, a identificação da arguida e as sanções aplicadas num jornal diário de âmbito nacional online e numa publicação periódica local ou regional, da área da sede da arguida, a expensas desta, nos termos dos artigos 30.º, n.º 1, alínea l) e 38.º, n.º 2, alínea a), ambos da Lei quadro das contraordenações ambientais.


Inconformada, a arguida recorreu, tendo apresentado, após a motivação, as seguintes conclusões:

A. A douta sentença, objeto do presente recurso, não pode manter-se quanto à condenação da Recorrente nos autos em apreço.

B. O Tribunal a quo alicerçou-se em erros manifestamente notórios, tendo ainda dado como não provados factos que deveriam ter sido dados como provados, assim como descurou e fez total tábua rasa da prova produzida em sede de audiência de julgamento que impunha que tivessem sido dados como provados factos, que não foram dados como provados, nem como não provados e, consequentemente, sustentou a sua decisão com base em erro notório na determinação da norma jurídica aplicável.

C. Visa-se, pois, a revogação ou reformulação da Douta Sentença, proferida pelo Tribunal a quo, sendo que, em suma, as divergências essenciais da ora Recorrente com esta decisão, prendem-se com o erro notório na apreciação da prova e a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal).

D. Relativamente aos processos n.º 00083.2020, 00082.2020 e 00078.2020 (Apensos A, B e D), não pode o Tribunal a quo dar um conceito jurídico (previsto e regulado na lei) como provado e muito menos o pode fazer com recurso a prova testemunhal.

E. Se a Lei regula, especifica e fundamenta de que modo é aferida e calculada a capacidade máxima de uma lagoa, não pode qualquer prova sobrepor-se e eliminar, por si só, tal conceito, de modo a fundamentar a Sentença proferida e muito menos quando essa “prova” – impossível e inexistente – é utilizada para fundamentar a condenação da Recorrente.

F. A capacidade máxima de uma lagoa, é aferida pelo número de efetivo de animais e pela média da precipitação máxima observada em vinte e quatro horas na região, nos últimos trinta anos referenciada pelo IPMA, tal como expressamente estipula o artigo 4.º, n.º 2 da Portaria 79/2022, de 3 de abril. Caso as lagoas não sejam construídas com a verificação destes requisitos, não são emitidas as respetivas licenças e a exploração simplesmente é impossibilitada de exercer atividade.

G. De igual modo, jamais seria aprovado qualquer PGEP caso as lagoas das explorações em causa não estivessem construídas em conformidade com as normas legais.

H. Ora, como resulta dos factos dados como provados nos pontos 9, 19 e 39, a Recorrente tinha (como tem) PGEP aprovado.

I. É consabido que a região do Alentejo é marcadamente seca e com menos chuva que o resto do país e precisamente por tal facto é que, necessariamente, a média da precipitação dos últimos 30 anos utilizada para apurar a capacidade máxima das lagoas aquando da sua construção, será necessariamente inferior do que no resto do país, ou seja, as lagoas estão preparadas para aguentar menos chuva do que as lagoas sitas em outras zonas do país.

J. O que nos leva à conclusão de que, contrariamente ao plasmado em sede de fundamentação da douta Sentença proferida, numa lógica precisamente oposto, ilógica e sem qualquer sustentação legal e factual, a chuva intensa que se fez sentir nos períodos a que se reportam os processos em apreço, foi sim imprevisível para a localidade do país em que as mesmas se situam e para a própria época do ano, não tendo a Recorrente qualquer forma de prever que a mesma ia ocorrer.

K. Deveria o Tribunal a quo ter-se debruçado sobre a norma plasmada no artigo 4.º, n.º 2 da Portaria 79/2022, de 3 de abril e com base no aí plasmado, ter então sim dar factos como provados ou como não provados dos quais fosse possível retirar e concluir que a Arguida podia e devia ter agido de modo diferente.

L. Verifica-se um erro notório na apreciação da prova e uma clara e evidente insuficiência para a decisão da matéria de facto provada no que respeita à capacidade máxima das lagoas e ao comportamento e/ou omissão da Arguida neste conspecto particular que permitam, a final, concluir pela condenação da mesma pela prática das três contraordenações.

M. Não se encontra preenchido o elemento de imputação subjetiva à Recorrente e, como tal, a sentença proferida é nula nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e do artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO.

N. E ainda que assim não se entendesse, o que se equaciona à cautela e sem conceder, sempre se dirá que, na ausência de prova em contrário, que permita imputar os alegados factos à Recorrente, sempre deveria, assim como deve, imperar o princípio do in dúbio pro reo.

O. O Tribunal a quo fez uma errada aplicação do artigo 81.º, n. º3 alínea u) e, bem assim, olvidou totalmente o princípio do in dúbio pro reo, cuja aplicação sempre culminaria na absolvição da Recorrente, como expressamente se requer.

P. Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso nesta parte.

Q. Ademais, e não obstante a douta sentença apenas mencionar que “[…] nestas três situações (21.03.2020, 08.04.2020 e 30.04.2020/01.05.2020 não foram realizadas obras ou qualquer reparação que permitisse melhorar a situação das lagoas e a sua capacidade, pelo que a situação se repetia” a douta sentença não menciona, como deveria - que essas reparações não foram efetuadas por total impossibilidade de intervenção no terreno, atento o estado enlameado em que o mesmo se encontrava.

R. Trata-se, pois, de uma verdadeira omissão de pronúncia e de erro notório na apreciação da prova, dando como provados factos e fundamentando os mesmos fazendo tábua rasa das circunstâncias concretas e sobejamente mencionadas pelas testemunhas do Ministério Público e da Recorrente, criando assim a convicção de que a Recorrente podia e devia ter agido de modo distinto, permitindo concluir pela verificação da culpa ao nível da negligência e assim fundamentar a sentença proferida – o que não se coaduna, de maneira alguma, com a prova produzida (Vide depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público: AA e BB e testemunhas arroladas pela Recorrente: CC)

S. Nestes termos, não só andou mal o Tribunal a quo ao ignorar por completo as circunstâncias pelas quais a Recorrente não efetuou as reparações – o que se impunha para efeitos de apuramento do grau de culpa e prática das contraordenações – como patenteou esta omissão igualmente em sede de apreciação da prática continuada das contraordenações.

T. A fundamentação apresentada pelo douto Tribunal para concluir pela não verificação da prática continuada das contraordenações em apreço, não pode colher, impondo-se a revogação da mesma e a substituição por outra que, a considerar manter a condenação da Recorrente, o que por mera cautela se alega e não se concede, a condene somente na prática continuada da contraordenação em apreço.

U. No que em concreto respeita ao Processo n.º DJUR.DCCO.00078.2020, a contraordenação sub judice resultou de um incidente e não de um comportamento ou omissão por parte da Arguida.

V. Facto que, uma vez mais, foi totalmente ignorado pelo douto Tribunal, nomeadamente em sede de atenuação especial da coima por exclusão da ilicitude e da culpa.

W. Algo que também deveria ter sido devidamente ponderado na aplicação e cúmulo da coima aplicada e que, uma vez mais, foi completamente ignorado. O que se consubstancia numa verdadeira omissão de pronúncia e uma vez mais num erro notório na apreciação da prova.

X. E o mesmo se diga quanto ao apenso F (Processo n.º DJUR.DCCO.0037.2023), já que a Recorrente obstruiu o descarregador como uma forma rápida de evitar um mal maior: descarga das águas ali existentes para a linha de água.

Y. Pelo que, sempre se impunha a atenuação da ilicitude na sua conduta com a consequente ponderação na fixação do valor da coima exultante do cúmulo efetuado.

Z. Não pode proceder a fundamentação apresentada pelo douto Tribunal a quo de que não estamos perante a prática continuada de uma contraordenação, uma vez que, como resulta do exposto e da prova produzida, a Recorrente encontrava-se a diligenciar pela resolução da situação, dentro do prazo que lhe foi facultado pela APA para o efeito.

AA. Resulta, pois, que a motivação do douto Tribunal a quo, e que sustenta a referida decisão é manifestamente insuficiente, infundada e contraditória entre si e com a prova produzida e junta aos autos.

BB. Pelo que a enumeração dos factos provados da sentença recorrida está eivada de factos que, manifestamente, segundo o normal acontecer das coisas, não podem resultar da simples perceção de alguém.

CC. É o caso, desde logo, de todos os factos onde são referidos dados cuja comprovação não pode ser feita a “olho nu”, que impliquem conhecimentos técnicos ou a existência de relatórios técnicos que os afirmem.

DD. Mas ainda que o Tribunal a quo tivesse dúvidas ou incertezas, sempre deveria, porque a isso se encontra vinculado, ter feito aplicar o princípio geral do processo penal «in dubio pro reo”, ao invés de fundamentar a douta sentença com base na prova que valorou, ignorando a demais prova produzida nomeadamente quando às circunstâncias, fundamentos e moldes por que se patenteou a conduta da Arguida relativamente a cada uma das contraordenações em que foi condenada.

EE. Não obstante, e sem prescindir, sempre se dirá que contrariamente ao mencionado na douta sentença proferida, a Recorrente não obteve qualquer benefício económico, desde logo porque concretizou todas as ações possíveis para prevenir a prática das contraordenações (lagoas contruídas e exploração licenciada de acordo com os parâmetros definidos no artigo 4.º, n. º 2 da Portaria 79/2022, de 3 de abril, inexistindo quaisquer obras adicionais que tivessem que se efetuadas.

FF. Ainda que tal tivesse acontecido, o que não se concede, foi, pois, no desconhecimento de estar a praticar uma contraordenação que a Arguida agiu.

GG. Pelo que, atuou sem consciência da ilicitude do facto porque em erro e, consequentemente, sem culpa (cf. art.º 12.º, n.º 1 da Lei n.º 50/2006, de 29/08), e, mesmo que se considerasse que tal erro lhe seria censurável, sempre a coima deveria ser especialmente atenuada (cf. art.º 12.º, n.º 2 da Lei n.º 50/2006).

HH. Nestes termos, tendo em conta a conduta da Arguida, a mesma não é suscetível de integrar as contraordenações em que foi condenada, devendo, em consequência, a Arguida ser absolvida das mesmas.

II. Por omissão dos factos conducentes às condições económicas da Arguida, verifica-se uma irregularidade da decisão da entidade administrativa e, na sequência, deverá a ora Recorrente, ser absolvida.

JJ. Por existir erro na apreciação das provas, as quais impunham decisão diversa, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva da Arguida da prática das contraordenações em apreço nos apensos A, B, D e F.

KK. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela se equaciona e não se concede, sempre deverá considerar-se que a prática das contraordenações dos apensos A, B, D, G e H (processos número DJUR.DCCO.00083.2020, DJUR.DCCO.00082.2020, DJUR.DCCO.00078.2020, DJUR.DCCO.00177.2022 e DJUR.DCCO.00009.2023 foram praticadas de forma continuada.


Respondendo, o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. É nula a sentença que não contiver as menções referidas no artigo 58.º, n. º1, al. b), do RGCO, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.

2. In casu, decisão recorrida encontra-se suficientemente fundamentada no que respeita ao elemento objetivo e subjetivo das respetivas infrações, inexistindo qualquer nulidade neste domínio;

3. Só se tem por verificado o invocado vício enunciado no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código Processo Penal, quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal Recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permitisse, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação — o que, no caso em apreço, tal não sucede com a decisão ora posta em recurso;

4. O vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal verifica-se naquelas situações em que a prova é valorada contra as regras da experiência ou contra critérios fixados na lei, sendo evidenciada e resultando da análise do próprio texto da decisão;

5. Da análise do texto da decisão proferida e ora posta em recurso, não se evidencia qualquer erro notório da apreciação da prova;

6. A presente condenação versa sobre três infrações: i) a utilização de recursos hídricos sem o respetivo título, prevista no artigo 81.º n.º 3 alínea a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio; ii) o incumprimento das obrigações impostas pelo respetivo título de utilização, prevista no artigo 81.º n.º 3 alínea c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio e iii) a rejeição de águas degradadas diretamente para o sistema de disposição de águas residuais, para a água ou para o solo, sem qualquer tipo de mecanismos que assegurem a depuração destas, nos termos do artigo 81.º n.º 3 alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio — inexistindo, in casu, qualquer erro na subsunção dos factos aos direito ou da aplicação do direito, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao ter decidido manter a decisão recorrida, uma vez que a conduta da Arguida ..., S.A. preenche o tipo objetivo e subjetivo das contraordenações previstas pelo artigo 81.º n.º 3 alíneas a), c) e u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, impondo-se, então, a sua condenação”;

7. A violação do princípio in dubio pro reo tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida.

8. In casu, não resulta ou decorre da sentença recorrida que o Tribunal a quo teve qualquer dúvida quanto à prática pela arguia recorrente dos ilícitos contraordenacionais — isso decorre claramente dos exatos moldes que foram dados como provados os factos constantes da decisão administrativa — pelo que, jamais se impunha a sua absolvição, ao abrigo do princípio in dubio pro reo;

9. No caso em apreço, não se encontra verificado — nem tão pouco a arguida recorrente o fundamenta — o erro plasmado no artigo 9.º, n.º 3, da Lei 50/2006, de agosto ou o erro tipificado no artigo 12.º, n. º 1, da Lei 50/2006);

10. Talqualmente, bem andou o Tribunal a quo ao ter decidido inexistir “lugar à condenação da contraordenação na forma continuada”, porquanto resulta evidente que não estamos perante a prática continuada de contraordenações, uma vez que inexiste um quadro externo que diminua consideravelmente a culpa da arguida recorrente;

11. As coimas parcelares foram determinadas na sentença recorrida de harmonia com o disposto no artigo 20.º da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, pelo que não há qualquer omissão de elementos legalmente relevantes para a sua fixação e mostra-se cuidadosamente ancorada nos preceitos legais aplicáveis, sem qualquer desvio interpretativo, quer quanto à admoestação (bem afastada com base na gravidade e duração da conduta), quer quanto à atenuação especial da coima (corretamente afastada face à ausência de factos que revelem diminuição da ilicitude do facto ou da culpa do agente ou a necessidade da coima);

12. Na fixação da coima única, o Tribunal observou o disposto no artigo 27.º da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, tendo sido determinada uma coima no montante de €180.000,00, valor que se encontra claramente dentro dos limites legais e devidamente justificado, nada havendo a censurar, não se verificando qualquer excesso ou desproporcionalidade ou omissão relativamente aos elementos legalmente exigidos, bem pelo contrário, a coima única reflete uma ponderação equilibrada entre a gravidade global dos factos e as circunstâncias concretas da sociedade arguida.


O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação, pronunciou-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, complementando a argumentação do Ministério Público de 1ª instância afirmando que, por força do preceituado no artigo 75º, nº 1 do RGCO, não deve ser conhecido o recurso na parte em que a recorrente impugna a factualidade julgada provada e não provada.


Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.


A recorrente não respondeu.


Procedeu-se a exame preliminar.


Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação.


II.I Delimitação do objeto do recurso.


Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do Código de Processo Penal e atendendo à jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, publicado no DR, I-A de 28 de dezembro de 1995, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal “ad quem”, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.


Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.


Por outro lado, em sede contraordenacional, os tribunais de recurso apenas conhecem de direito, nos termos do artigo 75º, nº 1 do Decreto-Lei 433/82 de 27 de outubro (diploma que instituiu o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo, de ora em diante designado por RGCO), não havendo, não obstante a ressalva da primeira parte da citada norma (“se o contrário não resultar deste diploma”) exceções previstas no RGCO (Simas Santos e Lopes de Sousa, Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, Visilis, 2001, página 421) ou na Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (de ora em diante RGCOA).


No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, as questões a apreciar e a decidir consistem essencialmente em e saber se a decisão recorrida:


- É nula por não ter observado o preceituado nos artigos 58º, nº 1, alínea b) do RGCO e 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal por não se encontrar “preenchido o elemento de imputação subjetiva à recorrente.”


- Deve ser anulada com fundamento em irregularidade que determina a invalidade da decisão da autoridade administrativa e dos termos subsequentes do processo, por a mesma ser omissa sobre factos que relevam para a determinação da medida das coimas.


- Incorreu nos vícios decisórios de insuficiência da matéria de facto para a decisão e erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal;


- Fez uma errada aplicação do artigo 81.º, n. º3, alínea u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio.


- Padece de omissão de pronúncia ao não ter julgado provados factos de onde decorre que houve impossibilidade de intervenção no terreno para realizar obras que permitissem melhorar a situação das lagoas.


- Saber se a recorrente atuou sem consciência da ilicitude, o que deveria conduzir à aplicação de uma coima especialmente atenuada (se o erro for censurável);


- Deveria ter considerado que a recorrente atuou em erro a que alude o artigo 9º, nº 3 e 12º da Lei nº 50/2006, de 29 de agosto (que aprovou a Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, de ora em diante LQCA).


- Saber se a recorrente deveria ter sido condenada, relativamente às infrações a que respeitam os apensos A, B, D, G e H (processos número DJUR.DCCO.00083.2020, DJUR.DCCO.00082.2020, DJUR.DCCO.00078.2020, DJUR.DCCO.00177.2022 e DJUR.DCCO.00009.2023) por uma infração continuada.


II.II – Apreciação do recurso


Apesar de reconhecer que nos recursos de contraordenação para o tribunal de relação não há lugar ao recurso da matéria de facto, a recorrente não deixa de, aqui e ali, na sua motivação e mesmo nas conclusões que delas extraiu, remeter para o depoimento de testemunhas e fazer apelo ao princípio “in dubio pro reo”.


Nesta parte, o recurso não pode deixar de ser rejeitado. O tribunal não irá, pois, atentar na prova produzida em 1ª instância em ordem a determinar se a sentença recorrida carece de ser corrigida em matéria de facto.


Sem embargo do que se acaba de dizer, nos recursos de contraordenação o tribunal não deixará de conhecer de vícios da decisão, designadamente, os invocados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova (vícios que, como já referido, são de conhecimento oficioso) e de vícios da sentença com fundamento nos artigos 58º do RGCO e 379º do Código de Processo Penal. Mas por aqui se quedará a apreciação da matéria de facto.


Assim, as conclusões B. (na parte em que remete para a prova produzida que “impunha que tivessem sido dados como provados factos, que não foram dados como provados, nem como não provados”), D. (na parte em que se refere à prova testemunhal), N., O., DD. (na parte em que se referem ao princípio “in dubio pro reo”), R. e Z. (na parte em que se refere à prova produzida), EE., JJ., entre outras, não poderão ser apreciadas por este tribunal numa perspetiva de impugnação da matéria de facto, não se conhecendo, nesta parte, do recurso. Note-se que o princípio “in dubio pro reo” constitui um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. Trata-se de uma regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos. O seu âmbito pressupõe a valoração pelo julgador de toda a prova produzida. Se o resultado desse processo de valoração for uma dúvida – uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos – o juiz terá que decidir a favor do arguido, dando como não provado facto que lhe é desfavorável ou julgando provado facto que lhe é favorável. Como se vê, a invocação do princípio em referência releva da matéria de facto, questão que está, como já referido, fora do âmbito da cognoscibilidade deste tribunal.



*




Isto posto, vejamos se a decisão recorrida é nula por não terem sido observados os requisitos dos artigos 58º do RGCO e 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal. A nulidade invocada pelo recorrente funda-se na circunstância de, na sentença, “não se encontra preenchido o elemento de imputação subjetiva à Recorrente”.


Antes de mais, cumpre observar que o recorrente vem, pelo presente recurso, reagir contra a sentença de 1ª instância e não contra a decisão da autoridade administrativa. A invocação do artigo 58º do RGCO é, pois, dispensável, na medida em que tal preceito regula a estrutura e conteúdo da decisão final proferida pela autoridade administrativa. Já o artigo 379º se refere a nulidades da sentença, avultando, para o que agora interessa considerar, o seu nº 1, alínea a), que estabelece que a sentença é nula, entre o mais, se não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º do mesmo código. É o seguinte o teor destas disposições legais:

2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:

b) A decisão condenatória ou absolutória;

Não tendo a recorrente feito qualquer outra indicação do motivo do seu recurso neste particular (afastando-se a parte em que remete para a prova produzida ou a produzir – que não interessa ao conhecimento do recurso - e a alusão aos vícios decisórios previstos no artigo 410º, nº 2 – que deverão ser analisados em sede própria) e analisando a sentença recorrida, logo se conclui que o recurso não pode proceder nesta parte.


Com efeito, da sentença recorrida constam factos de onde se extrai claramente o elemento subjetivo das infrações pelas quais a recorrente foi condenada e a imputação de tais factos à própria recorrente. É o que ocorre – de modo tão manifesto, que dispensa mais considerações – nos factos provados descritos em 10 a 12 (relativos ao processo 83.2020), 20 a 22 (relativos ao processo 82.2020), 28 a 31 (relativos ao processo 144.2021), 40 a 42 (relativas ao processo 78.2020), 50 a 52 (relativos ao processo 38.2022); 60 a 63 (relativos ao processo 37.2023), 75 a 77 (relativos ao processo 177.2022), 85 a 87 (relativos ao processo 9.2023). Refira-se, aliás, que os factos atinentes ao elemento subjetivo das infrações constavam já de decisão administrativa, designadamente nos factos 10 e seguintes, 24 e seguintes, 40 e seguintes, 49 e seguintes, 61 e seguintes, 73 e seguintes, 92 e seguintes e 107 e seguintes, relativos aos processos atrás identificados.



*




Sustenta também a recorrente que a decisão da autoridade administrativa deve ser anulada, anulando-se os termos subsequentes, por a mesma ser omissa sobre factos que relevam para a determinação da medida das coimas, designadamente, factos sobre a situação económica e o benefício económico que o agente retirou da prática da contraordenação, fatores que o artigo 18º do RGCO manda considerar na determinação da medida da coima.


De acordo com a recorrente, tal omissão na decisão administrativa, não corresponde à exigência constitucional de fundamentação das decisões dos tribunais (artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). É a fundamentação da decisão que permite que o agente “possa fazer um juízo de oportunidade sobre a conveniência da apresentação da impugnação judicial e, posteriormente, caso tal aconteça, permitir ao Tribunal conhecer, sem se substituir na investigação do ilícito àquela entidade administrativa, do processo lógico da formação da decisão”. Ainda segundo a recorrente, a apontada omissão constitui uma irregularidade prevista no artigo 123º, nº 2 do Código de Processo Penal (aplicável subsidiariamente ao processo contraordenacional, não sendo aplicável o artigo 58º do RGCO por este não prever nenhuma sanção para a omissão em causa). Argumenta, por fim, que não cabe ao tribunal suprir a inércia da entidade administrativa, averiguando as condições económicas da arguida. Conclui que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida.


É pacífico na doutrina e na jurisprudência dos nossos tribunais superiores que à inobservância, na decisão condenatória da autoridade administrativa, dos requisitos previstos no artigo 58º do RGCO não é aplicável o disposto no artigo 379º do Código de Processo Penal, posto que aquela decisão não constitui uma verdadeira sentença (pois se dela for interposto recurso, ela converter-se-á em “acusação”), nem o preceituado no artigo 283º, nº 3 do mesmo código, já que a decisão apenas assume a natureza de acusação se tiver sido judicialmente impugnada (Beça Pereira, Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 12ª edição, Almedina, página 162). Por outro lado, decorre do artigo 118º do Código de Processo Penal que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determinam a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. Inexistindo tal cominação legal, não é aplicável o regime das nulidades previsto no processo penal. A inobservância dos requisitos previstos no citado artigo 58º constitui, pois, uma irregularidade processual, prevista no artigo 123º do Código de Processo Penal, norma aplicável ex vi do disposto no artigo 41º, nº 1 do RGCO (Simas Santos e Lopes de Sousa, ob. cit. página 328 e seguinte).


Aqui chegados, duas questões se suscitam: a primeira consiste em saber se pode a recorrente, nesta fase, suscitar uma irregularidade procedimental da fase administrativa do processo; a segunda é se a invocada irregularidade existe.


Dispõe o artigo 123º do Código de Processo Penal:

1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.

Regra geral, a irregularidade dependente de arguição e é sanável se não for arguida no tempo legalmente previsto. Da irregularidade só se pode conhecer oficiosamente se ela puder afetar o valor do ato praticado e estiver em causa o cabal respeito pela “constituição processual penal” ou contraordenacional (neste sentido, Inês Ferreira Leite e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, volume I, 5ª edição, UCP, página 482).


A irregularidade deve ser suscitada pelo interessado no próprio ato ou, se a este não tiver assistido, nos 3 dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado de qualquer termo do processo (artigo 123º, nº 1). Cabendo recurso ou impugnação, a irregularidade deve ser arguida até à interposição do recurso e ser conhecida pela instância decisória ou de recurso. O tribunal pode ainda ordenar a reparação de qualquer irregularidade sempre que ela possa afetar o valor do ato praticado (artigo 123º, nº 2).


O artigo 58º do RGCO determina que a decisão condenatória da autoridade administrativa deve conter a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão (nº 1, alínea c). Por seu lado, o artigo 20º, nº 1 do RGCOA estabelece que a determinação da coima e das sanções acessórias se faz em função da gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com a prática do facto.


Entende-se que só pode ocorrer irregularidade na decisão condenatória da autoridade administrativa – na parte agora em exame – se a respetiva fundamentação for completamente omissa quanto aos fatores ponderados para a determinação das coimas ou das sanções acessórias. Se a decisão administrativa se refere a tais fatores em função do que foi possível apurar durante a fase da instrução do processo, não ocorre qualquer irregularidade que possa afetar o valor da própria decisão condenatória.


Ora, analisados os autos, verifica-se que a sentença recorrida não é omissa sobre factos que relevam, nos termos do citado artigo 20º, para a determinação da coima e sanções acessórias. Nos factos provados consta:

- A Arguida foi condenada em 2024 pela prática, em 17.01.2020, no âmbito do Proc. de contraordenação n.º 18.2020, de uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 81.º n.º 3 alíneas u) do Decreto-lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, no valor de € 12.000,00.

- Dos modelos 22 da declaração de IRC da arguida relativos a 2022, 2023 e 2024 constam resultados líquidos, respetivamente, de € 3.966.255,85, € 7.059.360,51 e € 12.362.426,34.

- A Arguida tem ao seu serviço um número não concretamente apurado de trabalhadores

Aliás, a decisão da autoridade administrativa também não padece da mesma omissão. Refere que não foi possível apurar dados sobre a situação económica do agente. E afirma que não é por falta de tais dados de facto que a arguida poderá ser prejudicada. De seguida pronuncia-se sobre o benefício económico na parte em que releva para a determinação da coima.


Não ocorre, pois, qualquer irregularidade que cumpra reparar.


Verifica-se ainda que a ora recorrente já suscitou, na impugnação judicial da decisão administrativa (cf. v.g. artigos 374 e seguintes), a questão da omissão na decisão impugnada das condições económicas e do benefício económico do agente.


Na ponderação da medida concreta das coimas a aplicar, o tribunal "a quo" ponderou a situação económica da recorrente e os benefícios económicos nos termos que melhor se retiram da página 58 e seguinte da sentença recorrida.


Em síntese:


- A inobservância do preceituado no artigo 58º do RGCO pode constituir irregularidade sujeita ao regime do artigo 123º do Código de Processo Penal;


- No que respeita à fundamentação da decisão condenatória da autoridade administrativa, a irregularidade só é de conhecimento oficioso se se verificar uma completa omissão quanto aos fatores que devem ser ponderados na determinação da coima ou da sanção acessória.


- Se a decisão condenatória da autoridade administrativa fundamenta a decisão nos fatores relevantes que foi possível apurar na fase da instrução, não ocorre qualquer nulidade.


Improcederá, pois, o recurso com base no fundamento acabado de analisar.



*




Vejamos se a sentença recorrida padece dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a) a c) do Código de Processo Penal. É certo que a recorrente apenas invoca os vícios das alíneas a) e c). Porém, por se tratar de questão de conhecimento oficioso e dados os termos com que a recorrente invoca aqueles dois vícios, não deixaremos de fazer também uma referência ao vício a que alude a alínea b).


Resulta expressamente deste preceito que a apreciação acerca da existência dos vícios nele previstos é restrita ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras de experiência comum. Significa isto que jamais será fundamento de vício decisório qualquer apreciação que extravase do domínio da literalidade da sentença, ou seja, que implique, por exemplo, a apreciação da prova produzida no processo.


O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº2, alínea a) do Código de Processo Penal) verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de abril de 2000, in BMJ nº 496, página 169. Este vício, na esteira do entendimento já há muito exposto no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de maio de 1993 (Proc. 9350062, sumário disponível in www.dgsi.pt), tributário do princípio do acusatório, tem de ser aferido em função do objeto do processo, traçado naturalmente pela acusação ou pronúncia, pelo que só quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal se ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação se concretizará tal vício.


A insuficiência a que se refere a alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal é, no fundo, a que decorre da omissão de pronúncia sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de setembro de 2018, publicado em www.dgsi.pt, processo 28/16.9PTCTB.C1).


Numa palavra, o vício em causa não tem a ver com a insuficiência da prova, mas com a falta de averiguação de factos necessários à decisão.


A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão é um vício decisório igualmente previsto no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (alínea b), pelo que o vício há de emergir, nos termos já referidos, da análise do texto em que se corporiza a sentença e não de outros elementos que constam do processo. Este vício consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Existe tal vício quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre estes e os não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova em que o tribunal fundou a sua convicção ou entre estes e a decisão.


Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.


Em causa está a discordância lógica entre os factos provados, ou entre estes e os não provados, ou na própria motivação da matéria de facto ou entre esta e a decisão.


Por fim, o vício do erro notório na apreciação da prova ocorre quando se dá como assente algo patentemente errado, quando se retira de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, quando se violam as regras da prova vinculada, as regras da experiência, as legis artis ou quando o tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos.


Em qualquer uma dessas situações a ocorrência do vício há de resultar do próprio texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, mas sem recurso a elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo, e verifica-se quando existir irrazoabilidade da matéria de facto passível de ser patente a qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum (neste sentido, por todos, acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24 de outubro de 2023, publicado em www.dgsi.pt, processo 3958/17.7T9PTM.E1, acórdão que aqui seguimos de perto).


A recorrente invoca conjuntamente os vícios previstos na alínea a) e c) do nº 2 do artigo 410º. Mas acaba por argumentar de modo a que o vício em causa possa ser o previsto na alínea b) do mesmo preceito legal.


Vejamos, pois.


A recorrente invoca os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório da apreciação da prova na parte em que o tribunal se refere “à capacidade máxima das lagoas e ao comportamento e/ou omissão da arguida neste conspecto particular que permitam, a final, concluir pela condenação da mesma pela prática das três contraordenações” (conclusão L). Em causa estão os processos 83/2020, 82/2020 e 78/2020. Insurge-se contra o facto provado descrito em 94 (por ser um conceito jurídico) e a respetiva fundamentação.


O facto e a fundamentação em causa têm o seguinte teor:

Facto provado:

“94. O valor da capacidade máxima das lagoas é calculado tendo em consideração fenómenos de pluviosidade.”

Fundamentação da decisão de facto:

“O facto 94 foi dado como provado pela conjugação do depoimento das testemunhas militares e das testemunhas que trabalhavam na APA e que são engenheiros ambientais, tendo ficado claro que a capacidade máxima das lagoas é calculada de acordo com o número de animais da exploração e com a intensidade da chuva do local, sendo certo que a capacidade máxima já foi determinada para que haja chuva intensa e, ainda assim, a lagoa não fique cheia e transborde.”

Não se deteta qualquer vício nestas duas partes da sentença. Primeiro, foi afirmado um facto (julgado provado). Depois, foi feita uma exposição concisa, mas completa, dos motivos que fundamentam a decisão de julgar provado tal facto. A fundamentação é coerente com o facto julgado provado.


De outro lado, o descrito em 94 dos factos provados é um facto concreto (e não um conceito de direito ou um facto conclusivo) e não colide, por ser diverso, com o que se encontra estabelecido no artigo 4º, nº 2 da Portaria nº 79/2022, de 3 de fevereiro. Ali, do que se fala é da capacidade máxima das lagoas. Aqui, do que se trata é de prever que o cálculo da capacidade mínima de armazenamento deve ter em conta vários fatores, sendo as águas pluviais apenas um deles. Não compete ao tribunal, nem à autoridade administrativa, averiguar esses fatores e em que medida os mesmos concorrem nas lagoas a que se refere a matéria de facto julgada provada. Tal tarefa é cometida, num momento prévio (artigo 10º, nº 5 da Portaria nº 79/2022), à entidade que aprova o Plano de Gestão de Efluentes Pecuários (PGEP).


Afirmou-se que o descrito em 94 da matéria de facto julgada provada não tem teor conclusivo nem transcreve um conceito jurídico. Na verdade, diversamente do que a recorrente parece pretender, o artigo 4º, nº 2 da Portaria 79/2022 não encerra em si mesmo um conceito jurídico. Estabelece apenas métodos de cálculo para determinar a capacidade mínima de armazenamento de efluentes pecuários.


Resulta da motivação e conclusões que a recorrente se insurge também contra a fundamentação da sentença na parte em que refere:

“Neste particular, importa clarificar que, conforme apurado, o valor das capacidades das lagoas é apurado tendo em consideração os fenómenos de pluviosidade (facto 94), pelo que a argumentação expendida pela defesa de que a chuva era imprevisível e que a arguida não podia prever que a capacidade máxima fosse aumentada não merece acolhimento, uma vez que, também como apurado, não se verificaram fenómenos meteorológicos raros ou catástrofes naturais.

Aliás, apesar da precipitação intensa, os factos ocorreram no Alentejo, região seca e com menos chuva que o resto do país, pelo que a arguida devia ter diligenciado de forma diferente pela garantia de que tinha mecanismos aptos a rejeitar as águas em função das necessidades das suas explorações pecuárias.”

Segundo a recorrente, se a sentença recorrida julgou provado que a arguida tinha PGEP e que “ocorreu elevada precipitação nos dias anteriores à fiscalização” (facto 8)”, sendo “consabido que a região do Alentejo é marcadamente seca e com menos chuva que o resto do país”, estando, por isso, as lagoas preparadas para aguentar menos chuva do que as lagoas sitas em outras zonas do país, tal leva á conclusão lógica de que era para a recorrente imprevisível que iria ocorrer precipitação intensa que levaria ao enchimento das lagoas até ao limite da sua capacidade. A fundamentação da sentença que atrás se deixou reproduzida é, pois (sempre de acordo com a recorrente), contrária às regras da lógica.


Analisada a sentença, logo se verifica que a argumentação da recorrente peca pela falta de rigor. Desde logo, observa-se que a referência à circunstância de ter ocorrido ““elevada precipitação nos dias anteriores à fiscalização” só surge na situação do processo 83/2020 (por referência à data de 21 de março de 2020). O mesmo facto não foi julgado provado nas outras duas situações em causa (processos 82/2020, cujos factos se referem a 8 de abril, e 78/2020, cujos factos ocorreram em 30 de abril). A lógica que a recorrente pretendeu desenvolver não tem, pois, cabimento nas situações a que se referem estes dois processos.


De outro lado, a circunstância de ter havido elevada precipitação não significa, por si só, que se tornava impossível à recorrente atuar de acordo com a lei, designadamente por não ser previsível o enchimento das lagoas devido à chuva que caiu. Elevada precipitação não implica necessariamente que foi excedida a média máxima diária dos últimos 30 anos (critério contemplado no artigo 4º, nº 2 da Portaria 79/2022). De resto, lê-se no trecho reproduzido da sentença que “não se verificaram fenómenos meteorológicos raros ou catástrofes naturais”. De outro lado, as lagoas são construídas para receber efluentes pecuários e não apenas águas pluviais. A quantidade daqueles efluentes depende do número de animais da exploração. Encaminhar o conteúdo das lagoas para valorização agrícola ou outro fim legítimo contribui para reduzir o volume de matéria no interior das lagoas. Enfim, a precipitação é apenas um dos fatores que contribui para o enchimento das lagoas, mas nem sequer é o mais relevante.


Não se deteta que a decisão recorrida seja omissa de factos que relevem para a subsunção jurídica do comportamento da recorrente aos tipos contraordenacionais que lhe são imputados e pelos quais foi condenada, nem de factos que relevem para o apuramento da culpa e da determinação das coimas e sanções acessórias, não havendo insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. De outro lado, a sentença é coerente, quer na descrição dos factos, na fundamentação de facto e de direito e na decisão. Por último, não se retira dos factos provados uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum.


Tendo em conta o exposto e considerando que os vícios decisórios invocados têm que decorrer do texto da decisão, ainda que conjugados com as regras da experiência comum, impõe-se concluir que não procede o recurso na parte acabada de examinar.



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A recorrente insurge-se também contra a sentença recorrida por esta ter feito uma aplicação errada do artigo 81º, nº 3, alínea u) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31 de maio. Nesta parte, o recurso pressupõe – na perspetiva da própria recorrente - a verificação de um dos vícios decisórios invocados pela recorrente e a alteração da decisão de facto com fundamento no princípio “in dubio pro reo”. Já se viu que não há que proceder à alteração da decisão de facto por nenhum dos fundamentos apontados.


Vejamos, pois, a questão da interpretação que o tribunal "a quo" fez do citado preceito legal. Reza ele que

“3 - Constitui contraordenação ambiental muito grave:

u) Rejeição de águas degradadas diretamente para o sistema de disposição de águas residuais, para a água ou para o solo, sem qualquer tipo de mecanismos que assegurem a depuração destas.

A sentença interpretou e aplicou de modo adequado o artigo 81º, nº 3 alínea u) do citado decreto-lei, tendo fundamentado a decisão do modo que segue e que, desde já se afirma, não nos merece qualquer censura

(…) “O tipo objetivo da norma em análise preenche-se com a rejeição por qualquer meio, de águas degradadas diretamente para o sistema de disposição de águas residuais, para a água ou para o solo, sem qualquer tipo de mecanismo que assegurem a sua depuração.

Já quanto ao tipo subjetivo este poderá ser preenchido com a verificação de uma conduta dolosa (em todas as suas modalidades) ou negligente.

No que respeita ao grau de lesão do bem jurídico, a contraordenação em causa é de perigo abstrato, pelo que a sua consumação não depende da verificação do dano e o tipo não inclui a colocação em perigo do bem jurídico, mas o perigo constitui o motivo da incriminação, verificando-se, assim, uma presunção inilidível de perigo associada à conduta típica.

Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.05.2013, Proc. n.º 1701/10.0TBLSD.P3 “A referida contra-ordenação protege o perigo abstracto da acção ali descrita, não dependendo a sua consumação de um prejuízo concreto, o que se adequa designadamente com os princípios da precaução, da prevenção e da correcção prioritariamente na fonte.”

Em primeiro lugar, e por forma a concluir se as condutas dos dias 21.03.2020, 08.04.2020, 30.04.2021, 01.05.2021, 23.04.2022, 05.12.2022 e 10.12.2022 preenchem, ou não, o tipo objetivo em causa, importa densificar o conceito de águas degradas.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.11.2017, Proc. n.º 1168/16.0BEBRG.G1 “Embora a legislação respeitante ao ilícito contraordenacional ambiental não defina o que se deve entender por águas degradadas, pode ao menos dizer-se que são aquelas que se afastam das características naturais da água: incolor, insípida e inodora. Não se exige que sejam tóxicas ou nocivas, ou que causem um impacto negativo muito grave”.

É do conhecimento global que a água tem características próprias e naturais, vulgarmente sendo referido que a água não tem cor, não tem cheiro e não tem sabor.

Da leitura do referido normativo resulta evidente que o legislador deixou espaço para a interpretação, cabendo, então, ao julgador preencher o conceito de degradar.

Como bem se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.10.2011, Proc. n.º 1779/09.0TBCTX.E1 “Sem embargo, ao utilizar a expressão rejeição de «águas degradadas» sem mecanismos que assegurem a depuração destas para o sistema de águas residuais, e por comparação com as alíneas anteriores onde ser menciona a rejeição para a água de «resíduos que contenham substâncias que possam alterar as suas características ou que contribuam para a degradação do ambiente» o legislador, em face do verbo degradar, utilizou o 'sentido possível das palavras', colocando no intérprete – autoridade administrativa ou judicial – a tarefa de concretizar no caso concreto o que sejam águas degradadas, devendo entender-se, no seu sentido comum, por degradadas, todas aquelas águas que não têm todas as características patentes no seu estado natural, mas que não são poluídas e, nível assinalável ou de outra espécie.

É, pois, uma categoria residual, servindo para nela, o legislador, compreender as condutas não tipificadas nas outras alíneas anteriores.

Desta forma, o legislador não actuou na tipificação da contraordenação ambiental prevista no art. 81.º, n.º 3, alínea u) do DL 226-A/2007, de forma vaga e indefinida, utilizando um conceito de impossível concretização, aí sim, violando o princípio da tipicidade.

Por maioria de razão não ocorreu qualquer nulidade da decisão, nos termos do art. 58.º, n.º 1, alínea b), do DL n.º 433/82, ex vi do art. 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP ex vi do art. 32.º DL n.º 433/82, porquanto, sendo o conceito de água degradada distinto do de água poluída, porquanto este último não prescinde de uma análise qualitativa e quantitativa.”

Partilhamos, na íntegra, o entendimento perfilhado considerando, não só, que para o preenchimento do conceito de águas degradadas apenas basta que as suas características se afastem daquilo que são as características normais da água, como não é necessário realizar uma análise à água para chegar a tal conclusão.

Este ponto assume particular importância, uma vez que a defesa considera que o exame pericial era fundamental e que, sem o mesmo, nunca se poderá concluir que as águas em causa não tinham as características devidas e, por isso, estavam degradadas.

Conforme já fora referido, não partilhamos desse entendimento, nem é esse, atualmente, o entendimento maioritário, precisamente porque se entende que o legislador deixou um conceito amplo distinguindo-o de águas poluídas, nas quais já exigirá um critério mais estreito.

Assim, não assiste razão à defesa ao considerar que sem o exame pericial não é possível concluir que as águas em causa eram degradadas.

Pelo contrário, considerando o entendimento maioritário da jurisprudência, o qual sufragamos, e atendendo à matéria de facto provada, resulta evidente que as águas rejeitadas tinham coloração escura, espuma e cheiro característico da atividade no âmbito da suinicultura, pelo que se afastavam claramente das características gerais da água.

No caso dos autos, considerando os factos 1 a 3, 14 a 16, 32 a 37, 43 e 44, 64 a 67 e 78 a 81, em especial às características das águas que eram rejeitadas para o solo e que desaguavam nas linhas de água, é indubitável que as mesmas eram águas degradadas.

Ademais, e atendendo aos factos 92 e 93, resulta evidente que as águas apenas vinham das explorações pecuárias da arguida, não havendo quaisquer outras explorações nas redondezas.

No que respeita ao elemento subjetivo, dando-se por reproduzidas as considerações tecidas supra quanto à negligência, atendendo à matéria de facto dada como provado, resta concluir que a arguida sendo quem tem a gestão da exploração pecuária em causa, não atuou com o cuidado devido, pois deveria ter prevenido tal acontecimento.

Neste particular, importa clarificar que, conforme apurado, o valor das capacidades das lagoas é apurado tendo em consideração os fenómenos de pluviosidade (facto 94), pelo que a argumentação expendida pela defesa de que a chuva era imprevisível e que a arguida não podia prever que a capacidade máxima fosse aumentada não merece acolhimento, uma vez que, também como apurado, não se verificaram fenómenos meteorológicos raros ou catástrofes naturais.

Aliás, apesar da precipitação intensa, os factos ocorreram no Alentejo, região seca e com menos chuva que o resto do país, pelo que a arguida devia ter diligenciado de forma diferente pela garantia de que tinha mecanismos aptos a rejeitar as águas em função das necessidades das suas explorações pecuárias.

E note-se que, também a argumentação de que a exploração estava a ser gerida há pouco tempo pela arguida não pode colher: mesmo que a exploração estivesse sob a gestão da arguida há um ano, impenderia sempre sobre si o ónus de garantir que tudo estava conforme. Dito de outro modo, se a arguida opta por comprar um espaço onde já funcionaram outras explorações/negócios, é a própria arguida que tem de garantir que o espaço em si tem as condições necessárias para o exercício da sua atividade, e não iniciar a atividade e depois ir ver se estão verificadas as condições.

A arguida revelou não ter conhecimento cabal das propriedades que explorava, dos sistemas de represas ou barragens que as mesmas tinham e que não integravam o PGEP e também demonstrou não cumprir o dever de verificar as infraestruturas dos negócios adquiridos, com vista a compreender se estavam aptos à sua exploração.

Ademais, estamos perante uma sociedade comercial com um volume de negócios muito elevado (facto 95), pelo que também não se admite que haja inexperiência e que a arguida não saiba ponderar todos estes fatores aquando da aquisição de novas explorações.

Tudo isto de demonstra a forma negligente com que a arguida atuou, violando os deveres de cuidado que sobre si impendia.

Pelo exposto, decide-se manter a decisão recorrida, uma vez que a conduta da Arguida ..., S.A. preenche o tipo objetivo e subjetivo das contraordenações previstas pelo artigo 81.º n.º 3 alíneas (…) u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, impondo-se, então, a sua condenação.”

Pelo exposto, improcede, também nesta parte, o recurso.



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A recorrente invoca ainda que a sentença recorrida peca por omissão de pronúncia ao não ter julgado provados factos de onde decorre que houve impossibilidade de intervenção no terreno para realizar obras que permitissem melhorar a situação das lagoas.


Todas as questões suscitadas pelos sujeitos processuais nas peças processuais têm que ser objeto de pronúncia pelo Tribunal na sentença. O mesmo ocorre relativamente às questões que sejam do conhecimento oficioso (José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2ª edição, 2023, página 812). A decisão que não se pronuncie sobre alguma destas questões é nula (artigo 379º, nº 1, alínea c).


Sucede que a recorrente não invocou tais factos na impugnação judicial da decisão administrativa. Alegou que os terrenos estavam molhados devido à chuva que tinha caído nos dias anteriores e que, por tal motivo, estava impedida legalmente de proceder a valorização agrícola por força do que se dispunha no artigo 10º, nº 3, alínea f) da Portaria 631/2009, de 9 de junho (entretanto revogada e substituída pela Portaria 79/2022, de 3 de fevereiro, mas que, no particular em exame, mantém a proibição de valorização agrícola em situações de chuva). Mas não alegou que, em virtude de os terrenos estarem enlameados, tornou-se impossível proceder a quaisquer obras nas lagoas. Como tal, o tribunal não tinha o dever de julgar tais factos provados. Ainda assim, o tribunal considerou, no facto provado nº 8, que ocorreu elevada precipitação nos dias anteriores à fiscalização. Considerou também (na fundamentação da decisão) que que a precipitação registada não consistiu num fenómeno raro ou catastrófico que impedisse a recorrente de cumprir o dever de diligenciar pela resolução de eventuais consequências do aumento da chuva. Como tal, não estava o tribunal obrigado a julgar provados quaisquer outros factos não alegados na impugnação judicial.


Deste modo e sem necessidade de mais considerações, improcederá o recurso também nesta parte.



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Argui ainda a recorrente ter atuado sem consciência da ilicitude do facto (artigo 12º da Lei nº 50/2009, de 29 de agosto) e em erro a que alude o artigo 9º, nº 3 da mesma lei.


Dispõem os preceitos acabados de citar:

Artigo 9.º

Punibilidade por dolo e negligência

1 - As contraordenações são puníveis a título de dolo ou de negligência.

2 - A negligência nas contraordenações é sempre punível.

3 - O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente exclui o dolo.

Artigo 12.º

Erro sobre a ilicitude

1 - Age sem culpa quem atua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.

2 - Se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada.

O erro excludente do dolo “existe quando falta ao agente, ao nível da sua consciência psicológica, o conhecimento de um qualquer elemento que seja necessário para que a sua consciência moral esteja na posse de todos os dados necessários para se colocar e resolver o problema da ilicitude. Não conhecendo o agente a proibição, a sua conduta, desligada da proibição das valorações do legislador, apenas lhe pode ser imputada a título de negligência” (Figueiredo Dias, parecer publicado na CJ, XII, tomo 2, página 51 e seguintes).


O erro tanto pode incidir sobre os elementos do tipo (elementos fácticos ou normativos) como sobre a proibição.


Já a falta de consciência da ilicitude só se verificará se o erro não for censurável ao agente, o que ocorrerá apenas quando o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente em qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do agente.


Recorde-se que este tribunal está impedido de conhecer sobre a matéria de facto. Como tal a resolução das questões suscitadas pela recorrente com base no erro (“sobre as circunstâncias do facto” e sobre a ilicitude) tem de atender apenas à matéria de facto julgada provada e não a outra que a recorrente invoca na sua motivação, mas que está afastada do elenco daquela factualidade.


Ora, mais uma vez, analisando a sentença recorrida, não se extrai de qualquer facto ou conjunto de factos circunstâncias que apontem para os erros a que nos vimos referindo. Pelo contrário, extrai-se da sentença factos que apontam para a inexistência de tais erros. Os factos em causa já acima se deixaram referidos, caso a caso.


Para além disso, a recorrente, para poder exercer a atividade pecuária geradora de efluentes pecuários, tem que assumir deveres que não são compatíveis com os erros que invoca (erro sobre as proibições e sobre a ilicitude). Tais deveres são os que emergem, por exemplo, da Portaria 631/2009 e, posteriormente, da Portaria 79/22. A necessidade de as empresas terem que ter um plano de gestão de efluentes pecuários (PGEP) é demonstrativo do que se acaba de dizer.


Consequentemente, não há também que ponderar, com fundamento no artigo 12º, nº 2 da Lei 50/2009, se as coimas aplicadas deveriam ter sido especialmente atenuadas.


Improcede, na parta acabada de analisar, o recurso.



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A recorrente sustenta ainda que o tribunal "a quo" deveria ter considerado que as infrações a que respeitam os processos 83.2020, 82.2020, 78.2020, 177.2022 e 9.2023) deveriam ter sido punidas como uma infração continuada.


A sentença pronunciou-se sobre a questão nos seguintes termos:

“Da análise da prática continuada das contraordenações

No recurso de impugnação judicial apresentado, a Arguida pugna pela sua condenação na forma continuada relativamente às contraordenações dos processos 83.2020, 82.2020 e 78.2020 e dos processos 177.2022 e 9.2023.

Alega, para tanto, que estão em causa dos mesmos factos e a mesma contraordenação.

Dispõe o artigo 30.º n.º 2 do Código Penal “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Assim, são requisitos do crime continuado i) a realização plúrima de violações típicas do mesmo bem jurídico; ii) a execução essencialmente homogénea das violações e iii) um quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a sua culpa.

A este propósito atente-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/01/2021 onde se refere que “No caso dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, como é o caso dos autos, compreende-se a existência do crime continuado, dada a natureza periódica dos impostos em causa e das contribuições devidas à segurança social, pois a dedução de contribuições nas remunerações dos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais, pelas entidades patronais, e a sua não entrega à segurança social, são situações que se repetem, muitas vezes, e no mesmo contexto. Perante os factos dados como provados, resulta que estamos face a uma reiteração de condutas, face a situações que se foram repetindo, com carácter de homogeneidade, violando os arguidos o mesmo tipo de ilícito criminal, ao longo de um período temporal apreciável [entre 2007 e 2012], com intermitências de cumprimento, termos em que não se pode falar de períodos temporais distintos, porquanto entre eles não medeia um considerável hiato, tendo em atenção que se tratam, ademais, de tributos da mesma natureza, sendo que a factualidade apurada aponta para a continuidade de resolução criminosa e para a homogeneidade de atuação.”

No caso dos autos, resulta evidente que não estamos perante a prática continuada das contraordenações, uma vez que inexiste um quadro externo que diminua consideravelmente a culpa da arguida.

Com efeito, estamos perante contraordenações cometidas durante vários meses, mas que foram sendo cometidas mesmo após o levantamento dos autos de contraordenações pelas entidades competentes (GNR e APA).

A partir da primeira fiscalização, a arguida teve conhecimento de que foi levantado auto de contraordenação e de que havia suspeitas da eventual prática de uma contraordenação, facto que não a levou a alterar a sua conduta e evitar novas fiscalizações/levantamento de autos.

Donde, ao contrário do que a arguida tenta fazer crer, o levantamento de autos sucessivos, durante um determinado período temporal, não só não faz integrar a conduta numa mesma unidade de resolução criminosa, como demonstra que a arguida após conhecimento de que foi levantado auto de contraordenação e de que podiam estar em causa violações graves, manteve a sua postura, nada fazendo para alterar a situação, acabando por ter novas fiscalizações que culminaram em novos processos de contraordenação.

Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15.06.2023, Proc. n.º 97/23.5T8FAR.E1, onde se lê

“I – São elementos da contraordenação continuada: (i) A realização de várias ações que constituam ilícitos contraordenacionais por violarem o mesmo tipo contraordenacional ou vários tipos contraordenacionais; (ii) cujo o bem jurídico protegido seja o mesmo; (iii) sendo a execução dessas contraordenações realizada por forma essencialmente homogénea; (iv) e no quadro de um determinado contexto exterior que propicie a repetição, fazendo, por isso, diminuir consideravelmente a culpa do seu autor, pressupondo, neste caso, uma certa proximidade temporal entre as práticas contraordenacionais, de forma a fazer presumir uma menor reflexão sobre a atuação praticada.

II – A manutenção em funcionamento do estabelecimento que a arguida explorava como lar de idosos, sem dispor da competente licença ou autorização provisória de licenciamento, após cada autuação contraordenacional efetuada pela Segurança Social, dependia exclusivamente de um ato de vontade sua, ato esse que, sem desconhecimento da ilegalidade que praticava, persistia em renovar.

III – Tal persistência na atuação ilícita, apesar da condenação reiterada em coimas, intensifica o grau da culpa do seu infrator.”

Perfilhamos, na íntegra, o entendimento sufragado, sendo o mesmo análogo ao caso dos autos.

Assim, nos processos suprarreferidos não se verificaram os pressupostos do crime continuado.

Nestes termos, e com os fundamentos expendidos, não há lugar à condenação da contraordenação na forma continuada.

Recordando-se que este tribunal apenas pode atender aos factos que foram julgados provados na primeira instância, entende-se que a excelente fundamentação usada na sentença para afastar a punibilidade das infrações como contraordenação continuada não merece nem censura nem maior desenvolvimento.


A punição de várias infrações como uma infração continuada visa corresponder a uma atuação plúrima de infrações num quadro que diminua consideravelmente a culpa.


Nas situações invocadas pela recorrente o que se verifica é, justamente, o contrário. Após tomar conhecimento do levantamento de um auto de contraordenação por uma infração, a recorrente, não só não sustou o seu comportamento delituoso, como renovou a sua “indiferença” perante a ilegalidade.


Improcede, pois, também nesta parte, o recurso interposto.


III- Dispositivo.


Por tudo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.


Condena-se o recorrente em taxa de justiça que se fixa em quatro unidades de conta (artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).


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Redigido com apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redação original).

(Processado em computador pelo relator e revisto integralmente pelos signatários)


Évora, 10 de dezembro de 2025


Henrique Pavão


Maria José Cortes


Renato Barroso