Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
96/22.4T8ABT.E1
Relator: ANTÓNIO FERNANDO MARQUES DA SILVA
Descritores: EMPREITADA
INDEMNIZAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
CONCLUSÕES DE RECURSO
ÓNUS DO RECORRENTE
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

- é irrelevante a menção a nulidades da sentença recorrida que não sejam discutidas nas alegações e conclusões.


- a falta de cumprimento dos ónus derivados do art. 640º n.º1 al. b) e n.º2 al. a) do CPC determina a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


- a pretensão dirigida à inversão do ónus da prova é irrelevante quando não se indicam, nem se descortinam, que factos deveriam ser sujeitos a tal mecanismo.


- o dono da obra não pode pedir indemnização por execução deficiente do contrato de empreitada sem respeitar a ordem derivada dos art. 1221º e ss. do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. AA e BB intentaram a presente acção contra CC, formulando os seguintes pedidos:


a) Que se condene o ora R. no pagamento de 4.762,76 € (quatro mil setecentos e sessenta e dois euros e setenta e seis cêntimos), a título de Indemnização de Danos Patrimoniais (sendo 500,00 € do preço pago pela reparação + 1.082,78 € de materiais e peças pagos pelos AA. a pedido do R. para a reparação do motor, e 1.236,73 € pelos danos que o veículo propriedade dos ora AA., sofreu durante o período que este esteve na posse do R., nomeadamente no vidro frontal e pinturas, e 1.943,25 € respeitante à compra e instalação de motor e subsequente reparação, que tiveram de efectuar no veículo por um terceiro, E


b) Que se condene o ora R. no pagamento a título de Indemnização de Danos Não Patrimoniais no montante de 1.200,00 € correspondentes em incómodos suportados pelos AA. (...)


d) Às quantias peticionadas, deverão ser acrescidos juros de mora, calculados à taxa supletiva legal, contados desde o momento da citação até integral pagamento.


Alegaram, em síntese, que:


- a A. é proprietária de um automóvel Mercedes.


- o A. acordou com o R. a reparação do motor do automóvel, que teria o motor gripado e juntas queimadas, por 500 euros.


- ficou acordado que seria o A. a comprar os materiais necessários, o que fez, gastando 1.082,78 euros.


- a reparação foi executada pelo R. em 24 hrs., e após a entrega do automóvel este ficou imobilizado na estrada.


- o automóvel tinha também o vidro da frente picado e a pintura da viatura riscada na parte da frente do pára-choques e na traseira.


- o A. contactou o R., comunicando os defeitos da reparação e os danos, nada tendo o R. feito.


- o A. teve que reparar o automóvel junto de terceiro, e, devido à reparação que o R. realizou, teve que substituir o motor, comprando um motor usado e outras peças necessárias, com o custo, com mão-de-obra, de 1.943,25 euros.


- o A. interpelou o R. em 13.10.2020 para pagar as quantias em dívida por incumprimento do R., não tendo recebido qualquer resposta, e requereu depois a emissão de factura-recibo, que o R. não emitiu.


- estando em causa contrato de empreitada, que o R. incumpriu definitivamente, tem direito a ser indemnizado.


- os AA. sentiram desespero, insatisfação, impotência, saturação, ficando alterados ou transtornados psicologicamente, defraudados, sendo que os factos ocorreram no período de férias, tendo ficado os AA. desprovidos de veículo automóvel para as suas deslocações, fixando em 1.200 euros a compensação destes danos.


- o R., peremptoriamente, não quis proceder à reparação, não quis mais saber do assunto, vendo-se os A. obrigados a recorrer a terceiro por incapacidade técnica do R., ocorrendo por isso incumprimento definitivo.


O R. contestou, impugnando a versão dos AA.. Em particular, alegou que:


- tendo observado a viatura, indicou ao A. que a avaria era grave, que o carro não devia circular e que não tinha capacidade nem vontade de reparar a avaria.


- o A. pediu ao R. para fazer algo só para que o carro pudesse ir até à oficina.


- aceitou ajudar o R., tendo feito apenas a verificação e rectificação do sistema de refrigeração, nada cobrando ao A..


- algumas semanas depois o A. voltou a pedir-lhe que desse uma nova opinião sobre o estado do veículo, tendo o R. constatado que o motor tinha sofrido uma reparação, sem sucesso porque a avaria permanecia, o que o A. negou, afirmando que a última pessoa a mexer no motor tinha sido o R..


Invocou ainda a litigância de má fé dos AA., ao que os AA. responderam, opondo-se.


Dispensada a audiência prévia, efectuou-se o saneamento da causa, a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.


Sendo determinada a realização de perícia, e perante a posição do perito nomeado (que afirmou ser impossível verificar se o motor tem defeito por estar desmontado), os AA. requereram segunda perícia, tendo também requerido que, a ser impossível, se invertesse o ónus da prova. Determinada a realização de segunda perícia, considerou o perito não ser viável a sua realização.


Nessa sequência, os AA. apresentaram articulado sustentando que deveria ser realizada a audiência de julgamento e depois de produzida e valorada a prova, avaliada a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º n.º2 do CC.


O R. opôs-se à aplicação de tal regime.


Foi proferido despacho que, a final, concluiu que «Destarte, dos factos supra expostos não pode concluir-se que as perícias não foram realizadas por acção ou omissão do Réu, mas sim de acordo com a posição vertida nas duas Perícias face ao estado actual em que se encontra o motor do veículo, sendo que a demais facticidade aduzida pelos Autores encontra-se controvertida e terá de ser provada em sede de audiência, pelo que, nesta fase, se indefere a inversão do ónus da prova requerida pelos Autores.».


Após realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que absolveu o R. dos pedidos e os AA. do pedido de condenação como litigantes de má fé.


Desta sentença interpuseram recurso os AA., formulando as seguintes conclusões:


a) Os ora recorrentes, não se conformando com a douta sentença proferida pelo tribunal a quo interpõem o presente recurso de apelação, quando na mesma se julgou totalmente improcedente a acção por não provada e decidiu “A) ABSOLVER o Réu de todos os pedidos contra si formulados; (…)”.


b) Entendem os Recorrentes que não foi realizada uma aplicação idónea do Direito ao caso concreto, uma vez que a) a factualidade alegada, não permite em primeiro lugar apurar a factualidade dada como não provada, nem b) a factualidade dada como provada permite, também o enquadramento jurídico realizado pelo mesmo Tribunal a quo, sendo este em absoluto contrário, a toda a elaboração doutrinal e jurisprudencial existente em torno do ónus da alegação factual e da prova, de acordo com idóneos postulados hermenêuticos de interpretação jurídica.


c) Também não foi pelo Tribunal a quo, conhecida, tal como relegou para sede de audiência de discussão e julgamento, a questão da inversão do ónus da prova, face à inviabilidade da perícia do motor do veículo em causa, conforme requerido pelos AA., ora Recorrentes.


d) Fundamentos do Recurso: Recurso da matéria de Facto; Nulidade da Sentença, da reapreciação da prova gravada, do conhecimento da inversão do ónus da prova requerido pelos AA. e da errónea aplicação do Direito.


e) Tendo presente que com a “nova formulação” dos termos da “modificabilidade da decisão de facto” da 1ª instância, estabelecida no art.º 662º, n.º 1 do novo Código de Processo Civil – aqui imperante – é sustentável que “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.”.


f) E, desse modo, “Sendo a decisão do tribunal a quo o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação (…) desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo art. 640º, a Relação, assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, expressando, a partir deles, a sua convicção com total autonomia.


g) Devendo reparar-se “que de entre os poderes que então podem ser exercitados nem sequer se exclui o uso de presunções judiciais.".


h) Mas, tudo isto, sem prejuízo de existirem “factos com relevância processual que são, pela sua própria natureza e condicionalismo, insusceptíveis de prova testemunhal directa, de prova documental, inspecção judicial e mesmo de prova pericial.”.


i) Neste tipo de condicionalismos, os únicos meios probatórios admissíveis são as declarações de parte (artigo 466.º do Código de Processo Civil) e as testemunhas indirectas.


j) Dos erros do Tribunal a quo na apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento quanto à preterição do Tribunal a quo das declarações de parte dos AA., ora recorrentes.


k) A propósito da admissibilidade da declarações de parte com factos favoráveis ao declarante em situações insusceptíveis de outros meios de prova, REMÉDIO MARQUES assinala que "(…) a recusa, nestas raras eventualidades, em admitir e valorar livremente ou apenas como base de presunções judiciais as declarações favoráveis ao autor, volve-se, desde logo, numa concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro do direito de acesso aos tribunais e ao direito e de uma tutela jurisdicional efetiva (art. 20º, n.º1, da Constituição)." Acompanhamos sem reservas este raciocínio, sendo que - no nosso entender - esta argumentação abrange também a relevância e a atendibilidade do depoimento indirecto na precisa medida em que, nas situações insusceptíveis de outros meios de prova, o julgador apenas se poderá socorrer das declarações de parte e das testemunhas indirectas.


l) Deste modo, e no limite, admitimos que o juiz possa fundar a sua convicção quanto a tal tipo de factualidade apenas nas declarações de parte e/ou nos depoimentos indirectos.


m) Necessário é que a valoração dos mesmos, seja feita segundo as singularidades do caso concreto e as máximas da experiência convocáveis, permita ao julgador atingir o patamar da convicção suficiente.


n) Da reapreciação da prova gravada, nomeadamente, da errónea apreciação da matéria de facto dada como não provada quando o deveria ter sido dada como provada - nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. a), b), e c), e n.º 2, al. a) e b) do C.P.C.


o) O douto tribunal a quo, pese embora, não tenha referido no item “Factos Não Provados” a inexistência da interpelação do Réu para reparar os defeitos, não fixando os AA. prazo ao Réu para o devido efeito.


p) Veio na sua fundamentação da matéria de facto, a entender erroneamente e em contradição, que: “Acresce que, os Autores não conseguiram provar que interpelaram o Réu para reparar os defeitos, nem fixaram prazo ao Réu para o efeito, apenas avançando os Autores para a reparação do veículo sem darem essa oportunidade ao Réu.”.


q) Quando na factualidade dada como provada o douto Tribunal a quo, no Ponto 10. consigna que: “Nessa data, o Autor marido contactou e comunicou directamente ao Réu que o veículo havia ficado imobilizado na estrada e que a reparação efectuada por este tinha defeitos, assim como lhe comunicou os danos materiais constatados no veículo, designadamente o vidro da frente picado no centro e a pintura da viatura riscada, quer na parte da frente do para-choques e traseira esquerda e direita.”


r) E na fundamentação da matéria de facto referente ao facto provado em 10 – refere expressamente que se estribou nas declarações de parte do Autor marido, as quais nesta parte mereceram credibilidade, por consistentes, o qual afirmou que contactou o Réu para lhe comunicar que o veículo tinha ficado imobilizado na estrada e que tinha que resolver o problema, bem como lhe comunicou que a reppraração havia sido efectuada com defeitos; comunicando-lhe também os danos materiais existentes na pintura e no vidro, sendo que este facto foi ainda corroborado pelas declarações da Autora.


s) Então, o Tribunal a quo, refere que as declarações de parte do A. marido, mereceram credibilidade, por consistentes, então porque não valorou integralmente as referidas declarações de parte, também na parte essencial aqui em discussão, entrando em contradição, quando não considera que ocorreu uma interpelação por parte dos A. marido, ao Réu, e que o A. marido, propôs ao R. a reparação dos defeitos e que este, peremptoriamente, recusou-se a tal reparação!


t) Todavia, e salvo o devido respeito, tal entendimento judicial violou as mais elementares regras processuais vigentes no domínio do processo civil, no qual rege o princípio do dispositivo.


u) Pois num primeiro esteiro, ao considerar e julgar não provada tal factualidade, incorre numa falácia quanto às premissas iniciais, nomeadamente, então nunca poderia dar como provada a matéria de facto constante no Ponto 10.


v) O Tribunal ad quo não valorou correctamente, mesmo, tendo entendido que as declarações de parte dos AA. e principalmente, as do A. marido, mereceram credibilidade, por consistentes.


w) Desde já, se reporta que as declarações de parte estão reproduzidas nas alegações - Áudio 1:43 – 17:13 - Autor: AA – Declarações de Parte.


x) E da Autora BB – Declarações de Parte - Áudio 1:36 – 2:29 e Áudio 6:52 – 7:18.


y) Neste sentido, e atenta a conjugação da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, constata-se uma errónea apreciação da matéria de facto dada como não provada, nomeadamente, quanto à notória e existente interpelação do R. para a reparação dos defeitos constatados, quando deveria ter sido dada como provada e que manifestamente impunha uma decisão em sentido contrário.


z) De realçar contudo, que esse comportamento declarativo não tem de ser expresso nem muito menos reduzido a escrito, podendo resultar tão só de actos concludentes do mesmo devedor, o que aconteceu no caso sub judice.


aa) Significa isto que todo o comportamento do devedor que exprima vontade de não querer cumprir reconduz-se ao conceito de recusa de cumprimento, o que permite considerá-lo inadimplente.


bb) Daí que, como se refere no Ac. do STJ, de 21.5.1998, in BMJ n.º 477, pág 460, seja “exacto configurar a declaração de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo de vontade de não cumprir) como incumprimento”.


cc) Pelo que, face à prova testemunhal, nomeadamente, às declarações de parte dos AA., deverá ser incluído na factualidade dada como provada, o seguinte Ponto: O A. marido interpelou o R. para reparar os defeitos, nomeadamente, aquando da imobilização da viatura na estrada após a sua entrega por parte do R. e posteriormente, quando o A. marido contactou o R., para que este se deslocasse à sua casa para ver e combinarem a reparação dos defeitos, tendo o R. se deslocado e peremptoriamente pelo argumento (de não ter tempo) apresentado recusado reparar os defeitos ou proceder a uma nova reparação.


dd) Quanto aos factos dados como não provados referidos no ponto 3.2. o Tribunal a quo, fundamentou erroneamente tal decisão, nos seguintes termos:


ee) “A factualidade não provada ficou a dever-se à ausência ou insuficiência de prova quanto à mesma, não tendo sido referidos pelos depoimentos prestados considerados credíveis e não se mostrando sustentados por qualquer outro meio de prova com grau de certeza e segurança suficiente para os considerar provados.


ff) No que concerne ao facto não provado em i) e ii), não conseguiu este Tribunal, com grau de certeza, apurar se os danos constantes na pintura e vidro se deveram a uma actuação/conduta do Réu, nem tão pouco se apurou que o Réu tenha puxado o veículo dos Autores com um tractor.(…).


gg) Sustentando o douto Tribunal a quo, a sua fundamentação nos relatórios periciais juntos, mas que relatórios periciais?? Se por despacho de 06/03/2024, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho sobre a requerida perícia:


hh) “(…) Face ao exposto, entende-se que a perícia requerida pelos Autores, deferida e ordenada pelo Tribunal encontra-se inviabilizada pela impossibilidade da sua realização, o que se decide.(…)”. – Destaque e sublinhado nosso.


ii) Ora, consta do autos, por prova documental junta, que, quer a primeira perícia, quer a segunda não se realizaram, por impossibilidade da sua realização, não se alcançando como pode o Tribunal a quo fundamentar esta factualidade como não provada em tais perícias que não se realizaram.


jj) Quando as declarações de parte dos AA., quer o depoimento das testemunhas, quer a prova documental junta pelos AA., foi credível quanto à veracidade desta factualidade, nomeadamente, nas 24 horas seguintes o A. marido para além de comunicar ao R. os defeitos da reparação do veículo, comunicou-lhe desde logo, os danos nos vidros e na pintura que o veículo apresentava após a reparação.


kk) Também não se alcança como o Tribunal a quo entende como não provado que: “Os AA. sofreram, em consequência da conduta do Réu, desespero, insatisfação, impotência, saturação e ficaram alterados ou transtornados psicologicamente. – ora, pela experiência comum se celebramos um contrato de empreitada para a reparação de um veículo, cremos que o empreiteiro ao nos entregar o veículo reparado (com o tempo contabilizado com a reparação), que o mesmo se encontra apto ao seu funcionamento e assim, a reparação tenha sido adequada ao seu fim.


ll) E como aconteceu, no caso sub judice, em que os AA. nas 24 horas seguintes, após a entrega do veículo e consequente reparação, ficam imobilizados no meio da estrada, com o neto menor de idade, tendo que chamar um reboque para os retirar da estrada, e mais, contactado o R. de imediato pelo A. marido, se o reboque era para deixar o veículo na sua oficina, o mesmo diz que não, que tem que se ver…


mm) Ora se esta situação não causa transtorno, desespero, insatisfação, transtorno, então o que causará?


nn) Ainda o douto Tribunal refere, que “(…)não foi possível apurar, das declarações de parte dos Autores, nem das testemunhas, quaisquer sentimentos dos Autores, por conta desta situação, na medida em que as testemunhas nada referiram quanto a este facto e apenas, a Autora mulher referiu que lhe prejudicou a vida, não concretizando qualquer facto.”.


oo) Quando tal fundamentação não corresponde à verdade, a A. mulher, nas suas declarações de parte, esclareceu que tal incumprimento por parte do R. prejudicou-os, nomeadamente, o tempo perdido, a privação do uso do veículo, viagens para Lisboa, etc.,


pp) Mais, contactou telefonicamente o A. marido o R. para que passasse por sua casa para ver o veículo e para decidirem se o R. procedia à reparação dos defeitos constatados por ambos, tendo o mesmo respondido ao A. marido, que agora não tem tempo! Ficariam os AA. à mercê ad aeternum da disponibilidade temporal do R., sendo que, o mesmo não se dignou a indicar e a comunicar uma disponibilidade temporal, para a referida reparação dos defeitos, não se mostrando disponível para o efeito? Trata-se de uma viatura que assegura as deslocações do dia-a-dia do agregado familiar dos AA., e entende o Tribunal a quo, que esta situação não casou danos, perturbação, desespero, insatisfação…


qq) Não concordamos com a decisão em crise, e atenta as declarações de parte dos AA., transcritas nas alegações, conjugando com a prova testemunhal e prova documental produzida e carreada nos autos, deveria o douto Tribunal a quo dar como provados as alíneas i), ii) e iii) do Ponto 3.2. dos Factos Não Provados.


rr) Da inversão do ónus da prova


ss) Foram os AA. que requereram ab initio, no requerimento probatório da petição inicial, a realização de perícia nos termos dos artigos 467.º e seguintes do C.P.C, referindo desde logo a matéria sobre a qual deveria recair a perícia, em súmula, e para o que aqui mais releva, ao veículo, com a matricula ..-BA-.. e ao motor que foi sujeito a reparação por parte do Réu que os AA. guardaram e mantém na sua posse.


tt) Na contestação do R. não foi requerida qualquer prova pericial.


uu) No despacho saneador proferido pela Mmª Juíza do Tribunal a quo, em 30/10/2022, foi admitida a perícia singular, nos termos do artigo 467.º, n.º 1, do CPC, tendo sido facultado ao Réu aderir ao objecto proposto ou a ampliá-lo, nos termos do artigo 476.º, n.º 1, do CPC.


vv) O R. nada fez, não aderindo ou requerendo a ampliação da deferida perícia singular.


ww) Foi consignado em cota em 09/12/2022 pela secretaria a indicação como perito o senhor DD, por ser pessoa idónea e conhecida em Juízo.


xx) No dia 10/01/2023, foram as partes notificadas do relatório pericial elaborado pelo Sr. DD, para querendo reclamar ou pedir esclarecimentos, no entanto, só os AA., vieram aos autos requerer uma segunda perícia, atenta a impossibilidade do perito em causa constatar a existência de defeitos ou má reparação, em súmula, por o motor do veículo encontrar-se desmontado, não respondendo assim


aos quesitos propostos.


yy) Face ao requerimento apresentado pelos AA. de segunda perícia, foi o Réu notificado para o exercício do respectivo contraditório, nada dizendo ou requerendo.


zz) Foi deferido por despacho pela Mmª Juiz do Tribunal a quo, datado de 18/03/2023 a determinação da segunda perícia singular, atendendo que a primeira perícia não respondeu a todos os quesitos, tendo sido nomeado um perito/mecânico da Concessionária da Mercedes em Cidade 1.


aaa) Veio o Concessionário e Oficina Autorizada da Mercedes-Benz, Marques, Lda., por requerimento datado de 20/07/2023, comunicar que não consegue proceder à perícia em causa.


bbb) Ora entendem os AA., ora Recorrentes, que a perícia requerida pelos mesmos e deferida e ordenada pelo douto Tribunal se encontrou inviabilizada, pela impossibilidade da sua realização.


ccc) Tendo o A. marido, aquando da imobilização do seu veículo, contactado de imediato o R., interpelando-o e comunicando os defeitos na reparação do veículo, o que o R. nada fez, não assumindo a reparação do veículo ou propondo toda e qualquer outra alternativa ao A. marido, tendo este que recorrer a terceiro para proceder à devida reparação, conforme alegado na petição inicial dos AA.


ddd) Os AA. requereram na sua petição inicial desde logo, a realização de perícia ao veículo/motor, guardando aliás este motor para que fosse alvo de perícia, aliás requereram também uma segunda perícia, nada mais podendo fazer para que o veículo/motor sejam peritados, entendendo que tal motivo, se deve, a culpa do R. que quando interpelado do defeito da reparação, nada fez, recusando peremptoriamente a reparação dos defeitos ou a execução de uma nova reparação, tendo o AA., face ao incumprimento constatado, sido “obrigado”, atendendo que se trata do seu carro de família e que o usa para se deslocar todos os dias a junto de um terceiro reparar o seu


veículo, não tendo resultado outra alternativa que não esta aos ora AA., ora Recorrentes!


eee) Requereram assim, os Recorrentes a inversão do ónus da prova, ao abrigo do disposto no n.º 2, do artigo 344.º, do Código Civil.


fff) Sucede, que o Tribunal a quo relegou a apreciação desta matéria para a fase de audiência de discussão e julgamento, conforme se constata pelo teor do despacho proferido pela Mmª Juíza do Tribunal a quo datado de 06/03/2024: “(…) Destarte, dos factos supra expostos não pode concluir-se que as perícias não foram realizadas por acção ou omissão do Réu, mas sim de acordo com a posição vertida nas duas Perícias face ao estado actual em que se encontra o motor do veículo, sendo que a demais facticidade aduzida pelos Autores encontra-se controvertida e terá de ser provada em sede de audiência, pelo que, nesta fase, se indefere a inversão do ónus da prova requerida pelos Autores. (…)”.


ggg) No entanto, como se constata do teor da douta sentença, não foi a referida matéria apreciada pelo Tribunal a quo.


hhh) Da errónea aplicação do direito por parte do Tribunal a quo iii) A presente acção apresenta-se estruturada pelos autores com base num contrato de empreitada, nomeadamente, referente à reparação do motor do veículo mercedes, com a matrícula ..-BA-...


jjj) Segundo dispõe o artigo 1208.º do C. Civil: "o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato".


kkk) Ora, no que concerne à obra executada com defeitos (cumprimento defeituoso da empreitada) prescrevem os artigos 1220.º, 1221.º, 1222.º e 1223.º que "o dono da obra deve, sob pena de caducidade dos direitos conferidos nos artigos seguintes, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos trinta dias seguintes ao seu aparecimento"; "se os defeitos puderem ser suprimidos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação; se não puderem ser eliminados, o dono pode exigir nova construção"; "não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina"; "o exercício dos direitos conferidos nos artigos antecedentes não exclui o direito a ser indemnizado nos termos gerais".


lll) De facto, o dono da obra só poderá exigir a resolução do contrato se, para além de não terem sido eliminados os defeitos ou realizada de novo a obra, tais defeitos tornaram a obra inadequada para o fim a que se destina.


mmm) Por isso, "sendo possível a eliminação dos defeitos ou a nova realização da obra, ao dono da obra só cabe a escolha entre resolver o contrato e reduzir o preço (o que depende da sua escolha) caso a contraparte tenha recusado qualquer das prestações de cumprimento ou depois de decorrido um prazo suplementar fixado, nos termos do artigo 808.º, para a sua efectivação". - Pedro Romano Martinez, "Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada", Coimbra, 1994, pág. 439.


nnn) Subsumindo ao exposto e aos factos provados e como acima se explanou também aos factos que deveriam ter sido dados como provados e não o foram, é indubitável concluir-se que o acórdão recorrido não apreciou correctamente esta questão.


ooo) Com efeito, segundo o contrato de empreitada celebrado, o R., ora Recorrido, obrigou-se a reparar o motor do veículo, com a matrícula ..-BA-.., mediante o pagamento do preço acordado para a reparação deste.


ppp) Sucede que, o R. executou a obra, in casu, reparação do veículo com defeitos, de que os AA., ora Recorrentes, aperceberam-se nas 24 horas seguintes à entrega do veículo por parte do Réu.


qqq) Tendo o AA., de imediato reclamado tal defeito de execução/reparação junto do Réu, atendendo, que ficaram com o veículo imobilizado na estrada, sem funcionamento, tendo inclusive, que rebocá-lo da estrada.


rrr) Apesar das várias interpelações apresentadas pelos AA., e a sua insistência para eliminação dos defeitos apontados na reparação do veículo, o Réu nada fez, não suprindo os defeitos apontados, não se disponibilizando a proceder à eliminação dos defeitos supra apontados, embora reconhecesse os mesmos (visto que constatou que a viatura estava imobilizada na casa dos AA., tendo-se deslocado até lá), no entanto, recusou-se peremptóriamente a eliminar os defeitos, a reparar, não sugerindo qualquer outra alternativa com o fim supra descrito.


sss) Apesar das várias insistências por parte dos AA., para que o R. eliminasse os defeitos da sua reparação, o R., sempre se esquivou, não quis, desde logo, aquando da imobilização do veículo, que o veículo fosse rebocado para a sua oficina, e quando se deslocou a casa dos AA., para ver a viatura, confrontado pelo A. marido, para a eliminação dos defeitos e/ou nova reparação, respondeu sempre que agora não tinha tempo, não indicando ou fixando uma data temporal de quando poderia proceder à reparação dos defeitos…


ttt) Ainda passados 15 dias, após a deslocação do R. à casa dos AA., o A. marido insistiu, contactando telefonicamente o R. questionando-o uma vez mais, sobre a reparação dos defeitos do veículo, visto que o mesmo não trabalhava, encontrando-se imobilizado na casa dos AA., ao que o R. manteve a mesma posição, referindo que “não tinha tempo” não procedendo à eliminação dos defeitos, reparação ou apresentou qualquer outra alternativa como solução.


uuu) Como é óbvio, e de acordo com o princípio do bonus pater famílias os ora Recorrentes, perderam a confiança no R., ora Recorrido, e constataram um incumprimento definitivo por parte deste.


vvv) E tal acontece, no caso concreto da obrigação do empreiteiro de eliminar os defeitos existentes na obra ou de proceder a nova reconstrução: só depois de tal obrigação se mostrar definitivamente incumprida é que o dono da obra tem, como vimos acima, a faculdade de passar à fase da resolução (art. 1222.º).


www) No entanto, há que distinguir no âmbito do incumprimento aquele que se traduz, normalmente por força de circunstâncias incontroláveis, numa impossibilidade total de cumprir (incumprimento naturalístico) e aquele que resulta da perda do interesse do credor na prestação ou na persistência do não cumprimento após o decurso de um prazo razoável para tanto fixado (incumprimento normativo).


xxx) Sendo ainda que na espécie de incumprimento normativo se inclui a recusa, através de manifestação inequívoca, de cumprimento pelo devedor.


yyy) Ora, a obrigação de eliminar os defeitos ou de proceder a nova construção apenas releva para o efeito do cumprimento se efectuada em consonância com o inicialmente convencionado no contrato (salvo aceitação do dono da obra).


zzz) Que o mesmo é dizer que não cumpre essa obrigação o empreiteiro que não se dispõe a proceder à eliminação de defeitos da forma que estava prevista na empreitada celebrada.


aaaa) Perante isto, é evidente que o Réu, ora Recorrido, recusando a obrigação de eliminação dos defeitos ou proceder a nova reparação, incorreu em incumprimento definitivo normativo da sua obrigação, justificando, dessa forma, a resolução do contrato de empreitada pelos AA..


bbbb) Daí, os ora Recorrentes, terem enviado carta registada com aviso de recepção, a 13/10/2020 invocando o incumprimento do contrato de empreitada, no que respeita à reparação do veículo, com a matrícula ..-BA-.. ao R., ora Recorrido, conforme Doc. n.º 10, junto à petição inicial.


cccc) Há, assim, que considerar válida e eficaz a resolução do contrato de empreitada declarada pelos AA. ao R.


dddd) Temos como óbvio que "resolvido o contrato, o dono da obra fica exonerado da obrigação de pagar o preço e, se já o tinha pago, pode exigir a sua restituição por inteiro (art. 289º)". - Pedro Romano Martinez, citado "Contrato de Empreitada", pag. 543.


eeee) Consequentemente, nada teriam os AA. que pagar ao R. a título de preço - prestação pecuniária - da empreitada resolvida.


ffff) Em contrapartida, por força do disposto no art. 1223.º, a resolução do contrato não exclui o direito dos AA., ora Recorrentes, de serem indemnizados nos termos gerais, o que significa que os AA. podem cumular um pedido de indemnização pelos danos sofridos em consequência dessa resolução (art. 801º, nº 1).


gggg) Isto é, "havendo resolução do contrato por incumprimento, a indemnização mede-se pelo dano contratual negativo". - Ac. STJ de 11/02/99, no Proc. 1029/98 da 2ª secção (relator Noronha Nascimento), tendente a colocar o dono da obra na situação em que estaria se não tivesse celebrado o negócio", devendo ser calculada de acordo com as regras gerais da obrigação de indemnização (arts. 562.º ss).


hhhh) E tal indemnização há-de apenas dizer respeito "a prejuízos outros que não sejam os derivados da eliminação de defeitos da obra ou de redução do preço". - Ac. STJ de 29/09/93, no Proc. 82586 da 2ª secção (relator Mário Cancela).


iiii) Com efeito, "o artigo 1223º, ao declarar que o exercício dos direitos conferidos nos artigos precedentes, entre os quais figuram os de obter a eliminação dos defeitos da obra e a redução do preço, não exclui o de ser indemnizado nos termos gerais, mostra que este último pode ser accionado conjuntamente com qualquer dos outros e, sendo assim, sob pena de a lei consentir um duplo ressarcimento pelo mesmo facto, aquela indemnização tem de respeitar a outros prejuízos que não sejam compensados com a simples eliminação dos defeitos ou com a simples redução do preço da empreitada". - Ac. STJ de 13/07/76, in BMJ nº 259, pag. 212 (relator Ferreira da Costa).


jjjj) Sempre se diga, em todo o caso, que "parece que a orientação de conceber o direito de indemnização como um direito alternativo dos de resolução ou de redução do preço não é aceitável, pois, não obstante a resolução ou redução do preço, pode haver danos do comitente que com elas não são eliminados e susceptíveis de ser reparados por meio de indemnização. Nem a resolução, nem a redução do preço, eliminam todos os danos do comitente. Basta pensar no tempo que podem exigir a eliminação do defeito ou a nova construção e na necessidade em que esse facto pode colocar o dono da obra de realizar despesas com que razoavelmente não contava". - Vaz Serra, "Empreitada", in BMJ nº 146, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, no "Código Civil Anotado", vol. II, 3ª edição, Coimbra, 1986, pag. 823. – Destaque e sublinhado nosso.


kkkk) No caso sub judice provou-se, a respeito de danos, que, com a sua supra referenciada actuação, o R. provocou uma reparação com defeitos, visto que tal reparação durou apenas 24 horas, tendo os AA., despesas várias, tais como reboque do local onde o carro ficou parado em virtude da reparação do R., a despesa de nova reparação junto de uma oficina, que implicou a compra de um motor novo (usado), para substituir o anterior, a compra de uma bateria, radiador e demais peças e consumíveis para a devida reparação, tempo que ficaram os AA. privados do uso do seu veículo, etc.


llll) Se porventura os AA. não tivessem celebrado o contrato aqui referido, celebrando um outro que, adequadamente cumprido, não fosse resolvido, com certeza que não estariam sujeitos aos encargos e despesas acrescidos que foram obrigados a suportar.


mmmm) Haverá, pois, que colocar os AA. na situação em que se encontrariam se não houvessem celebrado o contrato de empreitada com o R., através da atribuição de uma indemnização correspondente à obrigação deste de ressarcir esses danos, calculada nos termos dos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.


nnnn) O que nos permite considerar que o quantum indemnizatório - em dinheiro porquanto já não é possível a restauração natural (arts. 562.º e 566.º, nºs 1 e 2) - atinge precisamente o montante de € 5.962,76, e que corresponde à soma das diversas parcelas a atender (€ 500,00 do preço pago pela reparação + € 1.082,78 de materiais e peças pagas pelos AA. a pedido do R. para a reparação do motor + € 1.236.73 pelos danos que o veículo sofrei durante o período que este na posse do R., no vidro frontal e pinturas + € 1.943,25 respeitante à compra e instalação de motor/reparação que tiveram que fazer junto de terceiro + 1.200,00 danos não patrimoniais) [1].


Não foi apresentada resposta.


II. O recurso dos recorrentes compreende, em termos formais, alegações e conclusões, separadas e congruentes, mas, após as alegações, vêm ainda indicados os resultados que os recorrentes pretenderiam ver acolhidos no recurso, em termos semelhantes à formulação de pedidos. Nesta indicação dos resultados acrescentam os recorrentes a menção à existência de nulidades, derivadas do regime do art. 615º n.º1 al. d) do CPC.


Atendendo ao regime legal dos recursos, verifica-se que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão (art. 639º n.º1 do CPC). Na alegação, a parte recorrente expõe e desenvolve as suas razões e fundamentos. Nas conclusões, enuncia de forma sintética e contida as questões que coloca ao tribunal. Assim, no recurso enquanto peça processual não se exige a formulação de pretensões autónomas (como os recorrentes fizeram no caso) pois as pretensões colocadas estão contidas nas alegações e definidas nas conclusões. Conclusões que, aliás, delimitam o objecto do recurso (art. 635º n.º4 do CPC), vinculando o tribunal a essa delimitação (salvo questões de conhecimento oficioso, que não estão em causa). Significa isto que a formulação de autónomas pretensões não constitui elemento normativo do recurso, não se integrando o teor dessas pretensões autonomamente descritas no conteúdo ou objecto do recurso. Trata-se de formulação que a parte adita, mas que não integra nem complementa o recurso. Estes são definidos apenas pelas alegações e subsequentes conclusões. Ora, nem nas alegações nem nas conclusões se invocam aquelas nulidades. Tal omissão é absoluta nas conclusões, onde as nulidades nunca são referidas. E verifica-se também nas alegações, pois não vale, notoriamente, como forma de invocação de tais nulidades a seguinte menção: Importa ainda, uma vez que os mesmos se apresentam decisivos para a revogação e declaração de nulidade da Sentença proferida de que se recorre, destacar, os seguintes aspectos constantes da sua fundamentação. Assim como também não vale como invocação de tais nulidades a menção à nulidade num dos «títulos» insertos nas alegações [II – fundamentos do recurso: recurso da matéria de facto e nulidade da sentença, da reapreciação da prova gravada, do conhecimento da inversão do ónus da prova requerido pelos aa. e da errónea aplicação do direito]. Acresce que, além daquelas menções, em momento algum das alegações elas aí são fundamentadas, nunca se explicitando em que medida certas circunstâncias correspondem aos vícios apontados. Donde estar a apreciação de tais nulidades excluída do objecto do recurso (por omissas nas alegações e nas conclusões).


Embora se note que, de forma geral, a invocação daquelas nulidades revela incompreensão sobre o regime legal respectivo, pois é notório e seguro que a deficiente avaliação da prova e subsequente decisão sobre os factos provados e não provados constitui um erro de julgamento e não qualquer vício intrínseco da sentença (al. c) e d) das pretensões formuladas), o mesmo valendo para a deficiente aplicação do direito (al. f) das mesmas pretensões).


III. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar:


- a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


- a falta de decisão sobre a requerida inversão do ónus da prova.


- o mérito da decisão, quanto aos direitos invocados pelos recorrentes.


IV. Foram considerados provados os seguintes factos [2]:


1. A Autora é proprietária do veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, Modelo C200 CDI, com a matrícula ..-BA-.. e número de quadro WDB.......F.......


2. No mês de Agosto do ano de 2020, o Autor marido solicitou ao Réu que reparasse o motor do veículo descrito em 1).


3. O Réu procedeu à sua reparação, cobrando pelo serviço o valor de €500,00.


4. O Autor e o Réu acordaram que a compra dos materiais e das peças necessárias à execução da reparação do veículo BA ficavam a cargo do Autor.


5. Em 24.08.2020 foi adquirida pelo Autor uma bateria à empresa Fly Motors – Peças Multimarcas, Lda., pelo valor de €100,00.


6. O Autor adquiriu também materiais e serviços para a rectificação da cabeça, rectificação de válvulas, rectificação sedes e rebaixar, desarmar e armar cabeça, pistons, jogo bronzes biela, junta de cabeça, jogo de juntas, jogo de pernos e jogo de vedantes na empresa Soretol – Soc. de Retificações Tomarense, Lda, pelo valor de €972,78.


7. A reparação efectuada pelo Réu teve a duração de 24 horas, tendo para o efeito o Réu entregue o veículo ao Autor.


8. Após a entrega do veículo pelo Réu, o veículo ficou imobilizado na estrada.


9. No dia 05.09.2020, o veículo dos Autores que se encontrava na estrada do Local 1, foi rebocado pela empresa Europ Assistance, S.A. para Cidade 2.


10. Nessa data, o Autor marido contactou e comunicou directamente ao Réu que o veículo havia ficado imobilizado na estrada e que a reparação efectuada por este tinha defeitos, assim como lhe comunicou os danos materiais constatados no veículo, designadamente o vidro da frente picado no centro e a pintura da viatura riscada, quer na parte da frente do pára-choques e traseira esquerda e direita.


11. O Autor deslocou-se a uma outra oficina para tentar solucionar a avaria do veículo, tendo sido aconselhado a comprar um motor usado para colocar no mesmo e a 14.09.2020 procedeu à compra, na empresa Chiquita Car, de um motor usado pelo valor de €1.200,00.


12. No dia 24.09.2020, o Autor procedeu junto dessa oficina, a empresa EE, Lda., à montagem do motor do seu veículo, tendo pago o valor de €547,00 referente ao valor de mão de obra e peças necessárias, como óleo, filtro óleo, vedante colector, vedantes e anti-gelo.


13. No dia 25.09.2020, o Autor comprou à empresa Fly Motors – Peças Multimarcas, Lda., um radiador pelo preço de €136,25.


14. No dia 28.09.2020, a empresa EE, Lda procedeu à substituição do radiador, tendo o Autor pago o valor de €60,00.


15. No dia 13.10.2020, os AA. enviaram carta registada para o Réu com o seguinte teor:

«(…)para que proceda ao pagamento da quantia de €3.500,00, pelo incumprimento do contrato de empreitada, celebrado entre ambos, no que respeita à reparação do motor da referida viatura automóvel, atendendo, que tal reparação foi defeituosa, tendo tido a duração de 24 horas, como o M/ Constituinte já denunciou a V. Exa., obrigando-o a comprar um outro motor novo e outras peças e consequentemente, a liquidar a reparação defeituosa por V. Exa., executada. Isto devido ao facto de que não terem sido pontualmente liquidadas, na totalidade, as quantias relativas às faturas que a seguir se discriminam: Assim sendo, fixo o prazo de 5 (cinco) dias úteis, contados da receção da presente carta, para que V. Exa. Se digne proceder ao pagamento da quantia acima mencionada (…). Findo o prazo supra mencionado, sem que o mesmo ocorra, ver-me-ei forçada, sem necessidade de nova interpelação, a recorrer à via judicial para cobrança da quantia em dívida, acrescendo a esta, MAIS as despesas com peças, reparação, despesas postais e honorários e respetivos juros de mora.”

16. No dia 22.10.2020, os AA. remeteram, novamente, carta registada ao Réu, na qual solicitaram ao Réu:

«(…) para que proceda ao envio da fatura/recibo que se encontra em falta referente a material e mão de obra, cujo pagamento foi efetuado pelo M/Constituinte no montante de €500,00 (quinhentos euros), no dia 04.09.2020.»

17. Às missivas enviadas pelos AA., o Réu não respondeu.


E foram tidos por não provados os seguintes factos:


i) O vidro da frente picado no centro e a pintura da viatura riscada, quer na parte da frente do para-choques e traseira esquerda e direita, foram provocados pelo Réu.


ii) O R. antes de proceder à entrega do veículo ao A. marido, em testes ao veículo, andou pelo seu terreno a puxar o veículo com um tractor.


iii) Os AA. sofreram, em consequência da conduta do Réu, desespero, insatisfação, impotência, saturação e ficaram alterados ou transtornados psicologicamente.


V.1. Os recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto. Esta impugnação está regulada no art. 640º n.º1 do CPC, o qual, na parte aqui relevante, determina que o recorrente deve especificar:


i. os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (art. 640º n.º1 al. a) do CPC),


ii. os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art. 640º n.º1 al. b) do CPC),


iii. a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640º n.º1 al. c) do CPC),


iv. a estar em causa prova gravada, deve indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (art. 640º n.º2 al. a) do CPC).


O incumprimento das imposições legais (verdadeiros ónus) deve conduzir à rejeição da impugnação. Tem, com efeito. sido entendido (de forma claramente dominante na jurisprudência [3]) que não cabe despacho de aperfeiçoamento da impugnação da matéria de facto em sede de recurso [4], com razões que se julgam fundadas, assentes: na sequência das intervenções legislativas, em sentido agregador de maior exigência; na letra da norma em causa, que inculca uma sanção imediata (art. 640º n.º1 in fine e, em particular, n.º2 al. a) do CPC); na contraposição sistemática e material face ao art. 639º n.º3 e ao art. 652º n.º1 al. a) do CPC, confirmando a referida asserção literal (quanto à imediata rejeição) derivada do art. 640º e indiciando quer o carácter específico (especial) do regime do art. 640º em causa, quer a existência de razões que distinguem aqueles regimes e explicam a diferença entre eles; razões estas ligadas ao tipo de recurso, no qual o tribunal ad quem intervém após a produção da prova e sobre questões factuais específicas (sem reavaliação de toda a prova produzida nem de toda a prova produzida), exigindo-se, por razões de coerência, inteligibilidade, funcionalidade e também derivadas da sujeição do recurso ao dispositivo e ao contraditório, que a intervenção do tribunal de recurso esteja devidamente balizada (condição da possibilidade da devida discussão), obviando do mesmo passo a recursos infundados, assentes em meras considerações gerais (derivando de razões de economia mas também, com o demais, sublinhando a auto-responsabilidade das partes) – assim, a exigência legal é condição da fixação precisa do objecto da impugnação, da sua inteligibilidade e da seriedade da impugnação, condições sem as quais o recurso não merece ser aproveitado; a própria concessão do prazo adicional de 10 dias para recorrer tempera o rigor da exigência, quanto à al. a) do n.º2 do art. 640º, mas tende também a justificar a dispensa legal do aperfeiçoamento (pois a parte teve tempo adicional para cumprir, e cumprir bem). Nesta medida, verificado fundamento de rejeição, não cabe qualquer medida paliativa prévia mas apenas operar o efeito legal.


2. Os recorrentes começam por defender o aditamento aos factos provados de um novo facto, que teria a seguinte redacção:


O A. marido interpelou o R. para reparar os defeitos, nomeadamente, aquando da imobilização da viatura na estrada após a sua entrega por parte do R. e posteriormente, quando o A. marido contactou o R., para que este se deslocasse à sua casa para ver e combinarem a reparação dos defeitos, tendo o R. se deslocado e peremptoriamente pelo argumento (de não ter tempo) apresentado recusado reparar os defeitos ou proceder a uma nova reparação.


Cabe começar por notar que a formulação não tem, em parte, natureza factual. Especialmente assim quando se refere ter o R. peremptoriamente pelo argumento (de não ter tempo) apresentado recusado reparar os defeitos ou proceder a uma nova reparação. A matéria factual a descrever seria a concreta conduta do R.. A afirmação de que se trataria de recusa peremptória constitui uma qualificação jurídica (e central, na economia da acção) que não poderia ser levada aos factos provados. Pese embora se reconheça alguma necessária maleabilidade e tolerância na distinção entre facto e direito, ampliando o âmbito da matéria de facto, considera-se, pese embora opinião contrária, que tal distinção é essencial, por várias razões, destacando-se, em termos sintéticos ajustados aos termos como a questão aqui se coloca, o facto de não caber às testemunhas ou às declarações de parte (ou a outros meios de prova) «demonstrar» conceitos ou situações jurídicas, não cabendo igualmente ao advogado ou ao juiz formular tais conceitos em sede de facto, por ficar assim contida na valoração da prova (e na fixação dos factos) uma certa qualificação dos factos que obedece a critérios jurídicos (e não a juízos probatórios) e que tem lugar próprio em outra sede. Argumento que é especialmente pertinente no caso: as declarações de parte do A. revelam que o R. ia adiando a intervenção, sem se comprometer. Se tal conduta corresponde a uma recusa de cumprimento peremptória constitui matéria de direito pois supõe uma qualificação da conduta adoptada à luz de critérios que têm nítida natureza jurídica (supondo-se assim um juízo de valor jurídico, e não um juízo probatório).


Assim, a matéria factual relevante seria, expurgando a alegação dos recorrentes da aludida matéria conclusiva, a seguinte:


O A. marido interpelou o R. (no sentido de que lhe pediu [5]) para reparar os defeitos aquando da imobilização da viatura na estrada após a sua entrega por parte do R. e posteriormente, quando o A. marido contactou o R., para que este se deslocasse à sua casa para ver e combinarem a reparação dos defeitos, tendo o R. se deslocado e afirmado não ter tempo para proceder à reparação.


Compulsada a petição inicial, verifica-se que estão em causa factos que não foram alegados pelos AA.. A alegação de que «o Réu, peremptoriamente, não quis proceder à reparação, não quis mais saber do assunto» (art. 57º da PI), além dos seus termos muito genéricos, não corresponde aos concretos factos agora invocados. Por isso correspondem estes a factos que decorreram apenas da prova produzida na audiência de julgamento. Poderiam, assim, apenas considerar-se factos concretizadores daquela alegação, ou ainda complementares dos então alegados, no sentido de que iriam integrar a causa de pedir, completando-a, para os termos do art. 5º n.º2 al. b) do CPC.


Ora, pese embora a questão não seja pacífica, entende-se que tais factos não podem ser invocados inovatoriamente em sede de recurso [6]. Essencialmente por duas razões. De um lado, pela natureza do recurso, de reponderação, significando que ele incide sobre a questão controvertida tal como ela foi apreciada pelo tribunal recorrido e, assim, no quadro dos factos que aquele tribunal conheceu. A pretender uma das partes beneficiar do regime daquele art. 5º n.º2 al. b) do CPC, deverá suscitar o seu funcionamento perante o tribunal do julgamento. De outro lado, porquanto o funcionamento do mecanismo deve ser efectuado em termos contraditórios, permitindo à parte contrária tomar conhecimento dos factos potencialmente relevantes e ter oportunidade de sobre eles se pronunciar, e ter também a possibilidade, tendo conhecimento da situação, de enquadrar a sua posição face aos novos factos (mormente quanto aos meios de prova a produzir, ou mesmo quanto à necessidade de outros meios de prova). O que já não pode ocorrer nesta sede, em recurso, de forma integral. Obstáculo com maior relevo no caso porquanto o R., ignorando esta pretensão dos recorrentes, prescindiu dos seus meios de prova em julgamento, opção que poderia ser diferente caso tivesse conhecimento da pretensão agora formulada. Acresce que a colocação da questão nesta sede implica uma diminuição das garantias do recorrido pois, perante a decisão do tribunal do julgamento que considerasse o facto provado, poderia impugná-la, sendo que nesta sede já não o poderia fazer (dado que o STJ não conhece de matéria de facto). Sendo que a possibilidade de responder ao recurso interposto (em que se invocam os novos factos) não cumpre adequadamente, pelo exposto, a contraditoriedade exigida. Donde não ser o pretendido aditamento legalmente admissível, ficando prejudicada a impugnação realizada.


Quanto ao efeito da desconsideração de facto, quando pertinente, que poderia ser aproveitado ao abrigo do art. 5º n.º2 al. b) do CPC, são aventadas várias soluções, destacando-se a possibilidade de utilização do mecanismo contido no art. 662º n.º1 al. c) do CPC (ainda que adaptado às contingências exigidas por um verdadeiro contraditório, importando a remessa do processo à primeira instância). Sucede que, no caso e como se explicitará infra, o facto não seria pertinente, não justificando intervenções adicionais.


3. Em segundo lugar, os recorrentes impugnam os factos não provados (todos eles: i. a iii.), sustentando que deveriam ser dados como provados.


Os recorrentes aglutinam todos estes factos na sua impugnação, como se pretendessem impugná-los de forma conjunta. O que não seria admissível pois a impugnação tem que indicar os meios de prova relevantes quanto a cada facto. Admite-se que a referenciação possa ser dirigida a um grupo de factos, mas apenas se estes corresponderem à mesma realidade, o que não ocorre no caso (sendo patente que os factos referidos em i. e iii. dos factos não provados correspondem a realidades diferentes).


Não obstante, os recorrentes, na discussão, acabam por discutir especificamente os factos i. e iii. do elenco de factos não provados, conduta esta a que, adoptando um critério de razoabilidade, se atenderá.


Assim, começam por impugnar o facto descrito em i. dos factos não provados, quanto à imputação ao recorrido do vidro picado e da pintura riscada. Sucede que, além de tecerem considerações sobre a fragilidade argumentativa da sentença recorrida, indicam genericamente a prova testemunhal, as declarações de parte dos AA. e a prova documental sem proceder à identificação de quais as concretas testemunhas e documentos em causa, não cumprindo assim o ónus de indicação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (art. 640º n.º1 al. b) do CPC). Sendo que não cabe ao tribunal discernir quais são as testemunhas e documentos relevantes, nem sequer presumir que seriam todas as testemunhas e todos os documentos, por ser tal contrário ao referido ónus legal de indicação concreta ou precisa dos meios de prova relevantes. Acresce que naquelas declarações de parte e na prova testemunhal também não cumpriria o requisito decorrente do art. 640º n.º2 al. a) do CPC. É certo que em momento anterior (prévio a esta impugnação), os recorrentes transcreveram quase na íntegra as declarações de parte do recorrente (o A.) e transcreveram parte das declarações de parte da recorrente (a A.). Mas tal não serve para salvaguardar a impugnação pois, de um lado, tal não chega para cumprir o requisito em causa no art. 640º n.º2 al. a) do CPC (ignorando-se qual o ponto ou momento das declarações que sustentaria a impugnação, nem tal é evidente), e, de outro lado, subsistiria o integral incumprimento dos requisitos legais quanto aos demais meios de prova que são invocados. Tudo justificando a rejeição desta impugnação. Embora sempre se adite que a consideração das declarações de parte não sustentaria a posição dos recorrentes, considerando que i. a mera menção do A., nas suas declarações, a que o recorrido picou os vidros [7], sem mais explicitações, seria claramente insuficiente para o fim visado (ignorando-se desde logo qual o fundamento da afirmação); ii. este A. nunca se referiu, em tais declarações, à pintura da viatura; e iii. a A. referiu, nas suas declarações, a existência de vidros partidos e que o carro estaria amolgado, mas tal não corresponde ao que foi alegado (e dado por não provado).


Quanto ao facto descrito em ii. dos factos não provados, inexiste qualquer discussão em torno deste facto, o que exclui a validade da sua impugnação. Impugnação que também se não justificaria pois se trata de facto meramente instrumental, que deve ser usado na discussão / fundamentação (o que não foi feito pelos recorrentes), mas que não tem que ser levado à descrição factual.


No que toca ao facto descrito em iii. dos factos não provados, os recorrentes não indicam qualquer meio de prova que sustente a impugnação, limitando-se a invocar as regras da experiência comum a partir da situação que descrevem (situação em parte contida nos factos provados, mas já nela não contida em outra parte). É certo que estão em causa factos internos ou psíquicos, cuja demonstração se pode efectuar por via indirecta ou indiciária: a partir de factos externos ou objectivos, conjugados com as regras da experiência, pode, em certas condições, inferir-se a ocorrência dos factos internos ou psíquicos relevantes. Mas não basta invocar as regras da experiência comum, face à situação objectiva vivida, para alcançar o estado de espírito dos recorrentes porque aquele estado de espírito não constitui um dado universal e seguro mas, ao invés, um dado individual e incerto. As pessoas reagem diferenciadamente perante a mesma realidade, e por isso se mostra necessária prova pessoal que esclareça a situação (v.g. testemunhas que revelem como os recorrentes reagiram, como se comportaram, ou mesmo que sentimentos exteriorizaram). Por exemplo, o desespero que invocam é uma reacção extrema, para um situação que durou cerca de 10 dias [atendendo ao facto 9, a intervenção do recorrido ocorreu por volta do dia 4/5 de Setembro, e cerca de 10 dias depois já estava o recorrente (o A.) a diligenciar pela reparação (facto 11)], que necessitaria de explicitação adicional.


Assim, não indicando meios de prova, e não valendo como tal o apelo à experiência comum, também deve ser esta impugnação rejeitada. Isto para além de os recorrentes invocarem factos instrumentais que não estão provados (v.g. conduta do R., tipo de utilização da viatura), em relação aos quais deveriam indicar os meios de prova que os sustentam, de acordo com os requisitos legais.


Embora ainda se note que os recorrentes prestaram declarações e, nelas, o recorrente não se reportou à matéria agora discutida e a recorrente não a confirmou, pelo que não se vê como poderia por inferência alcançar-se a descoberta de estado psíquico dos recorrentes que estes não referem ou atestam (não o fazendo também outros meios de prova).


4. Não se ignora que, quanto a todos os factos i. a iii., os recorrentes referem, a final, que deveriam ser dados como provados com base nas declarações dos AA., conjugadas com a prova testemunhal e documental. Trata-se de mero epílogo conclusivo da alegação, irrelevante.


5. De seguida, alegam os recorrentes que o tribunal recorrido, como se afere pela sentença, não avaliou a sua pretensão atinente à inversão do ónus da prova, nos temos do art. 344º n.º2 do CC.


A pretensão é improcedente porquanto os recorrentes não identificam qual o sentido da invocação: nunca indicam que factos concretos seriam abrangidos por aquela inversão. Ora, a inversão tem que operar em relação a factos concretos, e é em relação a esses factos (à prova desses factos) que também se aferem os pressupostos do art. 344º n.º2 do CC. Assim, a atitude omissiva dos recorrentes não apenas impede a avaliação destes pressupostos (pois não é possível saber se o recorrido impossibilitou a prova sem saber o que se quereria provar), como torna inconsequente a alegação, já que sem a formulação de uma específica pretensão (identificando os factos relevantes abrangidos pela inversão do ónus da prova), a mera afirmação da inversão do ónus da prova seria irrelevante, não tendo, em si, sentido útil, não podendo por isso ser afirmada.


Acresce que, de qualquer modo e face aos factos não provados (em relação aos provados tal inversão seria, obviamente, inútil por redundante), não se vê em que medida tais factos estariam cobertos pela invocada inversão do ónus da prova, já que nada têm a ver com a conduta do recorrido que os recorrentes indicam como suporte da sua pretensão [em particular, não ficou impossibilitada a prova da situação do vidro e da pintura, nem o nexo causal com a actuação do recorrido - que não dependiam de nenhuma perícia].


Sempre se adianta, perseguindo um esforço de clarificação que supere a sombra do mero formalismo, que também não ocorreria vício relevante.


O que se verifica é que os recorrentes, perante a impossibilidade de realização das perícias, invocaram a passividade do recorrido perante as perícias (as quais não requereu e sobre as quais nunca se pronunciou) e a sua atitude perante o defeito (os quais não reparou) prévia à acção. Perante tal pretensão, o tribunal indeferiu-a, afirmando que «Destarte, dos factos supra expostos não pode concluir-se que as perícias não foram realizadas por acção ou omissão do Réu, mas sim de acordo com a posição vertida nas duas Perícias face ao estado actual em que se encontra o motor do veículo, sendo que a demais facticidade aduzida pelos Autores encontra-se controvertida e terá de ser provada em sede de audiência, pelo que, nesta fase, se indefere a inversão do ónus da prova requerida pelos Autores.». Donde ter sido a pretensão apreciada, face aos dados então existentes. Não ficou o tribunal, após, obrigado a reapreciar a questão face aos factos que se apurassem em julgamento, mas apenas a reapreciá-la se ocorresse motivo para tanto. O que não ocorre pois inexiste qualquer conduta do recorrido que possa ser qualificada como impeditiva da produção de prova pelos recorrentes. O facto de não ter procedido à correcção da reparação respeita à sua conduta contratual, mas não provocou a impossibilidade de produzir qualquer prova (aliás, pretender que estaria obrigado a reparar sob pena de ver invertido o ónus da prova equivalia a confundir planos claramente distintos: o plano dos factos atinentes à execução do contrato com o plano da prova desses factos). Nada havia a avaliar, pois.


6. Está em causa um contrato de empreitada, qualificação que não foi controvertida e se mostra ajustada ao disposto no art. 1207º do CC (sendo, actualmente, acolhida de forma dominante, com boas razões).


Inexistem dados que permitam falar em empreitada de consumo (os factos não reportam dados pertinentes para o efeito).


7. Os recorrentes pretendem exercer, em primeira linha, um direito de indemnização por danos derivados do incumprimento do contrato de empreitada, nele contemplando danos patrimoniais e não patrimoniais.


Quanto a estes danos patrimoniais, os recorrentes integram neles danos causados à própria viatura, de um lado, e o valor que os recorrentes pagaram pela reparação inicial defeituosa e o que despenderam para reparar, depois, o motor da viatura, de outro lado [8]. Trata-se, nesta segunda parte, de danos que substituem, em sentido amplo, a prestação devida pelo recorrido, enquanto na primeira parte estão em causa danos externos ao cumprimento defeituoso. Sujeitando-se a regimes diferentes, serão avaliados também separadamente, iniciando-se a avaliação pelos referidos segundos danos.


8. Valendo no caso o regime comum da empreitada, deriva dos art. 1221º a 1223º do CC que o dono da obra, perante um cumprimento defeituoso, tem direito a exigir a eliminação dos defeitos, se puderem ser eliminados, ou exigir nova obra, se aqueles não puderem ser eliminados (art. 1221º); não sendo eliminados os defeitos ou feita nova obra, pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, mas esta apenas se a obra se mostrar inadequada ao seu fim (art. 1222º). Tem, cumulativamente, direito a ser indemnizado, nos termos do art. 1223º do CC, mas esta indemnização visa reparar danos que acrescem aos danos ou pretensões que não são cobertos por aqueles art. 1221º e 1222º do CC, tendo assim natureza residual.


Este regime significa, em primeiro lugar, que estas normas tendem a esgotar, em situações correntes ou típicas de cumprimento defeituoso, os direitos contratuais do dono da obra no que ao tratamento do defeito respeita. Ou seja, que, tendencialmente [9] e face ao defeito da prestação, apenas podem ser exercidos os direitos previstos naquelas normas, nas condições ali fixadas.


Significa ainda, em segundo lugar e como bem assinala a sentença recorrida, que existe uma certa forma de relacionamento entre os direitos conferidos ao dono da obra que condiciona o seu exercício. Assim, verifica-se, a partir da letra clara dos art. 1221º e 1222º do CC, que os direitos em causa se apresentam de forma hierarquizada, tendo cada direito prioridade sobre os subsequentes, que só podem ser invocados se previamente se afastarem, nas condições legais, os direitos precedentes (com a excepção dos direitos conferidos pelo art. 1222º do CC, que, entre si, se encontram numa relação de alternatividade, embora o direito de resolução fique sujeito a requisitos apertados que, por tais requisitos não valerem para o direito de redução do preço, o tornam, neste sentido, subsidiário).


Por isso que o direito que os recorrentes podiam exercer seria, em primeira linha, o direito de exigirem a eliminação dos defeitos, com uma reparação correcta do motor da viatura (ou a realização de obra nova). Direito que não exerceram, passando logo a reclamar a referida indemnização substitutiva. O que não é admitido pelo quadro normativo exposto, não podendo reclamar logo o pagamento de uma indemnização substitutiva da reparação.


9. Como também assinala a sentença recorrida, admite-se em certos casos que o dono da obra possa recorrer directamente à indemnização substitutiva da reparação, assim sucedendo tipicamente em duas situações: quando ocorra o incumprimento definitivo e em situações de urgência. Ali, porque o regime especial da empreitada não exclui o regime geral dos contratos neste ponto, podendo ser provocada uma situação de incumprimento definitivo que justifica a indemnização, nos termos do art. 798º e 801º do CC. Aqui porque a urgência inviabiliza a realização da prestação pelo empreiteiro. Naturalmente, a mesma solução valeria para as situações de impossibilidade de realização da prestação (reparação) por facto do empreiteiro.


Nenhuma de tais circunstâncias está, porém, verificada no caso.


Assim, e quanto à impossibilidade de cumprimento, os factos não a revelam (aliás, a prestação em si podia ser realizada).


No que ao incumprimento definitivo concerne, podia ser alcançado por estas vias gerais [10]:


- conversão do cumprimento defeituoso do empreiteiro em incumprimento definitivo, quer pela realização da interpelação admonitória, quer pela perda objectiva de interesse do dono da obra na prestação (art. 808º n.º1 e 2 do CC). No caso, não consta que tenha sido realizada aquela interpelação nem existem factos que revelem a perda de interesse na prestação (ao invés, o facto de os recorrentes mandarem reparar a viatura revela que mantinham interesse objectivo na prestação).


- recusa categórica de cumprimento (admitindo-se que possa conduzir logo a um incumprimento definitivo). Inexistem factos que a comprovem. E os factos que os recorrentes pretendiam aditar (ou que derivariam da instrução do processo) não o sustentariam. Com efeito, esta figura não tem uma directa consagração legal (por isso que seja ainda discutido quer o fundamento da figura, quer os seus precisos efeitos), surgindo por via da constatação de situações que deveriam dispensar o credor de percorrer o procedimento necessário à constituição do devedor em mora ou em incumprimento definitivo. O carácter excepcional da figura justifica que seja rodeada de especiais cautelas e se coloque especial exigência na avaliação da sua verificação. Por isso que se afirme que a recusa de cumprimento deve revestir características que lhe atribuam certeza e segurança, exigindo-se que se trate de recusa séria, clara e inequívoca, e, além disso, peremptória e definitiva. Ora, as circunstâncias factuais que os recorrentes invocaram, ou mais amplamente as que derivam das declarações de parte do recorrente, apenas reportariam uma atitude evasiva do recorrido (afirmando que não tinha tempo para ver a viatura), que, se pode ser compatível com uma falta de vontade em cumprir, já não traduz, notoriamente, uma recusa peremptória em cumprir. Trata-se, aliás, de atitude própria de devedor relapso, mas que não pode ser equiparada a um incumprimento definitivo, sob pena de se subverter o regime legal, esvaziando de conteúdo o regime do referido art. 808º n.º1 do CC. A forma própria de superar a atitude reticente ou evasiva é o apelo à interpelação admonitória, não uma artificial invocação da recusa em cumprir. De mais a mais quando está em causa lapso de tempo demasiado curto (cerca de 10 dias) para a evasiva do recorrido poder ter relevo determinante. Donde também que se não justificasse no caso qualquer actuação adicional quanto à discussão destes factos, como se deixou já anunciado.


Por fim, e quanto à situação de urgência, que tornaria inexigível a imposição da reparação pelo empreiteiro relapso, vem associada quer ao estado de necessidade, quer ao conflito de direitos (como se refere na sentença recorrida), quer à acção directa. Como quer que seja, a situação de necessidade ou urgência não está concretizada em factos apurados.


10. Também se refere o insucesso da tentativa de reparação como circunstância justificativa da desvinculação do dono da obra face ao regime dos art. 1221º e 1222º do CC, quer seja tida como causa de constituição em incumprimento definitivo, quer seja integrada na justa causa de desvinculação (pela perda confiança naquele empreiteiro). Como quer que seja, inexiste no caso qualquer tentativa de eliminação dos defeitos que releve nesta sede.


11. Inexiste assim fundamento para superar a ordem de exercício dos direitos legalmente facultados, pelo que não cabe aos recorrentes o direito à indemnização que reclamam, directamente derivada da prestação a cargo do recorrido e não devidamente cumprida.


12. No recurso, os recorrentes referem-se a uma suposta resolução do contrato que nunca foi invocada nos articulados. Pese embora se trate de questão nova, que não poderia ser suscitada inovatoriamente em sede de recurso, sempre seria de afastar o seu relevo.


De um lado, e de forma válida independentemente do fundamento da resolução, esta opera através de declaração receptícia dirigida à contraparte, declaração que os factos não revelam (art. 436º n.º1 e 224º n.º1 do CC).


De outro lado, a resolução seria sempre infundada. A buscar-se o seu fundamento no regime especial da empreitada, não estariam verificados os requisitos do art. 1222º n.º1 do CC. A buscar-se o seu fundamento no regime comum, e já que não consta que exista previsão convencional, a resolução dependia, em princípio, do incumprimento definitivo do contrato (art. 801º n.º2 do CC), o qual, como se viu, não existe. Tende, é certo, a admitir-se o funcionamento da resolução em situações de inexigibilidade de manutenção do vínculo (justa causa ou perda de confiança), mesmo ao arrepio, nestes casos, do regime dos art. 1221º e 1222º do CC, mas os factos também não revelam esse tipo de situação. A alegação é, pois, inconsequente.


13. Quanto aos danos não patrimoniais, derivados do incumprimento do contrato, excedem o âmbito daqueles direitos hierarquizados, podendo ser exercidos autonomamente, no quadro do referido art. 1223º do CC.


Também assim para os danos causados à própria viatura, que seriam danos ocorridos por ocasião e por causa da execução daquele contrato mas que o excedem (seria o caso dos danos nos vidros e pintura da viatura).


Nesta parte, não se provaram, contudo, os danos alegados e assim, como sem estes não existe direito a indemnização, as pretensões não podem ser acolhidas.


14. Decaindo, suportam os recorrentes as custas do recurso.


VI. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.


Custas pelos recorrentes.


Notifique-se.

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).


Relator:


António Fernando Marques da Silva


Adjuntos:


Sónia Kietzmann Lopes


José António Moita

__________________________________

1. Não se reproduziram os sublinhados e realces por indiferentes.↩︎

2. Em reprodução literal.↩︎

3. V. por todos os Ac. do STJ proc. 2015/23.1T8AVR.P1.S1, proc. 21389/15.1T8LSB.E1.S1, proc. 4330/20.7T8OER.L1.S1, proc. 1680/19.9T8BGC.G1.S1, proc. 1229/18.0T8OLH.E1.S1, proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1 ou proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1 (3w.dgsi.pt), este com indicações doutrinais a que se podem aditar Henrique Antunes, Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto, Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina 2018, pág. 80 no sentido da inadmissibilidade legal do convite (embora com reservas face ao direito constitucional a um processo equitativo); e, no sentido oposto, L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 95 e 99 (também com outras indicações).↩︎

4. No sentido da constitucionalidade da solução, v. DS 256/2021 do TC (no site do TC).↩︎

5. A interpelação também constitui um dado jurídico, mas tem também um sentido corrente ou comum que, no caso, poderia valer.↩︎

6. Neste sentido, v. Acs. do STJ de 07.12.2023, proc. 2017/11.0TVLSB.L1.S1, de 07.02.2017, proc. 1758/10.4TBPRD.P1.S1, de 06.09.2022, proc. 3714/15.7T8LRA.C1.S1, ou de 13.05.2025, proc. 3945/21.0T8STB.E1.S1, todos em 3w.dgsi.pt, ou L. de Freitas, Novos estudos sobre direito civil e processo civil, Error in procedendo na decisão de facto da relação e sua sindicabilidade em revista, Gestlegal 2021, pág. 383.↩︎

7. Nas suas declarações apenas surge outra menção aos vidros, quando o recorrente afirmou ter falado disso ao recorrido.↩︎

8. Em rigor, tratar-se-ia de situação semelhante a obra nova dada a substituição do motor. A distinção não releva, porém, no caso.↩︎

9. Tendencialmente por existirem situações que, como se refere a seguir, podem alterar a regra.↩︎

10. Inexiste convenção de prazo que permita discutir a sua essencialidade relativa.↩︎