Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7704/17.7T8STB.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRAZOS
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 12/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- O artigo 242.º-A do CIRE permite que aos insolventes que se encontram em situação de incumprimento quanto à obrigação de entrega à fidúcia do rendimento disponível requerer no processo a prorrogação do prazo de cessão, sendo que esta prorrogação surge como alternativa à recusa de exoneração.
2- Quanto ao teor da obrigação que decorre para o devedor da prorrogação do prazo de cessão, nomeadamente nos casos em que os insolventes incumpriram a obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível, a que estavam obrigados por força do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE[9], prefiguram-se duas leituras possíveis: (i) a prorrogação do período de cessão visará apenas permitir ao insolvente o pagamento da quantia em dívida, isto é, dos valores que deveriam ter sido entregues durante o período de cessão fixado inicialmente e não o foram, caso em que haverá que calcular o montante em dívida e fracionar o seu pagamento pelo período de prorrogação; ou (ii) a prorrogação do período de cessão de rendimentos abre um novo período de cessão, tendo o devedor de continuar a entregar à fidúcia, no período em causa, o valor que foi fixado como correspondendo ao rendimento disponível, sem prejuízo desse montante poder ser revisto pelo juiz nos termos em que o seria no período inicial de cessão de rendimentos e de acordo com o disposto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE.
3- Independentemente do entendimento que se perfilhe, não é possível cumular o pagamento da quantia que estava em falta à fidúcia com a obrigação de entrega do rendimento disponível que caracteriza o período de cessão, sob pena de se pôr em risco a própria subsistência dos devedores e do seu agregado familiar já que o quantitativo excluído da cessão de rendimentos equivale já «ao que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» (artigo 239.º do CIRE).
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 7704/17.7T8STB.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Maria Domingas Simões
Mário Branco Coelho

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO
I.1.
(…) e (…), insolventes nos autos, interpuseram recurso da decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Setúbal, Juiz 1, do Tribunal Judicial de Setúbal, proferido em 1 de outubro de 2024, o qual tem o seguinte teor:
«Referências 8171492 e 8220757 (30.07.2024 e 03.09.2024):
Durante o período de prorrogação da cessão os insolventes mantêm as suas obrigações de cessão, nomeadamente a de ceder rendimentos.
Logo, assiste total razão ao Sr. Fiduciário, estando, após o 2º ano da prorrogação do período de cessão, em dívida, € 55.955,54.
Assim, notifique os insolventes que deverão liquidar a dívida de cessão até ao final do período de cessão, incluindo os montantes que se forem vencendo durante o 3º ano do período de prorrogação de cessão.»

I.2.
Os recorrentes formularam alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. Os requerentes, em virtude dos recursos de que foi objeto a sentença inicial de exoneração do passivo restante, não iniciaram desde logo os seus descontos conforme fixado, devendo liquidar a dívida dos descontos que não efetuaram até ao final do período da cessão.
2. O Exmo. Sr. Administrador de Insolvência apurou uma dívida dos insolventes no montante de € 29.634,08, no final do terceiro ano de cessão.
3. Os insolventes vieram, assim, nos termos e para os efeitos do artigo 242.º-A do CIRE, requerer a prorrogação do período de exoneração, por mais três aos, para que pudessem liquidar a dívida existente.
4. Considerando que os insolventes entregavam anualmente à insolvência cerca de € 25.000,00, o período adicional de dois anos é suficiente para acautelar o pagamento total da dívida considerando que os seus únicos rendimentos são de pensões pagas pelo Estado.
5. Conforme já estava suficientemente comprovado nestes autos, os insolventes são pessoas de idade já avançada cujas necessidades médicas e medicamentosas são elevadas; esse facto obriga a que vivam nos seus limites económicos.
6. Foi assim requerido pelos insolventes no seu requerimento de prorrogação de prazo que o Exmo. Administrador de Insolvência efetuasse o cálculo dos descontos necessários a efetuar para no período de três aos ser liquidada a dívida, ficando o remanescente como rendimento disponível para os insolventes.
7. O douto tribunal a quo determinou que o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência efetuasse o cálculo da dívida e o notificasse aos requerentes – o que o ilustre A.I. nunca fez; nem fez o cálculo nem fez a notificação aos insolventes do valor em dívida.
8. Considerando as condições económicas e de saúde dos insolventes considerou-se estarem reunidas as condições para os insolventes virem requerer a prorrogação de um período extraordinário de mais três anos para que os insolventes consigam cumprir as suas obrigações para com os credores, ou seja, e como claramente resulta do requerimento do valor remanescente e exclusivamente desse valor.
9. O teor literal do despacho foi o seguinte:
Referência 64694403 (02.05.2022):
Ao abrigo do disposto no artigo 243.º-A, n.º 3, do CIRE por se entender que existe a probabilidade séria de os insolventes cumprirem com as suas obrigações de cessão, decide-se prorrogar por 3 anos o período de cessão.
Notifique, devendo, ainda, o sr. Fiduciário informar os insolventes do montante total em dívida, de modo a que este seja pago nos 36 meses de cessão agora em curso.
10. Na época o período de cessão era de 5 anos e ficou estabelecido que até ao 5.º ano os insolventes pagariam esse valor em dívida (de aproximadamente € 30.000,00 e que ia sendo alterado anualmente pelo sr. Administrador da Insolvência em virtude de todos os anos existirem aumentos das pensões e alterações das taxas de retenção do IRS).
11. Com a alteração legislativa ocorrida em 2022 com a publicação da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, o período de cessão de rendimentos passou de 5 anos para 3 anos sendo que nos termos do n.º 2 do artigo 10.º da citada Lei n.º 9/2022 com a sua entrada em vigor (o que ocorreu em 11 de abril de 2022) o período de cessão de rendimentos na insolvência de pessoas singulares que já tenha decorridos 3 anos considerava-se cumprido.
12. Sucede então que os insolventes requerem a sua exoneração de passivo restante o que foi deferido pelo douto despacho de 12.03.2018, pelo que com a entrada em vigor da Lei 9/2022 em 11 de abril de 2022 os insolventes já haviam cumprido a sua obrigação de cessão de rendimentos.
13. Os insolventes então, para pagamento desse valor em falta, requereram uma extensão do seu período de cessão de rendimentos para liquidar o valor que estava em dívida.
14. E requereram em 2.05.2022 a prorrogação do período de cessão, exclusivamente para liquidar o valor que estava em dívida e que tinha de ser pago até ao 5.º ano de cessão de rendimentos.
15. Sucede que, em 1.10.2024, o douto tribunal parece vir a concordar com a interpretação do sr. AI que pretendia a cessão de rendimentos mais o pagamento do valor em dívida.
16. Tal despacho é incompatível com o despacho de deferimento que fez caso julgado nos termos do artigo 620.º do Código de Processo Civil, o que obrigou os insolventes a pedir a aclaração desse despacho em 8.10.2024 e, em 14.10.2024, o douto tribunal a quo vem dizer o seguinte:
Referência 8294918 (04.10.2024):
Tomei conhecimento.
Referência 8302524 (08.10.2024):
Tomei conhecimento.
Oficie como requerido.
O despacho datado de 1.10.2024 não revoga o despacho datado de 30.06.2022.
Com efeito, o que o Tribunal considerou em 30.06.2022 foi que no período de prorrogação existiam sérias possibilidades de os insolventes cumprirem com as suas obrigações de cessão, nomeadamente através do pagamento das quantias em dívida (e por isso solicitou ainda que o sr. Fiduciário informasse do montante total em dívida).
Não foi referido pelo tribunal, nem o podia ser porque o período de cessão se manteve com a prorrogação, que os insolventes não mantinham as suas obrigações mensais de cessão, para além do pagamento da dívida já existente.
Pelo que nada há a aclarar e nada mais há a esclarecer.
Notifique.
17. Ora esta decisão é incompatível com a anterior porquanto os insolventes requereram o período adicional para liquidar o valor remanescente pois o propósito do artigo 242.º-A do CIRE permite a prorrogação do período de cessão para que o devedor cumpra as suas obrigações com os credores, mas não para estender indefinidamente o pagamento com rendimentos adicionais.
18. (…)
19. Assim, a prorrogação visa única e exclusivamente permitir ao devedor o pagamento dos valores em dívida e não uma cessão de rendimentos automática por mais três anos pelo que uma vez paga a dívida estabelecida pelo tribunal, o devedor tem de ser liberado dessa obrigação.
20. O princípio da razoabilidade e da boa-fé implica que a prorrogação do período de cessão deve ser limitada ao valor em dívida, especialmente considerando as condições financeiras e de saúde dos insolventes.
21. Prorrogar o período de cessão para além do necessário para quitar o saldo devedor não apenas imporia uma obrigação desproporcional, mas também contrariaria o objetivo de reabilitação financeira do insolvente, que é a base do processo de insolvência.
22. Como poderia fazer sentido o insolvente por sua iniciativa sujeitar-se a novo período de cessão de rendimentos, mantendo o seu esforço de sobreviver com o rendimento mínimo que o Tribunal lhe fixa e, em cima disso, pagar o remanescente?
23.O insolvente teria de se sujeitar a um sacrifício muito superior quando o propósito da norma é dar-lhe mais prazo para cumprir com o que ficou em dívida – no caso vertente o prejuízo parece que seria do sobro do valor da dívida, ou sejam mais € 30.000,00.
24. A interpretação da norma do artigo 242.º-A do CIRE no sentido em que agora o tribunal a quo entende e que a prorrogação impõe o castigo de manutenção de cessão de rendimentos, acrescido do pagamento do valor em dívida, viola o artigo 18.º, n.º 2, da CRP por não respeitar o princípio da proporcionalidade na vertente da adequação da norma na medida em que determinaria a obrigaria o insolvente a um esforço quase impossível de manter a cessão do seu rendimento e pagar o valor em dívida, não se cumprindo o propósito da insolvência pessoal que consiste na liberação dos créditos.
25. O douto acórdão 107/2001 do Tribunal Constitucional afirmou que «relativamente às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República. Mas o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito. Impõe-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projetada ação aos fins pretendidos, e não configurar as medidas que tomam como desnecessária ou excessivamente restritivas.»
26. O processo de insolvência visa proporcionar uma “libertação” das obrigações financeiras após a cessação do valor devido pelo que forçar o devedor a continuar a cessão de rendimentos além do montante devido contraria a filosofia de reabilitação e reintegração financeira do devedor.
27. Se o tribunal impôs um valor específico a ser pago durante o período de cessão, é implícito que, uma vez pago esse montante, o período adicional de cessão não teria mais propósito e estender a cessão para além do saldo definido constitui uma penalização infundada aos insolventes.
28. A dívida remanescente, conforme calculada, seria o objetivo do período adicional e após a sua quitação, o devedor deveria ser liberado para retomar o seu rendimento sem cessões adicionais.
29. No caso específico do Insolvente, tanto a idade quanto as condições de saúde fora fatores significativos para a necessidade da prorrogação e condicionar a cessão dos rendimentos por um prazo adicional poderia comprometer a subsistência dos devedores, o que não é o propósito do regime de insolvência.
30. A cessão automática de rendimentos além desse valor contraria o princípio de boa-fé, a razoabilidade do processo e a própria intenção do artigo 242.º-A, que é permitir o cumprimento das obrigações dentro do limite da dívida e não impor um prolongamento indefinido da cessão de rendimentos».
I.3
Não foi apresentada resposta ao recurso.
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
Corridos os vistos, cumpre decidir, ao abrigo do artigo 656.º do Código de Processo Civil.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (cfr. artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A única questão que cumpre decidir respeita ao [des]acerto da decisão recorrida.
II.3.
FACTOS
Os factos a considerar e que resultam dos autos são os seguintes:
1 – Mediante sentença proferida em 12.03.2018, o tribunal de primeira instância deferiu o pedido de exoneração do passivo restante dos insolventes e determinou que durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os insolventes viessem a auferir se considerasse todo cedido ao fiduciário, com exclusão da quantia mensal correspondente a duas vezes e meia a remuneração mínima mensal garantida, 12 meses por ano.
2 – Interposto recurso daquela decisão, o Tribunal da Relação de Évora mediante acórdão proferido em 7 de junho de 2018, transitado em julgado, alterou aquela decisão na parte referente a “doze meses por ano”, substituindo-a por “treze meses por ano”.
3 – De acordo com a informação sobre o estado da cessão de rendimento disponível prestada nos autos em 15.02.2022 pelo sr. Administrador da insolvência no terceiro ano de cessão de rendimentos estavam em dívida € 29.634,08.
4 – Em 19 de abril de 2022, o tribunal a quo proferiu despacho com o seguinte teor:
«Foi publicada no passado dia 11 de janeiro de 2022 a Lei nº 9/2022, que introduziu diversas alterações ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante designado CIRE), tendo entrado em vigor no dia 11 de Abril, nos termos do seu artigo 12.º.
Dispõe o artigo 10.º, n.º 3, do referido diploma que: “Nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei.”
Nos presentes autos foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, tendo-se iniciado período de cessão de rendimento há mais de três anos.
Assim, de acordo com o referido no citado artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 9/2022, de 11/01, haveria de considerar desde já findo o período de cessão de rendimento disponível em curso.
No entanto, como existe dívida de cessão, notifique os insolventes para, em 10 dias, requerem o que tiverem por conveniente tendo em conta o disposto no artigo 242.º-A do CIRE (aditado ao CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11/01)».
5 – Mediante requerimento datado de 02.05.2022, os insolventes requereram a prorrogação do período de cessão por três anos.
6 – No requerimento referido em (5), os insolventes alegaram o seguinte: «Tendo os insolventes sido condenados a liquidar a dívida dos descontos que não efetuaram até ao final do período de cessão, o exmo. Sr. Administrador da Insolvência apurou uma dívida dos insolventes no montante de € 29.634,08 no final do terceiro ano da cessão. Dívida essa que, não obstante o período de exoneração por via da alteração legal ter sido fixado em 3 anos terá de ser paga à insolvência. Os insolventes vêm assim, nos termos e para os efeitos do artigo 242.º-A do CIRE requerer a prorrogação do período de exoneração por mais dois anos para que possam liquidar a dívida existente. (…) Solicita-se, assim, que o Exmo. Administrador da Insolvência efetue o cálculo dos descontos necessários a efetuar para no período de dois anos ser liquidada dívida, ficando o remanescente como rendimento disponível para os insolventes. (…) Nestes termos vêm requerer a V. Exa. que conceda a prorrogação da cessão por um período único de três anos bem coo solicitar ao sr. Administrador da insolvência para lhes informar do valor que deverá ser descontado mensalmente tendo em conta o valor em dívida».
7 – Sobre o requerimento referido em (5) e (6) recaiu o despacho proferido em 30.06.2022, referência 95162098, com o seguinte teor:
«Ao abrigo do disposto no artigo 243.º-A, n.º 3, do CIRE, e por se entender que existe a probabilidade séria de os insolventes cumprirem com as suas obrigações de cessão, decide-se prorrogar por 3 anos o período de cessão.
Notifique, devendo, ainda, o sr. Fiduciário informar os insolventes do montante total em dívida, de modo a que este seja pago nos 36 meses de cessão agora em curso.»
8 – Em 29 de junho de 2023, o sr. Fiduciário apresentou nos autos informação sobre o estado da cessão de rendimento disponível (e prestação de contas) relativo ao primeiro ano da prorrogação de cessão de rendimentos. Dele se extrai o seguinte trecho: «O Fiduciário comunicou o montante em dívida à data de 30.06.2022 de € 32.351,08, o que dividido em 36 meses determina uma obrigação mensal dos insolventes de € 888,64, ou seja, € 10.783,68 por cada ano de prolongamento da cessão de rendimentos. Salvo melhor opinião, a prorrogação do período de cessão de rendimentos reporta-se apenas a um prazo suplementar para o pagamento da dívida de € 32.351,08. (…) Durante o 1º ano do período de prorrogação de cessão foi entregue pelos devedores os montantes definidos no despacho».
9 – Em 21.09.2023, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Referência 7346835 (29.06.2023):
Tomei conhecimento.
Informe os insolventes e o sr. Fiduciário que no decurso da prorrogação do período de cessão, os insolventes mantêm as mesmas obrigações, devendo ceder mensalmente os valores que excedam o que lhes foi fixado como rendimento indisponível, tendo ainda de regularizar a dívida já anteriormente existente».
10 – Na mesma data o despacho referido em (9) foi notificado ao sr. Fiduciário e ao Exmo. mandatário dos insolventes.
11 – Em 8 de julho de 2024, o sr. Fiduciário apresentou nos autos informação sobre o estado da cessão de rendimento disponível (e prestação de contas) relativo ao segundo ano da prorrogação de cessão de rendimentos. Dele se extrai o seguinte trecho: «O Fiduciário comunicou o montante em dívida à data de 30.06.2022 de € 32.351,08, o que dividido em 36 meses determina uma obrigação mensal dos insolventes de € 888,64, ou seja, € 10.783,68 por cada ano de prolongamento da cessão de rendimentos. Através do despacho proferido em 21-09-2023, “no decurso da prorrogação do período de cessão, os insolventes mantêm as mesmas obrigações, devendo ceder mensalmente os valores que excedam o que lhes foi fixado como rendimento indisponível, tendo ainda de regularizar a dívida já anteriormente existente». Salvo melhor opinião, a prorrogação do período de cessão de rendimentos reporta-se a um prazo suplementar para o pagamento da dívida de € 32.351,08 e a cessão de rendimentos durante esse período nos termos fixados no despacho inicial de exoneração do passivo restante». (…) Os devedores, conforme se retira do despacho de prorrogação do período de cessão por 36 meses, têm a obrigação de, mensalmente, entregarem o montante de € 888,64, mais a diferença entre o rendimento mensal que auferem e o rendimento indisponível fixado no despacho inicial de exoneração do passivo restante. (…) Durante o 2º ano do período de prorrogação de cessão foi entregue pelos devedores o montante de € 9.909,29, ou seja, não foi entregue o montante que deveria ter sido entregue no cumprimento do despacho de prorrogação do período de cessão de rendimentos do passivo restante. Conforme despacho de 21.09.2023, o valor em dívida, sem contar com a parcela de dívida anterior a pagar no 3º ano de prorrogação do despacho inicial de cessão de rendimentos, é de € 44.891,83 (…)».
12 – Mediante requerimento de 30.07.2024, os insolventes vieram alegar e requerer o seguinte:
«(…) uma vez que está expresso, pelo despacho do tribunal, quer pela informação transmitida pelo Administrador de Insolvência, assim como pelos insolventes, o valor da dívida é de € 32.351,08. Do valor em dívida de € 32.351.08 foram entregues € 27.167,84, a saber:
a. 1º ano de prorrogação: € 17.258,55 (…)
b. 2º ano de prorrogação: € 9.909,29 (…)
Deste modo, dúvidas não restam que fica em falta o pagamento no valor de € 5.183,24. Pelo que se requer a V. Exa. que notifique o Administrador da insolvência de que o valor em falta pelo 3º ano de prorrogação é de € 5.183,24. E que o sr. Administrador de Insolvência venha informar qual o valor em falta para que os insolventes possam liquidar o remanescente e consequentemente seja encerrado o processo.
13 – Ordenada a sua notificada para se pronunciar, o sr. Fiduciário veio apresentar em 03.09.2024, requerimento que culmina com o seguinte:
«(…)
a) Caso seja de considerar o despacho de 21.09.2023 (documento 2), o montante a ceder no 3º ano de prorrogação do período de cessão será o que resultar dos valores que excedam os que lhes foi fixado como rendimento indisponível nesse ano, acrescido dos valores em dívida de € 55.955,54 (€ 5.183,24 do saldo da dívida anterior ao despacho de prorrogação + € 30.203,42 de valores não cedidos no 1.º ano de prorrogação + € 20.568,88 de valores não cedidos no 2º ano de prorrogação);
b) Caso contrário, ou seja, sem se considerar o despacho de 21.09.2023 (doc. 2), o montante a ceder no 3º ano de prorrogação do período de cessão será de € 5.183,55 valor em falta para concluir o pagamento da dívida inicial
14 – Em 1 de outubro de 2024, o julgador a quo proferiu o despacho (recorrido) com o seguinte teor:
«Referências 8171492 e 8220757 (30.07.2024 e 03.09.2024):
Durante o período de prorrogação da cessão os insolventes mantêm as suas obrigações de cessão, nomeadamente a de ceder rendimentos.
Logo, assiste total razão ao Sr. Fiduciário, estando, após o 2º ano da prorrogação do período de cessão, em dívida, € 55.955,54.
Assim, notifique os insolventes que deverão liquidar a dívida de cessão até ao final do período de cessão, incluindo os montantes que se forem vencendo durante o 3º ano do período de prorrogação de cessão.»
15 – Mediante requerimento datado de 08.10.2024, os insolventes requereram ao tribunal recorrido «a aclaração e esclarecimento se com o último despacho proferido o douto tribunal revoga o seu despacho de 30.06.2022».
16 – Sobre o requerimento referido em (15) recaíu o despacho datado de 14.10.2024, com o seguinte teor:
«(…)
Referência 8302524 (08.10.2024):
Tomei conhecimento.
Oficie como requerido.
O despacho datado de 1.10.2024 não revoga o despacho datado de 30.06.2022.
Com efeito, o que o Tribunal considerou em 30.06.2022 foi que no período de prorrogação existiam sérias possibilidades de os insolventes cumprirem com as suas obrigações de cessão, nomeadamente através do pagamento das quantias em dívida (e por isso solicitou ainda que o sr. Fiduciário informasse do montante total em dívida).
Não foi referido pelo tribunal, nem o podia ser porque o período de cessão se manteve com a prorrogação, que os insolventes não mantinham as suas obrigações mensais de cessão, para além do pagamento da dívida já existente.
Pelo que nada há a aclarar e nada mais há a esclarecer.
Notifique.»
II.4.
Apreciação do mérito do recurso
Está em causa no presente recurso uma decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que determinou que durante o período de prorrogação da cessão os insolventes mantinham as suas obrigações de cessão, nomeadamente a de ceder rendimentos, a par da obrigação de pagamento da quantia que ficou em dívida no período de cessão de rendimentos original (ou seja, antes da prorrogação do prazo).
A decisão sob recurso foi proferida no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, o qual visa dar ao devedor, pessoa singular, uma oportunidade de começar de novo, libertando-o das dívidas remanescentes (embora conciliando este propósito, de uma forma proporcional, com os interesses dos credores do insolvente).
Uma vez admitida liminarmente a exoneração do passivo restante, o tribunal fixa o montante do rendimento indisponível do insolvente de acordo com as regras previstas e impostas pelo artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo D/L n.º 53/2004, de 18 de março (CIRE), recaindo sobre o insolvente a obrigação de ceder ao fiduciário escolhido pelo tribunal, o rendimento disponível durante um determinado período subsequente ao encerramento do processo, o qual o fiduciário afecta às finalidades previstas no artigo 241.º do CIRE.
Destarte, durante um determinado período após o encerramento do processo de insolvência, uma parte do rendimento do devedor é afecta à satisfação dos créditos remanescentes após a liquidação, extinguindo-se no final do período aqueles que não tenha sido possível cumprir. O facto de os credores apenas poderem exigir a satisfação dos seus créditos durante um determinado prazo subsequente ao encerramento do processo de insolvência exige, em contraponto, que também o insolvente tenha de fazer sacrifícios para conseguir pagar o máximo de rendimento disponível aos primeiros, recaindo sobre ele um feixe de deveres que se mostram previstos no artigo 239.º do CIRE. Entre os deveres previstos no artigo 239.º/3, do CIRE encontra-se justamente o dever de entregar ao fiduciário o rendimento disponível.
Dispõe aquele normativo, sob a epígrafe Cessão do rendimento disponível, o seguinte:
«3 – Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
(i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
(ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
(iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
(…)».
Durante a pendência do período da cessão coexistem, assim, duas massas patrimoniais distintas: o chamado rendimento indisponível que é constituído por todos os rendimentos auferidos pelo devedor durante o período de cessão que se encontram tipificado no n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, do qual este último poderá dispor sem qualquer restrição resultante do processo de insolvência ou do período da cessão e a fidúcia que é o conjunto de bens, direitos e rendimentos afectos à satisfação dos credores durante o período da cessão, desdobrando-se em duas subcategorias: o rendimento disponível (ou seja, os rendimentos adquiridos pelo insolvente durante o período de cessão (artigo 239.º/2); e os bens e direitos suscetíveis de alienação que tenham sido adquiridos pelo devedor durante o período da cessão (artigo 241.º-A)[1].
Por força da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11.01[2] – que é aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor[3] – o período da cessão de rendimentos passou de cinco para três anos[4]. Desta forma, adaptou-se aquele que era o limiar máximo determinado pelo n.º 1 do artigo 21.º da Diretiva em transposição, que determina que o prazo após o qual os Estados Membros estão obrigados a assegurar que os empresários insolventes podem beneficiar de um “perdão total” das suas dívidas é, justamente, no máximo de três anos.
Para além de ter procedido à alteração do período de cessão de rendimentos, a Lei n.º 9/2022, de 11.01 criou a possibilidade de prorrogação daquele prazo. E, assim, foi aditado ao CIRE o artigo 242.º-A que sob a epígrafe Prorrogação do período de cessão, estatui o seguinte:
«1- Sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º, o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado:
a) Do devedor;
b) De algum credor da insolvência;
c) Do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
2 – O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, sendo oferecida logo a respetiva prova.
3 – O juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão, e decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional.»
Em face do disposto no normativo legal supra transcrito o(s) insolventes que se encontram em situação de incumprimento quanto à obrigação de entrega à fidúcia do rendimento disponível pode requerer no processo a prorrogação do prazo de cessão, sendo que esta prorrogação surge como alternativa à recusa de exoneração. Com efeito, «o que se pretende com esta prorrogação é evitar que, ao fim de três anos de sacrifícios do devedor, exista uma provável decisão de recusa de exoneração do passivo restante, permitindo-se, por este meio, que um período adicional de esforço da sua parte possa conduzir à exoneração pretendida» – Acórdão da RP de 13.09.2022, processo n.º 1536/18.2T8AMT-E.P1, consultável em www.dgsi.pt.
Nos termos da lei o juiz pode agora decidir pela prorrogação do período de exoneração desde que tenha havido requerimento fundamentado de alguma das pessoas indicadas no artigo 242.º-A, n.º 1, do CIRE; e, depois de ouvir as pessoas indicadas no n.º 2 daquele preceito legal, pode decretar a prorrogação se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional.
Quanto ao teor da obrigação que decorre para o devedor da prorrogação do prazo de cessão, nomeadamente nos casos, como o presente, em que os insolventes incumpriram a obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível, a que estavam obrigados por força do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE[5], prefiguram-se duas leituras possíveis: (i) a prorrogação do período de cessão visará apenas permitir ao insolvente o pagamento da quantia em dívida, isto é, dos valores que deveriam ter sido entregues durante o período de cessão fixado inicialmente e não o foram, caso em que haverá que calcular o montante em dívida e fracionar o seu pagamento pelo período de prorrogação; ou (ii) a prorrogação do período de cessão de rendimentos abre um novo período de cessão, tendo o devedor de continuar a entregar à fidúcia, no período em causa, o valor que foi fixado como correspondendo ao rendimento disponível, sem prejuízo desse montante poder ser revisto pelo juiz nos termos em que o seria no período inicial de cessão de rendimentos e de acordo com o disposto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE.
Independentemente do entendimento que se perfilhe, o que não nos parece possível é cumular o pagamento da quantia que estava em falta à fidúcia (portanto, que não foi entregue pelo devedor até ao termo do período de cessão inicial) com a obrigação de entrega do rendimento disponível que caracteriza o período de cessão, sob pena de se pôr em risco a própria subsistência dos devedores e do seu agregado familiar já que o insolvente já se encontra no limiar da taxa de esforço relativamente à obrigação de entrega do rendimento disponível. Com efeito, se o quantitativo excluído da cessão de rendimentos equivale já «ao que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» (cfr. artigo 239.º do CIRE), o devedor só conseguirá cumular o pagamento das quantias em dívida com a entrega do rendimento disponível pondo em risco a sua própria subsistência e a do seu agregado familiar. Logo, uma interpretação que permita que no período de prorrogação da cessão de rendimentos se cumule a obrigação de pagamento das quantias em dívida com a obrigação de entrega do rendimento disponível e que, dessa forma, se ponha em risco a subsistência do devedor e respetivo agregado familiar, mostra-se desconforme ao princípio de proporcionalidade inerente ao instituto em causa e, consequentemente, desconforme à Constituição, cujo artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte, da Constituição da República dispõe que as restrições aos direitos, liberdades e garantias devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
No caso concreto os insolventes requereram, ao abrigo do disposto no artigo 242.º-A, n.º 1, do CIRE, a prorrogação do período de cessão de rendimentos e por despacho proferido em 30.06.2022, o tribunal de primeira instância decidiu prorrogar o período de cessão por três anos.
O teor do referido despacho é o seguinte:
«Referência 64694403 (02.05.2022):
Ao abrigo do disposto no artigo 243.º-A, n.º 3, do CIRE, e por se entender que existe a probabilidade séria de os insolventes cumprirem com as suas obrigações de cessão, decide-se prorrogar por 3 anos o período de cessão.
Notifique, devendo, ainda, o sr. Fiduciário informar os insolventes do montante total em dívida, de modo a que este seja pago nos 36 meses de cessão agora em curso».
Os apelantes interpretaram o despacho acima referido no sentido de que a prorrogação do período de cessão visava única e exclusivamente permitir-lhes o pagamento do valor que se mostrava em dívida (cfr. artigos 16, 17 e 19 das conclusões de recurso), resultando dos autos que o sr. Fiduciário os informou que o montante em dívida de € 32.351,08, repartido por 36 meses, implicaria o pagamento de € 898,64/mês.
Donde, após terem sido notificados do despacho datado de 1.10.2024 no qual o julgador a quo escreveu que:
«Durante o período de prorrogação da cessão os insolventes mantêm as suas obrigações de cessão, nomeadamente a de ceder rendimentos.
Logo, assiste total razão ao Sr. Fiduciário, estando, após o 2º ano da prorrogação do período de cessão, em dívida, € 55.955,54.
Assim, notifique os insolventes que deverão liquidar a dívida de cessão até ao final do período de cessão, incluindo os montantes que se forem vencendo durante o 3º ano do período de prorrogação de cessão.»
Os insolventes tenham vindo pedir nos atos a aclaração do referido despacho, pedido que mereceu despacho com o seguinte teor:
«O despacho datado de 1.10.2024 não revoga o despacho datado de 30.06.2022.
Com efeito, o que o Tribunal considerou em 30.06.2022 foi que no período de prorrogação existiam sérias possibilidades de os insolventes cumprirem com as suas obrigações de cessão, nomeadamente através do pagamento das quantias em dívida (e por isso solicitou ainda que o sr. Fiduciário informasse do montante total em dívida).
Não foi referido pelo tribunal, nem o podia ser porque o período de cessão se manteve com a prorrogação, que os insolventes não mantinham as suas obrigações mensais de cessão, para além do pagamento da dívida já existente.
Pelo que nada há a aclarar e nada mais há a esclarecer.
Notifique.»
Na perspectiva dos apelantes aqueles dois despachos são contraditórios entre si e o segundo despacho viola o caso julgado formado com o primeiro despacho.
Quid juris?
Resulta dos autos que o despacho proferido em 30.06.2022 não foi objeto de reclamação ou de recurso, pelo que transitou em julgado (artigo 628.º do CPC).
O caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu), tornando indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal.
É consabido que o caso julgado visa garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou da segurança jurídica indispensáveis à vida de relação[6].
O caso julgado pode ser material ou formal, assentando o critério da distinção no âmbito da sua eficácia; assim, o caso julgado material tem força obrigatória dentro e fora do processo e por isso não pode ser alterado em qualquer ação nova que porventura se proponha sobre o mesmo objeto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir (artigo 619.º do CPC); já o caso julgado formal não projeta a sua eficácia para fora do processo respetivo, pelo que a sua imutabilidade restringe-se ao processo em que se formou (artigo 620.º do CPC).
No caso, o juízo valorativo de “incompatibilidade” entre os despachos acima referidos implica que se proceda, previamente, a uma interpretação do despacho que transitou em julgado, ou seja, do despacho proferido em 30.06.2022.
A interpretação das decisões judiciais – sentenças, acórdãos e os despachos judiciais – são atos jurídicos; atento o disposto no artigo 295.º do Código Civil, a sua interpretação deve obedecer aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos previstos nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil. Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2003[7] «Constitui jurisprudência pacífica que a interpretação de uma sentença (ou acórdão, como é o caso) judicial, como ato jurídico que é, deve obedecer, por força do disposto no artigo 295º do Código Civil, aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos – cfr. o acórdão do STJ, de 28/1/1997, CJSTJ, ano V, tomo I, página 83. Significa isto que a sentença deve ser interpretada de acordo com o que dispõe o n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, ou seja, com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do seu contexto. Por isso que, parafraseando o referido acórdão de 28/1/1997, para interpretarmos corretamente a parte decisória de uma sentença teremos de analisar os seu antecedentes lógicos que a tornam possível e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência. A interpretação da sentença exige, assim ,que se tome em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, fatores básicos da sua estrutura. De realçar, ainda, que, embora o objeto da interpretação seja a própria sentença, a verdade é que nessa tarefa interpretativa há que ter em conta outras «circunstâncias», mesmo que posteriores, que funcionam como «meios auxiliares de interpretação», na medida em que daí se possa retirar «uma conclusão sobre o sentido» que se lhe quis emprestar (cfr. Vaz Serra, RLJ, Ano 110º, pág. 42). Acresce que nunca poderá valer um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto da decisão, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238.º do Código Civil)».
Vejamos, pois, os critérios de interpretação que urge convocar para alcançar o sentido do despacho acima referido.
De acordo com o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, o sentido decisivo da declaração negocial será «aquele que seja apreendido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante», a não ser que este, razoavelmente não pudesse contar com tal sentido». Por outras palavras, «o alcance decisivo da declaração será aquele que, em abstrato, lhe atribuiria um declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição do declaratário real, em face das circunstâncias que este efetivamente conheceu e das outras que podia ter conhecido, maxime dos termos da declaração, dos interesses em jogo e o seu mais razoável tratamento, da finalidade prosseguida pelo declarante, das circunstâncias concomitantes, do usos da prática e da lei»[8].
No labor interpretativo das declarações negociais são atendíveis quer as circunstâncias contemporâneas das mesmas, quer as anteriores à sua emissão, quer ainda as posteriores. Note-se, ainda, que tratando-se de um negócio formal, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil).
Dito isto, no despacho proferido em 30.06.2022 o julgador a quo escreveu que «por se entender que existe a probabilidade séria de os insolventes cumprirem com as suas obrigações de cessão, decide-se prorrogar por 3 anos o período de cessão». A referência ao “cumprimento das obrigações da cessão” quando uma das obrigações dos insolventes durante o período de cessão é, justamente, a entrega à fidúcia do rendimento disponível, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE, pode inculcar a ideia de que naquele concreto segmento o tribunal estava a referir-se à obrigação de entrega do rendimento disponível, obrigação própria da cessão. Já no final do despacho o julgador a quo ordenou a notificação do sr. Fiduciário “para informar os insolventes do montante total em dívida, de modo a que este fosse pago nos 36 meses de cessão agora em curso”, numa manifesta alusão à quantia que estava em falta à fidúcia. Ora, o despacho de 30.06.2022 foi proferido na sequência de um requerimento apresentado pelos insolventes (datado de 02.05.2022) no qual eles pediam ao tribunal a prorrogação do período de cessão para que pudessem liquidar a dívida existente decorrente dos “descontos que não efetuaram até ao final do período de cessão” (sic) (e que de acordo com os cálculos efetuados pelo sr. Fiduciário ascendia a € 29.634,08 no final do terceiro ano da cessão). Ou seja, o pedido dos insolventes de prorrogação do prazo de cessão foi, manifestamente, que lhes fosse concedida uma (segunda) oportunidade de pagarem à fidúcia a quantia que lhe deviam por força da falta de entrega do rendimento disponível a que ficaram vinculados durante o período de cessão inicialmente fixado. Acresce, ainda, que aquele requerimento dos insolventes foi apresentado, por sua vez, na sequência de um despacho proferido pelo tribunal recorrido no qual se faz expressa menção à existência de uma “dívida de cessão” ordenando-se, de seguida, «a notificação dos insolventes para, em 10 dias, requerem o que tiverem por conveniente tendo em conta o disposto no artigo 242.º-A do CIRE (aditado ao CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11/01). Isto é, o circunstancialismo que antecedeu a prolação daquele despacho de 30.06.2022 justifica a interpretação preconizada pelos apelantes, a qual, diga-se, tem um mínimo de correspondência no texto da decisão (artigo 238.º do CC). Dir-se-á, ainda, que caso o julgador a quo tivesse pretendido dizer no despacho de 30.06.2022 que, durante os 36 meses de prorrogação do prazo de cessão, os insolventes, para além de pagarem o valor e dívida tinham de continuar a entregar à fidúcia o rendimento disponível, não se lhe imporia, de acordo com os ditames da boa-fé, que o dissesse expressamente, dado que não podia ignorar a intenção dos insolventes subjacente ao requerimento acima referido e ao qual o despacho veio dar uma resposta?
Em face de todo o exposto, julgamos que o despacho proferido em 30.06.2022 deve ser interpretado no sentido preconizado pelos apelantes, ou seja, que os insolventes ficavam obrigados a pagar, apenas, ao longo dos 36 meses da prorrogação, o valor que não haviam entregue à fidúcia durante o prazo de 3 anos original. Sentido que é, aliás, o único conforme ao princípio constitucional da proporcionalidade.
Donde, tendo aquele despacho transitado em julgado, como se disse, passou a ter força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º, n.º 1, do CPC) e, consequentemente, o tribunal de primeira instância, ou qualquer outro tribunal, não pode deixar de respeitar o decidido naquela decisão judicial.
Assim sendo, o despacho recorrido ao determinar que durante o período de prorrogação da cessão os insolventes mantêm as suas obrigações de cessão, nomeadamente a de ceder rendimentos, ordenando «a notificação dos insolventes para que liquidem a dívida de cessão até ao final do período de cessão, incluindo os montantes que se forem vencendo durante o 3º ano do período de prorrogação de cessão» viola o caso julgado formado pelo despacho de 30.06.2022, pelo que não se pode manter.
Procede, assim, a apelação.

Sumário: (…)


III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade dos apelantes porque foram quem tirou proveito do recurso (artigo 527.º do CPC).
Notifique.
Évora, 19 de dezembro de 2024
Cristina Dá Mesquita
Maria Domingas Simões
Mário Branco Coelho

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[1] Maria do Rosário Epifânio, A Exoneração do passivo restante – Algumas questões, Revista Julgar, n.º 48, págs. 39 e seguintes.
[2] A qual transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Diretiva (EU) 2019/2023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019.
[3] A entrada em vigor ocorreu em 11.04.2022.
[4] Dispõe o artigo 235.º do CIRE que «se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo».
[5] Nos termos deste normativo legal, durante o período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto da cessão.
[6] Refira-se, porém, que pode haver circunstâncias excecionais em que o caso julgado pode ser alterado, ou seja, em que o interesse da segurança deve ceder perante a necessidade superior de assegurar a justiça. Com efeito, o caso julgado material pode ser modificado ou revogado por via do recurso extraordinário de revisão quando aquele se haja formado em condições anormais, isto é, quando hajam ocorrido circunstâncias patológicas suscetíveis de produzir uma injustiça clamorosa – Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 158.
[7] Processo n.º 03B1993, relator Ferreira Girão, consultável em www.dgsi.pt.
[8] J. Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial, apud Ac. RG de 23.04.2020, processo n.º 212/12.4TBPLT.G2, consultável em www.dgsi.pt.
[9] Nos termos deste normativo legal, durante o período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto da cessão.