Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
| Descritores: | INCAPACIDADE ACIDENTAL TESTAMENTO ANULABILIDADE | ||
| Data do Acordão: | 10/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I. O artigo 2199.º do Código Civil não se reporta à incapacidade para testar, esta prevista no artigo 2189.º, prevendo antes uma situação de incapacidade acidental, ou seja, no preciso momento em que a disposição é lavrada, o declarante não se encontra em condições, seja qual for a causa, designadamente por força de uma doença que lhe sobrevenha, de formar livremente a sua vontade ou de discernir o sentido e alcance da declaração. II. Verificada uma situação que preencha a previsão legal, o testamento é anulável, recaindo o ónus da prova dos factos constitutivos sobre o autor interessado na anulação do ato, nos termos dos artigos 342.º e 287.º, n.º 1, do Código Civil. III. Não tendo os Autores, primos do falecido e interessados na anulação do testamento que beneficiou o Réu, logrado fazer prova de que aquele, no momento em que outorgou o testamento, estivesse de algum modo incapacitado, falece o pressuposto factual essencial à anulação do ato. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Juízo Cível de Ourém Proc. n.º 565/24.1T8ORM.E1 I. Relatório Inconformados com a sentença proferida em 3 de Abril de 2025, que julgou improcedente a acção por eles instaurada contra o Centro Social da Ribeira de (…), na qual pediram a final que fosse decretada a anulação do testamento outorgado em 3 de Abril de 2023 pelo seu familiar falecido (…), vieram os Autores (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…) apresentar o presente recurso, cuja alegação encerraram com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “1.ª A decisão recorrida julgou incorrectamente o presente pleito. 2.ª Sucede que, a douta sentença recorrida não só não deu como provada a matéria de facto adveniente do teor da prova testemunhal e documental, como também não extraiu nenhuma consequência jurídica da mesma no âmbito da ação. 3.ª Mostra-se assim necessário, ao abrigo do artigo 640.º do Código Processo Civil, que os recorrentes procedam à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com base nos fundamentos da sentença. 4.ª Os recorrentes consideram que existem pontos de facto incorretamente julgados, porque totalmente omitidos na douta sentença. 5.ª Atendendo a que toda a impugnação da matéria de facto, tem por base omissão de factualidade que se pedirá que seja dada como provada. Ou seja, 6.ª O testador se encontrava incapacitado de entender o alcance da sua declaração, assim se preenchendo a previsão do artigo 2199.º do Código Civil. 7.ª O tribunal a quo deu como não provado a validade do testamento, salvo o devido respeito, por não ter valorado a prova documental e testemunhal, provando-se tal existência, a sentença é nula, porque não foi apreciada e valorizada tal prova. 8.ª O Recorrente entende que a decisão em apreço deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido deduzido pelos Recorrentes. 9.ª Uma vez que estão preenchidos os requisitos necessários para a anulação do testamento. 10.ª É, assim, posição do recorrente que a decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação e aplicação do disposto os artigos artigo 607.º/n.º 4 e n.º 5, do Código de Processo Civil. 11.ª Prova testemunhal essa, que em bom rigor, contrariou de forma demasiado óbvia, o alegado pela Ré, devendo os pontos 8, 9, 12, 13, 15, 16, 17, 19, 20, 21 e 22 dos factos provados, serem dados como não provados. 12.ª Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 342.º e 2199.º do Código Civil. 13.ª Em conclusão, e salvo o devido respeito por opinião diversa, a decisão em crise não se poderá manter, devendo ser substituída por outra, onde seja declarado a anulação do testamento. 14.ª À data da elaboração do testamento, o falecido não detinha capacidades cognitivas e volitivas para efetuar um testamento, perceber e entender o alcance do ato em questão, necessário à emissão de uma vontade consciente e esclarecida”. Concluem pela procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra “que julgue a ação procedente, tendo em conta a prova produzida, julgando-se procedente o pedido formulado pelos recorrentes, tudo com as legais consequências”. Respondeu o Réu/recorrido, contra alegações nas quais sustentou dever o recurso ser rejeitado no que respeita à impugnação deduzida contra a matéria de facto, por inobservância do artigo 640.º do CPCiv., devendo, em qualquer caso, ser mantida a decisão recorrida. * Questão Prévia Como se deixou referido, o apelado defendeu a rejeição do recurso, na parte em que os recorrentes visam impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, alegando não terem sido cumpridos os ónus de especificação impostos pelo artigo 640.º. Não cremos, porém, que lhe assista razão. Vejamos: Resulta do citado artigo 640.º do CPC, sugestivamente epigrafado de “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, que o impugnante está vinculado ao cumprimento de três requisitos formais, cuja inobservância conduz à rejeição do recurso nesta parte, a saber: i. terá necessariamente de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; ii. terá ainda de especificar na motivação os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo da gravação, que impunham uma decisão diversa sobre os pontos de facto objeto da impugnação e, estando em causa prova gravada, a exata indicação das passagens em que funda a sua discordância, podendo ainda, se assim o entender, proceder à respetiva transcrição; iii. terá finalmente de enunciar na motivação a decisão alternativa a ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cfr. AUJ 12/2013, de 17/10/2023, proferido no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1[1]). Decorre do que vem de se dizer, com direta incidência no caso sob apreciação, que sendo pelas conclusões que se define o objeto do recurso (cfr. artigo 635.º do CPC), delimitando os poderes de cognição do tribunal superior, havendo impugnação da matéria de facto é de exigir ao impugnante que nelas especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, se bem que, de acordo com a doutrina agora fixada pelo STJ no referido acórdão uniformizador, não seja já de exigir a indicação da decisão alternativa pretendida, desde que a indicação resulte, de forma inequívoca, do corpo das alegações. Acresce que, conforme elucida o mesmo STJ, em acórdão proferido em 16/11/2023 (processo n.º 31206/15.7T8LSB.E1, acessível em www.dgsi.pt) “Efetivamente, sem prejuízo dos ónus a cargo do recorrente, impostos pelo artigo 640.º do CPC, deverem ser apreciados com rigor – como consequência do princípio da autorresponsabilidade das partes – impedindo-se que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa manifestação genérica de inconformismo das partes, o certo é que este STJ vem defendendo que há que compaginar o cumprimento dos ónus de alegação do artigo 640.º com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e assim evitar, em tal apreciação, os efeitos dum excessivo formalismo. É justamente por isto que se vem entendendo – entendimento este consolidado no AUJ deste Supremo, de 17/10/2023, proferido no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 – que o recorrente não tem que reproduzir exaustivamente nas conclusões da alegação de recurso o alegado no corpo da alegação, bastando que, nas conclusões, respeite o artigo 639.º/1, do CPC, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados; desde que, como é evidente, previamente, no corpo da alegação, haja cumprido os demais ónus, especificando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa e deixe expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida (…)”. Finalmente, importa ainda referir que não releva para a aferição do cumprimento dos ónus de especificação consagrados no artigo 640.º eventual demérito dessa impugnação. Tendo assim presente a interpretação flexibilizadora que do preceito vem sendo feita pelo STJ, e que culminou com a prolação do AUJ que vimos de citar, verifica-se que, no caso em apreço, os apelantes deram cumprimento bastante aos ónus de especificação ali consagrados: indicaram no corpo da alegação os factos impugnados, identificação que, com precisão, foi também feita na conclusão 11ª, fazendo-a acompanhar do sentido da alteração pretendida – tendo sido julgados provados, pretendem que, inversamente, sejam todos eles dados como não provados; explicitaram na motivação que a sua pretensão modificativa assenta nas declarações de parte prestadas pelos Autores (…), (…) e (…), e ainda no testemunho da diretora técnica do lar de Vilar dos (…), nas passagens que localizaram, transcreveram, e pelos motivos que também indicaram. Daí que inexista fundamento para proceder à pretendida rejeição. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, são as seguintes as questões a decidir: i. da nulidade da sentença; ii. do erro de julgamento quanto aos factos vertidos nos pontos 8, 9, 12, 13, 15, 16, 17, 19, 20, 21 e 22; iii. do consequente erro na aplicação do Direito. * i. Da nulidade da sentença Os recorrentes dizem ser nula a sentença, nulidade que radicam no facto de o Tribunal ter dado como “não provado, a validade do testamento, salvo o devido respeito, por não ter valorado a prova documental e testemunhal” (cfr. conclusão 7ª). No corpo da alegação, no capítulo IV, haviam dito ser a sentença nula por ambiguidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), 2ª parte, “por não poderem os apelantes entender porque não foi dado como não provado a existência de um estado de demência (…) uma vez que imperam muitas dúvidas sobre qual o sentido que o Mm.º Juiz do tribunal a quo, pretendeu dar à decisão final, dando como não provado a existência de tal doença”. A considerar, por apelo à alegação, que os recorrentes argúem a nulidade da sentença por ambiguidade, resulta evidente, da sua mera leitura, que não padece do invocado vício. Consoante dispõe a convocada alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º, a sentença é ainda nula quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. Nos termos do preceito vindo de transcrever, a sentença é obscura quando contenha alguma passagem cujo sentido seja ininteligível, ou seja, quando não seja possível ao seu destinatário apreender o sentido da decisão; será ambígua quando o seu conteúdo comporte diferentes interpretações. “No primeiro caso não se sabe o que o juiz ou juízes quiseram dizer; no segundo, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos – embora, em última análise, a ambiguidade seja uma forma especial de obscuridade, dado que se dado passo do acórdão é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento dos juízes” (do acórdão desta Relação e secção de 20/01/2015, processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1, acessível em www.dgsi.pt). Os assinalados vícios tanto podem afetar a decisão, como os seus fundamentos. No caso presente, vista a sentença proferida, dela resulta clara e cristalinamente que, tendo os Autores invocado que o seu falecido familiar, autor do testamento que pretendem anular, não detinha, à data da sua outorga, capacidade para entender e querer quanto nele ficou consignado como correspondendo à sua vontade, factualidade que, todavia, não lograram provar, foi meramente consequente o decretamento da improcedência da ação, sendo claramente apreensíveis, quer os fundamentos, quer a decisão. E tanto assim foi que os Autores puderam recorrer da decisão, impugnando a decisão proferida ao nível dos factos e discorrendo sobre a, em seu entender, correta interpretação das normas legais aplicáveis, sem que se vislumbre terem enfrentado quaisquer dificuldade no exercício deste seu direito. Não deixará ainda de se esclarecer que os vícios conducentes à nulidade da decisão são apenas os taxativamente elencados no n.º 1 do artigo 615.º do CPCiv., todos eles vícios de procedimento, não devendo ser confundidos com os erros de julgamento, de facto ou de direito. Ora, quando os apelantes manifestam o seu inconformismo pelo facto de não ter sido dada como provada a “existência de um estado de demência (…)”, estão, na verdade, a dissentir do julgamento da matéria de facto. E embora a decisão sobre os factos se contenha agora na decisão final, como com clareza se explica no acórdão do TRC de 27 de Junho de 2023 (processo n.º 2808/22.7T8VIS.C1, acessível em www.dgsi.pt) “há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório. A decisão da matéria de facto está, na realidade, sujeita a um regime diferenciado de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação – a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de lugar à actuação por esta Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC).” Resulta do que vem de se expor que, ainda a verificar-se, conforme os apelantes alegam, erros de julgamento quanto aos factos dados como assentes, alegação de que nos ocuparemos de seguida no conhecimento da impugnação deduzida, tal não contende com a validade formal da sentença, termos em que se conclui pela improcedência da arguição da nulidade. * ii. impugnação da matéria de facto Os recorrentes dizem terem sido mal julgados os factos assentes sob os n.ºs 8, 9, 12, 13, 15, 16, 17, 19, 20, 21 e 22, devendo, todos eles, serem tidos como não provados, tendo-se antes por assente que “o testador se encontrava incapacitado de entender o alcance da sua declaração” e “à data da elaboração do testamento não detinha capacidades cognitivas e volitivas para efetuar um testamento, perceber e entender o alcance do ato em questão, necessário à emissão de uma vontade consciente e esclarecida” (conclusões 6ª e 14ª), assim apontando ao facto não provado sob a alínea I. Cabe aqui referir que, estando embora em causa matéria que se afigura manifestamente conclusiva, sendo só por si idónea a determinar o destino da ação, refletindo a alegação, igualmente muito genérica, feita na petição inicial (cfr. os artigos 24º, 32º e 33º), considerando que nada obsta a que, tendo-se apurado na audiência factos concretizadores do alegado, os mesmos sejam considerados pelo tribunal, será igualmente sindicado o julgamento da pertinente matéria factual. Em suporte da sua pretensão invocam os recorrentes as declarações prestadas pelos demandantes (…), (…) e (…), parentes que, alegadamente, maior e mais próximo convívio mantinham com o falecido, e que dizem terem sido corroboradas pelo testemunho de (…), diretora técnica do Lar de Vilar dos (…) no qual o testador residiu antes de recorrer aos serviços do Réu. Está em causa a seguinte factualidade: 8. Na sequência, o referido (…) foi questionado por funcionários do Réu sobre se ele tinha família, de forma a poder-se contactar um familiar em caso de necessidade, tendo o mesmo respondido que não tinha família, que era sozinho e que pretendia ficar a viver no Lar do Réu. 9. Na sequência, o referido (…) celebrou com o Réu o contrato de prestação de serviços, cuja cópia se encontra junta de fls. 28 a 30, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, no qual constava que o referido (…) seria acolhido no Lar do Réu, receberia os serviços que se encontram descritos na Cláusula II do contrato, e pagaria a mensalidade no valor de 850,00 euros. 12. Durante o período temporal referido em 10) a única pessoa que visitou o referido (…) foi a testemunha (…). 13. De todas as vezes em que saiu do Lar do Réu, nomeadamente para ir a consultas, o referido (…) foi sempre acompanhado por um funcionário do Lar, regressando ao Lar após a realização da actividade em causa. 15. Após o falecimento do referido (…), o Réu tentou contactar familiares e amigos do mesmo para participar o óbito sem sucesso. 16. O Réu diligenciou junto da Junta de Freguesia para que publicasse um edital a anunciar o óbito do referido (…). 17. A única pessoa que o Réu conseguiu contactar e informar o óbito do referido (…), foi a testemunha (…), que tinha deixado o contacto telefónico quando o tinha ido visitar, e que foi ao funeral. 19. Durante o período temporal em que esteve acolhido no Lar do Réu, referido em 10), e na altura da celebração do testamento referido em 3), o referido (…) encontrava-se lúcido e orientado no tempo e no espaço. 20. Quando conversava, o referido (…) mantinha um discurso coerente e articulado, e reconhecia as pessoas com quem falava. 21. Todo o teor do testamento referido em 3) foi previamente lido e integralmente explicado o seu conteúdo ao referido (…) pela notária que o elaborou. 22. Devido ao facto de o mesmo corresponder à sua vontade, o referido (…) aceitou celebrar o testamento com o conteúdo nele constante, assinando o mesmo. I. Na altura da celebração do testamento referido em 3), o referido (…) tinha um comportamento confuso, não conseguindo manter um discurso coerente, não tinha consciência dos seus actos, e não se encontrava em condições mentais para perceber e apreender o conteúdo desse testamento. No que se refere aos depoimentos de parte, o Sr. Juiz expressou na motivação da decisão proferida desconfiança quanto a este meio de prova, a que atribui “valor muito reduzido” tendo em consideração que, na maior parte das vezes, “o declarante se limitará a reproduzir aquilo que já alegou nas exposições que juntou ao processo”, sendo, portanto, “de exigir prova adicional, isenta e objetiva, que confirme o teor do depoimento de parte que foi realizado”. Pois bem, sendo a nosso ver discutível que as declarações de parte, enquanto meio de prova, devam à partida ser desconsideradas nos casos em que não obtenham validação externa, nem por isso deixamos de secundar a opinião de que devem ser apreciadas com o maior cuidado, atendendo a que a parte estará efetivamente sujeita, como é próprio da natureza humana, a dar dos factos a versão que mais lhe convenha, omitindo aqueles que lhe são desfavoráveis. Acresce que, ao invés daquele que parece ser o entendimento dos apelantes quanto à exigência da lei para que ocorra modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, é necessário que os concretos meios probatórios indicados pelo impugnante imponham decisão diversa da recorrida, não bastando, portanto, a mera possibilidade de uma diferente valoração. O exigente critério legal é particularmente relevante quando, como é o caso, estão em causa meios probatórios sem valor tarifado, dependendo, pois, da livre apreciação do julgador. Feita tal prévia precisão, ouvidas as declarações dos autores identificados e também da testemunha (…), não vemos razão, antecipa-se, para atender a pretensão modificativa dos apelantes. Apreciando as declarações dos autores (…), (…) e (…), tendo resultado inequívoco que todos levavam a missão de declarar que o falecido “não dizia coisa com coisa”, “não tinha capacidade”, instados a concretizar a afirmação, revelando quais as conversas mantidas com o primo em que este dissera coisas sem sentido, referiram apenas que dizia estar doente, sentir-se mal, e que lhe doía o corpo todo, tendo ainda relatado aquele (…) que lhe havia dito, da última vez que o visitou, que ia morrer, o que, no contexto da doença do foro oncológico de que padecia, nenhuma estranheza pode causar, antes denunciando a perfeita compreensão, por banda do falecido, da fragilidade do seu estado de saúde. No mesmo sentido foram as declarações da autora (…) que, tendo encontrado o (…) em Fevereiro / Março do ano do seu falecimento, tendo-lhe perguntado como estava, este lhe disse que estava doente, a fazer tratamento, a “ver no que ia dar”, diálogo perfeitamente natural e racional, isto a escassos meses do seu decesso, assim resultando contrariada pelas declarações dos próprios Autores a versão que trouxeram aos autos. Mas aqueles declarantes revelaram ainda um facto da maior importância para se aquilatar do estado de espírito do testador. Tendo todos eles feito menção ao facto de, a determinada altura, o falecido ter declarado ser sua intenção beneficiá-los, “fazendo-lhe os seus bens”, e ainda que as versões não tenham sido exatamente coincidentes, ficámos convencidos de que a declaração a este último imputada corresponde efetivamente à verdade, sendo no entanto da maior relevância o contexto em que foi feita. Ouvido o (…), declarou que depois de ter saído do Lar sito no Vilar dos (…), o primo o procurou, “foi ter a minha casa”, mas “não lhe deram alojamento, não podiam”, na altura “tivemos pena dele e juntámo-nos os três, eu e outros dois primos”, um deles a declarante (…), “e ele disse-nos que se o tivéssemos na nossa casa nos fazia os bens”. Acrescentou o declarante que, como eram 17 herdeiros, não quiseram, e ele, o falecido, “andou por aí, dormia dentro da carrinha” – o declarante não viu, mas contaram-lhe –, foi encontrado no parque de estacionamento do Intermarché, conforme também tomou conhecimento, acabando por ir parar ao lar explorado pelo Réu, onde não o terá visitado, ainda que neste aspeto as suas declarações tenham sido algo confusas. De todo o modo, resultou evidente do por si declarado que o falecido, vendo-se só, sem casa, na sequência do incêndio que consumiu aquela em que vivia, e doente, estava na disposição de beneficiar aqueles seus primos, mas como contrapartida de o acolherem e lhe prestarem os cuidados de que carecia, o que não aceitaram fazer. De realçar que os restantes declarantes fizeram menção a esta intenção do falecido, mas sem aludirem a qualquer condição, ainda que a autora (…) tenha confirmado que a mesma teve lugar aquando da tal “reunião” envolvendo três primos, sendo um deles efetivamente o (…), para decidirem para onde é que iria o (…), “tendo este aceitado ir para o Lar do Vilar dos (…)”. Convenceu-se no entanto o coletivo, atendendo às regras da experiência comum ou modo como as coisas de ordinário ocorrem, que a versão do declarante (…) é a mais rigorosa, pelo que o falecido só estava na disposição de dispor dos seus bens a favor de quem o acolhesse e prestasse auxílio, não se vendo outra razão para beneficiar estes primos em detrimento dos outros, e explica por que razão acabou por dispor dos seus bens em favor do Réu, que o acolheu e assistiu até ao seu falecimento. De referir ainda que, tendo resultado dos aludidos depoimentos, confirmados pelo testemunho prestado por (…), diretora técnica do lar de Vilar dos (…) onde o falecido, segundo precisou, permaneceu entre 3 de Março de 2020 e 6 de Junho desse mesmo ano, que se tratava de pessoa reservada, de poucas palavras e trato difícil – no dizer do declarante (…) “fazia o que entendia”, “queria tudo à maneira dele” –, também avaro e desconfiado segundo os demais – nem em comida gastava dinheiro, nas palavras da sua prima (…), o que se coaduna com as declarações prestadas por (…), que se referiu ao facto de “rondar” o mercado para arranjar fruta, que terá chegado a furtar – estão em causa características relativas à sua “maneira de ser” e que, de modo algum, apontam no sentido de não ter capacidade para gerir a sua pessoa e bens ou para perceber o sentido e alcance da deixa testamentária que efetuou. Acresce que, conforme os apelantes não deixam de reconhecer, tendo presidido ao acto uma sra. Notária, sobre quem recai o dever de desencadear a intervenção de perito médico, a fim de abonar a sanidade mental dos outorgantes, se disso for caso (cfr. n.º 4 do artigo 67.º do Código do Notariado), o que não foi feito, impõe-se concluir, segundo autorizada presunção judiciária, que nada no comportamento do testador suscitou dúvida sobre a sua capacidade. Por último, não pode deixar de se afirmar a irrelevância da afirmação feita pelos apelantes no sentido das testemunhas presentes no ato serem “testemunhas profissionais”, cobrando pela sua presença, quando, a despeito da gravidade da imputação, absolutamente nenhuma prova trouxeram aos autos em ordem a demonstrar a sua veracidade. Em suma, os meios de prova apontados pelos recorrentes, longe de apoiarem a modificação da decisão proferida sobre os factos, mais convenceram do seu acerto, termos em que se julga totalmente improcedente a impugnação deduzida. * II. Fundamentação De facto Sem alteração, é a seguinte a factualidade relevante para a decisão: 1. Os Autores são primos de (…). 2. O referido (…) faleceu no dia 22 de Junho de 2023. 3. No dia 3 de Abril de 2023, no Cartório Notarial de Ourém, o referido (…) outorgou um testamento perante a sra. Notária, Dra. (…), que era titular desse Cartório, ficando este testamento lavrado a fls. … do Livro …, através do qual aquele (…) declarou que pretendia instituir o Réu como único e universal herdeiro. 4. O referido (…) esteve internado num Lar em Vilar dos (…) entre o dia 03-03-2020 e 30-06-2020, tendo saído do mesmo voluntariamente, comunicando essa saída e justificando a mesma por falta de meios económicos para aí permanecer. 5. No dia 23 de Janeiro de 2023, o referido (…) foi encontrado por um funcionário do Réu, a testemunha (…), a dormir dentro do seu carro, junto à sede do Réu. 6. Nessa ocasião o referido (…) comunicou à testemunha (…) que pretendia ficar a viver na instituição de Lar explorada pelo Réu. 7. Na sequência, funcionários do Réu diligenciaram para que o referido (…) recebesse cuidados de alimentação e de higiene. 8. Na sequência, o referido (…) foi questionado por funcionários do Réu sobre se ele tinha família, de forma a poder-se contactar um familiar em caso de necessidade, tendo o mesmo respondido que não tinha família, que era sozinho e que pretendia ficar a viver no Lar do Réu. 9. Na sequência, o referido (…) celebrou com o Réu o contrato de prestação de serviços, cuja cópia se encontra junta de fls. 28 a 30, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, no qual constava que o referido (…) seria acolhido no Lar do Réu, receberia os serviços que se encontram descritos na Cláusula II do contrato, e pagaria a mensalidade no valor de 850,00 euros. 10. Na sequência, o referido (…) foi acolhido no Lar do Réu no dia 23 de Janeiro de 2023, tendo aí permanecido internado até cerca de uma semana antes do seu falecimento. 11. Durante o período temporal referido em 10), os funcionários do Réu prestaram ao referido (…) os serviços previstos no contrato mencionado em 9), e este último foi a várias consultas médicas, nomeadamente de oncologia e de urologia, e esteve internado no Hospital de Leiria, para receber assistência médica e tratamento às doenças de que padecia. 12. Durante o período temporal referido em 10) a única pessoa que visitou o referido (…) foi a testemunha (…). 13. De todas as vezes em que saiu do Lar do Réu, nomeadamente para ir a consultas, o referido (…) foi sempre acompanhado por um funcionário do Lar, regressando ao Lar após a realização da atividade em causa. 14. Nos últimos dias de vida, devido ao agravamento do seu estado de saúde, o referido (…) esteve internado numa Unidade de Cuidados Paliativos sita em (…). 15. Após o falecimento do referido (…), o Réu tentou contactar familiares e amigos do mesmo para participar o óbito sem sucesso. 16. O Réu diligenciou junto da Junta de Freguesia para que publicasse um edital a anunciar o óbito do referido (…). 17. A única pessoa que o Réu conseguiu contactar e informar o óbito do referido (…), foi a testemunha (…), que tinha deixado o contacto telefónico quando o tinha ido visitar, e que foi ao funeral. 18. No Verão de 2022, ocorreu um incêndio na casa de habitação onde o referido (…) residia, tendo a mesma ficado destruída e inabitável. 19. Durante o período temporal em que esteve acolhido no Lar do Réu, referido em 10), e na altura da celebração do testamento referido em 3), o referido (…) encontrava-se lúcido e orientado no tempo e no espaço. 20. Quando conversava, o referido (…) mantinha um discurso coerente e articulado, e reconhecia as pessoas com quem falava. 21. Todo o teor do testamento referido em 3) foi previamente lido e integralmente explicado o seu conteúdo ao referido (…) pela notária que o elaborou. 22. Devido ao facto de o mesmo corresponder à sua vontade, o referido (…) aceitou celebrar o testamento com o conteúdo nele constante, assinando o mesmo. 23. Em Fevereiro de 2023 o referido (…) deslocou-se ao Banco, acompanhado pelo legal representante do Réu, (…), e pela testemunha (…), para que o pagamento da mensalidade do Lar fosse efetuada por transferência bancária. Factos não provados: A. Após a morte do referido (…), os Autores (…), (…) e (…), deslocaram-se às instalações do Réu, tendo sido informados nessa altura da celebração do testamento mencionado em 3). B. Há muito que o referido (…) declarava que todos os seus bens seriam divididos pelos Autores com quem tinha mais convivência familiar. C. O referido (…) saiu do Lar referido em 4) sem dar conhecimento a ninguém. D. Após ter saído do Lar referido em 4), o referido (…) passou a pernoitar num carro, não fazendo a sua alimentação, nem a higiene. E. Após tomar conhecimento da situação referida em D), o Autor (…) contactou o referido (…) e propôs-lhe ir residir para sua casa ou procurar outro Lar. F. Na ocasião referida em 23), ao aperceber-se que o referido (…) tinha bastante dinheiro, o legal representante do Réu, (…), aumentou a mensalidade do Lar para 1.000,00 euros. G. Os Autores (…) e (…) foram visitar o mencionado (…) no Lar do Réu, tendo o mesmo comunicado aos Autores, de uma forma atabalhoada e confusa, o aumento da mensalidade, referida em F). H. No final de Junho de 2023, os Autores deslocaram-se às instalações do Lar do Réu para questionar este último das razões pelas quais não lhes tinha comunicado o falecimento do referido (…). I. Na altura da celebração do testamento referido em 3), o referido (…) tinha um comportamento confuso, não conseguindo manter um discurso coerente, não tinha consciência dos seus atos, e não se encontrava em condições mentais para perceber e apreender o conteúdo desse testamento. J. Após a perda da sua casa de habitação nos termos referidos em 18), o referido (…) foi viver para um apartamento sito em Leiria. * De Direito Da incapacidade acidental do testador Tendo invocado que o falecido primo (…) não tinha, à data da outorga do testamento, capacidade para formar uma vontade livre e entender o sentido da declaração que emitiu, vieram os Autores requerer a anulação daquele ato, estribando-se no artigo 2199.º do Código Civil (compêndio normativo ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem). Nos termos da citada disposição legal, “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tenha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”. Não se reporta o preceito à incapacidade para testar de que se ocupam os artigos 2188.º e 2189.º, prevendo antes uma situação de incapacidade acidental, ou seja, no preciso momento em que a disposição é lavrada, o declarante não se encontra em condições, seja qual for a causa, designadamente por força de uma doença que lhe sobrevenha, de formar livremente a sua vontade ou de discernir o sentido e alcance da declaração. Verificada uma situação que preencha a previsão legal, o testamento é anulável, recaindo o ónus da prova dos factos constitutivos sobre o autor interessado na anulação do ato, nos termos dos artigos 342.º e 287.º, n.º 1 (cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ de 06/07/2022, processo n.º 6138/18.0T8VNG.P1.S1, e de 14/10/2021, processo n.º 152/19.6T8VRL.G1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt). De volta ao caso dos autos, o inêxito da impugnação deduzida contra a matéria de facto ditou o fracasso do recurso porquanto, como se vê da factualidade julgada provada e não provada, não tendo os Autores, ora apelantes, logrado fazer prova de que o falecido, no momento em que outorgou o testamento, estivesse de algum modo incapacitado, falece o pressuposto factual essencial à anulação do ato. Improcedentes os fundamentos do recurso, impõe-se confirmar a sentença recorrida. * III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida. Custas a cargo dos apelantes, que decaíram (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.). * Évora, 30 de Outubro de 2025 Maria Domingas Simões Vítor Sequinho dos Santos Ana Margarida Pinheiro Leite Sumário: (…) __________________________________________________ [1] No DR n.º 220/2023, Série I, de 23/11/14, objeto da retificação n.º 25/2023, e que fixou a seguinte doutrina “Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”. |