Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
479/20.4TELSB-A.E1
Relator: JOSÉ SIMÃO
Descritores: CRIMINALIDADE ECONÓMICA E FINANCEIRA
SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE MOVIMENTOS A DÉBITO
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No que respeita à criminalidade económica e financeira, as clássicas medidas preventivas e repressivas previstas no Código de Processo Penal não davam resposta adequada e suficiente e por isso, o legislador através da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto, criou instrumentos preventivos e repressivos próprios, nos quais se integram a medida de suspensão temporária de execução de quaisquer operações a débito (artºs 48 e 49 daquele diploma).

A ordem de abstenção de movimentos bancários determinados, prevista no artº 48º nº 1 da Lei 83/2017, enquanto medida restritiva de direitos fundamentais (artigo 18º da Constituição de República Portuguesa), obedece a critérios de idoneidade, necessidade e proporcionalidade, ditada pela preocupações de prevenção da prática de crime de branqueamento de capitais e apresenta uma natureza cautelar reforçada que se não autonomiza face à sua principal finalidade de meio de obtenção de prova.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

Nos autos de inquérito que corre termos pelo DIAP de Faro – 2ª Secção, o Ministério Público determinou ao abrigo do disposto no artº 48º nº 1 e 3 da Lei nº 83/2017, a suspensão temporária de todo o tipo de movimentos a débito, incluindo através de meios à distância, sobre as seguintes contas bancárias e eventuais contas associadas:

- Conta com o IBAN PT…, aberta no ., em nome de N…;

- Conta com o nº …, aberta junto do …, em nome de N…;

Por despacho de 9-07-2020, o Mmo Juiz de Instrução confirmou a suspensão temporária decretada pelo DCIAP, nos termos do artº 49º nº 1 e 2 da Lei nº 83/2017 e determinou o bloqueio de todos os movimentos a débito, incluindo através de meios à distância das contas referidas, a vigorar até 10 de Outubro de 2020.

O titular das contas bancárias veio requerer o levantamento da suspensão das mesmas, o que foi indeferido por despacho de 30-09-2020, com o teor infra descrito em II.1.

N… recorreu deste despacho, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

«1 ) O recorrente é titular de duas contas bancárias, uma com o iban PT …, junto do … e outra com o iban PT … junto do banco ….

2 ) Por despacho de 9/7/2020 proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, a fls 87 a 92, veio a ser determinado o bloqueio de todo o tipo de movimentos a débito, incluindo através de meios à distância, sobre as contas supra indicadas e eventuais contas associadas, a vigorar até 10/10/2020.

3 ) Por requerimento enviado aos presentes autos após notificação do mesmo, o recorrente requereu a alteração daquela medida de suspensão de movimentação da sua conta junto do BPI , requerendo a revogação da suspensão quanto às contas de depósito a prazo associadas àquela conta à ordem com o iban PT…, a saber, depósito especial … 2 anos nº … e … poupança purchase house nº …, assim como quanto aos valores depositados na conta à ordem em causa pela N… posteriormente à determinação daquela medida, alegando que os depósitos a prazo foram constituídos com fundos existentes na conta à ordem antes ( em 12/6/2020 e em 16/6/2020 ) da operação suspeita ( em 26/6/2020 ) nos autos e que os depósitos efetuados pela N… respeitaram, unicamente, ao pagamento da sua retribuição pelo trabalho prestado a favor da depositante no âmbito do contrato de trabalho com ela celebrado, juntando um extrato bancário das referidas contas com todos os movimentos efetuados desde a data da sua constituição até 8/7/2020 e a cópia do contrato de trabalho celebrado com a N…, celebrado em 10/12/2018, recibos de vencimento respeitantes às remunerações pagas por aquela e mapas de ajudas de custo , referentes aos meses de Maio, Junho, e Julho de 2020.

4 ) Pelo despacho em crise, veio o tribunal a quo a indeferir o pretendido , fundamentando-o com o facto de o arguido ( o recorrente JAMAIS foi constituído arguido nos autos, diga-se ! ) ter recebido diversas transferências de M… em ambas as contas entre os dias 24 e 28 de junho de 2020, num valor total de 30.000€, tendo sido transferido, em 25/6/2020, o valor de 10.000 € para outra entidade o que , no entender da decisão em crise, torna suspeita toda a movimentação envolvente nas contas bancárias do recorrente, o que justificará a manutenção da suspensão da movimentação das mesmas.

5 ) No extrato da conta do recorrente sobre o … apenas se regista, com data valor de 26/6/2020, uma “ trf 10 de m…” no valor de 10.000 €, não se evidenciando qualquer outra transferência de fundos com origem ou destino imputável a M….

6 ) Anteriormente ao crédito da referida transferência, a conta à ordem do recorrente junto do … tinha um saldo de 83,17 € , e as contas a prazo a ela associados supra identificados, saldos no valor de 30.000 € e 2602,00 €, respetivamente.

7 ) Igualmente, quanto aos valores creditados na conta … pela entidade N…, indicia-se fortemente terem origem absolutamente lícita, correspondendo ao pagamento de remunerações auferidas pelo recorrente, infirmando qualquer suspeita quanto às movimentações a débito subsequentes às mesmas, sendo inegável que os pagamentos e levantamentos verificados posteriormente às mesmas resultam do provisionamento da conta … por tais depósitos da entidade empregadora.

8 ) Na referida conta … apenas se vislumbra uma única transferência de 10.000 €, já referida, imputável a M… e, conforme se refere no despacho em crise, da mesma terá sido transferido ( vg. Extrato da conta … ) , em 25/6/2020, o valor de 10.000 € para outra entidade.

9 ) A ordem de abstenção de movimentos bancários determinados, prevista no artº 48º nº 1 da Lei 83/2017, enquanto medida restritiva de direitos fundamentais (artigo 18º da Constituição de República Portuguesa), obedece a critérios de idoneidade, necessidade e proporcionalidade, ditada pela preocupações de prevenção da prática de crime de branqueamento de capitais e apresenta uma natureza cautelar reforçada que se não autonomiza face à sua principal finalidade de meio de obtenção de prova.

10 ) Considerando que no despacho em crise se refere a existência de uma única operação de transferência de fundos suspeita no valor de 10.000 € a crédito na referida conta, e que os mesmos já teriam sido transferidos a terceiros em momento imediatamente posterior, não se vislumbra qual é a utilidade processual da manutenção da ordem de suspensão da movimentação a débito da conta onde as referidas operações suspeitas se realizaram, não sendo tal medida adequada nem a interromper a execução ou o começo da execução do eventual crime de branqueamento ou ao mesmo tempo, evitar que o agente faça desaparecer os valores detectados, nem a, providenciar ou pode providenciar a obtenção de meios de prova que permitam reconstituir historicamente o processo de conversão, transferência, auxílio ou facilitação de operação de conversão ou transferência de vantagens provenientes dos crimes de catálogo previstos no arts. 368º- A nºs 1 e 2 do Código Penal, violando-se, no despacho em crise, os pressupostos da aplicação de tal medida previstos no artº 47º nº 1 e no artº 48º nº 1 e nº 2 e 49º nº 2 da lei 83/2017.

11 ) O despacho em crise, ao não atender ao alegado e provado documentalmente pelo recorrente, e , ao invés, persistir na manutenção da suspensão de movimentos a débito nas referidas contas, incorreu , assim, em clamoroso erro de facto e de direito.

12 ) O despacho recorrido é ilegal por violação do direito constitucional à propriedade privada e à livre iniciativa privada e do princípio constitucional da proporcionalidade, constantes, respetivamente, dos artigos 62º nº1, 61º nº1 e 18º nºs 2 e 3, ambos da CRP, devendo o mesmo ser revogado, ordenando-se o levantamento da medida de suspensão sobre a conta com o iban PT …, junto do …, e contas de depósitos a prazo a ela associadas, sob pena de violação do disposto nos artigos 49º nº 2 da Lei 83/2017 de 23 de Agosto,

13 ) Ou, subsidiariamente, atento os documentos juntos, deve ser revogado e substituído por outro que, atendendo , ainda que apenas parcialmente, ao pedido, de revogação da medida de suspensão de movimentação a débito da identificada conta do recorrente sobre o … ( à ordem e a prazo a ela associadas ) designadamente quanto aos montantes ali depositados em datas anteriores à da operação suspeita no montante total de 32685,17 €. e aos fundos derivados dos movimentos a crédito efetuados pela N… e pela AT.»

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.

Nesta Relação, a Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer, no sentido de que por decisão de 23-11-2020 o tribunal autorizou o levantamento pelo recorrente dos valores transferidos pela sua entidade patronal (a N…) e pela Autoridade tributária, por se achar justificada a proveniência dos valores transferidos, razão pela qual o pedido subsidiário formulado perdeu interesse por inutilidade superveniente e quanto ao mais, deve ser negado provimento ao recurso.

Observado o disposto no artº 417 nº 2 do CPPenal.

Procedeu-se ao exame preliminar.

Cumpre apreciar e decidir.

II- Fundamentação

1. O teor do despacho recorrido datado de 30-09-2020 é o seguinte:

Veio N… requerer o levantamento da suspensão das suas contas bancárias.

Para o efeito, veio referir que é em tais contas que é depositado o seu salário, e ainda identificar transferências monetárias para a mesma.

Todavia, dos autos resulta que o arguido recebeu diversas transferências de M… (cujas contas bancárias igualmente se mostram suspensas em virtude da suspeita de dizerem respeito a operações ilícitas), em ambas as contas, entre os dias 24 e 28 de Junho de 2020, num valor total de € 30.000,00, tendo sido transferido, em 25/06/2020, o valor de € 10.000,00 para outra entidade.

Tal facto torna suspeita toda a movimentação envolvente nas contas bancárias de N…, o que justifica a manutenção da suspensão das mesmas.

Pelo exposto, indefere-se o requerido.

Notifique.

Uma vez que, atenta a complexidade da investigação, ainda não foi possível terminar o inquérito, determina-se a prorrogação, por três meses (de 30/09/2020 a 30/12/2020), da suspensão provisória e bloqueio de todas as operações a débito pretendidas realizar sobre as seguintes contas, ao abrigo do disposto no art.º 49.º, n.º 2, parte final, da Lei n.º 83/2017, de 18/08.:

(…)

 Conta com o IBAN PT…, aberta junto do Banco …, em nome de N…; e

 Conta n.º …, aberta junto do …, em nome de N….

2. Por despacho de 23-11-2020 do Mmo Juiz de Instrução, por se mostrar justificada a proveniência dos valores transferidos pela N… para a conta do … acima identificada, bem como do crédito de IRS, foi admitido o levantamento pontual por parte do recorrente da quantia de € 4.110,47 nos termos do artº 49º nº 5 da Lei nº 83/2017.

III – Apreciação do recurso

O recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, artºs 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir consistem em saber se, deve ser revogado o despacho de 30-9-2020 e ordenado o levantamento da medida de suspensão sobre a conta identificada do … e as contas de depósitos a prazo a ela associadas, ou subsidiariamente se deve ser revogada a suspensão em, relação aos montantes depositados em datas anteriores à operação suspeita de 26-06-2020, no montante total de 32.685,17 € e aos fundos derivados dos movimentos a crédito efectuados pela N… e pela AT.

Quanto à questão da revogação da suspensão, em relação aos movimentos a crédito para a conta em causa, efectuados pela N… e pela AT, posteriormente, ao despacho objecto de recurso, por decisão de 23-11-2020 (fls. 54) e nos termos do artº 49º nº 5 da Lei nº 83/17, de 16 de Agosto, o Mmo Juiz autorizou o levantamento por parte do recorrente de tais valores, que perfazem o montante global de € 4.110,47, por se encontrar justificada a proveniência de tal valor, através da documentação junta aos autos, da qual resulta que as quantias que perfazem aquele montante foram transferidas pela sua entidade patronal (N…) e pela AT.

Assim, neste segmento o recurso perdeu interesse, pelo que se julga nesta parte extinto por inutilidade superveniente, artº 277º al. e) do Código de Processo Civil.

Importa, agora, apreciar a questão da suspensão de movimentos da conta do recorrente junto do … com o Iban … e contas de depósito a prazo, associadas àquela conta que são:

- depósito especial … 2 anos nº …, constituído em 12-06-2020,, no montante de € 30.000,00:

- … Poupança pur chae house nº … – …, com saldo de 2602,00.

O recorrente alega que apenas foi efectuada uma transferência bancária da conta de M… de 10.000,00 para a conta do recorrente, no dia 26/06/2020, e que anteriormente a essa transferência, a conta do recorrente tinha um saldo de 83,17 €, e as contas a prazo a ela associadas tinham saldos, nos valores de 30.000,00 € e 2.602,00 €, pelo que não há razões para manter uma ordem de abstenção de movimentos em relação às contas a prazo associadas com aquela conta constituídas e reforçadas, em datas anteriores àquela transferência.

Mais alega que, o despacho recorrido que indeferiu o levantamento da suspensão da sua conta bancária junto do … e contas de depósito a prazo a ela associadas é ilegal, por violação do direito constitucional à propriedade privada e à livre iniciativa privada.

Vejamos.

Em 24-6-2020, o Banco … foi alertado pelo Bank … para a possibilidade de virem a ser canalisados para a conta de M…, aberta no balcão de L…, fundos subjacentes a uma fraude que um cliente daquele banco teria sofrido.

Examinada a conta de M… verificou-se que, foram efectuadas várias transferências a crédito para a sua conta e desta transferência para a conta a crédito do recorrente do … em 26-6-2020 de € 10.000,00.

Os elementos disponíveis nos autos e o alegado pelo Ministério Público na decisão de suspensão decretada e confirmada pelo Mmo Juiz e o despacho recorrido, permitem aceitar como indiciados factos susceptíveis de integrarem o crime de branqueamento de capitais (artº 368º-A do C.Penal).

No que respeita à criminalidade económica e financeira, as clássicas medidas preventivas e repressivas previstas no Código de Processo Penal não davam resposta adequada e suficiente e por isso, o legislador através da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto, criou instrumentos preventivos e repressivos próprios, nos quais se integram a medida de suspensão temporária de execução de quaisquer operações a débito (artºs 48 e 49 daquele diploma).

Existem no caso em apreço suspeitas do crime de branqueamento de capitais e se esses indícios são consistentes em relação à quantia de € 10.000,00, transferida para a conta do … do recorrente, atenta a informação dada pelo Banco…, cremos que não está cabalmente esclarecida a origem do dinheiro constante das contas associadas á conta do …, (contas a prazo) do recorrente, importando pois apurar, se esse dinheiro ou parte desse valores tem proveniência ilícita.

Os valores movimentados por este tipo de criminalidade levam a que a investigação do crime seja conduzida para a investigação dos movimentos financeiros.

A medida em causa tem, assim, manifesto interesse para a descoberta da verdade e visa evitar que os fundos de proveniência ilícita se dispersem na economia legítima enquanto se apura a verdade dos factos.

A medida de suspensão provisória da conta bancária do recorrente á ordem do … e contas associadas respeita o ordenamento jurídico, quer a legislação ordinária, quer os preceitos da Constituição.

Impõe-se, pois, julgar extinto o recurso por inutilidade superveniente, no segmento relativo às transferências efectuadas pela N… e AT para a conta do … do recorrente e quanto ao mais negar provimento ao recurso.

IV-Decisão

Termos em que acordam os Juízes desta Relação em julgar extinto o recurso por inutilidade superveniente quanto às transferências efectuadas, pela N… e Autoridade Tributária, para a conta do … do recorrente e quanto ao mais, em relação à suspensão de movimentos da conta do recorrente junto do … com o Iban … e contas de depósito a prazo, associadas àquela conta, manter o despacho recorrido.

Sem custas.

Notifique

Évora, 09/02/2021

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Madaleno

(Texto elaborado e revisto pelo relator)