Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
217/10.0TTSTB.E1
Relator: JOÃO LUÍS NUNES
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
ÓNUS DA PROVA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: (i) Estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdurou de 1 de Setembro de 2004 até finais de Fevereiro de 2010 e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 2006 (com a alteração operada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março), ou a partir de 2009 (com a Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), os termos em que, na prática, se executava essa relação jurídica, à sua qualificação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, atento o disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei Preambular que o aprovou, e no artigo 7.º da Lei Preambular que aprovou o Código do Trabalho de 2009 (Lei n.º 7/2009);
(ii) Incumbe ao trabalhador, como pressuposto dos pedidos que funda na existência de um contrato de trabalho, o ónus de alegar e provar os factos reveladores da existência de um tal vínculo, porque constitutivos do direito accionado (art. 342.º, n.º 1 do Código Civil), sem prejuízo da presunção legal da existência de um contrato de trabalho de que o trabalhador pode gozar.
(iii) Não se mostra provada a subordinação jurídica e, com ela, a existência de um contrato de trabalho entre a Autora e a Ré, se da matéria de facto apenas resulta que a Autora foi admitida ao serviço da Ré para proceder à conferência de facturas da ARS, procedia à conferência de lotes de documentos que mensalmente lhe eram entregues, nas instalações da ARS e no horário que a mesma afectava as instalações à Ré, recebendo a Autora uma contrapartida fixa mensal, não se demonstrando a quem pertenciam os equipamentos de trabalho que a Autora utilizava, sendo certo que esta apenas comunicava as faltas e férias (que compensava com horas extra) a uma outra trabalhadora da Ré que também prestava serviço nas instalações da ARS, emitia “recibos verdes” à Ré, não recebia subsídio de férias e de Natal e não constava dos mapas de pessoal da Ré.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 217/10.0TTSTB.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
A… (contribuinte fiscal n.º …., residente na Rua …) intentou, no Tribunal do Trabalho de Setúbal, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra P…, S.A. (com sede no ….), pedindo:
(i) que seja declarado que entre a Autora e a Ré existiu desde 01-09-2004 uma relação jurídica de trabalho subordinado;
(ii) que seja declarado que a cessação dessa relação se traduziu num despedimento ilícito;
(iii) que a Ré seja condenada a pagar à Autora uma indemnização pela cessação ilícita da relação de trabalho não inferior a € 4.521,00;
(iv) que a Ré seja condenada a pagar à Autora:
1. A remuneração de Fevereiro de 2010 no valor de € 753,50;
2. o subsídio de férias vencido em 1 de Janeiro (de 2010) no valor de € 753,50;
3. a remuneração por férias não gozadas vencidas em 1 de Janeiro de 2010 no valor de € 753,50;
4. os proporcionais de subsídio de férias e de Natal no valor de € 251,00;
(v) que a Ré seja condenada a pagar à Autora as remunerações mensais vencidas e vincendas e subsídio de férias e de Natal a que tem direito até ao trânsito em julgado da sentença.
Alegou para o efeito, em síntese, que foi admitida ao serviço da Ré em 1 de Setembro de 2004, “a recibos verdes” (contrato de prestação de serviços): porém, a relação que manteve com a Ré foi de trabalho subordinado, pelo que deve o contrato ser qualificado como de trabalho.
Acrescenta que a Ré pôs termo ao contrato, sem precedência de processo disciplinar, verificando-se, assim, um despedimento sem justa causa, reclamando os direitos decorrentes de tal acto ilícito, bem como da vigência do contrato como de trabalho.

*
Tendo-se procedido à audiência de partes e não se tendo logrado obter o acordo das mesmas, contestou a Ré, sustentando, muito em resumo, que a relação que manteve com a Autora não pode ser qualificada como de trabalho subordinado, uma vez que aquela prestava o trabalho sem “qualquer espécie de sujeição à autoridade e direcção da Ré”.
*
Os autos prosseguiram os seus termos, tendo-se fixado o valor à causa (€ 7.032,50), dispensado a realização da audiência preliminar, proferido despacho saneador stricto sensu, e dispensado a fixação dos factos assentes, bem como da base instrutória.
Seguidamente procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento (no âmbito da qual a Autor veio afirmar ter, entretanto, recebido a remuneração de Fevereiro de 2010), respondeu-se à matéria de facto, que não foi objecto de reclamação, após o que foi proferido despacho que declarou a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de condenação da Ré a pagar à Autora a remuneração do mês de Fevereiro de 2010, no montante de € 753,50, e foi proferida sentença em 7 de Março de 2011 que julgou a acção improcedente, e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos.
*
Inconformada com a decisão, a Autora dela interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«a) Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra que dela beneficia, se verifiquem algumas das seguintes características: (artigo 12º do Código de Trabalho, versão 2009)
b) A Autora alegou e provou um conjunto de factos (as tais características na economia da norma) dos quais se infere a existência de contrato de trabalho subordinado entre Autora e Ré.
c) A Autora tinha um local de trabalho, determinado pela Ré.
d) A Autora tinha um horário de trabalho, entre as 8 horas e as 14 horas, fixado pela Ré.
e) A Autora reportava-se directamente à trabalhadora C…, a quem comunicava “as faltas e os dias de férias, que compensava com horas extra”.
f) A Autora recebia uma remuneração mensal fixa, paga 12 vezes por ano.
g) A Autora tinha a mesma categoria profissional dos restantes trabalhadores da Ré.
h) A Ré reconheceu que mantinha com a Autora um contrato de trabalho subordinado, quando em 2008 lhe propõe a celebração de um contrato de trabalho a termo de 6 meses, na sequência desta reclamar a qualidade de trabalhadora por conta de outrem.
i) Devia o Tribunal “a quo” ter decidido pela procedência da acção e condenado a Ré a pagar à Autora as quantias peticionadas (excluindo a remuneração do mês de Fevereiro de 2008, pelas razões já adiantadas).
j) Não o fazendo o Tribunal “a quo” violou as normas dos artigos 11º, 12º, 351º e seguintes e 389º e seguintes, todas do Código do Trabalho (versão 2009)»
*
A recorrida respondeu ao recurso, a pugnar pela improcedência do mesmo.
*
Por despacho de 09-05-2011 o recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Neste tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Respondeu a recorrente, a reafirmar, em suma, o constante do recurso por si interposto, quanto à existência de um contrato de trabalho, e a concluir, mais uma vez, pela procedência, do mesmo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Objecto do recurso
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, como resulta do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.
Assim, tendo em conta as conclusões das alegações da recorrente, a questão essencial decidenda centra-se em determinar se o contrato que vigorou entre as partes deve ser qualificado como de trabalho, com as consequências daí decorrentes.
*
III. Factos
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade, que se aceita, por não se vislumbrar fundamento legal para a sua alteração:
1. A A. foi admitida pela R. em 1 de Setembro de 2004, para proceder a conferência de
facturas de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS), em Setúbal.
2. A A. exercia as suas funções nas instalações da Administração Regional de Saúde de
Lisboa e Vale do Tejo (ARS), em Setúbal.
3. E fazia-o no horário das 08:00 às 14:00 horas, período em que as instalações da ARS
estavam afectas à R..
4. A A. comunicava a C…, funcionária da R. na ARS do grupo de trabalho de
Setúbal, as faltas e os dias de férias, que compensava com horas extra.
5. No grupo de trabalho de Setúbal, até 2009, a A. era a única que trabalhava em regime de “recibos verdes”.
6. A A. reclamou junto da R. a qualidade de trabalhadora por conta de outrém.
7. Em data não concretamente apurada do ano de 2008, a R. propôs à A. a celebração de um contrato de trabalho pelo prazo de 6 meses, o que a A. não aceitou.
8. O contrato entre a R. e a ARS de Setúbal terminou em final de Fevereiro de 2010.
9. A Ré enviou à A., que recebeu, a carta datada de 19/02/2010, na qual lhe comunica a “revogação do contrato de prestação de serviços”, com efeitos a partir de 28/02/2010, alegando que a “decisão de dispensar os seus serviços prende-se com o facto do «Contrato de Aquisição de Serviços no âmbito da Conferência de Facturas de Meios Auxiliares de Diagnóstico e Terapêutica», celebrado entre esta empresa e a Administração Regional de Saúde de Setúbal e Vale do Tejo, I.P., terminar no final do corrente mês de Fevereiro.”
10. A R. não ofereceu à A. outro local de trabalho, nem permitiu que continuasse a sua
prestação de trabalho noutro local.
11. A R. tem sede em Lisboa e serviços administrativos em Lisboa, Évora e noutras
cidades.
12. A R. não promoveu qualquer procedimento disciplinar.
13. A A. auferia, em Fevereiro de 2010, a remuneração mensal de € 753,50.
14. A R. não pagou à A. a remuneração relativa ao mês de Fevereiro de 2010.
15. A Ré não pagou à A. retribuição por férias e subsídio de férias relativos ao trabalho
prestado no ano de 2009, nem os proporcionais referentes ao trabalho prestado em 2010.
16. A R. não pagou à A. proporcional do subsídio de Natal referente ao trabalho prestado em 2010.
17. Em contrapartida dos serviços prestados pela A., as partes acordaram que aquela receberia uma remuneração mensal no valor de € 745, durante 12 meses por ano.
18. Todos os meses era confiado à A. um lote de documentos, usualmente chamados MCDT’s (Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica).
19. Os únicos documentos que a R. processou da A., ao longo da vigência do contrato existente entre as partes, foram os recibos verdes que a A. emitiu mensalmente e as declarações anuais para efeitos fiscais, referentes às quantias recebidas a título de retribuição pelos serviços prestados.
20. A A. nunca constou dos mapas de férias do pessoal da R..
21. Não existe na R. qualquer registo de faltas da A..
22. Todos os trabalhadores da R. que se encontravam a trabalhar na ARS de Setúbal tinham a mesma categoria profissional e auferiam idêntico salário.
*
IV. Enquadramento Jurídico
Como se afirmou supra (sob o n.º II), a questão essencial a decidir consiste em determinar se a relação que vigorou entre as partes deve ser qualificada como de trabalho subordinado.
Vejamos, pois, a referida questão.
À data em que foi celebrado o contrato encontrava-se em vigor o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 23 de Agosto.
Atente-se que estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdurou desde 1 de Setembro de 2004 até finais de Fevereiro de 2010 e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 2006 (com a alteração operada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março), ou a partir de 2009 (com a Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), os termos em que, na prática, se executava essa relação jurídica, à sua qualificação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, atento o disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei Preambular que o aprovou, e no artigo 7.º da Lei Preambular que aprovou o Código do Trabalho de 2009 (Lei n.º 7/2009).
Com efeito, e ao contrário do que parece sustentar a recorrente, a relação jurídica em causa foi constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho do 2009 e, embora se tenha mantido na vigência deste diploma, nenhum facto ocorreu determinante de qualquer mudança na sua configuração ou natureza, designadamente no que toca aos contornos ou modo da sua execução.
Assim, porque o Código do Trabalho/2009 (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro) não se aplica aos efeitos (direitos e obrigações) emergentes de factos totalmente passados, antes do início da sua vigência, a qualificação de tal relação jurídica, que pressupõe um juízo de valoração sobre o facto que lhe deu origem, há-de operar-se à luz do regime anterior, que é o do Código do Trabalho de 2003, na sua versão original [neste sentido, embora estando em causa a aplicação do regime que decorria do Decreto-Lei n.º 49 408, de 24-11-1969 (LCT), ou o regime que decorria do Código do Trabalho de 2003 aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010 (disponível em www.dgsi.pt, sob Recurso 462/06.2TTMTS.S1 – 4.ª Secção).
Deste modo, diversamente ao que sustenta a apelante, entende-se ser aplicável à qualificação jurídica do contrato o regime que decorre do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
Estipula o artigo 10.º deste diploma legal, à semelhança do que já resultava do anterior artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 49 408, de 24-11-69, e do artigo 1152.º do Código Civil, que contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
O artigo 12.º daquele Código, na sua redacção original (aqui aplicável, como se afirmou, atenta a data da celebração do contrato), estabelecia uma presunção da existência de um contrato de trabalho sempre que, cumulativamente se verificassem determinados pressupostos:
a) o prestador do trabalho estivesse inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade;
b) o trabalho fosse realizado na empresa beneficiária da actividade ou em local por esta controlado;
c) o prestador do trabalho seja retribuído em função do tempo despendido em execução da actividade;
d) Os instrumentos de trabalho sejam essencialmente fornecidos pelo beneficiário da actividade;
e) A prestação da actividade seja executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias.
Como facto constitutivo do direito, cabe ao demandante a prova da existência de um vínculo laboral (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil); isto é, ao trabalhador compete provar que trabalhou a favor de outra pessoa, sob a sua direcção e autoridade, para assim demonstrar a existência de subordinação jurídica e, bem assim, a existência de um contrato de trabalho.
Isto sem prejuízo de face à factualidade apurada se concluir que ele goza da presunção da existência de um contrato de trabalho.
*
Importa fazer uma referência, necessariamente breve, à distinção entre contrato de trabalho e outras figuras afins, maxime o contrato de prestação de serviços.
Avulta na definição de contrato de trabalho que a pessoa se obriga a prestar a sua actividade a outra, mediante retribuição e sob a autoridade e direcção dessa outra pessoa que a pode orientar e dar-lhe ordens: a subordinação jurídica do trabalhador a quem presta a actividade é o elemento essencialmente caracterizador e diferenciador da existência de um contrato de trabalho em relação a outros afins, como seja o contrato de prestação de serviços.
Como afirma Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 13.ª Edição, Almedina, pág. 136) «[p]ara que se reconheça a existência de um contrato de trabalho, é fundamental que, na situação concreta, ocorram as características da subordinação jurídica por parte do trabalhador (...). A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem».
Todavia, embora a lei distinga claramente o contrato de trabalho de outros contratos, como o de prestação de serviços, no plano concreto nem sempre são fáceis de verificar os elementos caracterizadores de cada um deles.
Por isso, para a qualificação do contrato, maxime para apurar da existência de subordinação jurídica, a doutrina e jurisprudência têm-se socorrido da verificação ou não de diversos indícios, a apreciar em concreto e interdependentes entre si.
De acordo com Monteiro Fernandes, constituem indícios de subordinação (obra referida, págs. 147-148) «...a vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa – tudo elementos retirados da situação típica de integração numa organização técnico-laboral predisposta e gerida por outrem. Acrescem elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo, em regra), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação. São ainda referidos indícios de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem».
Também Romano Martinez (Direito do Trabalho, 3.ª Edição, Almedina, passim a págs. 310 a 313), referindo que o critério base para a distinção de um contrato de trabalho é o da subordinação jurídica – bastando, para tanto, a possibilidade de quem recebe o trabalho dar ordens -, dada a necessidade de recorrer a métodos indiciários negociais internos e externos para qualificar o contrato, considera que se está perante um contrato de trabalho se a actividade for desenvolvida na empresa, junto do empregador ou em local por este indicado, se existe um horário de trabalho fixo, se os bens e utensílios são fornecidos pelo destinatário da actividade, se a remuneração for determinada por tempo de trabalho (embora, relacionado com este indício seja também de atender que sendo pagos os subsídios de férias e de Natal é de pressupor a existência de um contrato de trabalho), se quem for contratado exerce a actividade apenas por si e não por intermédio de outras pessoas, se o risco do exercício da actividade corre por conta do empregador (caso, por exemplo, o trabalhador não desenvolva o a actividade por qualquer razão que não lhe seja imputável mantém o direito à retribuição) e, finalmente, se o prestador da actividade está inserido numa organização produtiva.
E, para além de indícios negociais, o mesmo Autor acrescenta como elementos eventualmente relevantes na qualificação do contrato, os “índices externos”, consistentes no facto de o prestador de serviço desenvolver a mesma ou idêntica actividade para diferentes beneficiários - o que indicia uma independência não enquadrável na subordinação da relação laboral -, a inscrição na Repartição de Finanças como trabalhador dependente ou independente e a declaração de rendimentos, a inscrição do prestador de actividade na Segurança Social e ainda o facto do mesmo prestador de trabalho se encontrar sindicalizado, caso que poderá indiciar que o contrato é de trabalho.
Fernando Ribeiro Lopes, embora no domínio de anterior lei (Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIX, n.º 1, Janeiro-Março de 1987, passim a pág. 57 a 80), conclui que a subordinação jurídica se concretiza na dependência do trabalhador perante vários direitos ou poderes da entidade patronal, entre os quais avultam:
1) O poder determinativo da função, consistente na faculdade conferida à entidade patronal de escolher, dentro do género de trabalho em que consiste a categoria do trabalhador, a actividade ou função de que necessita. A tal poder corresponde, na esfera do trabalhador, um dever de conduta de realizar a função escolhida pela entidade patronal;
2) O poder conformativo da prestação, consistente na possibilidade da entidade patronal especificar os termos em que deve ser prestado o trabalho, projectando-se na esfera do trabalhador, através de um dever de obediência;
3) O poder-dever de elaborar um horário de trabalho, a que corresponde o dever do trabalhador ser assíduo e pontual na comparência ao serviço.
E acrescenta o mesmo autor, o modelo usual da relação de trabalho oferece ainda outros aspectos característicos cujo fundamento já não integram a subordinação jurídica do trabalhador, como sejam:
- a propriedade dos instrumentos de trabalho;
- a pertença do local de trabalho;
- a modalidade de retribuição.
Pode-se afirmar, em síntese, que a subordinação jurídica, como elemento constitutivo do contrato de trabalho, terá que se deduzir a partir de vários indícios, como sejam a organização do trabalho (se é do “trabalhador” indicia-se que estamos perante trabalho autónomo; se é de outrem, trabalho subordinado), o resultado do trabalho (se tem em vista o resultado, indicia-se trabalho autónomo, se tem em vista a actividade em si mesmo, trabalho subordinado), a propriedade dos instrumentos de trabalho (se pertencem ao trabalhador indicia-se trabalho autónomo, se não, trabalho subordinado), o lugar de trabalho (se pertence ao trabalhador indicia-se trabalho autónomo), o horário de trabalho (se existe horário definido pela pessoa a quem a actividade é prestada, indicia-se subordinação), a retribuição (a existência de uma retribuição certa, à hora, ao dia, à semana, indicia a existência de subordinação), a prestação de trabalho a um único empresário (indicia subordinação), a existência de ajudantes do prestador do trabalho e por ele pagos (o que indicia trabalho autónomo) e os descontos efectuados para a Segurança Social e IRS como trabalhador dependente ou independente.
Daí que não existindo um critério uniforme e seguro que possa ser entendido como aplicável a todas as situações, essa caracterização ou qualificação deverá ser feita caso a caso, não valorizando os indícios de forma atomística, mas antes através de um juízo global, de forma a convencer, ou não, da existência, no caso concreto, da subordinação jurídica do prestador de serviço em relação à entidade a quem é prestado.
*
Feitas estas considerações, genéricas, sobre as características do contrato de trabalho e sua distinção com figuras afins, é então o momento de regressarmos ao caso em apreciação.
Resulta no essencial da matéria de facto que a Autora foi admitida ao serviço da Ré em 1 de Setembro de 2004, para proceder à conferência de facturas na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS), em Setúbal, exercendo tais funções nas instalações da referida ARS.
Da matéria de facto não resulta, diremos minimamente, quem fornecia os instrumentos de trabalho à Autora (estando em causa conferência de facturas da responsabilidade da ARS e nas suas instalações, é legítimo presumir que ao menos alguns instrumentos de trabalho, v.g. computadores, sistema informático de conferência, fossem da ARS).
Assim, e desde logo, sendo à data da celebração do contrato, os requisitos de presunção de contrato de trabalho cumulativos, não se pode ter por verificada a existência dessa presunção, uma vez que se desconhece em absoluto quem fornecia os instrumentos de trabalho.
E, da matéria de facto, salvo o devido respeito pelo entendimento da recorrente, não pode concluir-se pela verificação da existência de um contrato de trabalho.
Vejamos porquê.
A Autora procedia à conferência de facturas da ARS, sendo que todos os meses lhe era confiado um lote de documentos (factos n.º 1 e 18), o que parece indiciar que o que a recorrida pretendia era o resultado da actividade da Autora: a conferência desses lotes de documentos.
Embora a Autora fizesse um horário das 08.00 horas às 14.00 horas (facto n.º 3), tal verificava-se porque era o período que a ARS disponibilizava as instalações à Ré: disponibilizasse a ARS as instalações noutro(s) período(s), certamente que a Autora nele poderia exercer a actividade.
Decorre da matéria de facto (n.º 4) que a Autora comunicava a C…, funcionária da Ré, na ARS do grupo de trabalho de Setúbal, as faltas e os dias de férias que compensava com horas extra.
Ora, desconhecendo-se qual a relação funcional e hierárquica da referida C… no seio da Ré, a circunstância da Autora lhe comunicar as faltas mais não parecem visar do que assegurar o normal e regular funcionamento do serviço que a mesma Ré prestava à ARS; atente-se que não resulta da factualidade que assente ficou que a Autora tivesse que pedir autorização para faltar: ela “limitava-se” a comunicar essas faltas, e a compensá-las com horas extra.
Trata-se, segundo se entende, de um facto essencial à qualificação do contrato e que afasta claramente a existência de subordinação jurídica, na medida em que dele não resulta que a Autora tivesse que cumprir um horário de trabalho e que estivesse sujeita ao poder disciplinar da Ré.
Não pode, por isso, afirmar-se que a Autora estivesse integrada na organização e estrutura da Ré, ou que esta exercesse controlo sobre a actividade daquela.
De resto, esta não tinha qualquer registo de faltas da Autora (facto n.º 21).
Também no sentido de afastar a qualificação do contrato como de trabalho, embora aqui de menor relevância, se apresenta a factualidade inerente à situação fiscal da Autora e inserção na estrutura da Ré: a Autora emitia recibos verdes, nunca constou dos mapas de férias do pessoal da Ré, e não recebia subsídio de férias e de Natal (factos n.º 17, 19 e 20).
No sentido da existência de um contrato de trabalho entre as partes aponta o facto da Autora receber mensalmente uma quantia fixa pela actividade desenvolvida.
Trata-se, todavia, face aos factos referidos anteriormente, de um indício manifestamente insuficiente para a qualificação do contrato como de trabalho.
Retira-se também da matéria de facto que no grupo de Setúbal ao serviço da Ré, até 2009, a Autora era a única que trabalhava em regime de “recibos verdes”, que em data não concretamente apurada de 2008 a Ré propôs à Autora a celebração de um contrato de trabalho a termo e que todos os trabalhadores da Ré que se encontravam a trabalhar na ARS de Setúbal tinham a mesma categoria profissional e auferiam idêntico salário (factos n.º 5, 7 e 22).
Tais factos apresentam-se de diminuta relevância, ou até inócuos, para a qualificação do contrato como de trabalho.
Basta, para tanto, atentar, por exemplo, que se desconhece o modo como cada um dos restantes trabalhadores ao serviço da Ré exercia a actividade, se quando a Ré propôs à Autora a celebração de um contrato de trabalho a termo pretendia que esta passasse a prestar a actividade de modo diferente e, ao fim e ao resto, se a Autora exercia, em termos concretos, do mesmo modo e a mesma actividade que os trabalhadores (subordinados) da Ré.
Nesta sequência, somos a concluir que competindo à Autora a prova de factos inerentes à qualificação do contrato como de trabalho, dos elementos apurados não é possível concluir por essa qualificação.
Aqui chegados, só nos resta concluir, nesta parte, pela improcedência das conclusões das alegações de recurso, e, assim, não pode afirmar-se que tenha existido um despedimento ilícito por parte da Ré, com as consequências daí decorrentes, maxime as peticionadas pela Autora.
Entende-se, pois, ser de manter a sentença recorrida.
*
Vencida no recurso, deverá a Autora/apelante suportar o pagamento das custas respectivas (artigo 446.º do Código de Processo Civil).
*
Em cumprimento do disposto no artigo 713.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, passa-se a elaborar o seguinte sumário:
(i) Estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdurou de 1 de Setembro de 2004 até finais de Fevereiro de 2010 e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 2006 (com a alteração operada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março), ou a partir de 2009 (com a Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), os termos em que, na prática, se executava essa relação jurídica, à sua qualificação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, atento o disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei Preambular que o aprovou, e no artigo 7.º da Lei Preambular que aprovou o Código do Trabalho de 2009 (Lei n.º 7/2009);
(ii) Incumbe ao trabalhador, como pressuposto dos pedidos que funda na existência de um contrato de trabalho, o ónus de alegar e provar os factos reveladores da existência de um tal vínculo, porque constitutivos do direito accionado (art. 342.º, n.º 1 do Código Civil), sem prejuízo da presunção legal da existência de um contrato de trabalho de que o trabalhador pode gozar.
(iii) Não se mostra provada a subordinação jurídica e, com ela, a existência de um contrato de trabalho entre a Autora e a Ré, se da matéria de facto apenas resulta que a Autora foi admitida ao serviço da Ré para proceder à conferência de facturas da ARS, procedia à conferência de lotes de documentos que mensalmente lhe eram entregues, nas instalações da ARS e no horário que a mesma afectava as instalações à Ré, recebendo a Autora uma contrapartida fixa mensal, não se demonstrando a quem pertenciam os equipamentos de trabalho que a Autora utilizava, sendo certo que esta apenas comunicava as faltas e férias (que compensava com horas extra) a uma outra trabalhadora da Ré que também prestava serviço nas instalações da ARS, emitia “recibos verdes” à Ré, não recebia subsídio de férias e de Natal e não constava dos mapas de pessoal da Ré.
*
V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por A…. e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela Autora/apelante.
*

Évora, 06 de Setembro de 2011

…………………………………………

(João Luís Nunes)

…………………………………………..

(Acácio André Proença)

…………………………………………..

(Joaquim Manuel Correia Pinto)


__________________________________________________

[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Acácio Proença, (2) Correia Pinto.